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Bernardo Guimarães e o paraíso obsceno A floresta enfeitiçada e os corpos da luxúria no romantismo
Por Irineu Eduardo Jones Corrêa
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras (Ciência da Literatura), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras (Ciência da Literatura)
Orientador: Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho Co-orientador: Professor Doutor Celina Maria Moreira de Mello
Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras 2006
IRINEU EDUARDO JONES CORRÊA
Bernardo Guimarães e o paraíso obsceno: a floresta enfeitiçada e os corpos da luxúria no romantismo
1 volume
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras (Ciência da Literatura), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras (Ciência da Literatura)
Orientador: Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho Co-orientador: Professor Doutor Celina Maria Moreira de Mello
Rio de Janeiro 2006
IRINEU EDUARDO JONES CORRÊA
C824b Tese CORRÊA, Irineu Eduardo Jones. 1953
Bernardo Guimarães e o paraíso obsceno: a floresta enfeitiçada e os corpos da luxúria no
romantismo/ Irineu Eduardo Jones Corrêa. Rio de Janeiro, 2006.
viii, 245f.: il.; 29,7 cm. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Letras. 1988. Orientador: Luiz Edmundo Bouças Coutinho Co-orientador: Celina Maria Moreira de Mello Bibliografia: p. 223 – 245.
1. Guimarães, Bernardo, 1825-1884. 2. Poesia – história e interpretação. 3. Romantismo. 4. Palavrão – palavra obscena. I. Coutinho, Luiz Edmundo Bouças (Orient.). II. Mello, Celina Maria Moreira de (Co-orient.) III. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. IV. Título.
CDD: B869.1
Por Maria das Graças Gonçalves da Silva – CRB-07 3502 – 27 de março de 2006
Bernardo Guimarães e o paraíso obsceno: a floresta enfeitiçada e os corpos da
luxúria no romantismo Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras (Ciência da Literatura), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras (Ciência da Literatura) Rio de Janeiro, 28 de abril de 2006 _____________________________ Luiz Edmundo Bouças Coutinho, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro ________________________ Celina Maria Moreira de Mello, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro _______________________ Fernando Fábio Fiorese Furtado, Professor Doutor, Universidade Federal de Juiz de Fora _______________________ Wellington de Almeida Santos, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro _______________________ José Carlos Santos de Azeredo, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro _______________________ Alberto Pucheu Neto, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro ________________________ Armando Ferreira Gens Filho, Professor Doutor, Universidade do Estado do Rio de Janeiro ________________________ Vera Lúcia Lins de Oliveira, Professor Doutor Universidade Federal do Rio de Janeiro
Aos poetas e aos censores que levam obscenidades e palavrões a sério.
A José Maria Pinto Vaz Coelho que primeiro colocou os poemas obscenos
de Bernardo em livro de uma grande editora.
A Sebastião Nunes que fez uma edição de luxo para eles.
AGRADECIMENTOS
Aos meus orientadores, Celina Moreira de Mello e Luiz Edmundo Bouças Coutinho, meio enfermeiros, meio psicanalistas, Mestres no absoluto. Aos professores da banca, pelo cuidado e atenção que dedicaram ao trabalho. Aos professores e colegas dos cursos que contribuíram para decisões e escolhas referentes à tese. Aos colegas da Fundação Biblioteca Nacional, em especial ao pessoal do balcão e dos armazéns de Obras Gerais, sempre dispostos a ensinar os detalhes de uma edição e localizar a obra invisível. A José Carlos Azeredo, Pedro Paulo Catharina e Theomar Jones amigos generosos e apoiadores. A Maria Lopes Corrêa, Pedro Lopes Corrêa e Ana Lúcia Maciel Lopes, Themis Corrêa e Irineu Dias Corrêa que perguntaram, riram e ajudaram a cada dia deste longo caminho.
RESUMO
CORRÊA, Irineu Eduardo Jones Corrêa. Bernardo Guimarães e o paraíso obsceno: a floresta enfeitiçada e os corpos da luxúria no romantismo. Rio de Janeiro, 2006. Tese. (Doutorado em Letras - Ciência da Literatura) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
Estudo sobre os poemas “Orgia dos duendes” (1865), “Elixir do pajé” e “A origem do mênstruo” (1875), de Bernardo Guimarães (1825-1884). O satanismo e a obscenidade que os textos convocam fazem deles obras estranhas ao paraíso poético, do romantismo literário nacional. O primeiro circula em antologias oficiais, mas os outros dois são marginalizados, surgindo apenas em publicações dedicadas a obras pornográficas e marginais. As análises dos poemas colocarão em perspectiva o contexto em que eles se constituíram, considerados os valores simbólicos vigentes na literatura brasileira, do tempo em que foram escritos e em diferentes momentos em que foram lidos. Serão experimentados conceitos como campo literário, grupo hegemônico, valor, habitus, lector propostos pela teoria do poder simbólico de Pierre Bourdieu. O texto do poeta será considerado enquanto produtividade e, portanto, de leitura condicionada a novas e constantes re-qualificações, conforme propuseram a teoria do texto de Roland Barthes e Julia Kristeva.
ABSTRACT
CORRÊA, Irineu Eduardo Jones Corrêa. Bernardo Guimarães e o paraíso obsceno: a floresta enfeitiçada e os corpos da luxúria no romantismo. Rio de Janeiro, 2006. Tese. (Doutorado em Letras - Ciência da Literatura) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. An study on Bernardo’s Guimarães (1825-1884) poems ”A orgia dos duendes” (1865), “Elixir do pajé” (1875) e “A origem do mênstruo” (1875). The satanism and the obscenity that these texts present separate them from the poetical paradise of Brazilian’s Romanticism literary. The first of these poems figures in official anthologies. The others, however, are set aside from the traditional literary history, being found only in selections specially focused on pornographic and marginalized works. The analysis of these poems shall allow a perspective view on the context in which they were crafted, taking into consideration the various symbolic values that were valid by the time they were written and also in the different moments they have been read. Concepts proposed by Pierre Bourdieu’s Symbolic Power Theory will be experimented. The Poet’s text will be understood as “productivity”, thus subject to new and constant “re-qualifications” as proposed by “the Theories of the Text” of Roland Barthes and Julia Kristeva.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1. Primeira Missa no Brasil – 1861. MEIRELLES. Nota 124: p. 95. Figura 2. Batalha de Guararapes – 1875-1879. MEIRELLES. Nota 125: p. 97. Figura 3. Morte de Moema - 1866. MEIRELLES. Nota 126: p. 98. Figura 4. A Primavera - c.1477/78. BOTTICELLI. Nota 129: p. 103. Figura 5. Fauna do Brasil segundo Nieuhof. In: TAUNAY, (1934), 1998. Nota 133: p. 106. Figura 6. [A cena do canibalismo]. In: STADEN, 1557. Nota 168: p. 125. Figura 7. [A tentação na terra]. Grav. Th. de Bry. In. LÉRY, (1578), 1994. Nota 173: p. 128. Figura 8. América. Anônimo. Nota 224: p. 151. Figura 9. Salve! Querido Brasileiro Dia. Lith. De Lasteyrie. s.d. Nota 228: p. 154. Figura 10. [O cauim]. In: THEVET, 1575. Nota 267: p. 176. Figura 11. Virgem de Willendorf. Cerca de 20.000 aC. Nota 275: p. 181. Figura 12. [Vênus e Júpiter]. Raphael (1483-1520). Nota 338: p. 212.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 9
2 O PROBLEMA E O MÉTODO 29
3 O LUGAR DE UM BERNARDO 49 3. 1 O fio do labirinto 49
3. 2 A construção da tradição 52 3. 2. 1 Os historiadores e seus contextos 52 3. 2. 2 Os antologistas e seus textos 63 3. 2. 3 Antologias do mal falado e do proibido 67
3. 3 A tradição e a divergência 68 3. 3. 1 Biografias e bibliografias 68 3. 3. 2 Ensaios da tradição 71 3. 3. 3 A tradição enviesada 75
3. 4 Um espaço bernardino 85
4 OS PARAÍSOS INFERNAIS DE BERNARDO 91 4. 1 O espaço do poema 91
4. 2 A floresta enfeitiçada 99 4. 2. 1 O poema europeu 99
4. 2. 2 O paraíso terreal, o inferno tropical e a floresta romântica 119
4. 2. 3 O portal do paraíso: variações em torno da natureza e da floresta 132
4. 3 Um estranho no paraíso 140 4. 3. 1 Corpus braziliensis: genocídio, canibalismo e nudez 140 4. 3. 2 Um corpo nacional: o índio idealizado do contexto romântico 148 4. 3. 3 O corpo do exagero 164 4. 3. 4 Um estranho no paraíso 174
4. 4 A origem do mênstruo 180 4. 4. 1 Corpos em sacrifício: o feminino ideal 180 4. 4. 2 A deusa irada: horror e sublimação 188 4. 4. 3 A heresia bernardina 208
5 CONCLUSÃO 216
6 REFERÊNCIAS 223 6. 1 Obras de Bernardo Guimarães 223
6. 2 Artigos, capítulos e livros com referências ao autor 223
6. 3 Obras de outros poetas e referências às suas obras 228
6. 4 Dicionários, gramáticas e outras obras de referência 231
6. 5 Censura, marginalidade, obscenidade e pornografia 234
6. 6 Outros livros, artigos e ensaios 235
1 INTRODUÇÃO
Esta tese realiza a leitura de poemas satânicos e pornográficos de
Bernardo Guimarães (1825-1884) — “Orgia dos duendes” (1865), “Elixir do pajé”
e “A origem do mênstruo” (1875) —, pretendendo estabelecer uma rede de
significações para eles, levando em conta o contexto da literatura brasileira e de
composições daquela temática no campo literário de modo geral. Desta forma,
indicamos nossas articulações com a teoria do texto, segundo o debate proposto
por Roland Barthes e Julia Kristeva, e as experiências de uma sociologia para o
literário, conforme proposto por Pierre Bourdieu. Sempre com o objetivo de
produzir sentidos para o texto.
Uma apresentação preliminar do objeto, indicando objetivos gerais para o
trabalho e aspectos relevantes do corpus teórico, permitiria supor ausência de
problemas e dificuldades na maneira como se articulou literatura e poesia com
ciência e teoria. Entretanto, quando estão em jogo áreas do conhecimento
humano que circulam entre pretensas objetividades coletivas, as ciências, e
supostas subjetividades individuais, as artes, nada se passa de modo óbvio e
sem atrito. Especialmente num momento como o de agora, no qual a grande
produção teórica estruturalista, dos anos 60 e 70 do século XX, aplicada tão
intensamente no campo literário, encontra-se questionada, pelo que seria um
esgotamento das possibilidades de suas proposições. Situação causada, em
grande parte por suas próprias realizações — depois de passar por revisões
internas pós-estruturalistas e desconstrucionistas. Exemplar das mudanças
atuais seria o que acontece com a semiologia, linha teórica que chegou a
determinar programas de pós-graduação, na área de Letras e Comunicação, e
inspirar carreiras docentes importantes e um sem número de dissertações e
teses, e que perde espaço, sendo deslocada para um plano secundário da crítica
e dos estudos literários universitários. Desaparecido há mais de duas décadas
seu principal teórico, Roland Barthes, alguns dos questionamentos e formulações
mais importantes apresentados por ele — análise dos sistemas de significação e
produção de sentidos, relação entre crítica e verdade, morte do autor e leitura,
prazer-corpo-discurso — parecem sem sentido nos dias de hoje, por
esgotamento ou banalização. Banalização com a qual ele próprio se preocupava:
“A linguagem (dos outros) me transforma em imagem, como a batata bruta é
transformada em batata frita”.1
Formalismo, estruturalismo, pós-estruturalismo e pós-modernismo vão
sendo superados, reduzidos e referidos, com fortes doses de menosprezo, como
movimentos que passam sem nada deixar, que não sejam contribuições débeis
para uma história da amnésia dos estudos literários. Simples “ismos” significantes
de um passado recente, mas de importância que se dilui pelos imperativos do
novo. O quadro se comporia numa equação entre a lei do consumo dos objetos
culturais, admirados, imitados à exaustão e descartados, e a lei da sobrevivência,
na qual os vivos se apressam em enterrar os mortos, especialmente aqueles que,
ao produzirem suas obras foram admirados e, ao mesmo tempo invejados,
observou Perrone-Moisés, no Prefácio, da edição brasileira de O rumor da língua,
de 2004.
Evidentemente que o problema não poderá ser reduzido a eventuais
questões burocráticas ou de nomenclaturas e descrições de programas
acadêmicos e, muito menos, estará restrito à semiologia. O foco da preocupação
1 BARTHES, 2003.
se coloca na relação entre as modas teóricas e o pseudo-esgotamento de uma
ou outra contribuição, sem que os seus conceitos hajam sido experimentados nos
seus limites: problema grave não exatamente no que se refere à academia e sua
organização, mas nas conseqüências que trazem para a pesquisa e a construção
de conhecimento, conforme denunciado por Bourdieu.
A postura adotada aqui articula uma posição diferente, pressupondo que a
cada formulação teórica que se ocupou da literatura corresponderiam saberes e
formulações mantidos ativos no que se produz hoje — presentes nas mais
peremptórias refutações e nas mais naturalizadas confirmações do que foi
pensado, debatido e escrito anteriormente. Os estudos de Freud, Bourdieu e
Barthes são significantes da profunda impressão que o trabalho dos poetas
causa e do trabalho que seus textos não cessam de realizar. Termos como
significação, contexto, campo literário, romantismo, literatura brasileira, poesia,
satanismo e pornografia estão referenciados por paradigmas conceituais
específicos, indicativos de determinados modelos de análise. Sua naturalização
nos discursos teóricos não significa que os problemas ou caracteres para os
quais chamaram a atenção perderam sua capacidade de interrogar e exigir novas
elaborações. A crise teórica vivenciada pela crítica literária da atualidade seria
devida em parte ao debate dos anos 60 a 90, conforme analisam Hutcheon,
Casanova ou Eagleton. Portanto, a retomada de seus conceitos não se coloca
como um simples atraso ou retorno, o movimento integraria a hipótese de que as
questões que eles discutem não estão ultrapassadas, ao contrário, haveria muito
que avançar nos caminhos indicados por aqueles pesquisadores, desde que se
aceite a incorporação de novos elementos no debate.
Neste caso, não caberiam as mesmas formulações e frases, simples
exercícios de uma retórica decalcada dos mestres, prática bastante comum, mas
um trabalho de experimentação crítica dos conceitos, aplicando cada uma das
hipóteses teóricas sobre um determinado objeto, no seu limite, até que seja
necessário reformular a ambos. Uma regra elementar para os procedimentos
científicos que é esquecida com freqüência.
Curiosamente, ao colocarmos os estudos literários nestes termos, são
atualizados dois conceitos ideologicamente marcados sobre a produção de
conhecimento no país, que se acreditaram superados. O primeiro: a velha idéia
de um descompasso entre as realizações do campo literário brasileiro e as
européias ou americanas. O segundo: a suspeição da qualidade do que se fez e
se faz no país, em termos de ficção e poesia e de crítica. Entretanto, a base de
apoio para as suposições, a de que problemas culturais e teóricos aparecem e se
desenvolvem na razão direta das relações temporais, resolvendo-se apenas na
ordem da execução, seriam inconsistentes. Argumento liminar contra ela é
oferecido pela crítica pós-moderna, ao demonstrar que a crítica, e seus
constructos estão localizados no campo político, tanto quanto as criações
artísticas que estudam, e, neste sentido, suas qualidades e seu valor são
determinados no âmbito de lutas e disputas pela hegemonia e poder, ou seja, são
criações ideológicas. Um argumento que funciona para a atualidade dos
confrontos teóricos e, ao mesmo tempo, questiona a velha idéia de vício de
origem para desqualificar as produções do campo literário nacional, hipótese que
não passaria de uma posição construída na perspectiva do modelo hegemônico
de análise e compreensão do literário — o modelo colonial.
Dentro deste enfoque, o capítulo “O problema e o método” discorre sobre o
objetivo e o método desta tese, discutindo algumas das contradições formais e
temáticas da crítica. Nele serão apresentados os conceitos apropriados nela —
inconsciente, produção de sentido e trabalho do texto, campo literário, habitus e
cenário da enunciação. Articulados desde suas origens teóricas ou a partir das
leituras posteriores que os atualizaram, a sua utilização atenderá às
interpretações da presente análise, implicando que os conceitos psicanalíticos,
sociológicos e outros estarão a serviço da crítica literária, com as conseqüências
que o uso fora do âmbito do objeto para o qual foram originalmente criados
poderá acarretar.
A intenção é oferecer uma perspectiva razoável dos fundamentos teóricos
presentes na leitura dos poemas. Eles serão referenciados ao longo da tese
sempre que necessário, porém devidamente elaborados e apropriados, Pretende-
se mesmo que os conceitos sejam esquecidos na trama textual dos capítulos em
que se leiam os poemas de Bernardo. Não será, entretanto, um esquecimento
amnésico do conhecimento teórico organizado, proposta defendida por alguns
grupos pós-teóricos com ardor, mas um esquecimento relativo da teoria, em
moldes similares àqueles preconizados por Freud para a audição psicanalítica,
com a intenção de um despojamento receptivo às sutilezas do discurso do outro,
no caso, a escritura do poeta, não previstas nas preliminares.
Inscrita nesta proposta inicial está a hipótese principal da investigação:
considerados os poemas satânicos e pornográficos, Bernardo Guimarães terá
produzido uma obra singular. Uma originalidade que não significaria que o texto
do poeta estaria fora do contexto em que é escrito — o romantismo literário
brasileiro, do século XIX — ou isento de importante intertextualidade com obras
de outros poetas de brasileiros e europeus.
Não é casual o destaque dado ao nome do poeta na proposição do
trabalho. A significância de um nome de escritor se constrói com e a partir de sua
obra, na valoração que a ela é atribuída na origem, na sua contemporaneidade, e
nas variações que este valor sofre daí em diante. É assim desde quando o nome
Homero identifica o poeta divino que enfeixa, em única peça, um conjunto de
episódios lendários que evocam a expansão dos gregos em direção à Ásia.
Portanto, o autor se constitui igualmente na história literária em que se insere —
da sua tribo, cidade, região e no estrangeiro. Tanto de modo diacrônico, alocado
no eixo de uma tradição, quanto de modo sincrônico, nas divergências que
realiza daquela tradição.
O capítulo “O lugar de um Bernardo”, trabalhará com esta perspectiva. O
autor, conforme é conhecido hoje, é um nome que foi e é construído. Sua obra
não é pequena, além da poesia, em torno da qual a tese se desenvolve, ele
assina romance e crítica. Mas o seu texto está longe de ser um fator
determinante absoluto para o estabelecimento de seu lugar na história e no
cânone. Isto dependerá do que sobre ele opinarem alguns leitores especiais:
biógrafos, antologistas, historiadores, professores e críticos. Estes são os
lectores que estabelecem o lugar para o autor, determinando até mesmo a
inflexão da leitura a ser adotada diante de sua obra. Ou seja, num sentido radical,
antes da presença de seu texto para o leitor comum, o cânone, do qual os
lectores são os operadores principais, já indicou o sentido e estabeleceu o valor
do poeta e da obra. Uma indicação instituída de poder simbólico com capacidade
de sugestão suficiente para afetar até mesmo leitores treinados e outras vozes
constituintes do mesmo cânone. Quando opiniões e análises separadas
temporalmente são aproximadas e comparadas, encontramos pistas de
influências e convergências diversas, óbvias algumas vezes, inesperadas outras,
independentemente da consciência que seus autores tenham disso. Injunções
das quais o presente trabalho não está isento, na medida em que sustenta seu
discurso através de um conjunto determinado de teorias, defendidas por um
determinado grupo, unidos todos por uma determinada ideologia — as quais
pretendemos destacar sempre que nos dermos conta delas.
O reconhecimento da crítica e da produção teórica enquanto produtos
ideológicos, tais quais os fatos que estudam, é fundamental. Neutralidade
científica nas ciências humanas é mito, denunciado desde que a psicanálise
definiu a contra-transferência, a semiologia marcou suas relações com a literatura
sob as tensões do prazer e da política e a poética da pós-modernidade chamou a
atenção para o caráter provisório do exercício que faz. O cunho experimental
desta tese, convocatório de conceitos afetos originalmente a mais de uma ciência
ou área de conhecimento, materializa-se na razão da convergência ideológica
entre eles, qual seja, supor a existência de um espaço entre o que se escreve e o
que se lê, entre a forma e a substância, no qual há um trabalho incessante, tanto
consciente quanto inconsciente, tanto pessoal quanto coletivo.
O capítulo seguinte, “Os paraísos infernais de Bernardo”, investigará o
contexto em que a obra aparece: o romantismo brasileiro. Um exercício que
implicará algo mais do que simplesmente datar os poemas, embora não seja
banal lembrar que eles foram publicados no período que vai de 1859 e 1875.
Situá-los no âmbito daquele movimento significa inscrevê-los entre os marcos
fundadores da literatura brasileira, no momento em que ela foi considerada
instrumento fundamental na construção da identidade nacional do país que se
tornara independente, após mais de 300 anos de colonização.
Na lógica do romantismo nacionalista e indianista, o poeta Bernardo
Guimarães estaria sempre à margem do campo literário. A inflexão neoclássica
de sua musa lírica, portanto, atrasada em relação às idéias correntes na Europa,
faria de sua obra quase uma poesia fora da moda. Sua poesia bestialógica e de
nonsense, identificada como produto de estudantes brincalhões ou de um
excêntrico perdido nos sertões mineiros, seria aceita nos graves espaços do
parnaso nacional apenas enquanto expressão da musa travessa que inspiraria
poetas menores, cuja principal contribuição ao campo literário nacional seria
contrastar com os grandes escritores e seus textos fundamentais. Finalmente a
temática e a linguagem utilizadas por Bernardo nos poemas trabalhados aqui —
satanismo e sexualidade sem recalque, palavreado baixo e calão — completam o
conjunto de razões que fazem dele um estranho no paraíso literário tropical.
O impacto desta produção é tão violento que parte dela chega a ser
censurada na edição das suas poesias completas, publicada em 1959. O
organizador, Alphonsus de Guimaraens F°, acolhe a “Orgia dos duendes”, mas
se nega a reproduzir as outras duas. Uma atitude que, observe-se, nada tem de
original, pois censura e reticências acompanham a poesia bernardina desde
quando J. M. V. Pinto Coelho escreveu sobre ela, no ano seguinte à morte do
poeta, em 1885. Tantas reticências seriam sinais a indicar que os versos de
Bernardo nunca seriam qualificados o bastante para as posições centrais na cena
canônica, não importa a feição que tivessem.
O gesto censório de Coelho é todavia ambivalente, pois denuncia a
impropriedade da palavra escolhida por Bernardo e, ao mesmo tempo, chama a
atenção para as qualidades da obra que oferece censurada. “Poesias
pantagruélicas e bocageanas do Dr. B. Guimarães” é o título do capítulo que
reúne os versos estranhos do poeta. Pantagruel é personagem de Rabelais,
significante da narrativa transgressora e virulenta da Idade Média. Bocage é
significante da convivência no mesmo estro da lírica mais elevada e da rima mais
desbocada da Nova Arcádia portuguesa. Ao indicar tais relações o lector faz com
que os poemas da orgia, do mênstruo e do pajé transcendam ao contexto
romântico brasileiro. Com o reforço das indicações preciosas de Antonio
Candido, Haroldo de Campos e Flora Süssekind, investigaremos outras
influências para seu trabalho, ligações mais amplas para os textos, invisíveis aos
olhares mais pudicos, entretanto de profundas raízes na mais nobre tradição da
literatura, afinal, os dois grandes autores referidos no subtítulo casual são
literatura complexa e exigente de leituras incomuns. Com eles, mais Goethe,
Hugo e Gautier e Luciano, Apuleio e Horácio, Bernardo dialoga, conscientemente
ou não. Negar estas suas distintas e elevadas qualidades seria manter a
denegação da complexidade de seu trabalho, conforme a crítica fez durante
muito tempo, talvez horrorizada com a crueza do palavreado e violência dos
sentimentos humanos postos em seus versos.
As três seções que fazem parte deste capítulo experimentarão estas
hipóteses diante dos poemas “A floresta enfeitiçada”, “Um estranho no paraíso” e
“A origem do mênstruo”.
A leitura do texto sobre a orgia confrontará a floresta apresentada ali e os
seus habitantes monstruosos com a natureza idealizada do país, idealização
constituinte de um significativo conjunto de textos portugueses e brasileiros,
desde os tempos coloniais até aqueles de ideário romântico contemporâneo do
escritor. Idealização modulada por um estranhamento do europeu em relação
àquela terra e suas criaturas, objeto ambivalente sobre o qual se alternavam
projeções diversas, inferno para uns, paraíso para outros, cobiça extrema e
curiosidade imensa. Porém, a orgia feiticeira na literatura e nas artes não se
restringiria ao texto bernardino e a outros escritores inspirados pelo Novo
Mundo; ela integraria uma tradição cultural e literária européia. O poema seria
mais do que uma brincadeira engraçada com as crenças e a mitologia popular
da antiga colônia, ele reforçaria a indicação de que o poema de Bernardo
Guimarães deve ser encarado sob perspectivas mais amplas e complexas do
que habitualmente se faz.
Na seção sobre o “Um estranho no paraíso”, estarão em debate as
contradições entre o índio de Bernardo e o indianismo romântico, de Gonçalves
Dias e de José de Alencar. Este habitado por criaturas idealizadas, aquele um
habitante do paraíso infernal brasílico. Distanciado das regulações civilizatórias
românticas, o poema foi mantido denegado na cena canônica, embora fortemente
censurado, jamais completamente esquecido. Há de ser proveitoso acompanhar
a trama do poema, considerando os costumes e idiossincrasias dos habitantes
daquela floresta intangível. Personagens “brasileiríssimos”, na expressão
consagradora de Antonio Candido, embora seus anseios e medos falocráticos
ultrapassassem os limites do imaginário tropical, estando presentes na poesia de
escritores como Bocage e Apuleio. Mais uma vez, Bernardo se coloca entre
nomes significantes da tradição literária, agora em uma peça indubitavelmente
grosseira e vulgar. Linguagem e temática que exprimiriam uma vontade de
ruptura com os padrões vigentes para uma alta literatura, sempre identificadas
com o ideal de nação e povo, lembra Casanova, 2002. O que estaria significando,
então, o poema, capaz de posicionar seu autor entre os melhores poetas, porém
numa aproximação que se faz através de obras estranhas e censuráveis? Sabe-
se, com Freud, que o ser estranho tem um lugar privilegiado junto ao sujeito,
neste sentido, que lugar ocuparia a estranha composição de Bernardo no campo
literário? Esta é uma questão desenvolvida ao final da seção.
A última parte deste capítulo, “A origem do mênstruo”, compõe-se na
perspectiva das dúvidas trazidas à baila no fim do parágrafo anterior. É doxa que
a sexualidade feminina foi, ao tempo do aparecimento do poema, um tabu.
Apesar da psicanálise e das feministas, ela se mantém como característica a ser
reprimida nas mulheres e desqualificada socialmente, ainda no século XXI. A
leitura do poema começa denunciando que o tabu referido nos versos
permaneceria ativo nos campo literário, mesmo entre os audazes editores dos
versos censurados. Até a edição organizada por Sebastião Nunes, em 1988,
todas as que foram consultadas, seja impressas em reles folhetins ou luxuosas
pranchas, não fizeram referências ao poema em suas capas. Mesmo naquela, o
título maldito aparece apenas na contra-capa. Sempre publicado junto com o
texto do elixir, somente este título aparece, tornando necessário que se folheiem
as publicações para, ao final do primeiro poema, constatar-se que existe um
outro. Entre os poucos estudiosos que ousam trabalhar com a pornografia
bernardina, o texto manteve uma capacidade perturbadora. Candido, por
exemplo, recusa-se a nomeá-lo: “poema de título irreproduzível”; embora chame
a atenção para a perversidade que ali estaria presente — observação
desenvolvida depois, por alguns outros teóricos. Posteriormente, no eixo de uma
liminar análise sobre a poesia pantagruélica, de 1993, refere-se a ele como
brutal, sem maiores comentários.
Perversidade, brutalidade, tabu. A imagem feminina exposta no poema
expressa pensamentos, palavras e obras impensáveis entre as mulheres
idealizadas, exibindo diferenças que vão além daquelas determinadas pelos
gêneros alto e baixo. Mulheres desejantes não são tipos estranhos ao texto
romântico, mas naquela mulher que Bernardo faz existir, desejo aparece
vinculado à frustração e ao ódio, gerando atos vingativos e não sublimações,
como é comum. Além disso, não há lugar para pecado nem castigo nem para o
desejo, nem para o ódio, sentimentos comuns às heroínas românticas.
Estas diferenças serão examinadas, inclusive, à luz das diferenças na
recepção que os gêneros alto e baixo fazem dos temas e conteúdos poéticos.
Aspectos a serem investigados, a partir da idéia de que a poesia bernardina não
cessaria de trabalhar em seus leitores, na concepção proposta por Kristeva para
o incessante trabalho do texto literário.
Aquilo que os textos do satanismo e da pornografia fazem existir integra a
desordem dos horrores simbólicos. Enquanto poiesis seriam quase anátemas. A
convocação por parte da literatura de sentimentos e comportamentos sexuais e
agressivos, reconhecidos como degradantes, bárbaros e até mesmo
animalescos, apresentados através de um vocabulário baixo e escatológico
desprovido de metáforas suavizantes, constitui uma provocação à própria idéia
de literatura, enquanto bem simbólico de um projeto civilizatório. Os textos que
são constituídos com esta matéria são mantidos fora de cena, à margem, sendo
violentamente reprimidos e recalcados. Contudo, o que é estranho ou o que
causa estranheza ao homem civilizado diz respeito a sentimentos e
comportamentos que integram sua humanidade mais profunda e íntima, jamais
apagados definitivamente: recalcados retornariam como sintoma, sintoma que a
literatura é. Textos satânicos e pornográficos não cessam de ser escritos e lidos
e, novamente, forçados para fora da cena civilizatória. Apesar disso haverão de
retornar, denegados ou expostos enquanto alusões, críticas, ensaios ou teses.
Afinal, há de se indagar sobre a significância do ato poético de Bernardo
Guimarães, em total desacordo com os modelos canônicos do romantismo e,
principalmente, subversivo ao projeto político de seu tempo, no qual uma
literatura de alto nível é parte importante. Um autor que, simultaneamente, fazia
sucesso com seus romances morais.
A constatação de que poesia de linguagem baixa e debochada é coisa
séria, quando advinda da pena de escritores da estirpe de um Ovídio ou de um
Goethe, com os quais Bernardo dialoga, coloca em dúvida a adequação do lugar
destinado ao poeta na plêiade brasileira ou, pelo menos, que se indique a
necessidade de alterar a cartografia do campo literário brasileiro. Afinal,
desconsiderar as complexas articulações e os refinados diálogos, mesmo que
entabulados em linguagem estranha à lírica, seria colocar em dúvida o conceito
de poesia enquanto mimesis, opção neoclássica, ou invenção, proposta
romântica. Em síntese, seria a negação da abrangência e do vigor do campo
literário brasileiro.
Uma afirmação dessa monta não se pode fazer sem fundamentos. É
necessário que se retorne a questões teóricas, apresentadas no capítulo
metodológico. Uma delas: a partir de uma situação particular é possível
estabelecer uma formulação geral — um único poeta e apenas parte de sua obra
permitem visualizar alterações de posições no campo literário? Caso positivo, em
que termos? Caso negativo, por que não? Num ou noutro caso, que papel
desempenharam os construtos teóricos? Estas condições e possibilidades serão
elaboradas no capítulo final, de conclusão. Nele, os limites da divergência serão
postos à prova e um outro lugar para Bernardo será proposto.
Uma obra polêmica não está disponível facilmente. Os poemas
pornográficos e satânicos de Bernardo teriam circulado primeiramente de modo
semiclandestino, em livretos de larga difusão. “Não haveria um mineiro que não a
soubesse de cor. Há na província espalhadas um sem número de cópias desse
‘Elixir’ inútil e brejeiro”, reclamava Artur Azevedo, em 1885.2 Desde a década de
80, do século XX a situação mudou completamente e os poemas passaram às
páginas de livros comuns, editados por respeitáveis editoras, chegaram a edições
luxuosas e, finalmente, ocuparam os nobres espaços das páginas digitais da
Fundação Biblioteca Nacional e Ministério da Educação.3
As Poesias completas de Bernardo Guimarães foram apresentadas numa
edição organizada por Alphonsus de Guimaraens Filho, que preparou também
introdução, cronologia e notas, para o Instituto Nacional do Livro, em 1959. A
antologia reúne os livros Poesias (1865), Novas poesias (1876) e Folhas do
outono (1883) e, num capítulo à parte, os dispersos, recolhidos em estudos
biográficos e outras fontes. Na edição não falta iconografia com o retrato do
poeta, de sua esposa e das casas onde morou, com reproduções das capas de
seus livros. O poema “A orgia dos duendes” aparece completo, com o texto
correspondendo à edição princeps, de 1865. Ficam de fora apenas, por decisão
explícita do organizador, os poemas obscenos.4
“Elixir do pajé” e “A origem do mênstruo” aparecem em “impressões
clandestinas”, sendo considerada princeps aquela datada de sete de maio de
2 AZEVEDO, A. “Bernardo Guimarães” apud MAGALHÃES, 1926, p. 113. 3 As informações sobre os meios de suporte das edições, contidas neste capítulo, foram orientadas por Fernando Amaro, conservador-restaurador, da FBN. 4 GUIMARÃES, 1959.
1875, conforme Basílio de Magalhães.5 A biblioteca da Casa de Rui Barbosa
possui exemplar de uma delas, impressa em papel de madeira e impressão semi-
artesanal. Sem capa e sem referências de editor e ano de publicação,
acompanha-a uma anotação anônima informando: “Estas Poesias são de
Bernardo Guimarães, grande poeta, natural de Minas Gerais, e constituem
raridade bibliográfica, impressas em 1875. Rio de Janeiro, em 15 de março de
1903”. Um cotejo amador deste bilhete com outros manuscritos, reconhecidos
oficialmente como da lavra de Plínio Doyle, permite notar uma semelhança entre
a grafia de uns e outro, sugerindo que o bibliófilo teria escrito a nota. A edição foi
utilizada para cotejo com as demais apresentadas adiante.
Em edição corrente, produzida por editora estabelecida na praça e
disponível ao público em escala comercial, os poemas do elixir e do mênstruo
aparecem pela primeira vez em 1885. O livro Poesias e romances do Dr.
Bernardo Guimarães, antologia e biografia, foi organizado por José Maria Vaz
Pinto Coelho, literato que também organizou edições das obras de José Bonifácio
e de Gonçalves Dias. A publicação, logo no ano seguinte ao falecimento do
poeta, indica um interesse importante por parte das forças hegemônicas no
campo literário. A biografia, que apresenta descreve acontecimentos e
curiosidades de sua vida e reproduz discursos e debates dos quais Bernardo
participou ou foi tema, em vida ou após a morte, citando cuidadosamente as
fontes, de tal forma que serve de referência para boa parte dos trabalhos que lhe
são posteriores. Comenta vários aspectos da obra bernardina, reproduzindo
trechos da prosa e da poesia. Um dos capítulos é dedicado às “Produções
pantagruélicas e bocageanas do Dr. B. Guimarães”, no qual, após uma
5 MAGALHÃES, 1926, p. 113-4.
“Advertência importante aos adolescentes e um e outro sexo!” quanto ao fato de
as páginas seguintes não serem apropriadas para eles, apresenta “Elixir do pajé”
e “O despertar do mênstruo”. O organizador informa que o cuidado em avisar das
restrições de acesso ao texto repete o que se fez na edição dos versos
licenciosos de Bocage, pretensamente editada em Bruxelas, no ano de 1860.6
Considerando ser uma publicação da casa Laemmert, o livro se constitui
uma ousadia, por mais de um motivo. Seria a primeira vez que se tem notícia da
publicação de obras deste teor por editora de respeito e estabelecida na praça.
Além disso, ao fazê-lo, o livreiro avança sobre o catálogo, espaço psicológico e
comercial, do editor habitual das obras de Bernardo, o Senhor Garnier,
comercializando o escrito mais popular do escritor, aquele que mais lucros
proporcionaria, segundo observaria anos depois Basílio de Magalhães.
Esta aparição oficial não se dá, todavia, com todas as letras. O texto
aparece mutilado duplamente — com palavras e letras substituídas por pontos e
reticências — pois, ao censurar as palavras chulas e de baixo calão, censura
igualmente palavras comuns, deixando os poemas quase incompreensíveis,
como pode ser visto desde a primeira quadra da primeira das poesias.
C......
Que tens ......., ......., que pesar te oprime, Que assim te vejo murcho e cabisbaixo, Sumido entre essa imensa .......... Mole caindo .... p.... .......7
Esta versão do poema do elixir aparece com diversas diferenças em
relação às demais, clandestinas ou não. Ele está dividido em dois, o primeiro,
nomeado “C”, acompanhado por 6 pontos, sugerindo o mesmo número de letras
para completar a palavra. A segunda parte recebe o título de “Um”, seguido de
6 COELHO, 1885. 7 COELHO, 1885, p. 203-216, especialmente para os poemas pantagruélicos e bocageanos.
outros 6 pontos, alusivos a uma outra palavra completa, provavelmente a mesma
que no primeiro verso é também censurada. No outro poema, “O despertar do
mênstruo” aparece como subtítulo para “Madrigal”, título que não se repete em
nenhuma das outras edições conhecidas.
Importante para um trabalho que investiga significações é a epígrafe que
abre o poema: Lasciva est nobis pagina, vita proba. Frase recolhida nos versos
de Marcial, “Páginas lascivas, vida honrada”, traduziria uma distinção
fundamental entre o sujeito poético e o civil, uma referência cuidadosa que não
se repete em nenhuma outra edição. Sinalizaria também para uma erudição do
editor, senão do autor.8
Os poemas seriam publicados novamente em 1958, quase setenta anos
após a edição da Laemmert. Desta vez aparecem sem censura, numa edição
especial, fora do comércio, para bibliófilos, pelas Edições Piraquê. A tiragem é de
500 exemplares. O formato é 22x30cm. O papel utilizado na edição é de madeira.
A capa é em papel cartão, com marcas de impressão de folhas e grãos de café,
ilustrada com o desenho de um índio nu, impressão em metal. O título que
aparece é Elixir do pajé, acompanhado do nome do autor, editora e a
característica da coleção, “Raridades”. A impressão é em duas cores. A folha de
rosto é ilustrada com o desenho central de um falo imenso, ereto, apontado em
direção a uma imagem feminina, acima e abaixo o nome do autor, a editora e
uma informação sobre o caráter luxuoso da edição. O miolo é formado por
cadernos de três folhas soltas, com seis páginas cada um; impressão em letras
azuis. Em cada uma das páginas o texto é apresentado com uma cercadura,
formada por motivos florais e serpentes que seguram maçãs em suas bocas. 8 “Epigrammaton libri XII”, liber I, epigramma IV, que vem a ser o último verso da epigrama, do primeiro dos doze “livros” atribuídos a Marcial e produzidos aproximadamente entre 85 e 102 d.C, Indicação e tradução devida a Fábio Frohwein.
Estes frutos são tocados por mulheres nuas. Completam as cercaduras cupidos
armados com flechas e instrumentos musicais. O texto é sempre aberto por
capitais ornamentadas com motivos humanos, em cenas variadas de cópula ou
exibicionismo. Em separado, cinco pranchas, ilustradas com imagens de índio,
mulheres, falos, vaginas e cenas referentes ao poema do elixir, desenhadas a
carvão. Na última capa, o preço: um mil cruzeiros. Não há nome de organizador,
ilustrador ou editor.9
Sabará, 1988: local e ano de uma outra edição de luxo dos poemas
bernardinos. Apresentada por Romério Rômulo, da Universidade Federal de Ouro
Preto, e ilustrada por Fausto Pratts, tem como editor e programador visual
Sebastião Nunes, para Edições Dubolso. O corte do papel é fora do padrão. As
ilustrações do livro são a nanquim. Na capa está o título do poema do elixir, o
nome do autor e da editora. Em papel cartão plastificado e impresso em duas
cores, ela é ilustrada com um falo, que tem rosto de índio e penacho. O papel é
cartão brilhante, em três cores. Na contra-capa a mesma figura aparece duas
vezes, em tamanho menor. O miolo, em papel madeira, é guilhotinado e colado
na lombada. As folhas são impressas em frente e verso. Cada página recebe
ilustração própria acompanhando as estrofes. Algumas ilustrações ocupam
página inteira. O texto A origem do mênstruo recebe ilustrações referentes a sua
temática, ao contrário do que acontece na edição da Piraquê, onde os motivos
das capitais são gerais. Nesta edição, inclui-se o poema “A orgia dos duendes”.10
A Poesia erótica e satírica, de Bernardo Guimarães, é organizada,
prefaciada e anotada por Duda Machado, poeta e professor da Universidade
Federal de Ouro Preto, para Imago Editores, em 1992. O formato é o padrão para
9 GUIMARÃES, 1958. 10 GUIMARÃES, 1988.
livros. A capa está impressa em três cores, em papel cartão plastificado, 250g. O
miolo é montado em cadernos de quatro costurados, com oito folhas costuradas,
utilizando papel 75/80g. Na capa, o título da obra e o nome do poeta ocupam o
espaço central; uma lista com o nome das principais poesias contidas ali e uma
referência ao organizador do trabalho ocupam espaços laterais. No rodapé, o
nome da editora. Algumas letras do título recebem destaque. Além dos poemas
proibidos, o livro traz “A orgia dos duendes”, em destaque, um capítulo para o
humor e bestialógico e outros com uma pequena lírica, um roteiro biográfico e um
apêndice com fatos biográficos e excertos de crítica.11
Antologia pornográfica: de Gregório de Mattos a Glauco Mattoso,
organizada por Alexei Bueno, edição da Nova Fronteira, em 2004, é espaço
privilegiado para os dois antigos poemas clandestinos de Bernardo Guimarães,
sendo ambos devidamente indicados no índice. A antologia é ilustrada com uma
foto na capa e desenhos abstratos, à nanquim na apresentação de cada autor.12
Os poemas aparecem na edição Produções satíricas e bocageanas de
Bernardo Guimarães, nos Livros Eletrônicos/Digitalizados, da Fundação
Biblioteca Nacional, sítio www.bn.br. Os textos são organizados por Irineu E.
Jones Corrêa, que assina uma nota introdutória.13 Ainda no meio eletrônico,
outras páginas estão reproduzindo os poemas proibidos, inclusive o endereço
www.me.br/domíniopublico, do Ministério da Educação,.
Uma versão filmada do poema do elixir bandalho foi dirigida por Helvécio
Ratton. Nela, três colegiais, interpretadas por Ana Romano, Mônica e Simone
Magalhães, encontram o túmulo de Bernardo e lêem o livrinho que, uma delas
informa, fora encontrado na biblioteca do avô. A leitura é assumida por Paulo 11 GUIMARÃES, 1992. 12 BUENO, 2004. 13 GUIMARÃES, 2001.
César Pereio, que, sem identificar o personagem que interpreta, tal qual faz o
narrador do poema escrito, banha-se e se paramenta para sair. Em sua fala,
conta o drama da falta de tesão, toma o que seria um elixir e, terminando de se
vestir, sai. Lá fora, o cenário é Ouro Preto, dos tempos atuais — o casario
tradicional, postes de iluminação e fios de eletricidade. O intérprete entra num
automóvel, um automóvel antigo. Passando pelo cemitério, dá carona às
colegiais. A cena se fecha com todos acenando para a câmera. A produtora é
VT-3, de Ouro Preto. O ano da produção é o de 1989.14
Quanto às divergências entre os textos de cada uma das edições, parece
haver uma consolidação das opções nos últimos anos. Os textos organizados por
Sebastião Nunes e Duda Machado não apresentam variações. A antologia de
Alexei Bueno parece seguir o padrão estabelecido pelos dois outros editores
citados. O texto sobre o elixir de Edições Piraquê apresenta poucas variações em
relação aos demais. O poema do mênstruo, ao contrário, diverge bastante, com
variações de termos e acréscimos de versos inteiros, em relação às edições de
Nunes e de Machado. A edição de Pinto Coelho, apesar das mutilações
indicadas, mostra variações em palavras e em versos inteiros. Para efeitos desta
tese, serão sempre consideradas as variações, preferindo-se sempre indicar sua
presença que normalizar as dúvidas e imprecisões com as quais o tempo e o
trabalho do texto desafia o crítico.
14 ELIXIR, 1989.
2 O PROBLEMA E O MÉTODO
O que se produz de literário naquelas três composições em versos de
Bernardo — “Orgia dos duendes”, “Elixir do pajé” e “A origem do mênstruo”?
Como se falar e comentar sobre o literário, a partir de um lugar externo da
condição de poeta? Eis o problema que está implícito nesta tese escrita numa
linguagem teórica, inscrita sobre a poesia de um autor.
Uma ou duas palavras sobre isto não será de pouca valia.
Num diálogo entre as sombras de Sócrates e Fedro, o assunto é a obra de
Eupalinos, o arquiteto, e o tema é a capacidade daquele artista em construir —
imaginar um objeto no espaço e, ao mesmo tempo, construí-lo, impregnando a
obra com sua experiência pessoal e suas emoções. Em princípio dirigido à
arquitetura, o texto de Paul Valéry é um hino de louvor à forma como expressão
máxima da arte e do conhecimento.15 A qualidade da linguagem do verso, que
impregna a prosa do diálogo daquele imponderável de relações inventivas e
surpreendentes das quais somente a palavra em estado de poesia é capaz, é
destacada por João Alexandre Barbosa, no posfácio da tradução brasileira. O
texto se constitui numa intertextualidade primorosa com o pensamento e dialética
socrática. Sem voz no diálogo que leva o seu nome e sua arte serve de mote,
Eupalinos é chamado a expor suas idéias na Poética menor, de Luiz Santa
Cruz.16 O debate, agora entre o arquiteto e Fedro, gira em torno da tendência
poética da inteligibilidade ou do primado da inteligência na poesia versus a
posição favorável à intuição poética, com o poeta quase passivo às forças
15 Escrito no final dos anos 90, do século XIX, Eupalinos ou o arquiteto foi lançado num luxuoso volume, de baixa tiragem, sobre criação arquitetônica, em 1921. 16 Poética menor, 1953. Luiz Santa Cruz foi um literato de relativo sucesso em meados do século XX. Fez poesia datilografada e mimeografada.
inconscientes e da sensibilidade. A pretensão do aluno é escrever uma Poética
que abandonasse os grandes temas de Aristóteles e Hegel, preocupando-se com
ensinamentos esparsos, aqueles marginais ou subsidiários das Poéticas Maiores.
A obra estaria destinada não apenas aos poetas, mas aos leitores de poesia.
Para demonstrar a oportunidade de um texto como o seu, Fedro defende a
universalidade do estado poético. Induzindo as respostas de seu oponente, ele
propõe que todos os homens seriam poetas, divididos em duas classes. A
diferença entre eles estaria em que alguns deles vivem as graças de poesia,
“convidados que são para os banquetes das Musas, a ocupar sempre os
primeiros lugares, os primeiros a falar e de certo nunca os últimos a ouvir” Os
demais, identificam nos poemas dos primeiros os “estados poéticos que são
como espelhos de nossos próprios estados de poesia” que, adormecidos, são
despertos imediatamente diante da leitura daquilo que outros poetas escreveram.
A atividade do teórico em literatura teria alguma identidade com aquela
diferença. Trabalhando com o objetivo de conhecimento sistemático, pretendendo
produzir ou descrever regras e modos de funcionamento, mesmo que
sabidamente provisórios e relativos, uma tese teórica estaria distante do poema
ou do acontecer poético, que, todavia, são o seu assunto.
O estatuto teórico de uma determinada área de conhecimento seria
estabelecido através da constituição de um objeto diferenciado de análise e um
conjunto terminológico particular, por sua vez, habitualmente, submetido a uma
forma específica de lógica unívoca e precisa. À primeira vista, poemas escritos
em versos, como qualquer texto escrito, apontariam para uma certa materialidade
— meios de suporte (papel, livro, letras, composição gráfica) e técnicas de os
apresentar (ritmo, metro, normas gramaticais, mesmo que algo específicas) —
que faria deles objetos mensuráveis ou assimiláveis de modo relativamente fácil
enquanto objeto teórico. Entretanto, tal materialidade dos poemas seria habitada
pela poesia: ato simbólico, ação de criar convocatória de ambivalências e
polissemias, com marcante tendência à imprecisão: objeto de assimilação difícil
pelos desígnios das normatizações e sistematizações.
Ao analisar as mais importantes teorias literárias do século XX, Terry
Eagleton constata que literatura não seria uma categoria objetiva, embora
também não estivesse subordinada aos caprichos de qualquer um.17 Os “juízos
de valor” que definem o literário são historicamente variáveis, ao mesmo tempo
em que, relacionados com ideologias sociais, guardam referências no gosto
particular e nos ditames dos grupos sociais. O crítico marxista utiliza as palavras
de Roland Barthes, “literatura é aquilo que é ensinado”, para observar que aquilo
que for proposto no provisório é, por conseguinte, um objeto sem estabilidade.
Nestes termos, as tensões e dificuldades entre o objeto e a teorização sobre ele
seriam de solução impossível, não por circunstâncias passageiras, mas pelas
características constitutivas de um e de outro. Tal objeto exige métodos de
análise diferenciados, capazes de responder à instabilidade e falta de
descritibilidade da literatura, articulados sob uma concepção de teoria e de
ciência não tradicional.
A mudança dos conceitos da crítica e dos estudos literários, de modo que
permitisse uma aproximação àquele estranho objeto, seria demarcada pelos
trabalhos de Barthes, nos anos 50, do século passado, com as denúncias à
mitologia e a busca do grau zero da escritura, primeiros enfrentamentos contra a
17 EAGLETON, [1983], p. 1 a 17 e 213.
doxa.18 A posição é marcada por duas idéias conexas: o texto literário seria
engendrado na confluência de inúmeros e diferentes textos e a atividade crítica
se comporia enquanto apreensão da pluralidade que o constitui.19 A formulação
teórica de uma impossibilidade de originalidade absoluta questiona, de uma só
vez, privilégios e valores arraigados no campo literário. Entre eles, estaria a
perda de parte da significância dos textos greco-latinos: antigos então originais,
então modelares, então continentes das verdades literárias definitivas — Italo
Calvino, reconstrói a importância dos clássicos, porém não a fundamenta
simplesmente em valores inseridos na tradição e sim na razão da demanda que
seu leitor atual fará neles.
O ‘seu’ clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele. (...) É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.20
Negativa da tradição como valor absoluto e, ao mesmo tempo, dúvida
sobre a possibilidade do completamente novo. O primado da originalidade para
qualificação de uma obra de arte, da qual deriva a idéia de ruptura, tão cara aos
modernos de todas as épocas, cai por terra.
Se literatura não é claramente definível, seu estudo não se faz por método
próprio ou exclusivo. Teoria literária se constitui num exercício de apropriação de
métodos e conceitos de outros domínios: lingüística, psicanálise, história,
antropologia e tantos outros. Alguns deles, tal como os estudos literários,
18 Nossa opção por Barthes faz dele significante das ações de autores que, em momentos diversos, não se conformaram com a submissão das letras a modelos pré-estabelecidos. Entretanto, marcas se movimentam, Barthes propõe Saussure, Hjelmslev, Jackobson e Benveniste como os responsáveis para as mudanças referidas e Eagleton confere ao trabalho de Sklovski, em Arte e artifício, 1917, a responsabilidade sobre as transformações da teoria literária no século. 19 BARTHES, 1970, As duas críticas, p. 149-155 e O que é a crítica, p. 157-163. 20 CALVINO, 1993, p. 13 e p. 15.
praticantes da apropriação de insumos teóricos de áreas próximas. A semiologia,
por exemplo tem franca intertextualidade com a lingüística e a psicanálise.21
. Os conceitos a serem experimentados nesta tese têm sua origem
naquelas circunstâncias. Parte deles é originária ou decorrente dos estudos
levantados pelas propostas estruturalistas, semiológicas e pós-modernas.
Retomadas e acrescidas de novas influências, as hipóteses teóricas deverão ser
aplicadas sobre o objeto literário, no seu limite, até que seja necessário
reformular a ambos. O trabalho está evidentemente sob os riscos inerentes a “um
objeto [ainda] não circunscrito em um campo de estudos definido por instituições
de produção e gerenciamento de saber”, como observa Celina Moreira de
Mello.22 A tentativa não se faz pautada por simples tecnicismo, mas pela
exigência de a crítica reconhecer o provisório e relativo de seu caráter de criação
ideológica — postura condicionante para eficácia de sua ação, segundo Linda
Hutcheon.23 Crítico sistemático e impiedoso da pós-modernidade, Eagleton chega
à mesma conclusão: “a teoria cultural tem que começar a pensar de maneira
mais ambiciosa [...] para que possa buscar compreender as grandes narrativas
nas quais está agora enredada”.24
Entre todos os constructos postos em cheque, pela crítica desde Barthes,
a lógica historicista tradicional é o mais evidentemente questionado pela
denúncia às grandes narrativas. Uma postura especialmente importante no caso
do imaginário brasileiro, mormente por derivar dela o modo de analisar, entender
21 EAGLETON, [1983], ao analisar o objeto literário, faz um estudo panorâmico sobre as diversas teorias exógenas utilizadas pela teoria literária. 22 MELLO, 2004, p. 129-156. 23 HUTCHEON, 1991. 24 EAGLETON, 2005, p. 107-108.
e vivenciar o campo literário nacional, inclusive na organização do seu cânone.25
Embora a história da literatura brasileira seja escrita de pontos de vista
ideológicos e teóricos profundamente diferentes, a lógica histórica é característica
comum entre elas. Silvio Romero utiliza uma concepção antropológica, José
Veríssimo uma perspectiva político-social e Afrânio Coutinho um enfoque
esteticista, Antonio Candido parte de uma analítica estético-social e Alfredo Bosi
se apóia na sociologia e na psicologia dialética. O modo de narrar praticado por
cada um não se repete no outro, os acontecimentos do campo literário não são
valorizados e descritos da mesma maneira, as qualidades encontradas em cada
um dos nomes escolhidos não são valores constantes, nomes aqueles que não
são os mesmos. As relações entre tempo e acontecimentos e pessoas não são
estabelecidas da mesma forma, porém o sentido de evolução e progressivo
aperfeiçoamento é uma concepção que lhes é comum.
Candido, posteriormente, revê a sua concepção quanto à formação da
literatura brasileira, em favor de uma literatura de dois gumes, respectivamente
título de sua obra dos anos 50 e de um ensaio escrito no final da década
seguinte.26
O valor atribuído a Bernardo e a sua obra é exemplar daquela equação
evolucionista. Na medida em que a poesia indianista é recepcionada como
central para o projeto romântico, a história elaborada por Bosi atribui a Gonçalves
Dias o lugar do “primeiro poeta autêntico a emergir em nosso Romantismo”,
enquanto Bernardo, lembrado pelo acento “humorista” e “satânico boêmio”, seria
25 O desgaste que levaria o gênero a uma posição definitivamente secundária no quadro de estudos literários é contextualizado e analisado por FRANCHETTI, Paulo. História literária, um gênero em crise. In: SEMEAR, 2002. Por outro lado, uma análise da importância dos historiadores da literatura para o estabelecimento da tradição é ensaiada por PEREIRA, M. R. A invenção da tradição. In: Terra Roxa e outras terras, 2002, p. 32-49. 26 Formação da literatura brasileira, primeira edição 1959, e “Literatura de dois gumes”, primeira edição em 1969, apresentado antes em 1966.
um epígono esquecido, merecedor de nada mais que uma nota-de-rodapé.27
Adotando uma postura ideológica diversa, A literatura no Brasil organizada por
Coutinho, determina ao poeta Bernardo posição similar. Secundário, não apenas
em relação ao autor maranhense, mas também ao gênio de Álvares de Azevedo,
aparecendo tão-somente como um adendo no verbete dedicado àquele.28
O ponto comum entre eles: os fundamentos evolutivos e
desenvolvimentistas da teoria de história adotada por ambos os estudiosos que,
embora de raízes ideológicas diferentes, recepcionam da mesma maneira um
poeta que escreve por linhas tortas. No sentido inverso está o destaque de
Candido ao autor desvalorizado pelos outros dois, a quem dedica o capítulo
“Bernardo Guimarães, poeta da natureza”.29 Um ensaio que se dá no enquadre
privilegiado que faz aos poetas da “segunda geração”, de certa forma autores
fora do centro: uma situação que permite considerar Bernardo significante da
natureza romântica, pois da geração fundadora, a primeira, a natureza é
indianista, com nome e sobrenome já estabelecidos em Antônio Gonçalves Dias!
Ou seja, o exercício crítico que comprometeria a hipótese que traçamos, não o
faz, pois ocorre sem romper com a lógica que separa autores principais de
autores secundários, lógica pertinente ao projeto evolucionista da história.
A detecção de valores comuns em análises teóricas tão diferenciadas
evidencia a presença e a força de um conjunto de mitos criados e mantidos ativos
pela economia interna da mesma sociedade ou grupo nos quais têm vigência.
Segundo Barthes, na sociedade burguesa circulariam diferentes mitologias
equilibradoras, incorporadas nas grandes narrativas e na cultura de massa como
se fossem verdades factuais, portanto despolitizadas e naturalizadas. Com o 27 BOSI, 1993, p. 114-119 e 128-9. 28 COUTINHO, 1997, p. 195-6. 29 CANDIDO, 1975, p. 81-96 e p. 169-177.
avanço de sua pesquisa, ele observa a permanência do mito, não apenas no
enunciado das grandes narrativas e na cultura massificada, mas nos discursos
pretensamente críticos, supostamente protegidos dos vícios que denuncia.
Demoraria pelo menos uma década e meia até que esta observação fosse
integrada ao debate da poética da pós-modernidade, como vimos nas referências
a Hutcheon, acima.
A atividade do crítico e historiador como consignador de mitos do campo
literário já fora assumida por Sérgio Buarque de Hollanda, nos anos 70, quando
intitulou Tentativas de mitologias a uma coleção de artigos e ensaios seus, sobre
história e literatura.30 Uma mitologia impura, assumidamente divergente da
tradição e das opiniões consagradas é verdade: o modelo de abordagem é dado,
segundo ele, pela Crítica Impura, de Astrojildo de Oliveira, cuja primeira
qualidade estaria no exercício sistemático de contraposição aos modismos.31 Mas
sem dúvida nenhuma, descrita com todas as letras como mitologias, pelo autor
que, naquele momento já era significante para raízes do Brasil.
Uma história literária que respondesse à crise da história tradicional é
desafio encarado por Leila Perrone-Moisés, vinte anos depois.32 As Altas
literaturas que escreve são concebidas a partir de ensaios nietzschianos e
benjaminianos sobre a filosofia da história, os quais reconhecem a importância do
tradicional horizonte diacrônico, mas privilegiam o recorte transversal dado pela
visão sincrônica: “ler é dar sentido, sincronizar, vivificar, escolher e apontar
valores”, exercício capaz de “orientar os rumos do futuro” e “ultrapassa[r] e
invalida[r] as regras de medida vigentes” sintetiza a crítica. O olhar sincrônico
30 HOLLANDA, 1979. Curioso notar que o autor apresenta, no mesmo texto, Raízes do Brasil como um trabalho igualmente divergente da tradição historiográfica nacional. 31 PEREIRA, [1963]. 32 PERRONE-MOISÉS, 1998 et seq.
seria condição própria dos artistas, no caso escritores que exerceram a crítica. T.
S. Eliot, Erza Pound, Jorge Luís Borges, Octavio Paz, Italo Calvino, Phillipe
Sollers e Haroldo de Campos colheram no passado aquilo que lhes permitiu
“situar, orientar e valorizar sua própria ação presente”. As escolhas feitas por eles
não estiveram ligadas a “nenhuma visão demiúrgica ou científica”, mas às suas
necessidades. A história escrita por cada um deles não é uma história objetiva,
nem ordenada, apenas uma articulação de informações, uma montagem
contrastando com a história da literatura tradicional. Nesta perspectiva, Perrone-
Moisés estabelece uma nova plêiade.
Todavia, as conseqüências do trabalho da pesquisadora vão além da
proposição de um novo cânone. Ao fundamentar a história das altas literaturas
em concepções filosóficas e não em pressupostos científicos e, além disso, tomar
como fiadoras de seu texto escolhas e indicações de poetas, sujeitos centrados
em seus desejos e necessidades idiossincráticas, ela assume que a história da
literatura que escreve é um saber subjetivo, provisório e parcial. A denúncia
barthesiana, sobre o mito cientificista da história, não está para ser contornada
por um discurso composto sob a regência de uma ideologia censurada por seu
emissor, mas para ser enfrentada como um possível a ser percorrido,
experimentado e escrito como texto. O que esteve protegido, nas obras dos
grandes historiadores, pelo estatuto da cientificidade, é deslocado para o campo
do literário e, no mesmo movimento, integrado a um debate no qual intervêm
valores como o sublime e o grotesco, o gosto, a preferência.
Os métodos utilizados nas Altas literaturas não se repetirão nesta tese,
pelo menos em parte. Haverá um traço comum entre um texto e outro, aquele
que explicita a intencionalidade nas escolhas, mesmo que a nossa intenção seja
atribuir valor a poemas ultrajantes e baixos, próprios de literaturas baixas.
Faremos a leitura dos textos impositivos dos operadores do cânone e
experimentaremos a aproximação de categorias originárias de diferentes campos
teóricos — Semiologia, Lingüística, Psicanálise, Sociologia, História. Categorias
tratadas desde a perspectiva e em benefício do objeto literário, pretendendo,
também, não contornar a crítica barthesiana. Dito de outro modo, sabendo que os
conceitos usados são elaborações circunstanciais, válidas diante de
determinadas circunstâncias, criações ideológicas e não há como negar isto.
A importância do ideário semiológico em nossa pesquisa, se dá, em boa
parte, motivada pelo que ela antecipa — a confluência de constructos de diversas
ciências para informar um novo conhecimento teórico e a opção pelo literário. A
Semiologia, conforme Barthes e Julia Kristeva a formulam,33 tem relações
originais com a Lingüística, a qual exerce nela um papel extensivo, funcionando
como se fora um discurso de ligação entre os vários domínios teóricos que
circulam naqueles domínios. Uma situação determinada em muito por sua
condição de produzir descrições formais de enunciados experimentais. Discurso
constituinte,34 na medida em que imprescindível para o discurso que se compõe,
como no retorno a Freud, realizado por Lacan, ou modelo implícito de
experimentos como a micro-história, de Carlo Ginzburg.35
A análise micro-histórica é, portanto, bifronte. Por um lado, movendo-se numa escala reduzida, permite em muitos casos uma reconstituição do vivido impensável noutros tipos de historiografia. Por outro lado, propõe-se indagar as estruturas invisíveis dentro das quais aquele vivido se articula. O modelo implícito é o da relação ente langue e parole formulado por Saussure. As estruturas que regulam as relações sociais
33 A proximidade entre as duas matérias é objeto das preocupações de BARTHES, (1964), 1977, p. 13: “a Semiologia é que é uma parte da Lingüística; mais precisamente, a parte que se encarregaria das grandes unidades significantes”. Kristeva inicia sua participação nos círculos intelectuais franceses com um amplo e detalhado estudo dedicado à Lingüística. KRISTEVA, (1969) 1981. 34 MAINGUENEAU, 2000, p. 31-2. 35 LACAN, 1999, Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse (1953), v. I, p. 235-321. GINZBURG, 1991, O nome e o como (1979), p. 169-178.
são, como as da langue, inconscientes. Entre a forma e a substância há um hiato, quem compete à ciência preencher.
Apesar da origem lingüística ou da expansão de seus métodos sobre os
outros campos de práticas significantes, os modelos tirados dela não são
univalentes e os diversos modos de significação foram e devem ser estudados
independentemente do ponto limite que seria aquele do modelo, como fizeram
alguns dos próprios autores da Semiologia.
Crítico da teoria pura da língua proposta por Saussure, que pretenderia
isolar qualquer referência às condições sociais, geográficas e históricas do
funcionamento da língua e de suas transformações, Pierre Bourdieu, entretanto,
não se recusa ao debate. Sua teorização em torno das estruturas simbólicas da
sociedade discute a economia das trocas lingüísticas, título de um de seus livros,
e contribui para complexificar o debate suscitado pela semiologia.
A contribuição oferecida por ele, para os estudos literários, é visualizada e
diferenciada em dois blocos, conforme está proposto em Les règles d’art.36 Um
deles referente às bases de sua metodologia: os conceitos de campo, habitus,
illusio, violência simbólica e autonomia. Estão incluídos neste conjunto os
estudos sobre a linguagem, especialmente aqueles que permitiriam discutir a
noção de lector.37 Num outro bloco estão suas experiências com textos literários,
uma “confrontação das teorias com novos objetos”, forma de colocar em jogo os
limites estabelecidos para os conceitos.
Um dos aspectos mais interessantes da teorização de Bourdieu reside no
fato dele imprimir nela um viés eminentemente empírico, tratando-a como um
programa de percepção e de ação que trabalhe segundo as exigências internas
36 BOURDIEU, (1992) 1996. 37 BOURDIEU, (1992) 1996. ———, (1982) 1996. Ver o capítulo sobre o lugar de um Bernardo.
de uma constante revisão de suas formulação, tendo em vista a acumulação de
informações. Ao mesmo tempo, implica na possibilidade de que o objeto com o
qual se confronta seja reformulado, com mais facilidade que teorias atuantes no
simples confronto com outras teorias.38 Construção provisória elaborada para o
trabalho empírico e que, por meio dele, ganha menos com a polêmica teórica do
que com a defrontação com novos objetos. Neste sentido, para o pesquisador
mais vale acionar os recursos teóricos adquiridos em novas pesquisas,
confrontando-os com novas situações, novos objetos, do que acondicioná-los em
metadiscursos que apenas repetem e mantêm uma posição já estabelecida.
Implícita neste argumento está uma noção de atividade de investigação
científica que implica simultaneamente em “continuidade e ruptura, conservação
e superação” em relação a todo o pensamento disponível, sem temer a acusação
de ecletismo, superficialidade ou continuísmo. O objetivo a ser atingido é a
ultrapassagem de seus antecessores, não por estarem fora de moda, mas por
uma utilização nova dos instrumentos para os quais contribuíram, em algum
momento. Esta atividade de colocar para funcionar um conceito sobre um objeto
diferente do que o criou é um “novo ato de produção tão inventivo e original como
o ato inicial”, um verdadeiro ato científico, tão importante para o desenvolvimento
do conhecimento a que se refere. Um ato que se opõe enfaticamente ao
“comentário des-realizante do lector, metadiscurso ineficaz e esterilizante”.
O primeiro dos conceitos em questão aqui informa sobre campo literário.
Indivíduos, grupos e suas ações circulam em espaços sociais delimitados,
definidos por Bourdieu através da noção de campo. Considerado enquanto
espaço social estruturado e conflitual, relativamente autônomo, ou seja,
38 BOURDIEU, 1989, A gênese dos conceitos de habitus e campo (1985), p. 59-73, para este e os comentários que se seguem, até novas referências.
diferenciado de outros, o campo é o espaço em que agentes sociais ocupam uma
posição definida pela relação entre seu trabalho e a reação dos demais agentes a
ele.
Bourdieu chama a atenção para a possibilidade aberta pela noção de
campo, no sentido de ela permitir que se ultrapasse e supere a oposição entre
leitura interna e análise externa sem que se percam as contribuições que ambas
oferecem ao trabalho analítico. Ao nosso ver, sem que se renuncie às aquisições
e exigências das duas aproximações.
Conservando aquilo que se inscreve dentro da noção de intertextualidade, ou seja, o fato que o espaço das obras se apresentam a cada momento como um campo de tomada de posição que não pode ser compreendido de outra forma que relacionalmente, na medida em que o sistema de separações diferenciais, se pode colocar a hipótese (confirmada pela análise empírica) de uma homologia entre o espaço das obras definidas dentro de seu conteúdo propriamente simbólico, em particular na sua forma, e o espaço das posições no campo de produção: por exemplo, o verso livre se define contra o alexandrino e tudo aquilo que ele implica esteticamente, mas também socialmente e mesmo politicamente; com efeito, do fato do jogo das homologias entre o campo literário e o campo do poder ou o campo social em seu conjunto, a maior parte das estratégias literárias são sobredeterminadas e muitas das “escolhas” são golpes duplos, ao mesmo tempo estéticos e políticos, internos e externos. 39
No que se refere ao campo literário, há de se compreender sua relativa
autonomia em relação aos demais campos da arte. Evidentemente que o foco
específico não implica em desconsiderar eventuais espaços limítrofes ou comuns
a outros campos, lembrando que a autonomia de um campo se dá sempre em
relação aos demais e de um modo constantemente relativo.
Como todo e qualquer campo, o literário é constituído historicamente, de
modo lento e gradual, em que os agentes e regras se compõem e ajustam ao
longo do próprio movimento que os inventa e lhes provê de valor. A obra de arte
literária é uma dessas produções. Enquanto “objeto simbólico”, sua existência
39 BOURDIEU, 1992, p. 288-289.
não é dada naturalmente: sentido e valor que forem atribuídos a ela são “duas
faces de uma mesma instituição histórica, o habitus culto e o campo artístico”. As
categorias utilizadas para dizer a obra estão inseridas no espaço temporal,
geográfico e social, constituindo-se em atitudes do habitus de determinados
grupos ou facções de grupos, sendo armas e instrumentos de lutas pela
hegemonia de determinados grupos e de suas idéias. Neste caso, noções
reconhecidas como evidentes ou naturais no campo, como artista, escritor e
poeta, suas qualificações e todas as palavras e termos que designam e
constituem o campo e seus agentes são resultantes de um longo e lento trabalho
histórico que se mantém acontecendo.40
Arrolam-se aí, não apenas os índices de autonomia do artista —
reconhecimento seu e de sua obra, os mecanismos de arbitragem —, mas
também os índices de autonomia do campo tais como a emergência do conjunto
das instituições específicas que condicionam o funcionamento da economia dos
bens culturais — locais de exposição, instâncias de consagração, instâncias de
reprodução de produtores e consumidores, estes últimos formando um mesmo
conjunto de agentes especializados, dotados de atitudes objetivamente exigidas
pelo campo e de categorias de percepção e de apreciação específicas,
irredutíveis às que têm curso normal na existência corrente e que são capazes de
impor uma medida específica do valor do artista e dos seus produtos.41
Dentre todas as invenções determinantes para a emergência de um campo
de produção se destaca a de elaboração de sua linguagem, neste caso da
linguagem literária, capaz de falar do artista, da natureza de seu trabalho e do
modo de remuneração do valor desse trabalho. Justamente sob esta ótica, serão 40 BOURDIEU, 1992, p. 286 e passim. 41 Para uma explanação sobre proposta de Bourdieu e seu desdobramento em outros teóricos ver CATHARINA, 2005, p. 40-77.
retomadas e re-analisadas categorias como romantismo e romantismo brasileiro,
criando as bases para se rever a posição ocupada pela poesia de Bernardo e,
especialmente, por seu texto obsceno.
As categorias utilizadas para dizer a obra estão inseridas no espaço
temporal, geográfico e social, constituindo-se em atitudes do habitus de
determinados grupos ou facções de grupos, sendo armas e instrumentos de lutas
pela hegemonia de determinados grupos e de suas idéias.
Neste sentido, a produção teórica do grupo em torno de Barthes,
incorporando sempre informações de diferentes áreas, seria um movimento de
luta pela hegemonia no campo literário, contributiva para a ampliação da
autonomia do campo. Um movimento especialmente claro na conjugação entre
lingüística e conceitos psicanalíticos em benefício da crítica literária, como faz
Kristeva.
O trabalho em torno de uma semanálise, realizadas por ela, conjuga dois
aspectos que retornam em nosso estudo. Um deles é a investigação sobre a
diversidade das práticas significantes e produção do sentido e o outro é o
reconhecimento da literatura como o domínio privilegiado, no qual a linguagem se
exerce, precisa-se e se modifica.42
O primeiro exercício sobre o trabalho constitutivo da significação, anterior
ao sentido produzido ou ao discurso representativo, seria obra de Freud, ao
formular o mecanismo do sonho, enquanto um processo no qual acontece um
jogo de permutações não linear, capaz de modelar a própria produção de
imagens e de sentidos. A teoria do sujeito que emana dos estudos freudianos
sobre o inconsciente é desdobrada por Lacan. Desde Freud, o conceito é tomado
42 KRISTEVA, (1969) 1978 e (1969) 1981.
para explicar a ocorrência de uma instância da psique humana fortemente
determinante para as escolhas e os comportamentos do indivíduo, embora não
fosse controlada ou observada pelo pensamento vigil. O inconsciente seria a
história humana que cada indivíduo tem gravada em si, sem o saber e sem
controlar este processo de gravação ou sua emergência, via desejos e
realizações — sintomas, conforme referência pouco acima. A instância informaria
sobre a existência de uma parte do sujeito que seria estranha a ele mesmo, uma
espécie de outro. Esta postulação seria responsável, inclusive, por uma grande
decepção da auto-estima do homem, por supor que ele, dominador das grandes
forças da natureza, não controlaria seus mais íntimos pensamentos e suas
atitudes mais pessoais — sua posição de sujeito de sua própria história, estaria
questionada.43 Com o psicanalista francês, a noção se radicaliza e os
acontecimentos comportamentais se colocam enquanto acontecimentos de um
percurso não linear e não pré-estabelecido, uma errância em que o que vale e
conta como experiência psíquica é apenas aquilo que se produz desde o
inconsciente. A própria noção de sujeito, como proposta por Freud — na qual o
eu e o sujeito se confundem no desejo — deixa de fazer sentido, pois, do ponto
de vista lacaniano, o sujeito se apresenta enquanto expressão falhada e
incompleta do Outro, constituídos ambos no inconsciente, ambos sempre se
atualizando. A alma humana seria, então, um constante trabalho, que, por sua
43 Mesmo a psicologia não psicanalítica tem nas questões simbólicas um problema não resolvido. A psicogenética piagetiana, por exemplo, que foi capaz de traçar uma gramática detalhada sobre a lógica e a matemática dos comportamentos cognitivos, é lacunar no que se refere aos estudos da função simbólica, nas quais se inscrevem as questões da afetividade, justamente aquele aspecto que trata da energia que impulsiona as ações humanas.
vez, se daria na linguagem. A partir de tais circunstâncias, Lacan afirma que a
linguagem é a condição do inconsciente.44
Ao contrário dele, Émile Benveniste leria a frase ao inverso, afirmando que
o inconsciente é a condição da linguagem.45 Diz ele: “O que há de intencional na
motivação governa obscuramente a maneira pela qual o inventor de um estilo
configura a matéria comum e, à sua maneira, se liberta dela”. A razão da
divergência estaria na forte marca da história no conceito de inconsciente
freudiano, observada pelo lingüista.
A semanálise é o estudo das práticas significantes, o questionamento das
leis dos discursos estabelecidos, em favor da emergência de novos e
inesperados significados, a significância. A intenção de “tocar nos tabus da
língua, redistribuindo suas categorias gramaticais e remanejando suas leis
semânticas” implica em “tocar nos tabus sociais e históricos”.46 O Barthes de
Mitologias sabe disso. Os estudos das práticas significantes contemplaram
diferentes classes de discursos, Lingüística, Teoria Literária, História, Moda,
Cinema, entre outros, até privilegiar o texto literário. Nele, a linguagem coloca em
cheque a doxa e as indicações canônicas.
O texto não é um conjunto de enunciados gramaticais ou agramaticais; é aquilo que se deixa ler através da particularidade dessa conjunção de diferentes estratos da significância presente na língua, cuja memória ele desperta: a história. Equivale a dizer que é uma prática complexa, cujos grafos devem ser apreendidos por uma teoria do ato significante específico que se representa através da língua, e é unicamente nessa medida que a ciência do texto tem qualquer coisa a ver com a descrição lingüística.
A escritura, assim concebida, recusa uma lógica da comunicação direta,
não se pauta em um único sentido, mas trabalha em todas as direções, tanto
44 LACAN, 1999. Subvertion du sujet et dialectique du désir dnas l’inconscient freudien (1960), v. II, p. 273-308 ; Instance de la lettre dans l’inconscient ou la raison depuis Freud (1957), v. I, p. 490-526 45 BENVENISTE, (1966) 1995, p. 81-94. 46 KRISTEVA, (1969) 1974, p. 11.
no horizonte da tradição quanto na verticalidade do subjetivismo, produzindo
sentidos infinitamente. O texto como produtividade considera o constante
trabalho de invenção e descoberta de sentidos, tanto no processo de sua
escritura quanto no de leitura. Na raiz desses processos está a interminável e
constante presença de outros textos no trabalho de escrever pela primeira vez
um texto.
A operação textual é dinâmica, descrita funcionando sob dois processos: o
fenotexto e o genotexto. O primeiro considera o fenômeno verbal que se
apresenta na própria estrutura do enunciado concreto, sobre o qual acontece o
trabalho de produção de sentido, enquanto que geno-texto se apresenta como
lugar da significância, o espaço em que o sujeito da enunciação se constitui e as
formas adquirem sentido.
Estas formulações estão vinculadas à noção de inconsciente lacaniano,
superando-a, quando remetem à idéia de um sujeito que se constitui na
linguagem e se identifica com o discurso que profere, em constante alteração,
sempre em transformação. Uma constância de trabalho não suposta por Lacan.
Nas relações com uma obra literária, tais vínculos produziriam uma leitura que se
conjuga na relação entre aquilo que o texto traz e o que nele se atualiza pelo
próprio exercício de o ler. Justamente com este instrumental será ensaiada uma
aproximação do texto de Bernardo, em busca dos exercícios e soluções
oferecidos pela função poética.
O conceito de habitus participa deste debate, enfocando a possibilidade de
o indivíduo adquirir um sistema de disposições duráveis, no curso do processo de
socialização, gerando e organizando práticas e representações suas e dos
grupos. Imaginário e ações que atuariam naturalizados, como se fossem próprios
e inalienáveis da humanidade, esquecidos de que são construções dos grupos
hegemônicos ou em luta pela hegemonia dos espaços políticos e sociais. 47 O
habitus diz respeito à maneira como cada indivíduo age e reage nos meios
sociais.
O conceito recusaria alternativas tais como consciência e do inconsciente,
finalismo, mecanicismo etc, segundo seu autor, Bourdieu. O objetivo inicial da
formulação foi sair da filosofia da consciência sem anular o agente na sua
verdade de operador prático de construções do objeto. Conceitualmente estaria
ligado, de um lado, à idéia de sentimento coletivo ou de ethos, conforme a
análise empírica da vida cotidiana realizada por Max Weber — a influência da
religião na disposição de agir e pensar de um grupo. De outro lado, ela teria
como precursora a idéia de mentalidade coletiva na arte, de Erwin Panofsky.
Deste modo, ao nosso ver, o inconsciente que o habitus contém funcionaria no
mesmo sentido que o inconsciente da psicanálise, especialmente, conforme as
formulações que tiram daquela instância psíquica seu aspecto místico ou
insondável. Uma formulação perfeitamente compatível com a de um inconsciente
histórico, que lemos em Kristeva e no próprio Freud — neste caso,
acompanhando a proposta de Benveniste. Bourdieu provavelmente não
concordaria com está aproximação, por não levar em conta aquilo que de
histórico o conceito freudiano recepciona, conceito que nada tem de místico ou
insondável.
Parte da importância do conceito estaria nas contribuições que faz para o
estabelecimento das relações entre diferentes discursos, seus sistemas de
valores e seus processos de legitimação ou exclusão, aponta Celina Moreira de
47 BOURDIEU, 1992, p. 59-73.
Mello, ao discutir a operação de interpretar um texto a partir de um olhar
semiológico.48 Questão que é a nossa, como se verá na próxima etapa, quando
trataremos justamente do lugar de Bernardo Guimarães no campo literário
brasileiro. Um lugar construído numa conjunção de circunstâncias postas por ele
e por seus leitores, mormente vozes autorizadas para qualificar seu texto.
Conhecer algumas daquelas vozes e suas circunstâncias significa expor aquele
processo, pretendendo participar dele.
48 MELLO, 2004, p. 4 et seg.
3 O LUGAR DE UM BERNARDO
3. 1 O FIO DO LABIRINTO
O lugar dos escritores no campo literário não é fortuito ou natural. Está
vinculado ao texto que um autor escreveu e às impressões e efeitos produzidos
em seus leitores por ele e à transmissão disto aos demais integrantes do campo.
Nesta relação, uma categoria de leitores é especialmente importante, com suas
opiniões e julgamentos sendo determinantes na qualificação dos textos literários:
os lectores. Resenhando e criticando obras, escrevendo histórias da literatura ou
antologias eles são os operadores do cânone, construindo e mantendo a
tradição, afiançando as mudanças. Suas vozes e suas penas integram a
produção e os autores ao campo literário, determinando o espaço e lugar de cada
autor e cada obra ali.
O sentido dado por Bourdieu ao termo lector projeta naqueles agentes
sociais um papel exclusivamente, ou quase, desabonador, enquanto
transmissores que seriam de um “metadiscurso ineficaz e esterilizante”, pautado
inteiramente pelos padrões do ideário hegemônico.49 Entretanto, o mesmo autor,
ao analisar as condições sociais da eficácia do discurso, mostra que a autoridade
do orador vem de fora, integrada aos ritos de instituição de posições e valores,
fundamentais para a organização social.50 Neste sentido, a ação do lector,
basicamente discursos, seria parte dos ritos de consagração, como tal
funcionando tanto no sentido do poeta como do comentarista, fundamentais para
49 BOURDIEU, (1992) 1996, p. 254. 50 BOURDIEU, (1982) 1996.
a organização do campo literário e sua integração com os demais campos
sociais.
Como entendemos, à figura dos lectores reservar-se-á a contradição entre
manter e renovar, naturalizando o que é arbitrário e denunciando o que é
naturalizado. Assim funcionam historiadores, antologistas, jornalistas e
professores no campo literário e autoridades do campo político geral — no
Império, o apreço de Pedro II avalizava definitivamente qualquer autor que dele
se beneficiasse, a indicação de John Kennedy, presidente dos EUA, deu fama e
fortuna ao, até então, obscuro escritor Ian Fleming, criador do agente 007.
Os documentos que produzem os agentes do campo literário — histórias,
antologias e críticas — são, ao mesmo tempo, a declaração dos lectores sobre o
objeto em questão e documento da história de como este objeto foi recepcionado
nos diferentes momentos. Sendo assim, a recuperação das nuances daqueles
discursos, não se apresenta como um simples exercício de erudição acadêmica,
mas se trata de um componente imprescindível para o estabelecimento do
quadro constituinte do lugar do referido autor e obra.
Documentos da história, eles têm um claro sentido diacrônico. Textos
autorais, eles se superpõem um aos outros, no sentido sincrônico, compondo a
identidade singular que a leitura atual proporá.
A situação de Bernardo Guimarães no campo literário brasileiro se compõe
neste diapasão. Como se fosse um fio que orientasse nossa própria leitura, através do
labirinto formado por tantas outras, percorreremos uma linha imaginária que ligaria os
modos e as formas como a obra de Bernardo Guimarães, especialmente seus versos,
foi recepcionada e assimilada por diferentes lectores, em diferentes momentos.
Estabeleceremos relações entre opiniões e análises emitidas e o contexto em que se
deram. O objetivo é o de estabelecer um sentido novo e singular para a situação do
poeta na plêiade nacional, sem perder o foco na participação de seus poemas
pornográficos nesse engendramento, afinal, o tema desta tese.
Bernardo é dos autores mais publicados da literatura brasileira. A escrava
Isaura, romance de 1875, foi lançado por três diferentes editores em 2001 e, no ano
seguinte, uma outra lançou a sua 28ª edição do livro.51 A história, vertida para a
dramaturgia televisiva, fez sucesso nacional e internacional, nas décadas de 70 e 80,
do século XX e, em 2005, voltou a ser apresentada, na televisão brasileira, em nova
versão. O seminarista, de 1872, é leitura obrigatória nas escolas, integrando as
coleções de livros “paradidáticos” das principais editoras do país. A poesia que
escreveu é menos conhecida, entretanto, além das edições em vida — Cantos da
solidão, 1852 e 1858, Poesias, 1865, Novas poesias, 1876, Folhas de outono, 1883,
poemas insertos em romances e publicados em jornais — sua produção em versos
receberia uma edição de Poesias completas de Bernardo Guimarães, pelo Instituto
Nacional do Livro, INL, em 1959.52
O incontestável sucesso de público e a indicação de possível pertencimento ao
cânone, sugerida pela publicação das poesias por instituição prestigiosa como o INL,
não faz de sua obra uma unanimidade de crítica.
Seu reconhecimento enquanto autor canônico é reforçado por outros sinais
importantes. Bernardo Guimarães está presente na maioria das histórias e das
antologias literárias. É patrono da cadeira número 5, da Academia Brasileira de Letras
(ABL), uma escolha significante de um certo reconhecimento por parte de Machado
de Assis, principal articulador da criação daquela casa. Em Instinto de Nacionalidade,
Bernardo é destacado como um romancista que “brilhante e ingenuamente nos pinta 51 Respectivamente editoras Abril, Ediouro, LP&M, Ática e http://catalogos.bn.br/ - acesso em 9 mar 2006. 52 Sobre as edições, ver Apresentação e Bibliografia.
os costumes da região em que nasceu”, um daqueles que deram forma e conteúdo ao
romance nacional, apoderando-se de elementos como a vida indiana, a magnificência
e esplendor da natureza, os costumes dos tempos coloniais e os dos dias de hoje.53
Um poeta de estro bem qualificado, modelar das exigências do gênero no equilíbrio da
majestosa cena americana. Um nome que precede aos de Varela e Álvares de
Azevedo, nos comentários machadianos. Acima da tríade, apenas Gonçalves Dias.
Os termos utilizados por Machado parecem mais do que uma simples homenagem a
um ex-companheiro da imprensa do Senado, eles indicam um efetivo reconhecimento
da importância e densidade da obra comentada.
Apesar desta opinião favorável tão importante, a obra de Bernardo se mostra
de recepção contraditória por outros operadores do cânone, sendo aclamada por uns
poucos, considerada com certas qualidades por outros, tratada como produção de
segunda linha pela maioria e esquecida por outros tantos, como acompanharemos em
detalhes.
3. 2 A CONSTRUÇÃO DA TRADIÇÃO
3. 2. 1 Os historiadores e seus contextos
A tradição literária é uma mitologia conscientemente estabelecida. A
relação entre a fundação de um Estado, a criação de uma língua comum e, em
seqüência, de uma literatura nacional não é um fenômeno desconhecido.54
Constitui-se num processo simbólico que exige a projeção sobre determinadas
obras de um sentido fundador, daquela nacionalidade específica à qual se
referem. A ele se integraria, inclusive, a necessidade da posse material de 53 ASSIS, (24/mar./1873), 1994, p. 801-809. 54 A este propósito CASANOVA, 2002, discute uma república mundial das letras e EAGLETON, [1983], analisa a ascensão do inglês na Grã-Bretanha.
acervos clássicos, nas bibliotecas reais e nacionais, e a tradução de textos do
grego e do latim antigos para os idiomas vernáculos, por intelectuais laicos, quer
dizer, comprometidos com uma determinada nacionalidade — atos
complementares de um mesmo ritual de dominação simbólica do passado.
Engendramento assumido claramente pelos românticos, ao buscar as lendas e
narrativas primevas de seu país e, na falta delas, compor eles mesmos os textos
a serem reconhecidos como fundadores. Todo um esforço convergindo para a
construção de um passado imaginário. Um passado constantemente revisado e
ampliado, como nas tentativas de constituir novas mitologias por Sérgio Buarque
e na proposta de uma revisão profunda da história literária brasileira, uma
espécie de Antologia da Poesia de Invenção, de Haroldo de Campos.55
Elaboração da qual esse nosso texto pretende se aproximar.
O desgaste sofrido pela lógica historicista, aplicada ao campo literário,
analisado no capítulo sobre o método e o problema, não deve ser confundido
com a suposição de perda de sua capacidade de organizar e dizer o passado.56
Ela se mantém com instrumento eficaz para a constituição da tradição literária e
do habitus assumidos pela maioria dos leitores, inclusive os melhor
instrumentalizados por reflexão e teoria. Fenômeno que se mostra através da
constatação da permanência de opiniões e análises antigas em autores atuais.
Uma força que transcende a posturas teóricas e ideológicas divergentes, como
acontece na penalização sofrida por Bernardo nas análises de Coutinho e Bosi.
Silvio Romero, significante principal da fundação da historiografia literária
nacional autônoma, sanciona a presença de Bernardo entre os autores
55 HOLLANDA, 1979 & CAMPOS, 1977. Este último não apenas indicou autores a serem re-lidos, mas realizou o que propôs, lendo, entre outros Odorico Mendes e Pedro Kilkerry Influenciou, ainda, trabalhos como TEIXEIRA, Ivan. Obras poéticas de Basílio da Gama: ensaio e edição crítica. São Paulo: Edusp, 1996. 56 Cf. O problema e o método.
referenciais do romantismo, posicionando-o no grupo formado por cinco ou seis
nomes que, sistematicamente, são lembrados ao longo da História da literatura
brasileira, logo após aos maiores, tanto no romance como na poesia.57 Os
critérios de classificação adotados pelo crítico são eminentemente nacionalistas,
calcados na capacidade de exprimir a mestiçagem de sangue e de idéias e
estabelecer diferenças entre obras e autores brasileiros dos estrangeiros. Neste
sentido, as novelas produzidas por Bernardo teriam, para além de simplicidade,
leveza, despretensão, lirismo e humor, a qualidade de exprimir, através dos
personagens e de seus dramas, verdades humanas. E, tal como Machado
observara anteriormente, “utilizando uma linguagem brasileira, brasileiríssima”,
enfatiza o historiador. Já os versos seriam daqueles que, relidos, ofereceriam
sempre “novas belezas” e trariam “sincera emoção”. Impressionaria ao leitor a
amplitude de seu lirismo que possuiria aspectos naturalistas, filosóficos,
amorosos e humorísticos. As qualidades do poeta: uma certa delicadeza,
facilidade e presteza de vôo. Seu grande defeito: ausência de força. O uso do
vernáculo seria um aspecto diferencial entre ele e seus pares: sob sua pena, a
língua nacional se apresentava capaz de estabelecer um equilíbrio entre a
natureza e a cultura, atualizando as relações Natur und Kultur, que Romero
colhera no ideário alemão dos séculos XVIII e XIX. Devanear do céptico, poema
de inspiração hugoana, de 1852, estaria entre as obras mais objetivas e
entusiastas da literatura americana, alentado por idealismo exuberante, um
dinamismo que transpira: o “universo inteiro” que palpitaria animado. Uma
qualidade que não passaria despercebida a Manuel Bandeira, anos depois. Do
poema, transcrito completo na História, destacamos o verso que se repete após o
57 ROMERO, (1888) 1953, p. 40 e 1063-1080 passim.
preâmbulo e ao final, uma quadra que expõe todo o sentido místico-fundador
pretendido pelos românticos de Jena:58
Salve, ó gênio dos desertos, Grande voz da solidão, Salve, ó tudo, que aos céus exalças O hino da criação!
José Veríssimo escreve uma história da literatura brasileira, que pretende
ser a história da atividade literária que sobreviveria na memória coletiva da nação
— produzida pela “opinião esclarecida” dos contemporâneos, somada ao “juízo
da posteridade”.59 Nela, Bernardo transitaria de modo errático. No papel de
crítico, ele não teria produzido nada consistente, certamente o historiador se
referia ao fato de Bernardo haver atacado duramente os principais nomes
românticos. Como romancista, ele seria um “contador de histórias”, um
espontâneo sem “propósito estético” ou “filiação consciente a nenhuma escola”,
sem, contudo, a excelência de uma verdadeira ingenuidade popular. Enquanto
poeta, receberia julgamento um pouco mais favorável: seria o único de seu tempo
a versejar com inspiração e intenção jovial, com uma arte “diferente da dos seus
companheiros”. Seu temperamento seria mais clássico, mais arcádico que
romântico; não haveria nele os excessos românticos, porém, em seqüência, não
haveria o melhor da sensibilidade daquela expressão. Talvez, por isso, o crítico o
grave entre os poetas menores.
Próximas às observações de Veríssimo estão aquelas firmadas em A
literatura no Brasil, obra organizada e dirigida por Afrânio Coutinho, sob a égide
de uma crítica estilística e nacionalista, com primeira edição datada de 1956.60
Bernardo aparece entre as figuras de segundo plano do romantismo. Na prosa,
58 Conforme analisam LACOUE-LABARTH & NANCY, 1978. 59 VERÍSSIMO, 1929, p. 17-23, 283 e 308-311. A primeira edição da História da literatura brasileira é de 1916, ano de sua morte, porém, entre 1901 e 1907, é publicada a série de Estudos de literatura brasileira, direcionada aos estudantes secundários. 60 COUTINHO, (1956) 1997. O individualismo romântico. p. 139-198.
seria completamente romântico, tanto nas qualidades quanto nos defeitos. Entre
suas qualidades estaria a de ser o introdutor do regionalismo na literatura
brasileira. Melhor poeta que romancista, na poesia, ele fora lírico, elegíaco,
humorístico e pornográfico. No gênero, mostraria um acento “classicizante,
apesar das inseguranças de métrica, e a despreocupação com a forma”. A maior
aproximação que faria com o romantismo aconteceria no humorismo,
especialmente com o bestialógico, especialmente na sátira aos modismos no
vestuário e na literatura. É importante ressaltar que a poesia de Bernardo não
recebeu verbete próprio nesta história da literatura, as considerações sobre ele
estão no sub-título referente a Fagundes Varela. Do mesmo modo, Cassiano
Ricardo não fazer qualquer referência ao mineiro em seu artigo sobre indianismo,
na obra organizada por Coutinho.61
A participação de Bernardo na história da literatura se mantém secundária
e breve, para José Guilherme Merquior, considerando o período entre o
aparecimento das obras de Anchieta e as de Euclides. Todavia, haveria no poeta
qualidades líricas importantes, especialmente no tratamento do tema da maldição
primitiva, desenvolvido por Gonçalves Dias, em “I-juca-pirama”.62 No poema
indianista, o pai amaldiçoa o filho que foi covarde, ameaçando-o com desgraças
violentas e passionais, enquanto que em “Se eu de ti me esquecer”, do poeta
menor, o amado ameaça a si mesmo com castigos duros e profundos, mas
sublimes.
Muitíssimo econômico nos elogios é Wilson Martins, em sua História da
inteligência brasileira.63 Para ele, Bernardo romancista produziria obras
folhetinescas, moralizantes e anacrônicas. O argumento de A escrava Isaura 61 RICARDO. Gonçalves Dias e o indianismo. In: COUTINHO, op. cit. p. 70-138. 62 MERQUIOR, 1979, p. 77. 63 MARTINS, 1977, v. II, p. 462-3; v.III, p. 87-8, 334-6, 356-482 e 482.
estaria construído sobre “inverossimilhanças”, os contos de Lendas e romances
seriam “fora de época”, mesma situação de O seminarista. A única qualidade
dessa produção estaria em oferecer a si mesma como elo entre o romance de
Alencar, romântico, e o de Porto-Alegre, regionalista. A produção poética não
estaria em nível muito diferente. Os trabalhos iniciais teriam poucas qualidades:
“O ermo” exemplificaria a “falsa poesia da natureza”, “O devanear do cético” a
“falsa poesia da dúvida” e “À sepultura de um escravo” não passaria de um
poema medíocre, embora generoso. O final de carreira do poeta não traria
novidades, com apenas uma única peça digna de uma notação positiva, “Hino à
preguiça”. Antes daquela, salvar-se-iam da desqualificação geral “Cenas do
sertão”, “Evocações” e “Lembrar-me-ei de ti”, as duas últimas, aliás, também
elogiadas por Machado de Assis. O crítico-historiador arremata comentando ser a
poesia humorística e satírica de Bernardo “a sua linguagem poética natural”.
Muito reticente ao trabalho de Bernardo é a posição da História concisa da
literatura brasileira, de Alfredo Bosi, construída na articulação das tensões entre obra
e meio.64 Naquela perspectiva, o romance do nosso autor seria uma mistura de
“elementos tomados à narrativa oral” dos sertões de Minas e Goiás. De feição
idealizante, ele utilizaria uma “linguagem adjetivosa e convencional”, cheia de
lugares-comuns na descrição da paisagem e na montagem dos personagens.
Melhor qualificados seriam O seminarista e A escrava Isaura. As qualidades da
primeira história residiriam naquilo que repete dos dramas de consciência
desenvolvidos em Eurico, o presbítero, de Herculano, e na antecipação que faz do
“romance de tese de Inglês de Souza”. Entre as qualidades do romance sobre a
escrava, estaria a ausência de preconceito racial, o quê, para o historiador, seria
64 BOSI, (1975) 1993, p. 129 e 155-160.
menos uma qualidade literária propriamente dita e mais uma postura social e política
liberal. A clara vinculação entre a beleza da escrava e sua cútis branca, não seria
nada mais que uma convergência para os padrões europeus de beleza. A posição
do romancista contra as pretensões de pureza de sangue estaria bem firmada em
Rosaura, a enjeitada, “obra da maturidade” — “ninguém pode gabar-se de que entre
seus avós não haja quem não tenha puxado flecha ou tocado marimba”, é a fala de
um personagem, destacada pelo crítico para afiançar suas considerações.
Autor de uma obra poética epigonal, Bernardo não mereceria na História
concisa, mais do que uma nota de rodapé e uma observação sobre o fato de
haver “preferido a temática da natureza e da pátria” e se destacado “como
humorista”, acento que “trouxe do satanismo juvenil da fase boêmia”.
Os versos do poeta têm melhor sorte nos estudos de Péricles Eugênio da
Silva Ramos.65 Neles é revelada a feição byroniana da produção do poeta,
especialmente na defesa da causa da liberdade e nas características ultra-
românticas. Exemplo da primeira característica seria “À sepultura de um escravo”,
um libelo antiescravista, aparecido em 1852. No segundo caso estaria a “Orgia dos
duendes”, poema de “tenebrosa perversão e esfuziante ‘humour’ grand-
guignolesco”, cujos animais da floresta guardariam relações diretas e indiretas com
os vampiros do poeta inglês. Ao lado de “Devanear de um cético”, ele estaria entre
os “documentos mais notáveis da fase”, a segunda geração romântica.
Ponto de vista similar adota Massaud Moisés.66 Bernardo seria o primeiro
nome entre os prosadores do segundo período romântico, antecedendo Manuel
Antônio de Almeida. Seu romance, nivelado à produção romântica menor pela
maioria da crítica, teria um caráter experimental — com A escrava Isaura, o autor
65 RAMOS, 1968, p. 66-90. 66 MOISÉS, 1984, p. 3-5, 137-185 e 193-207.
exercitaria “a economia de meios e o brilho plástico de um único romance”. Seu
texto regionalista funcionaria como precursor da obra de Franklin Távora,
completa o crítico. A poesia de Bernardo estaria próxima à de Herculano. Ele
seria um virtuose, menos inflamado que os companheiros de geração, cultor de
um meio-termo, uma contenção de linguagem que o aproximaria do
neoclassicismo arcádico e o tornaria “precursor da nova poesia parnasiana”.
Moisés acompanha as observações de Jamil Almansur Hadad quanto à
importância da participação do poeta na Sociedade Epicuréia, junto com Álvares
de Azevedo e Aureliano Lessa. 67 Relatada habitualmente como produto das
farras estudantis, Hadad redimensiona seu papel de modo mais amplo,
estabelecendo suas ligações com toda uma tradição maçônica e estudantil de
raízes européias.
Este pequeno grupo dos historiadores relativamente receptivos a Bernardo
é completado por Antonio Candido, que realiza uma análise mais complexa e
anuançada.68 Em Formação da literatura brasileira – momentos decisivos,
primeira edição de 1959, vincula cultura e desenvolvimento social dos povos,
com o que o romance de Bernardo estaria perfeitamente integrado ao que foi o
romantismo, no que se refere aos temas principais e no caráter marcadamente
moralizante como o movimento desenvolve aqueles temas.69
O crítico-historiador analisa a psicologia dos personagens nas narrativas
do autor. Os tipos ali seriam bem determinados, “tipos elementares” da tradição
romanesca — herói, vilão, pai. Modelo condizente com a idéia de que a alma
humana seria boa, embora a placidez e a calma superficial possam esconder
desejos tormentosos, caso dos assassinos passionais e bandidos circunstanciais 67 HADAD, 1960, p. 86 e segs apud MOISÉS, 1984. 68 CANDIDO, (1959) 1975. 69 CANDIDO, 1959, v. II, p. 236-244.
que, fugidos da cena e ambiente de seus crimes, têm suas personalidades e
comportamentos alterados, transformando-se em ermitões ou defensores dos
fracos. Haveria um vínculo entre as transformações operadas nos tipos e os
novos ambientes em que transitarão, via de regra, ambos próximos da natureza.
Nesta busca pela natureza e valorização do natural, as paixões e os desejos
carnais iriam adquirindo um componente de normalidade. Reprimidos, tais
impulsos desencadeariam tragédias e desgraças, fatos e tramas contados pelo
romancista, como nos casos de O seminarista e de A escrava Isaura. Esta
concepção naturalista dos desejos humanos, as mulheres do romance de
Bernardo, ativas na busca de seus objetivos, estariam em rota de “colisão com os
padrões românticos” para as personagens femininas.
Candido relaciona, ainda, a passagem do tempo, idade, com algumas
importantes alterações na produção do autor, no escopo da qual o poeta cederia
paulatinamente lugar ao ficcionista, “com o devaneio e o satanismo burlesco da
mocidade” sendo substituído por um “naturalismo cada vez mais saudável e
equilibrado”. O “autor convulso” do poema sobre a orgia dos duendes
desapareceria em favor do “romancista de olhos abertos para o pitoresco da
natureza”.
A poesia de Bernardo seria mais densa, “lembra uma polpa saborosa
envolvendo pequena semente amarga” — uma metáfora da natureza, para “Um
poeta da natureza”, título do capítulo dedicado a ele.70 A imagem assinala uma
contradição entre aquela que seria uma produção saudável e equilibrada feita
de “encanto pela vida, a natureza, o prazer” e uma outra, de pequena monta,
que, no extremo, atingiria o satanismo e a perversidade. Artista irregular, o
70 CANDIDO, 1975, v. II, p. 169-177.
poeta teria “sensibilidade plástica excepcional e musicalidade espontânea”,
preocupado com a experimentação métrica e dotado de um profundo
sentimento da natureza. Em suas experimentações na métrica, ele revelaria
senso extremo na “adequação do ritmo à psicologia”, ao modo de Victor Hugo,
Almeida Garret e Gonçalves Dias, numa produção ampla e diversificada, onde
se encontram desde versos medíocres e pastiches até uma poesia que nada
ficaria a dever às melhores entre seus contemporâneos: “Galope infernal”, “A
uma estrela”, “O devanear de um céptico”, “Idílio”, “Terceira evocação”, “A
cismadora”, “Barcelona” são algumas das obras que estariam neste nível mais
elevado. O interesse pela natureza desenvolveria uma apurada capacidade
descritiva, através da qual “o verso esposa os contornos, move-se com o vento,
ondeia com as matas, flui com os regatos, brilha à luz do sol”. Mesmo em
poemas “discursivos, não descritivos, como ‘O devanear do céptico’, são ainda
os largos movimentos que dão nervo e beleza” ao verso. Candido assinala que
a última fase do poeta, de Novas poesias e Folhas de outono, seria marcada
por um retorno à “harmonia neoclássica, ao tom de ode e epístola que,
associada à decadência da inspiração, roça a prosa”. Um movimento que
estaria ligado ao retiro em Minas, distanciado dos acontecimentos literários
mais recentes, espaço físico e psicológico no qual o arcadismo estava
“enraizado” — observação convergente à de Veríssimo.
Às margens da “polpa saborosa” estariam os poemas “leves e excelentes
em que a graça e o devaneio equilibram o humor”. Sabor menos adocicado
teriam as sátiras, como “O nariz perante o poeta”, “Delírio de papel” e “A saia
balão”. Já a semente propriamente amarga seria formada pelos versos
bestialógicos, a poesia obscena e a satânica. Destas últimas, o crítico considera
irreproduzível o título de uma “composição esmeradamente clássica” na qual “o
sangue rutila”: trata-se evidentemente de “A origem do mênstruo”. Os versos do
“Elixir do pajé”, ao contrário, são ressaltados, especialmente enquanto
“expressão dionisíaca e saudável do priapismo de anedotário”. Comentários
mais detalhados são elaborados a propósito de “Orgia dos duendes” que, num
paralelo com a pintura de Bosch, tiraria do macabro, do grotesco e do sadismo
a sua força poética. Um poema que expressaria, em parte, “as tendências de
toda uma geração desenquadrada pela embriaguez do individualismo estético”.
Uma composição cujo tom de galhofa e estilo grotesco “acobertam [...] uma
nítida manifestação de satanismo: luxúria desenfreada e pecaminosa, gosto
pelos contrastes profanadores, volúpia do mal e do pecado”. Mais tarde,
Candido aprofundaria estas observações, ensaiaria novos comentários sobre a
poesia pantagruélica de Bernardo.
Antes de Cândido, observações favoráveis à obra de Bernardo,
coincidentemente com alusões a metáforas vegetais, apenas aquelas feitas por
Agrippino Grieco.71 Na Evolução da poesia brasileira, de 1932, Grieco ressalta
que “vivendo longe do mar e da metrópole, foi ele o nosso primeiro sertanista
em verso, foi um rústico, um paisagista da pena. Compreendeu a alma vegetal
da gente da roça”. Ao poema do “Elixir do pajé” estão reservadas palavras
especiais, eventualmente, as primeiras sem qualquer tipo de restrição
moralizante: “os próprios versos sobre o velho pajé, uma paródia a Gonçalves
Dias, divertem a valer, sendo talvez, no gênero, os melhores da língua,
excetuados naturalmente os de Bocage”.
71 GRIECO, 1932, p. 41.
3. 2. 2 Os antologistas e seus textos
Sem que escrevam histórias da literatura, porém marcando diferentes
momentos da história literária, pautados por cronologia de autores ou
movimentos estéticos, os antologistas são um outro grande grupo de lectores.
Está sob sua decisão escolher os que serão lembrados e, por conseguinte,
aqueles aos quais restará apenas o esquecimento. Sua atividade teria um papel
importante no processo de consagração e naturalização dos valores
hegemônicos, pois suas escolhas podem ser suficientemente justificadas no
âmbito estrito da estética e do gosto, como se ambos não estivessem
compromissados com as esferas ideológicas.
A presença do texto de Bernardo, especialmente sua poesia, nas
antologias é constante, embora sejam irregulares as considerações quanto às
suas qualidades e variável a quantidade de obras presentes em cada uma das
antologias.
Na seleção de poesias dos melhores poetas brasileiros desde o
descobrimento, Mello Morais Filho inclui os poemas “Idílio” e “Primeira
evocação”.72 O ano da edição é 1885, o seguinte à morte do poeta. Vinte e seis
anos depois, o florilégio destinado a informar professores e alunos sobre o
“valor” dos poetas brasileiros, de Alberto de Oliveira, inclui apenas um poema
de Bernardo, “Hino à tarde”.73 A falta de prestígio de Bernardo é evidente, em
comparação com Álvares de Azevedo, agraciado com espaço para quatro
poesias, e com Aureliano Lessa, que tem reproduzido seus “A tarde” e
“Amargura”, isto considerando apenas o trio de companheiros da Faculdade do
Largo de São Francisco. Na segunda edição de Poetas brasileiros, de 1921, 72 MORAES FILHO, 1885, t. II, p. 208-218. 73 OLIVEIRA, 1911, p. 131-134 e outros.
Oliveira acrescenta à cota do poeta um outro poema, “Lembrança”.74 Nos
comentários sobre a poesia satírica o nome citado é o de Gregório de Matos,
silenciando sobre a produção bernardina no gênero.
Maior destaque a poesia de Bernardo recebe de Manuel Bandeira, na
Antologia dos poetas brasileiros, de 1936. Além de reclamar maior atenção
para o poeta, ele apresenta “O devanear do céptico” como uma das
composições mais importantes do romantismo, apresentando além dela outras
seis obras do poeta: “Prelúdio”, “Foge de mim”, “Cantiga”, “Se eu de ti me
esquecer”, “Hino à aurora” e “Hino à tarde”.75 Um benefício cuja
excepcionalidade seria registrada vinte anos depois, por Waltensir Dutra e
Fausto Cunha, em publicação sobre o poeta.76
Apesar do que reclama Bandeira, os versos bernardinos estão ausentes
de algumas antologias importantes. Uma delas, o Roteiro literário de Portugal e
do Brasil, organizada para a importantíssima Editora Civilização Brasileira, em
1966, por Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Holanda, este último revisor da
antologia do poeta de Libertinagem.77 De uma certa forma, é como se a
indicação que fizera o mestre não ecoasse nem entre os que lhe eram
próximos. Mais recentemente, em 2002, nenhuma das poesias bernardinas foi
escolhida para fazer parte da Anthologie de la poésie romantique brésilienne,
editada na França, sob os auspícios da UNESCO, com o apoio do Governo
brasileiro.78 Ele vai citado apenas no prefácio e como um dos poetas menores.
74 OLIVEIRA; JOBIM, 1921, v. I, p. v e vi, e p. 245-253. 75 BANDEIRA, [1936] 1996, p. 13 e p. 109-129. 76 CUNHA; DUTRA, 1959. 77 LINS; HOLLANDA, 1966. 78 ANTHOLOGIE DE LA POÉSIE ROMANTIQUE BRÉSILIENNE, 2002.
Retornando à companhia dos que lembram de Bernardo, chega-se à
antologia organizada por Edgar Cavalheiro, em 1959.79 O texto de apresentação
retoma, quase ipsis litteris o elogio feito ao poeta, por Grieco, na década de 30,
sobre “os versos do velho pajé”, embora o poema escolhido para exemplificar a
poesia do autor seja o lírico O devanear do céptico e não aqueles outros versos.
A presença da poesia debochada e satânica de Bernardo nas antologias
não se dá no mesmo tempo que o poeta é reconhecido como de estro
humorístico qualificado pelos historiadores, o que havia ocorrido desde Romero,
ou pelos companheiros de tempos de estudante, com relata Almeida
Nogueira.80 Mesmo Bandeira, que não hesita em transcrever na Antologia da
fase romântica, a sátira debochada de “A bodarrada”, de Luís Gama e a
sexualidade explícita de “Marabá” e “Leito de folhas verdes”, de Gonçalves
Dias, é absolutamente discreto com o bestialógico afamado. A bem da precisão,
ele também não apresenta a produção similar de Álvares de Azevedo. O acesso
daqueles versos às páginas eruditas e consagradoras das antologias exigiria
novas articulações no campo literário.
No descompasso entre a relativa autonomia do campo literário em
relação ao político, o primeiro ano de um regime de um governo ditatorial no
país seria o momento de aparição de “Orgia dos duendes”, exatamente numa
antologia escolar. Será ela a poesia bernardina incluída entre as mais
representativas da Poesia romântica, por Péricles Eugênio da Silva Ramos.81
Apresentada como poesia sabática, segundo o antologista, ela comporia, com
Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, e com o “Soneto Pantagruélico”, de
Cardoso de Menezes, uma produção de estreitas ligações com os anjos caídos 79 CAVALHEIRO, 1959, p. 77-83. 80 NOGUEIRA, 1907, v.2, p. 168. 81 RAMOS, 1965, p. 123-155.
e os caldeirões das bruxas cantados por Shakespeare e Goethe. No contexto
da obra do próprio Bernardo, faria contraponto com “Devanear do céptico",
inscrita na lírica da dúvida romântica. Vinte anos depois, na mesma linha das
antologias escolares, nas quais se enfatiza quase sempre o caráter
nacionalista-idealista do romantismo brasileiro, o poema escolhido por Valentin
Faccioli e Antonio Carlos de Oliveira é, mais uma vez, “Orgia dos duendes”.82
A paulatina opção em favor do poema enquanto protótipo da poesia de
Bernardo ou, pelo menos, como sua contribuição mais significativa para o
campo literário, confirmaria as observações de Romero, feitas há mais de um
século, retomadas por Waltensir e Fausto, há cinqüenta anos e enfatizadas por
Martins há três décadas, quanto a ser a musa travessa o melhor da produção
do poeta. Uma relação desqualificante, como fica evidente quando o último dos
citados, vincula a observação com uma avaliação desprestigiosa. Do mesmo
modo, a presença da poesia satânica e pornográfica de Bernardo nas
antologias do gênero confirmaria que ele, realmente, não passaria de um autor
de poesias marginais.
Mesmo seus biógrafos, alguns deles, parecem ficar a meio caminho entre
o destaque e valorização das qualidades de seu biografado e a concordância
com a tradição de o considerar escritor de segunda linha, senão, pior,
esquecidos da lição de Machado, Bandeira e tantos outros. Porém, o próprio
fato de haver interessados em o biografar e o interesse de alguns críticos em
analisar mais apuradamente os versos bestialógicos, satânicos e pornográficos
de Bernardo, nos últimos anos, vai contribuindo para renovar, ampliar e
diversificar o campo literário. Um processo que acompanharemos em seguida.
82 FACCIOLI & OLIVIERI, 1985, p. 5 e 77-81.
3. 2. 3 Antologias do mal falado e do proibido
Publicando o que as antologias canônicas censuram, as antologias de
versos proibidos de humor, sátira e pornografia funcionariam de modo diferente.
A Antologia do humor e da sátira, organizada por Raimundo Magalhães Júnior,
da Academia Brasileira de Letras, em 1957, define claramente seu projeto:
oferecer um panorama das realizações dos poetas brasileiros nos domínios da
zombaria do “mundo” e de “pessoas” e apresentar as diferenças entre objetos
que distinguem os dois gêneros complementares. Todavia, de Bernardo, ela
apresenta “O nariz perante os poetas” e “Disparates rimados”, com este último
sendo considerado um exemplo de “sonetos de um gênero disparatado, cujos
versos sonoros nada exprimem”. Sobre o restante da obra bernardina obscena
e pornográfica, a antologia mantém silêncio total, indicando que, para certos
estratos canônicos, composições com estas características não freqüentariam
os mesmos espaços do humor e da sátira.83
“Elixir do pajé” e “A origem do mênstruo” encontraram espaço pleno na
Antologia pornográfica: de Gregório de Mattos a Glauco Mattoso, organizada
por Alexei Bueno e lançada em 2004. O organizador ressalta que o livro tratará
exclusivamente de poesia pornográfica e de suas derivações diretas:
prostituição, obscenidade e sexualidade, escritas em linguagem chula, baixa e
propositadamente grosseira. Uma “poesia clandestina”, “quase sempre
anônima”, afirma ele, embora tudo o que apareça ali seja de autoria conhecida
e devidamente indicada.84
83 MAGALHÃES JÚNIOR, 1957, p. 1-3 e p. 47-52. 84 BUENO, 2004, p. 9-15 e p. 159-171.
3. 3 A TRADIÇÃO E A DIVERGÊNCIA
3. 3. 1 Biografias e bibliografias
Os estudos biográficos, bibliográficos e teóricos específicos sobre um
determinado autor formam um grupo relativamente distinto daqueles textos
constituintes da tradição canônica, embora algumas vezes se confundam com
aqueles, por serem, em grande parte, da mesma lavra, ou pelo menos situada no
mesmo ponto das operações de consagração. A diferença se coloca a partir de
sua composição, apresentada sob a perspectiva de análises e considerações
focadas numa única obra e autor, no caso, Bernardo Guimarães. Integrantes
desse ritual são as edições de obras completas, edições de dispersos ou
póstumos, edições críticas, artigos, ensaios, dissertações e teses.
A primeira biografia do autor surge em 1885, ano seguinte ao do seu
falecimento. A obra Poesias e romances do Dr. Bernardo Guimarães, organizada
por J. M. V. Pinto Coelho, funciona como uma espécie de antologia, sendo o
espaço em que “Elixir do pajé” e “O despertar do mênstruo” são tornados
públicos fora das edições ditas clandestinas, pela primeira vez.85
Outro perfil bio-biblio-literário de Bernardo foi escrito por Dilermano Cruz.86
Uma homenagem ao maior poeta de Minas Gerais e o maior romancista do país,
escolhido pelo biógrafo como seu patrono na Academia Mineira de Letras. Do
homenageado, Cruz analisa algumas das opções métricas e temáticas da lírica e
discute as influências sentimentais determinantes do romance. Apresenta excerto
de Escrava Isaura e alguns poemas na íntegra — entre eles “A orgia dos
duendes”. Comenta cartas e uns pouquíssimos aspectos da crítica literária
85 Cf. Introdução. 86 CRUZ, 1911.
daquele, sempre frisando o caráter satírico e humorístico de Bernardo, que, por
exemplo, inicia uma carta ao irmão, recém ordenado padre, como se o
destinatário fosse um futuro arcebispo de Constantinopla. Sobre os poemas do
elixir e do mênstruo, nenhum comentário.
Basílio de Magalhães apresenta, em 1936, Bernardo Guimarães (esboço
biográfico e crítico). Numa nota preliminar, denuncia a pouca atenção dada ao
autor mineiro pelos intelectuais, fato que pretende corrigir com o esboço que
apresenta. Fartamente documentada, a publicação se transformaria em fonte para
boa parte dos estudos posteriores sobre o escritor — como os de Alphonsus de
Guimaraens Filho, Antonio Candido.87 A base de sua argumentação, evidente
desde o título, é uma articulação entre obra e vida — estratégia também de
Dilermano. Logo as primeiras linhas do primeiro capítulo, “Traços biográficos
gerais”, relacionam o “formoso talento” do autor com o que seria uma herança
familiar, repetindo a afirmação de Francisco Coelho Duarte Badaró, em Parnaso
Mineiro: “o estro poético nessa família de Silva Guimarães é um dom da
natureza”.88 Na mesma linha de argumentos, os elevados sentimentos de
Bernardo estariam evidenciados pelo modo “fraternal” como tratou o escravo que o
acompanhou durante a vida de estudante em São Paulo. A vida desregrada e
desafiadora dos “bons costumes”, mas, ao mesmo tempo, dotada de toda uma
complexa ética idealista, a favor do menos favorecido e das causas impossíveis,
defendidas enquanto estudante em São Paulo, postura que teria continuidade na
vida profissional, como jornalista, no Rio de Janeiro, como juiz e delegado de
polícia, em Minas Gerais e em Goiás. Um jornalista que tem a coragem de criticar
violentamente Os timbiras, do grande Gonçalves Dias; um juiz excêntrico que
87 MAGALHÃES, 1926. 88 MAGALHÃES, 1926, p. 11. No exemplar consultado está “astro”.
liberta presos famintos e quer pronunciar judicialmente os poderosos. Índole e
idéias confirmadas no repúdio ao escravismo, com A escrava Isaura, Rosaura, a
enjeitada e À sepultura de um escravo.
Os títulos dos capítulos seguintes corroboram a articulação que faz
prevalecer os aspectos biográficos na constituição da obra: “O poeta”, “O
prosador”, “Obras de Bernardo Guimarães traduzidas, ou adaptadas ao teatro, ao
cinematógrafo e à música” e outros. Até mesmo um “Apêndice” serve a
reproduzir parte de uma informação biográfica — na qual a administração
provincial de Goiás relata ações e atitudes da autoridade judiciária e policial que
favoreceriam o crime e a desordem, autoridade esta que é ninguém menos que
nosso poeta. O capítulo de “Conclusão” segue a mesma lógica, relacionando um
possível comportamento ciclotímico com as características de sua produção, “ora
sua musa lhe inspirava nênias, ora o arrastava a desgarres irreais, lascivos e
burlescos”. Um quadro mental que, destaca o biógrafo, não seria incompatível
com os traços generosos e amorosos da personalidade do escritor.
Neste compasso são apresentadas as “Poesias bocageanas, humorísticas
e satíricas”, em capítulo próprio. As primeiras anotações sobre elas informam
sobre o impacto que o “Elixir do pajé” causou no meio literário, como demonstra a
reprodução de um comentário de Arthur Azevedo, de 1885, censurando o poeta:
“Tentou igualmente o gênero erótico, e em má hora o fez, porque o poeta, que se não pertence, que se dá inteiro à Pátria, que o estremece e respeita, não tem o direito de prostituir a sua musa, ainda que seja a branca; mas nós, os brasileiros, atravessamos uma época tão primitiva como a do Café do Nicola, de Lisboa, no princípio do século, ou tão decadente como os boulevards de Paris, na atualidade. Tanto assim é, que, para desespero do sr. B. L. Garnier, de todos, ou de quase todos os livros de Bernardo Guimarães, o escrito mais popular do autor dos Cantos da solidão é um poemeto obsceno, intitulado “Elixir do pajé”, que nunca foi impresso! É raro o mineiro que o não saiba de cor. Há na província espalhadas um sem número de cópias desse “Elixir” inútil e brejeiro.” 89
89 AZEVEDO, Álvares. Bernardo Guimarães. In: ALMANAQUE, de Heitor Guimarães, 1885. p. 223. Apud MAGALHÃES, 1926, p. 113 et sequentia.
Magalhães é sutil. Inicia afirmando que naquelas “asserções fulge a luz da
verdade”, para, logo em seguida, informar que os versos do elixir estavam
publicados em várias edições, embora todas elas clandestinas, precisando,
inclusive a data da edição princeps — 7 de maio de 1875. Prossegue
esclarecendo que seriam “dois [os] poemetos imorais” publicados sob aquele
título e comentando a perfeição, naturalidade e sonoridade daqueles versos, não
deixando dúvidas quanto às qualidades dos mesmos. E para arrematar,
desconstruindo completamente a censura de Azevedo, lembra que não apenas o
próprio “patriarca da Independência” seguira o exemplo bocageano, mas também
outros literatos brasileiros, mais ou menos famosos, escreveram versos
obscenos.90 Embora sutil, o texto não deixa dúvidas: a poesia “galhofeira” de
Bernardo não seria casual ou inconseqüente, ela realizaria um intenso diálogo
com os seus pares — zombando das hipérboles condoreiras ou parodiando
versos de romantismo adocicado — e uma cuidadosa observação dos
acontecimentos curiosos da política e da burocracia provinciana.91
3. 3. 2 Ensaios da tradição
Trabalhando com a mesma forte inflexão biografista, Alcântara Machado
avaliaria duramente a contribuição de Bernardo.92 Ele seria um “desses cujo
nome, os versos e novelas que escreveram só conservam nas antologias mais ou
menos tolerantes”. Entre os poucos comentários mais benevolentes estaria
aquele relacionando as imagens disparatadas do bestialógico com as “tiradas 90 Cita José Candido de Lacerda Sobrinho, João Pedro Maynard, João Nepomuceno da Silva, Laurindo Rabello, Pedro Rabello, Guimarães Passos e Olavo Bilac. 91 “Disparates rimados”, “Lembranças do nosso amor” e “Parecer da comissão estatística a respeito da Freguesia de Madre-de-Deus-do Angu” são os respectivos exemplos que oferece. 92 MACHADO, 1940, p. 215-224, passim. Os artigos que compõem a coletânea foram escritos entre 1926 e 1935.
patético-pernósticas da poesia oratória de Castro Alves”. No mais, foram
apresentados diversos casos do estudante boêmio e do adulto excêntrico,
inclusive usuário de éter, compondo uma aura para autor e obra, bem de acordo
com o adjetivo escolhido para o título daquelas páginas “O fabuloso Bernardo
Guimarães”, adjetivo referente a fábulas e daí às fantasias, ao imaginativo, ao
lendário, porém, segundo o Houaiss, também a incertas obscuridades, sendo
assim, um epíteto muito suspeito para ser aposto a um cidadão a merecer
respeito nas artes literárias.93
Poesias completas de Bernardo Guimarães é o grande marco do
reconhecimento do poeta no parnaso nacional, publicado em 1956, pelo INL,
repartição governamental, dentro do projeto de “edição das obras completas dos
grandes autores brasileiros”.94 Na introdução, Alphonsus de Guimaraens Filho
analisa a posição do poeta no parnaso nacional, arrolando e confrontando opiniões e
concluindo pela complexidade de sua poesia, na qual “coexistiram habitualmente o
lírico e o humorista, mas que tem como a sua principal nota a visão pessimista, e
dolorida, da existência”. Estão reunidos na edição todos os livros e seus prólogos,
além de livros e poemas dispersos, anotados detalhadamente como conviria a uma
“edição das poesias tanto quanto possível completas”. Excluídos apenas, “como é
óbvio, os poemas eróticos de Bernardo Guimarães”, registra o crítico. E nenhum
outro comentário sobre o assunto se faria.
Em 1970, o suplemento literário do jornal Minas Gerais homenageia
Bernardo. Num dos artigos, Mário Casassanta identifica A escrava Isaura como um
panfleto político que serviria de arma para o romancista travar o bom combate, da
93 HOUAISS, 2001, p. 1297. 94 GUIMARAENS FILHO, 1959, XI-XVIII. In: GUIMARÃES, 1959, passim. Para outros detalhes, ver Introdução dessa tese.
luta contra a escravidão no país, reafirmando o que escreveu Magalhães, em
termos diferentes, sobre os compromissos do poeta com o fim da escravidão.95
De Candido, o suplemento publica “O contador de casos Bernardo
Guimarães”, texto anteriormente apresentado na Formação da literatura brasileira
e já comentado nesse mesmo capítulo.96
“A posição moderna de Bernardo Guimarães” é o tema do artigo de João
Alphonsus, no suplemento.97 O romance do mineiro é analisado em seus
aspectos modernistas, o que faria dele, em mais um ponto, precursor de uma
literatura que aconteceria adiante no tempo, porém seu modernismo seria
negativo, no qual o repúdio violento realizado por Alcântara Machado, integrante
do movimento, funcionaria como uma espécie de recepção da obra pelo grupo,
acabando por chamar a atenção sobre a estética bernardina, fora do romantismo
tradicional, quando se trata da poesia bestialógica, e quase caricata do
sentimentalismo romântico açucarado, quando se trata do romance. Um romance
que, “apesar dos defeitos”, seria o elo de ligação entre o romantismo e a literatura
realista de Afonso Arinos. O ensaio destaca, ainda, que Monteiro Lobato,
igualmente ácido nas críticas, acabaria por considerar Bernardo o terceiro
componente da tríade da prosa romântica formada por Alencar e Macedo. “Uma
escrava que não é Isaura” é o título do ensaio-manifesto modernista, de Mário de
Andrade, podemos acrescentar, indicando que as ligações dos modernistas com
o texto do autor mineiro existe, mesmo que seja através de uma negação.
A percepção das possibilidades do texto de Bernardo, como precursor de
acontecimentos e soluções que se dariam no futuro, repete-se em “Um elo que
faltou”, de Fausto Cunha e Waltensir Dutra. O texto, publicado anteriormente com 95 CASASSANTA, 1970, p. 2. 96 CANDIDO, 1970 e acima, em 3. 2. 1, Os historiadores e seus contextos. 97 ALPHONSUS, 1970, p. 4.
o título “Bernardo Guimarães”, na Biografia crítica das letras mineiras, 1959, edição
do INL.98 Por qualquer versão que seja lido, ampliam-se os comentários sobre o
escritor, preparados pela mesma dupla de autores, para a história organizada por
Coutinho. Uma ampliação de caráter qualitativo, por trazer à baila um autor com
“credenciais” de professor de retórica e de filosofia, portanto muito distanciado do
que seria um espontâneo, como teria proposto João Alphonsus, citam os autores
do artigo. Um crítico que não hesitaria em tomar “posição anti-romântica”, se
romantismo for “a água da flor de laranja de Macedo” ou “o quinhentismo dos
Timbiras”, produzindo uma “crítica literária no sentido mais rigoroso da expressão”,
fundamental para o entendimento do romantismo brasileiro. Os articulistas
aprofundam as observações de Veríssimo, identificando a fonte do neoclassicismo
do poeta: a lição de Antônio Feliciano de Castilho. Antagonista da estética de
Quental e Junqueiro, arautos das transformações pós-românticas, parnasianas e
positivistas, Castilho teria em Bernardo um combativo seguidor que, no prefácio de
Folhas de outono, expõe sua oposição às novas idéias. A crítica a Macedo e
Gonçalves Dias seria, então, a reação de um “filo-árcade” ao que pareceria uma
aproximação dos criticados ao gongorismo e marinismo, ou seja, ao barroco, o
primeiro combate a ser empreendido pelos árcades.
Apesar das muitas observações favoráveis a Bernardo, Fausto e Waltensir
concluem que, na poesia, o autor teve sua sorte selada no confronto com os
grandes românticos, situando-se, então, numa segunda linha. Na verdade, “não
deixou nenhuma composição que lhe recordasse o nome”. “O devanear do
céptico” não serviria para tais lembranças, por ser “pouco acessível ao leitor
comum”. A permanência de Bernardo nos compêndios seria devida aos seus
98 CUNHA; DUTRA, 1956, p. 50-58 e 1970, p. 10.
romances, pois “não se editam mais seus livros de poemas, ninguém por assim
dizer os procura nas bibliotecas, seu nome de poeta não aparece em antologias e
seletas”. A inclusão de sua obra na antologia organizada por Bandeira teria o
“som de redescoberta”, afirmam os articulistas.
3. 3. 3 A tradição enviesada
O percurso delineado acima mostra que biografar e ensaiar homenagens
a um autor e sua obra, encontrando alguma qualidade singular ou positiva
neles, não significa necessariamente romper com os valores e sentidos
projetados sobre eles pela tradição, o habitus, dos grupos dominantes no
campo literário. Em tal contexto, os textos pornográficos de Bernardo são quase
que completamente recalcados.
Fora das histórias, antologias e ensaios, encontramos apenas um registro
público e favorável a eles. Um artigo de Newton Assunção, para o Correio da
Manhã, anuncia a publicação dos dois poemas do Elixir do pajé, numa produção
de luxo, aquela das Edições Piraquê.99 O acontecimento, uma subversão de
valores morais e estéticos, valores pertencentes simultaneamente aos campos
literário e político, viabiliza-se pela característica altamente erudita da edição.
Luxuosa, tornando-a acessível a poucos iniciados, e justificada pelo progresso
cultural, assinala o articulista. Assunção lembraria que as “peraltices líricas”
eram comuns entre poetas, por vezes severamente censuradas, por vezes lidas
e aceitas. Invocando a poderosa pena de Romero, escreve que os versos de
Bernardo seriam o resultado de uma mistura do “gênio de boêmio”, com um
99 ASSUNÇÃO, 1958, p. 10.
“instinto do pitoresco” e a “convivência íntima com o povo” — a mais “nítida
encarnação do espírito nacional”.
Todavia, a marca do olhar estrábico que dobraria a tradição seria
oferecida de modo firme e consistente pelo ensaio “Poesia sincrônica”, de
Haroldo de Campos, publicado pela primeira vez em 1969.100 O texto diferencia
dois modelos para abordagem do fenômeno literário, um de base histórica,
diacrônico, e outro estético-criativo ou sincrônico.101 O primeiro deles seria o
responsável pelo “levantamento e a demarcação do terreno” mais tradicionais,
que se baseariam numa lógica constituída como se fora definitiva, desde os
primeiros organizadores da história relatada, no caso brasileiro Silvio Romero.
O segundo critério indicaria preocupações com a divergência, com aquilo que
retorna ou permanece vivo na história. Na perspectiva da tensão entre os dois
critérios autores e obras do passado, Campos propõe rever, ampliar e
diversificar o “nosso repertório de informação estética”. Entre os nomes, títulos
ou movimentos apresentados para iniciar tal revisão estariam Gregório de
Mattos, Cartas Chilenas, Sousa Caldas, Odorico Mendes, Simbolismo e
Bernardo Guimarães. Deste último, interessaria “a parte burlesca, satírica, de
‘bestialógico’ e ‘nonsense’, de seu estro poético”.
Numa perspectiva similar, Flora Süssekind escreve “Bernardo
Guimarães: romantismo com pé-de-cabra”.102 A ensaísta propõe uma hipótese
sobre o esquecimento da obra do poeta, que tem o centenário de sua morte
“passando em branco”. Existiria, contra ele, uma equação perversa, o autor de
100 CAMPOS, (1969) 1977, p. 205-212. 101 Este debate é analisado por Perrone-Moisés (1998), como vimos no capítulo O problema e o método. 102 SUSSEKIND, 1984, p. 3-5. SUSSEKIND, 1993, p. 139-150. O texto aparece em dois espaços diferentes: no suplemento literário da Folha de São Paulo, em 1984, e no livro de ensaios Papéis colados, lançado nove anos depois, com algumas poucas diferenças entre uma versão e outra.
“uma das melhores e mais características obras poéticas do romantismo
brasileiro” seria esquecido, recalcado, como já escrevemos, em razão das suas
qualidades ímpares, de crítico e exímio explorador das contradições do
manifesto romântico: “não havia lugar para uma obra poética dotada de
dimensão crítico-humorística incomum em meio aos indianismos, arroubos de
eloqüência e subjetividades lacrimejantes do romantismo brasileiro”. Esta
característica da obra de Bernardo seria um traço habitualmente relacionado
com a própria vida do poeta, conforme articulam Alcântara Machado, Basílio de
Magalhães e outros biógrafos seus. A pesquisadora observa que a sugestão da
referida aproximação partiria do próprio Bernardo, seja na letra de sua poesia,
ao estabelecer “estreita correspondência entre a lira e o trovador”, seja quando
“brinca” com as fórmulas mais caras à lírica romântica, inclusive a sua própria,
como a da entonação irônica que a musa faz ao poeta-jornalista, em “Dilúvio de
papel”:
Que vejo? Junto ao meu lado Um desertor do Parnaso, Que da lira que doei-lhe Faz hoje tão pouco caso, Que a deixa pendurada numa brenha Como se fora rude pau de lenha!?
A divergência do autor aos modelos e soluções românticas mais comuns,
que se multiplicaria na escolha de temas inusitados como o nariz, a moda
feminina e o mênstruo, é destacada pela ensaísta com o exemplo da
contraposição entre “Orgia dos duendes”, obra saturnal e mefistofélica, uma
“Walpurgisnacht sertaneja”, e o elevado e idealista “Canto do piaga”, de
Gonçalves Dias.
Süssekind lança a proposta bernardina para além das dimensões da sua
poesia “pantagruélica”. Citando Veríssimo, ela mostra que, de modo geral, o
ritmo da lira do poeta privilegia o verso branco, em detrimento aos decassílabos
e os hendeassílabos, rimados no 2º e 4º, mais usual entre os românticos.
“Períodos longos, versos brancos, texto cheio de interrogações, exclamações e
reticências, permeado de dúvida e inconclusão”, peças para serem lidas
silenciosamente e não declamadas, tão a gosto dos românticos, acrescenta. Um
estilo de poetizar embebido no modelo árcade que, como observara Antonio
Candido, não seria pouco usual, na medida em que a chegada de um não
destruíra o outro de modo absoluto, ao contrário, manteria entre as duas
estéticas uma relação de compromisso.103 Peculiaridade pouco considerada por
ensaístas que, nas ocasiões que a observam, reduzem-na a defeito, não
explorando as possibilidades que uma desarrumação deste tipo poderia trazer
para o exercício da crítica literária.
Esta nuance não passou despercebida a Luiz Costa Lima.104 Na mesma
linha de revisão crítica dos parâmetros estabelecidos pela tradição diacrônica
do campo literário e dialogando explicitamente com o ensaio de Süssekind, ele
traça a hipótese de que a relação entre o poeta e o cânone seria ambivalente.
Reconhece um perfil neoclássico em Bernardo, especialmente na constante
presença das alegorias e no trato com a natureza. Tais ocorrências não seriam
simples reação ao modelo romântico. “O devanear do cético” exporia ao mesmo
tempo tanto uma dúvida na razão e na ordem do universo, pertinente à lógica
romântica, quanto a questão da “harmonia das esferas”, problemática de
inflexão neoclássica. Por esta via, de uma certa dissonância, o poeta se
integraria ao cânone romântico: “sem os extremos melódicos de Gonçalves
Dias, os arroubos retóricos de Castro Alves e as endechas sentimentais de
103 CANDIDO, (1959) 1975, vol. 1, p. 191-192. 104 LIMA, 1991, p. 242-252.
Casimiro”. O outro caminho seguido pelo poeta seria o da paródia, do humor ou
da agressão aos modelos vigentes. Um projeto que se coloca para além da
reconhecida paródia a Gonçalves Dias, cantor dos timbiras, pretendendo
alcançar ao próprio modelo camoniano de epopéia.
Campos, Süssekind, Costa Lima, e, junto com eles, Candido, Moisés,
Silva Ramos, e mais Garnier, Laemmert, INL, Piraquê, Dubolso, Imago. A
aceitação da poesia de Bernardo pelo cânone, pressuposta com a publicação
de seus versos, por editoras estabelecidas no mercado, e o interesse da crítica,
inclusive pelos versos satânicos e pornográficos, não significaria, entretanto,
que as elaborações sobre a obra de Bernardo Guimarães sejam unânimes e
convergentes, ao contrário, diante de obras complexas e instigantes, como as
deles, não se esperam unanimidades. A crítica mais recente evita o perigo
denunciado por Nélson Rodrigues, a polêmica permanece.
“O riso romântico: notas sobre o cômico na poesia de Bernardo
Guimarães e seus contemporâneos”, de Paulo Franchetti, e Risos entre pares,
de Camilo Vagner, são dois textos unidos nos objetivos e separados no tempo e
na forma.105 O segundo é um longo estudo sobre “algumas formas de humor em
poesia, cultivadas por nomes representativos de nosso Romantismo”,
apresentado como dissertação de mestrado e, depois, publicado como livro em
1997. O primeiro ensaio pretendeu traçar um “rápido panorama que estimule
trabalhos necessários de investigação, localização de textos e reflexão
pormenorizada” dos poemas humorísticos da segunda geração romântica.
O texto de Franchetti anuncia a existência de “uma região” inexplorada,
na qual “florescem lado a lado e exuberantemente a paródia, a sátira, a chalaça
105 FRANCHETTI, 1987, p. 7-17. CAMILO, 1997, p. 140-148.
e a pornografia”, produções geradoras desde um riso discreto até sonoras
gargalhadas. Neste espaço circularia Bernardo, apenas um poeta mediano se
“não fossem seus ‘bestialógicos’, a sua ‘Orgia dos duendes’ e os dois poemetos
fesceninos”. A musa depravada da poesia burlesca romântica seria
“absolutamente bocageana” no poeta mineiro, experimentando os limites do
obsceno e chulo. O poema sobre o mênstruo seria inspirado na tradição
mitológica e camoniana, enquanto que o outro, sobre o elixir, corresponderia à
celebração da virilidade, explorada antes por Bocage. A atenção dispensada
aos dois poemas se conclui com a observação de que os “dois poemetos são o
que hoje menos nos impressiona na obra humorística do autor”. Avaliação mais
positiva o ensaísta faz da produção bestialógica e da “Orgia dos duendes”,
tétricos e divertidos, definitivos para marcar “uma espécie de genialidade
poética” de Bernardo.
Tais qualidades estariam, de certo modo, condicionadas pela
participação do poeta na vida boêmia dos estudantes de direito em São Paulo.
Franchetti toma a boêmia como um sistema relativamente autônomo dentro do
mercado de textos literários destinados ao público em geral.
Nas pequenas sociedades acadêmicas, a boêmia simultaneamente propiciava uma suspensão do juízo moral sobre os textos destinados à circulação interna e estimulava um certo inconformismo político, nem sempre compatível com as funções que o bacharel deveria poder assumir em breve na sociedade imperial. Disso resultam duas conseqüências interessantes. Uma é que devemos a esse meio boêmio a única produção literária do período romântico que, além de não prever explícita ou implicitamente um público majoritariamente feminino, ainda o exclui. Outra mais importante, é que a poesia tendesse a ser encarada entre nós como simples distração descompromissada do mancebo estudante.106
O ensaísta vê a segunda conseqüência confirmada no prólogo do editor
de Cantos da solidão, apresentados como “última lembrança do viver de
106 FRANCHETTI, 1987, p. 15.
outrora”, “testamento do coração ao terminar-lhe a vida descuidosa”, “baliza que
servirá de assinalar-lhe uma quadra risonha da existência”. Chamar a atenção
para as circunstâncias que envolvem a produção da poesia romântica permitiria
que se compreendesse a relação entre ela e a verdade, com a poesia sendo
qualificada de acordo com as circunstâncias da vida de quem a escreve. O
exemplo são as mortes prematuras de Álvares de Azevedo e de Gonçalves
Dias, contribuindo para a glória definitiva de ambos. No mesmo raciocínio, a
pouca valorização de Bernardo estaria ligada a sua permanência em vida.
Nesta elaboração, um tanto quanto mórbida, a qualidade descendente da
poética “oficial” de Bernardo estaria vinculada ao “eloqüente processo de
mediocrização a que tão poucos escaparam”. Porém a “sua grandeza provém
do outro lado”, daquilo que é habitualmente oculto — uma “energia,
agressividade, criatividade e não-conformismo juvenis que, embora subterrânea
e marginalmente, nele puderam encontrar a melhor e mais completa realização”
— arremata Franchetti.
Tendo como ponto de partida o texto anterior, Vagner Camilo se
aproxima da obra em versos, especialmente a poesia pantagruélica, de
Bernardo na perspectiva de discutir o riso entre pares, objetivando, ao final,
“tecer considerações extensíveis a todo o grupo que a praticava
burlescamente”. Quanto aos comentários sobre poesia obscena, é um dos
poucos trabalhos acadêmicos que chegariam aos tempos atuais — outro seria
sobre os versos de Laurindo Rabelo.107 As perspectivas da análise seriam
sempre amplas, desde o enfoque proposto para a compreensão dos temas e
motivos explorados pelos poemas, passando pela análise dos conceitos e
107 Sobre Rabelo, especificamente, foi apresentada dissertação articulando aspectos originais de sua obra e reunindo ampla documentação inédita, por Fábio Frohwein de Salles Muniz, 2004.
gêneros concernentes ao riso — ironia, humor, sátira, grotesco — até chegar ao
entendimento da especificidade do fenômeno em termos do romantismo
brasileiro. Um percurso para elucidação do problema que, o próprio ensaísta
observa, já estaria posto no texto de Franchetti, qual seja, o humor romântico
poderia “ser melhor compreendido se o considerarmos à luz do contexto e da
emulação da boêmia dos poetas que conviviam no cotidiano das pequenas
cidades [...] dos estudantes de São Paulo”.
Apresentando o “Elixir do pajé" como uma composição que “versa sobre
os poderes milagrosos de um misterioso elixir feito, segundo conselho do
demônio, com uma ‘triaga de plantas cabalísticas’, por um certo pajé bandalho”,
Camilo recupera a exploração da temática do elixir miraculoso no romantismo e
suas inflexões apresentadas por Hoffmann, Lovecraft e Balzac. O elixir do
brasileiro, no entanto, seria definido como uma paródia obscena à poesia
indianista de Gonçalves Dias, portanto de escopo limitado. No sentido proposto
pelo conceito, o alcance do poema de Bernardo se restringiria a compromissos
com a obra que parodia e as suas próprias características de obra obscena,
totalmente ambivalente em relação ao discurso a que se refere, na medida em
que o degrada, mas depende dele.108
O ensaísta discorda do sentido amplo conferido por Costa Lima ao
poema — quanto a ser ele uma crítica ao modelo camoniano. O cotejo que
estabelece entre versos de Bernardo e de Gonçalves Dias, especialmente no
que diz respeito a citações e métricas, não deixa dúvidas quanto às intenções
do mineiro: parodiar o texto indianista.
“— Mas neste trabalho, Dizei, minha gente, Quem é mais valente,
108 CAMILO, 1997, p. 140-148, et sequentia.
Mais forte quem é? Quem vibra o marzapo Sem mais valentia? Quem conas enfia Com tanta destreza? Quem fura cabaços Com mais gentileza?”
“Se as matas estrujo Co os sons do Boré, Mil arcos se encurvam, Mil setas lá voam, Mil gritos reboam, Mil homens de pé Eis que surgem, respondem Aos sons do Boré! — Quem é mais valente, — Mais forte quem é?” 109
Naqueles termos, os ataques de Bernardo colocariam a “sublime imagem
do índio” em risco, não fosse o poema um simples adendo à poesia maior do
indianismo brasileiro. Uma espécie de “discurso solitário, autocompensador e
onanista [...] de libertação, sim, mas apenas no sentido que a repressão lhe
permite”.110 Os versos do pajé nada mais seriam do que o produto de um
“priapismo de anedotário” repete o crítico, flexionando uma afirmação de
Candido, tomada pelo prisma de uma certa desqualificação que ela projetaria
sobre os versos de Bernardo. Mais “demolidora” à produção gonçalvina seria a
crítica feita a Os timbiras — uma análise sem concessões ao laudatório habitual
quando se tratava de Gonçalves Dias.
“A origem do mênstruo” mereceu crítica mais benevolente por parte de
Camilo. Enquanto fábula, como define o próprio Bernardo, pertence ao gênero
metamorfose, como indica am pseudo-autoria de Ovídio, autor da famosa
Metamorfose. Concebido assim, ele estaria articulado a um amplo conjunto de
109 DIAS, 1998 (1847), p.106. Acrescentamos um extrato do poema que seria parodiado, para melhor evidenciar a afirmação do crítico. 110 Paródia obscena de tipo monológica, conforme VIEIRA; HEAD, 1979, p. 91 e segs. in CAMILO, 1997, p. 144-6.
referências poéticas, que vão do poeta latino até Bandeira, passando por Boris
Vian, Camões, Bocage, Gregório de Mattos, Zola e Aluísio Azevedo. Fazendo
um “rebaixamento grotesco” da imagem da mulher, Bernardo estaria
aproximando sua poesia do obsceno, no sentido daquilo que se manteria “fora
de cena” ou, mais profundamente, dentro de um “outro sentido etimológico
esquecido”, “um signo do mal”, um “mau augúrio, um infeliz presságio”, que são
a cena da menstruação e a de castração. A partir dessa interpretação, está em
debate a questão do humor e do chiste, conforme Freud o compreende.
O poema estaria trabalhando com profundas questões do “retorno
inopinado do reprimido”, uma hipótese do crítico pautada pela psicanálise e
convergente para uma observação precursora de Candido, quanto à presença
de perversidade e sadismo na “obra irregular” do mineiro. Fenômeno, por sua
vez, integrado à tendência romântica para a “sondagem das camadas obscuras
do ser”, com o que haveria mesmo uma “certa ‘vertente de desvios da norma’,
bastante visível na tradição da poesia brasileira e até então ignorada” —
Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Olavo Bilac, Alberto Oliveira, Augusto
dos Anjos, Mario de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Xavier Fontoura
seriam seus pares. Segundo Camilo, o “horror da castração”, atuante no texto
sobre o mênstruo, estaria agindo também sobre “algumas visões fantasmáticas
e sobrenaturais presentes na ‘Orgia dos duendes’” e sobre o bestialógico,
“gênero que se alimentaria de uma espécie de ‘amputação’ imposta a palavra,
em que o sentido se ausenta de todo: o ‘significante’ sem o ‘significado’; a ‘letra’
sem o ‘espírito’”.
O estudo feito por Camilo sobre o poema dos duendes mostra o trabalho
com o motivo da ‘noite’ — “domínio do mistério, do sobrenatural, da
anormalidade e do inconsciente liberto em sonho ou [...] em pesadelo”,
preocupação do romantismo alemão. O poema seria da estirpe das obras
satânicas de Goethe, Hugo, Gautier, Espronceda e Shakespeare, sem que
ficasse a dever aos mestres. Bernardo alcançaria uma perfeita composição não
apenas no tema, mas também na forma e ritmo. E, para além daquela tradição
européia, o poema incorpora a mula-sem-cabeça, o crocodilo, a getirana, a
mamangaba, e os demais seres da noite brasileira. Articulado por textos de
Candido, Campos, Costa Lima, Laura de Mello e Souza e outros, inclusive
autores da psicanálise, o ensaio reafirma e desenvolve a hipótese do “retorno
inopinado do reprimido”, não apenas pelas imagens referentes ao “universo
simbólico da castração” encontrados no poema, mas também nas imagens do
“sabá” que faria circular, trazendo e ampliando para o contexto local brasileiro a
matriz européia.
3. 4 UM ESPAÇO BERNARDINO
Bernardo. Adj. (1826 cf. GarDBr) [...] ? adj. s.m. (1826) 2 relativo a ou monge da Ordem de Cister ? s.m. 3 p.ext. pej. Indivíduo gordo ou estúpido 4 P tab. Joc. Pênis [...].111.
Bernardice. [bernardo + ice.] S. f. 1. Estupidez, asneira, tolice, dislate. 2. Discurso tolo e disparatado.112
Ensaios e estudos específicos sobre o texto de Bernardo Guimarães,
mormente sua poesia, e as grandes antologias e histórias da literatura
convergem no movimento de integrar a sua obra ao parnaso, porém não há
unanimidade quanto ao local exato que ocuparia. Segundo a maioria dos 111 HOUAISS, 2001, p. 437. 112 FERREIRA, 1986, p. 251.
lectores, a obra e seu autor estariam cuidadosamente assentados atrás das
pilastras que sustentam a cena canônica ou, se houvesse, em alguma espécie de
porão. Para alguns poucos seu lugar seria mais destacado, mas, mesmo nestes
casos, demarcado por reticências. Tal segregação se mostra vinculada a um
certo descompasso entre o texto que o poeta escreve e os valores estéticos
hegemônicos. Ele pratica uma estética de inspiração neoclássica, no momento
de vigência plena do romantismo, e realiza uma obra pautada por boas doses de
humorismo debochado e uma pitada marcante de poesia de baixo estrato, num
momento histórico no qual uma literatura elevada era um bem cultural
fundamental para o imaginário nacionalista. Explicitadas ou recalcadas esta é a
base das acusações que pesam sobre ele e sua obra.
Haveria, então, uma sobredeterminação ideológica no processo de relativa
marginalização sofrido pelo texto de Bernardo. A maneira como a crítica que ele
escreve é recepcionada no meio literário é exemplar disto.113 Além das
esperadas réplicas publicadas nas páginas do jornal A Actualidade, a resposta do
grupo hegemônico se dá em contexto mais amplo e em longo prazo. Quarenta
anos depois das críticas, José Veríssimo, compromissado com a memória
coletiva da nação, reduz aqueles textos de Bernardo a meros ataques rudes e
despropositados a nomes estabelecidos como pilares da referida memória.
A palavra do historiador é tão legitimada pelo status quo que ninguém mais
discutirá o assunto ou emitirá opinião diferente, até que, passados outros
quarenta anos, Fausto Cunha e Waltensir Dutra defendam a coerência dos
113 Entre 1859 e 1860, Bernardo Guimarães foi o responsável pela coluna de crítica literária do A Actualidade, dirigindo sua pena para as obras do Padre Correia de Almeida, Junqueira Freire, Joaquim Manuel de Almeida e Gonçalves Dias.
comentários do mineiro e encontrem neles uma firme posição anti-romântica,
inspirada em Antonio Feliciano de Castilho.114
A elaboração proposta pela dupla elucida as origens da feição neoclássica
dos versos de Bernardo, retomada por vários outros críticos, depois que o
mesmo Veríssimo a notou pela primeira vez. Porém a hipótese não é posta a
serviço da qualificação da obra do poeta, nem por Waltensir e Fausto, nem por
outros críticos. Candido, que tão bem explicara a transição arcadismo-
romantismo, ressaltando a permanência de um no outro, vê na “harmonia
neoclássica” dos últimos versos do poeta um indício de esgotamento da sua
inspiração, ou seja, no que se refere a Bernardo a complexidade da relação entre
os dois modelos estéticos não é levada em conta, reduzida que é a um problema
biográfico seu. Camilo anota a indicação, mas não a utiliza, quando seu trabalho
prima por estabelecer relações complexas para o riso entre pares e para a poesia
de Bernardo, que é objeto de longas e cuidadosas análises. Posições no mínimo
curiosas!
Seria o caso de perguntarmos, se elas estariam influenciadas por um
habitus que identifica a estética romântica como a melhor qualificada entre as
que a precederam, adequada ao ideário evolucionista, ao qual se filia a maioria
das histórias da literatura consultadas neste estudo? Um valor que, no momento
em que Bernardo escrevia, relacionava romantismo com literatura elevada e
ambos com nacionalismo político, conforme os próprios românticos articularam
em seus manifestos.115 No âmbito desta idealização esteve definido a priori que
114 (1800-1875). Autor de poesia de inspiração árcade, tradutor de Anacreonte, Virgílio, Ovídio, Shakespeare, Goethe e Molière, ele esteve no centro do debate estético do mundo lusófilo, em seu tempo. 115 Magalhães no Discurso sobre a história da literatura brasileira, Gonçalves Dias no “Prólogo” dos Primeiros cantos e Álvares de Azevedo em Literatura e civilização em Portugal, entre outros.
aos românticos caberia obedecer às normas românticas e a nenhum autor estaria
franqueada a desobediência a este preceito.
A coerência entre a retórica dos manifestos românticos e produção poética
dos autores engajados no movimento nem sempre é evidente, mesmo quando
manifestantes e poetas são o mesmo sujeito civil, como no caso de Magalhães
que é o autor do Discurso sobre a história da literatura no Brasil, texto
questionador do acento europeu da poesia que até então se fazia no país, por
isso considerado com o manifesto inaugural do romantismo nacional, por sua
vez, usualmente reconhecido como sinônimo de manifestação literária brasileira
primeva. A crítica que o mesmo Magalhães recebe de Alencar, contra a
Confederação dos tamoios, é precisamente a de não cumprir os preceitos
românticos, que ajudara a difundir. 116
Sob esta acusação, Magalhães perde seu posto de poeta da nacionalidade
para Dias. Este, por sua vez, terá seu momento inglório: as Sextilhas de frei
Antão, exercício de escritura sob a ambientação medievalista, muito coerente
com a proposta romântica, são tratadas como obra menor sua. Quanto a
Bernardo, com sua poesia neoclássica, sofre as penalidades do ostracismo,
como bem demonstrou Süssekind.
Mas é o verso transgressor de Bernardo que nos interessa, pois é sobre
ele que os lectores atribuíram a maledicência de ser um discurso tolo e
disparatado, uma estupidez e um dislate, como que aproximando-os do que
propõe o dicionário para bernardo e bernardice ou bernardino, como
empregaremos.
116 Sobre a crítica de Alencar, CASTELLO, 1953.
Wilson Martins julga que o humorismo e sátira são a linguagem mais
natural do poeta, contribuindo para cristalizar uma posição da crítica, inaugurada
por Veríssimo. Qualificação que está longe de ser positiva, se valerem as
palavras de Alberto de Oliveira, a propósito de a lírica ser “a expressão mais bela
da poesia brasileira”, em contraste com o menor valor da sátira e da épica.117
Mas, a atitude definitivamente sintomática do horror que são os versos
bernardinos de Bernardo para o cânone é a negativa explícita, por parte do
organizador da edição oficial de suas poesias completas, de as incluir no volume.
No entanto, apesar da força organizadora do lector, o processo de
posicionamento do autor no cânone não se esgota na articulação que se
estabelece entre eles. No descompasso de inúmeras divergências entre as suas
leituras e interpretações, algumas vozes canônicas abrem espaço para novos
olhares que aprofundam o contraditório, propondo um espaço bernardino ímpar e
privilegiado.
Candido se recusa a sequer comentar o poema do mênstruo, mas
compara o poema sobre a orgia dos duendes com a pintura do holandês
renascentista Bosch. Um evidente elogio, que abre articulações extensas para a
inspiração do poeta mineiro, enviando o texto bernardino entre as grandes obras
de uma tradição que expõe violência, escatologia e satanismo. Retomando o viés
que apenas Agrippino Grieco havia ousado antes, eleva o quase nunca
comentado “Elixir do pajé” à categoria de uma “expressão dionisíaca e saudável
do priapismo de anedotário”. Péricles Eugênio da Silva Ramos chama a atenção
para “Orgia dos duendes”, segundo ele tão importante quanto “Devanear do
117 OLIVEIRA; JOBIM, 1921, v. I, p. v-vi, p. 245-253.
céptico”, uma composição com traços ultra-românticos, de estreitas ligações com
Byron.
Francamente partidário de maiores atenções para a obra de Bernardo,
Haroldo de Campos aponta a obra burlesca e bestialógica do poeta como
fundamental para uma investigação profunda da produção literária brasileira fora
do cânone. Flora Süssekind analisa as razões de sua marginalização,
denunciando o cerco canônico à visão crítica ímpar de Bernardo sobre o
romantismo nacional lacrimejante. Costa Lima proporá horizontes mais amplos
para a análise da inflexão neoclássica da poesia do mineiro, corrigindo uma
limitação da percepção tradicional.
É amparado no fio, que estendemos entre textos tão contraditórios, que
nosso próprio discurso se escreve e circula, participando do espaço bernardino
que adquire sentido nas lutas simbólicas, que ocorrem no campo da literatura.
4 OS PARAÍSOS INFERNAIS DE BERNARDO
4. 1 O ESPAÇO DO POEMA
No capítulo anterior, experimentamos a hipótese de que o lugar do texto
de Bernardo Guimarães, nos espaços simbólicos do campo literário, seria
sobredeterminado por grandes leitores canônicos — os lectores. Naqueles
termos impõe-se uma formulação decorrente: não haverá leitura de textos que
seja inocente ou estéril.
Inocente no sentido de independente de outras que a precederam.
Formulação convergente para o construto semiológico de impossibilidade de
originalidade na escritura.118 Posta inicialmente por Barthes, a questão da
intertextualidade é desenvolvida por Kristeva, quando recupera no texto de
Lautréamont a palavra de outros autores, Pascal e La Rochefoucauld,
estabelecendo dois princípios para a poesia moderna: “eles [os textos] se
constroem absorvendo e destruindo, concomitantemente, os outros textos do
espaço intertextual”. Absorção e destruição implicam no conceito de negatividade
hegeliano de diferença absoluta, do estabelecimento da “identidade que
exclui”.119 Considerando o estatuto do significado poético, ou seja, a “mensagem
118 Respectivamente BARTHES, (1968) 2004, A morte do autor, p. 57-64; KRISTEVA, (1969) 1974, Poesia e negatividade, p. 165-196; DERRIDA, 1972. 119 Lalande define o termo negatividade relacionando-o como característica do que é negativo: em Hegel estaria ligado à antítese, “momento dialético” do pensamento; em Sartre, seria “ato ou aptidão de negar, ou antes, quando negação é tomada num sentido ontológico, de “nadificar”, um nada que isola; em Descartes, a expressão equivale a ”liberdade”. Em Comte, negativo, posto como oposição ao positivo, implica em destruição. Abbagnano relaciona negativo com uma exclusão de possibilidade. “Resultado negativo” de um experimento significa exclusão de certa possibilidade de interpretação ou de explicação. “Efeito negativo” de certa operação significa exclusão daquilo que se esperava ser possível à partir da operação. “Atitude negativa” em relação a uma doutrina ou a uma coisa qualquer é uma atitude que exclui a possibilidade de que a doutrina seja verdadeira ou de que a coisa tenha um valor qualquer. Respectivamente LALANDE, 1998, p. 730 e 1281; ABBAGNANO, 1999, p. 709.
global de um texto poético”, a operação lógica da negação estaria na origem de
toda atividade simbólica, composta em dois aspectos, a diferenciação entre as
unidades constituintes de uma prática semiótica e o da relação que articula essas
diferenças.
O assunto intertextualidade também é discutido por Jacques Derrida, em
La dissemination, em termos do que seria o entrecruzamento de discursos com
diferentes origens em um mesmo texto, avançando em suas reflexões sobre as
formulações saussurianas, trabalhadas desde suas obras anteriores.120 Ou seja,
o antigo problema da influência, cópia e transcrição de um autor por outro é
trazido à baila pelo grupo, do Tel Quel, no sentido radical da impossibilidade de
originalidade, resolvendo para a crítica um problema que poetas, e artistas de
modo geral, a muito haviam superado. Num texto de 1979, Gilberto Mendonça
Telles ressalta que a “teoria da intertextualidade” é produto do esforço da crítica
para se aproximar da criação.121 Nada mais, nada menos, que a principal
pretensão de Barthes.
Kristeva elabora um longo debate sobre a lógica específica do texto
poético. Este, ao contrário do não-poético, tende a imprecisão, à ambigüidade.
Ao mesmo tempo, “assume os significados mais concretos, concretizando-os o
mais possível” e “os eleva, por assim dizer, a um nível de generalização que
ultrapassa a do discurso conceitual”. Não exclui as categorias opostas do
concreto versus geral, “o significado poético os engloba numa ambivalência,
numa reunião não-sintética”. Uma situação que a lógica platônica do discurso
recusa. A mesma reunião não-sintética funciona na relação do significado
120 DERRIDA, 1972. 121 TELLES, 1979, p. 34.
poético com o referente. Ele “simultaneamente remete e não remete a um
referente; ele existe e não existe”, é simultaneamente, “um ser e um não-ser”.
“A metáfora, a metonímia e todos os tropos se inscrevem no espaço delimitado por esta estrutura semântica dupla”, que se mantém no próprio reconhecimento do espaço poético enquanto território de lógica divergente: “sabemos que o que a linguagem poética anuncia não é (para a lógica do discurso), porém aceitamos o ser deste não-ser. Em outros termos, pensamos este ser (esta afirmação) contra o fundo de um não-ser (de uma negação, de uma exclusão). É pela relação com a lógica do discurso, baseada na incompatibilidade dos dois termos da negação, que a reunião não-sintética operante no significado poético adquire seu valor significante”.122
Um significante que longe de ser anomalia, conforme a lógica do
discurso coloca, se constitui uma prática singular de linguagem, a qual, num
movimento de constante negatividade, nega o discurso e o que resulta desta
negação, transformando-se numa afirmação única que inscreve o infinito da
linguagem e do sentido.
No caso da investigação que produzimos, a possível falta de
independência e originalidade na escritura, essa sempre produzida com
esforço de um ato de criação, não faz prescindir ou isenta dos compromissos
de a experimentar interminavelmente, na espera de um provável leitor, que
ocupe o lugar que já foi nosso. Pois, se não há texto inocente, não haverá
aquele que seja estéril, produtor de efeitos de autoridade sobre quem o
realize. O trabalho do texto que se renova em cada leitura não é menos que
isso. O capítulo atual trata de escrever nossa própria leitura, exercitada sobre
os versos bernardinos — o espaço do poema.
O primeiro texto, “A orgia dos duendes”, de 1865, é tratado com se
fosse a porta de entrada que o poeta nos oferece para conhecer a “Poesia
grande e santa”, resultante da interação entre o pensamento com o
122 KRISTEVA, (1969) 1974, p. 172-173.
sentimento, coloridos com a imaginação, fundidos com a vida e com a
natureza e purificados com o sentimento da religião e da divindade, tal como
entende o principal poeta canônico do movimento romântico, Gonçalves
Dias.123 Um paraíso no qual natureza e personagens literários concorrem
todos para a instituição de um grande e sublime imaginário literário,
correspondente à grande nação brasileira que se formava desde a superação
de seu estatuto colonial.124 O que o texto bernardino nos reserva, entretanto,
haverá de ser um paraíso mais complexo. Paraíso, palavra polifônica — plena
de pureza d’alma e integração com a natureza, carregada de pecado e
monstruosidades. Os portugueses e seus descendentes, que dominaram
muito bem o sentido dessa expressão, a empregaram para falar da terra que
algum temor e muita cobiça despertou. Um espaço de terra e de gentes que
eles ocuparam mediante violência material e simbólica, como se fosse
destinado a eles por seu Deus e seu direito civil. No horror que um festim
depravado faz significar, nosso exercício é um olhar arriscado para além da
floresta ideal que a literatura elevada constituiu.
A leitura seguinte, sobre o “Elixir do pajé”, 1875, encontra o principal
habitante daquele espaço: o índio, criatura ausente do poema anterior,
registre-se. Desumanizado, escravizado, assassinado ao longo do processo
de constituição da colônia e do país, este personagem foi, a partir do
romantismo, transformado no protótipo da nacionalidade brasílica, num
exercício coletivo de recalque das vergonhas e vilanias impingidas a ele no
123 DIAS, 1998. Primeiros cantos – Prólogo, p. 103. 124 Figura 1: Missa no Brasil – 1861. Natureza exuberante, devidamente dominada pela cristandade e os seres que a habitam em apagamento: alegoria canônica do romantismo.
Figura 1
Nota 124: Primeira Missa no Brasil – 1861 (Detalhe principal). MEIRELLES, Victor (1832-1903). Óleo - 2,68 X 3,56m.
Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
passado, substituídas por uma memória idealizada de grandezas e glórias.125
O indianismo que o indianismo romântico esconde é o personagem do poema
bernardino. Um estranho entre os guerreiros e piagas semideuses sublimes,
um narrador da humanidade e sexualidade que circula nas tabas e nas
florestas. Um estranho no paraíso.
O terceiro poema, “A origem do mênstruo”, 1875, logo em seu início,
invoca o clássico Ovídio. No contexto literário romântico da poesia, a mulher
ocupa espaço elevado. Quando virgens, irmãs ou mães são castas e puras,
sofrendo de amor ou diante de qualquer outra vicissitude. Maculadas pelos
imperativos dos desejos seus ou de outrem são recepcionadas pelo verso
sublime, fator de equilíbrio e grandeza para todos os atos, do mais banal ao
mais sórdido.126 A mulher que o poema revela é uma européia, a bela Vênus,
modelo da beleza sublime, pelas artes da pintura renascentista. Porém, a
deusa bernardina tem corpo e não o esconde, tem sexualidade e não a
reprime e, principalmente, sangra, como não se pode conceber que as
mulheres idealizadas o façam — tudo isso constituído no sentido de uma
linguagem baixa e calão. Com a leitura de mais esta ousadia do poeta,
examinamos a hipótese de considerar o conjunto de poemas que escolhemos,
como uma intervenção crítica de Bernardo em três dos mais importantes
tropos da poesia romântica, a mulher, a natureza e o herói. Um exercício que,
mostrando-se plausível, trará conseqüências para o sentido que sua obra terá
em novas leituras e no valor que ocuparia no campo literário.
125 Figura 2. Batalha de Guararapes – 1875-1879. As três raças em defesa do território que seria o da pátria. 126 Figura 3. Morte de Moema – 1866. A mulher romântica: adequadamente submetida, nem que seja pela morte.
Figura 2
Nota 125: Batalha de Guararapes – 1875-1879. MEIRELLES, Victor (1832-1903). Óleo - 5,00 X 9,25 m.
Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
Figura 3
Nota 126: Morte de Moema – 1866. MEIRELLES, Victor (1832-1903). Óleo - 1,29 X 1,90m. Museu de Arte de São Paulo, São Paulo.
4. 2 A FLORESTA ENFEITIÇADA
4. 2. 1 O poema europeu
Início do poema. Na floresta, a meia-noite é marcada pelo som tirado de
um sino de pau. Uma velha toma o lugar principal do ambiente, um leito
grosseiro de pau, armado entre os ramos das árvores. Daquela posição
exercerá o comando da folia — tem o posto de rainha. Folia é palavra
polissêmica, festa de pátio de igreja, procissão, dança barroca, dança
portuguesa, na qual homens se vestem de mulher, ou carnaval, informa o
Houaiss: nestes versos bernardinos ela é uma orgia dos duendes.127 Os
personagens já estão trabalhando. Lobisome, homem transformado em lobo
como castigo por seus malefícios, na eterna espera de alguém que o fira para
quebrar o encanto, está recolhendo gravetos e acendendo a fogueira para a
ceia. Um diabo vermelho, ícone do Mal, criatura saída do antro das impuras
focas, torrava banais pipocas; fazia isto pendurado pelo rabo.128 Uma bruxa
amarela, Taturana, animal rastejante, uma lagarta felpuda capaz de causar
irritação cáustica na pele humana, fritava uma criança numa panela, enquanto
resmungava, com o semblante fechado. Getirana, inseto voador venenoso, uma
grande mosca, capaz de fulminar o ente que toca com a tromba que sai de sua
cabeça em forma de serpente, completava os ingredientes de uma sopa com o
sangue fresco de um morcego, sangrado ali mesmo, com suas próprias garras.
Mamangava, abelha solitária das terras brasileiras, fritava o lombo recém
descarnado de um abade, trabalho feito na gordura retirada do cangote de um
127 Folia é palavra polissêmica, festa de pátio de igreja, procissão, dança barroca, dança portuguesa, na qual homens se vestem de mulher, ou carnaval, informa o Houaiss: nestes versos bernardinos ela é uma orgia dos duendes. HOUAISS, 2001, p. 1366. 128 Os apostos que identificam as qualidades dos personagens, quando não informados no glossário organizado por Bernardo, no próprio texto, são recolhidos em HOUAISS, 2001.
outro membro das igrejas. Galo-preto, ave de mau-agouro, chafurda nas cinzas,
enquanto o vento assobia ao passar pelas cabaças. Uma mosca chupa-sangue
zumbe e um macuco pia no meio da noite. Com suas mãos de bruxa, a velha
rainha faz os sinais cabalísticos, chamando as almas perdidas para a festa
barulhenta e primitiva. Convoca as criaturas rastejantes, lagartixas de rabo
vermelho e cobras, lança um desafio aos principais, cujos nomes já foram
escritos em maiúsculas. Aquelas trarão as Liras do festim debochado, o
marimbau e a bandura — percussão e corda. Estes serão os seus pares na
cena de sedução horripilante — de um a Rainha pretende um beijo, de outro um
arrastar de asas, de todos pelo menos uma dança.
A segunda parte do poema começa com a afluência das criaturas ao
local da festa. Os duendes saem dos esconderijos, batucando e batendo
matracas, as bruxas chegam em suas vassouras, três diabos sentam-se aos
pés da velha, um deles toca estranha e barulhenta campainha — uma caveira
servindo de campa e um casco de burro funcionando como badalo. Capetinhas
tocavam chocalhos e marimbau, os rabos enrolados nos galhos. O ronco
barulhento do Crocodilo fazia uma espécie de contraponto para aquela sinfonia.
Outros músicos completavam a orquestra. Esqueleto usava a barriga inchada
de um sapo como tambor, uma bruxa tocava rabecão feito da carcaça de um
defunto e das tripas de um barão, Getirana arranha um violão fanhoso,
Taturana faz gemer a cuíca. O Lobisome rege o grupo, com uma batuta feita da
canela de um frade, ainda não descarnada inteiramente. A dança é a do
cateretê, popular do interior do país, de origem imprecisa, podendo ser
portuguesa, indígena ou africana. Os dançarinos são grotescos, os passos são
da ordem da sensualidade sádica e macabra: Taturana dança e canta, Getirana
se esfrega no Caturra, no meio da roda aparece a mula-sem-cabeça, zurrando
berrando e aplaudindo a velha rainha. Todos dançam ao redor da fogueira,
girando e girando sem fim.
Na terceira parte são expostas as qualidades dos principais — todas
baixas. A Taturana confessa a relação incestuosa com o pai, relação que gerou
um filho, e recorda o fim da vida como freira santificada num convento, registrado
com ironia. A Getirana canta a vida de assassinatos conjugais, os amores com
religiosos e os filicídios. O Galo-preto, frade de um convento, desfia os vícios de
glutonaria e luxúria, responsáveis por sua morte, vitimado por um ataque de
apoplexia. O Esqueleto se declara inimigo dos mortais, assassino de tantos que
perdera a conta; dissimulado em seus instintos cruéis, jacta-se da idolatria da
qual é objeto em altares e templos. A Mula-sem-cabeça canta a trama de sua
vida: canibalismo do cadáver do marido, assassinado por ela própria, não antes
dele dar cabo do bispo, amante da gentil senhora, por fim uma condessa que
morre decapitada, pelas mãos de um carrasco. O Crocodilo, que foi papa, fala da
vida de assassino contumaz e das carnalidades com a mulher do próximo, até
morrer e se ver no inferno. O Lobisome foi um rei pérfido, sádico e
concupiscente, viveu rodeado de prostitutas, carrascos e frades, inimigo
declarado das virtudes, divertiu-se e se alimentou do sangue e do suor de seus
súditos, até que, morto, transmudou-se em objeto de diversão para o demônio. A
Rainha, não ocupa o seu posto por pouco merecimento, superando aos demais
personagens em perfídia, lubricidade e pecados: mata a mãe ao nascer, o pai
para lhe tomar a coroa e um irmão mais velho para não ter concorrente ao trono;
os maridos morrem todos, apenas consumado o casamento e satisfeitos os
desejos reais: um sufocado com as cobertas do leito conjugal, o segundo
empurrado da torre do castelo, o terceiro apunhalado nas costas; os amantes não
sobreviviam à noite de amor.
A quarta parte do poema começa e a folia não dá sinais de arrefecimento.
O grande rodopio que une todas as criaturas ferve, cada vez mais veloz e
intenso. No auge da confusão, o som de um chicote se sobrepõe ao frenesi e,
galopando uma égua amarela, adentra ao ambiente um espectro, um esqueleto,
é a Morte que vem impor obediência e ordem. O chicote vibra em todas as
direções, tangendo a súcia de volta a seus lugares: para as covas com os ossos
e para o inferno com as almas. Um estrondo e um cheiro de enxofre dominam as
selvas e todos somem, num único movimento.
Parte final. Nasce um dia sem resquícios do festival tenebroso da noite.
Naqueles lugares, uma linda virgem passeia, envolvida no perfume de flores
gentis, ao som do suave canto dos pássaros. Acolhendo a cena, a floresta que,
iluminada pela aurora, transmutara-se em jardim florido e arvoredo provedor de
sombra e refrigério.129 Acontecimentos contados por um narrador indeterminado,
que observa a cena, sem interferir, exceto pela adjetivação que imprime a um ou
outro personagem, a uma ou outra ação. Em boa parte do poema, são os
personagens que tomam a palavra.
Das poesias de linhas tortas de Bernardo Guimarães, “A orgia dos
duendes” é talvez a mais conhecida. Publicada pela primeira vez no livro
Poesias, 1865, editado pela Garnier, é lembrada pelas historias mais tradicionais
da literatura como modelo de poesia engraçada, desde quando Veríssimo
distinguiu o poeta de seus contemporâneos, pela “jovialidade” de seus versos.
Um ensaio de Candido modula a observação mais antiga: “É um dos mais
129 Figura 4. A Primavera - c.1477/78. Na floresta iluminada e povoada por seres diurnos, uma figura na noite não deixa esquecer que ali é um espaço provisório e limítrofe.
Figura 4
Nota 129: A Primavera, c.1477/78. BOTTICELLI, Sandro (1445-1510). Têmpera sobre tábua - 2,03 X 3,14m. Galeria dos Ofícios, Florença.
notáveis poemas grotescos da nossa literatura, tendo um sentido fácil de
comicidade extravagante e um sentido profundo de violência sádica e tenebrosa
liberação do inconsciente”, oferecendo um patamar mais complexo para a leitura
que se faça do poema.130
Os acontecimentos daquela noite e daquela aurora são cantados em
244 versos, organizados em 61 quadras. O poema é dividido em 5 partes,
como se viu.131 As rimas simples, em abab, servem a elaborados recursos
métricos.132 A métrica é a mesma em todo ele — eneassílabos, com acentos
na 3ª, 6ª e 9ª, marcando cada verso em 3 segmentos, de 3 sílabas cada um, o
anapesto da tradição greco-latina. A solução estabelece um efeito “martelado
e sonoro” perfeitamente adequado aos fatos que têm lugar no poema. Uma
espécie de “batuque infernal”, que dá unidade aos versos desde as badaladas
do relógio do sino de pau, que abrem as funções, até o galope da morte, que
anuncia o final do poema, e o passeio da virgem. Para incrementar o efeito
rítmico, há o uso intencionalmente obsessivo de oclusivas como no exemplo:
“Jun[t]o [d]ele um vermelho [d]ia[b]o// [Q]ue saíra [d]o na[t]ro das fo[c]as [...].O
crítico observa que o poema se identifica com o gênero balada, na
simplicidade das soluções discursivas, sempre diretas, sem figuras de
linguagem rebuscadas, epítetos e adjetivos. Nela, a presença do “narrador”
pouco interfere nos acontecimentos, não há opiniões, os fatos são
apresentados no seu “suceder”, com um ou outro diálogo reforçando a
dramaticidade dos acontecimentos.
130 CANDIDO, 1993, A poesia pantagruélica, p. 240. 131 CANDIDO, op. cit., conta quatro partes. 132 Depois, com mais detalhes, CAMILO, op.cit., p. 164-167, passim: para as observações até o fim do parágrafo.
Os seres da floresta brasílica — getirana, mamangava e outros — são os
personagens do poema.133 Seus pecados são descritos consoante com as
crenças populares, de origens indígenas, africanas ou européias, portuguesas,
especialmente — mula-sem-cabeça foi amante de um bispo, crocodilo foi papa,
taturana foi freira e bruxa foi mulher devassa. O vocabulário é eminentemente
miscigenado — exemplo da convergência para um único discurso das falas
portuguesa, africana e tupi-guarani concorrendo para estabelecer uma identidade
singular, a brasileira —, designando seres e coisas. O somatório destas
ocorrências, observadas por Bernardo de Magalhães, fizeram-no considerar o
poema o mais brasileiro da lavra bernardina.134 Um aditamento importante ao
habitus concernente a Bernardo.
Entretanto, estudos recentes, de modo consciente ou não, demonstram a
presença de uma importante inflexão européia no poema da orgia, o que
refutaria, de certo modo, a afirmação incisiva do biógrafo famoso. De um lado, a
análise de Camilo é dedicada, em boa parte, a mostrar a filiação dos versos às
correntes alemã e francesa do satanismo, tomando como modelo principal a
“Noite dos Walpurgis”, do Fausto goethiano, por sua vez fonte de inspiração
secundária os poemas de Victor Hugo, Théophile Gautier e José de Espronceda,
por sua vez, autores de significativa influência entre os românticos brasileiros. A
identificação proposta é reforçada pela inserção do poema no gênero balada, de
larga vigência no país, via influências das Odes e Ballades hugoanas e “Lenora”
de Buerger. O cuidado do crítico em bem demonstrar as identificações do poema
com o satanismo literário brasileiro é muito bem elaborado, porém, o caráter
central das influências apontadas é marcante e determinante para o caráter do 133 Figura 5. Fauna do Brasil segundo Nieuhof (1618-1672). In: TAUNAY, (1934) 1998. Insetos monstruosos, habitantes de uma floresta perigosa e fantasmagórica. 134 MAGALHÃES, Basílio de, 1926, p. 82-83.
Figura 5
Nota 133: Fauna do Brasil segundo Nieuhof (1618-1672). In: TAUNAY, Afonso d’Escragnole. Monstros e Monstrengos do Brasil:
ensaio sobre a zoologia fantástica do Brasil (1934). Edição org. por Maria Del Priore. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
poema.135 Perspectiva similar, embora tomada de outra perspectiva, é apontada
pela historiadora Laura de Mello e Souza, quando integra as ações e imagens
presentes na orgia dos duendes aos rituais do sabá europeu, traçando um
paralelo entre o literário e o pictórico, através da análise comparativa daquele
com o quadro Dos viejos comendo sopas, de Goya.136 O trabalho demonstra que
o poema harmoniza tradições européias e brasileiras, sendo este um dos seus
valores encontrados nele. Ao mesmo tempo, ou melhor, para demonstrar sua
tese, a historiadora é clara na indicação de uma identidade entre as imagens
bernardinas e as temáticas diabólica e sexual em circulação no romantismo da
Europa, conforme as analisa Mario Praz.
Ou seja, a partir dos termos propostos pelo literato e pela historiadora se
firma a assertiva quanto ao poema estar entre os mais europeus de quantos a
musa travessa inspirou Bernardo. Uma hipótese nossa, um tanto quanto
audaciosa, na medida em que diverge da leitura tradicional do poema,
incorporada ao imaginário do campo literário, desde que Machado e Romero
consagraram sua verve como brasileiríssima.
A inflexão européia naquelas rimas bernardinas não é, todavia,
empreendimento poético menor, pois não seria possível conceber literatura
brasileira sem as respectivas assimilações do que se escrevia na Europa. Um
fato problemático, caso se pretenda uma literatura autóctone absolutamente pura,
como sugere a idealização de Cassiano Ricardo ao indianismo de Gonçalves
135 CAMILO, op cit., tem um capítulo dedicado ao tema — Walpurgisnacht e o pandemonismo sertanejo: na trilha do humour noir, p. 159-179. Sobre a popularidade e importância da obra de Gottfried August Buerger (1747-1794) no mundo lusófilo e particularmente no imaginário romântico daquela estirpe, ver LOPES, 1997, p. 265-278. 136 SOUZA, 1993, Persistências ínferas, Bernardo Guimarães e o imaginário demonológico, p. 181-195.
Dias, que quase nega a influência de Saint-Pierre e Chateaubriand, todavia
assumida pelo próprio poeta.137
Ao enfrentar a contradição, Antonio Candido observa que a literatura foi a
“expressão” da cultura e valores do colonizador e do colono europeizado,
predominando sobre as culturas dos povos dominados, uma ”peça eficiente do
processo colonizador”. 138 Entre as imagens recorrentes no processo de
conquista a da beleza, riqueza e provisão hiperbólicas do continente americano
são exemplos de transfiguração da realidade perfeitamente útil à concretização
da empresa colonizadora. Sempre segundo o crítico, nesta composição estaria a
raiz da História de Rocha Pita, a Música do Parnaso de Botelho de Oliveira, a
proliferação do gênero prosopopéia e, já no século XVIII, do gênero
metamorfose, esta última característica presente nas obras de Cláudio Manuel da
Costa, Cruz e Silva, Januário da Cunha Barbosa e, chegando aos românticos, de
Gonçalves Dias. A importância política da literatura fica evidente na perseguição
sofrida pelos poetas da Inconfidência Mineira, de 1789, e no que ele chama de
Inconfidência Carioca, de 1794 — vozes e penas que, pela primeira vez,
“exprimem a maturidade da inteligência brasileira aplicada ao conhecimento e à
expressão do país”. Exemplares das funções contraditórias da literatura na terra,
primeiro como componente da imposição de padrões culturais e depois fermento
crítico a expor os problemas da colonização. Estariam marcadas aí as bases das
projeções que relacionam literatura e nacionalismo. A partir daí se constituem a
imagens privilegiadas pela literatura nacionalista: índio, floresta, beleza e tantas
outras, das quais traçaremos alguns percursos, mais adiante.
Neste quadro, Candido chama a atenção para o
137 RICARDO. Gonçalves Dias e o indianismo. In: COUTINHO, op. cit. p. 70-138. 138 CANDIDO, 1989, Literatura de dois gumes, p. 163-180.
duplo processo de integração e diferenciação do geral (no caso, a mentalidade e as normas da Europa) para obtenção do particular, isto é, os aspectos novos que iam surgindo no processo de emadurecimento do País,
do qual o Romantismo foi o ápice, sem que faltassem nele problemas de
anacronismos e confusão de valores.
Ainda na lição de Candido, o grande exercício de violência simbólica que
foi a literatura, enquanto instrumento de imposição de valores, jamais foi
questionado em um dos aspectos fundamentais, o das formas. O nativismo
jamais rejeitou o soneto, o conto realista ou o verso livre associativo.139
Naturalizada a inevitabilidade da dependência da literatura do novo mundo à
européia, ela se tornaria uma “forma de participação e contribuição a um universo
cultural [...] que transborda as nações e continentes, permitindo a reversibilidade
das experiências e a circulação dos valores”. Neste sentido, mesmo quando se
registra a influência dos sul-americanos aos europeus, como na manifestação de
Herculano em relação aos Primeiros cantos gonçalvinos, o que se produzira seria
um “afinamento dos instrumentos recebidos” e não uma invenção.
A questão da introjeção destes valores é igualmente evidente nos
comentários de Octavio Paz sobre a literatura hispano-americana de fundação e
a possibilidade de que se determinar um momento, fins do século XIX, no qual
ela deixaria de ser um reflexo da espanhola.140 Permeada por uma forte utopia, a
formulação de uma identidade via independência ou inversão do fluxo de influência,
ex-colônias influenciando ex-metrópoles, não se sustenta. Este momento idealizado
não se sustenta, como um momento superado no passado ou projetado como
expectativa futura, o que se vê é uma forte e atual disputa de posição no campo
literário internacional. Caso evidente disto é a elaboração de Casanova sobre a
139 CANDIDO, 1989, Literatura e subdesenvolvimento, p. 140-162. 140 PAZ, 1976, Literatura de fundação, p. 125-131 e Poesia latino-americana?, p. 143-153.
construção do paradigma de uma república mundial das letras, empreendimento,
a seu ver, capitaneado por Paris, sítio de onde profere seu discurso.141
Nota-se com Casanova e Octavio Paz, que o processo de violência
simbólica, característicos das disputas no campo cultural ocorre mesmo nas
reflexões avançadas da crítica. O mesmo se escreverá sobre as obras de arte, “A
orgia dos duendes”, pelo que vamos expondo, é discurso exemplar neste sentido,
pelo trabalho que seu texto não cessa de realizar, incorpora a mitologia sobre a
terra brasilis.
Considerar o poema sobre a orgia como literatura do satanismo, abre uma
reflexão sobre um dos temas mais comuns da literatura, a morte e muito do que
ela significa: experiência limite, fim, sonho, degradação, medo, tristeza e luto. Na
poesia romântica, a invocação à morte está sempre presente em Álvares de
Azevedo ou Gonçalves Dias: “Lá bem na extrema da floresta virgem, [...]Ó minha
amante, minha doce virgem, eu não te profanei,e dormes pura: [...] deixai que eu
durma ali e que descanse, na morte ao menos, junto ao seio dela!”, “Não permita
Deus que eu morra, sem que eu volte para lá”. Temática sempre tratada com
reverência e respeito, nas alturas do discurso belo e sublime.
No âmbito do satanismo, o tema da morte se mantém, mas a inflexão é
outra. No mundo literário de circunscrição européia, cabe ao gênero avançar
sobre aspectos das grandes os questionamentos referentes à finitude humana e
à morte, que não são percebidos ou recepcionados pela estética canônica. Um
imaginário que divide com os prolegômenos da ciência moderna, nascida da
141 Especialmente CASANOVA, 2002, Princípios de uma história mundial da literatura, p. 23-64; O espaço literário mundial, p. 109-160 e Os revoltados, p. 269-307.
alquimia e da luta contra a morte. Ao satanismo, como estamos propondo, liga-se
firmemente o grotesco, conforme o trabalho de Wolfgang Kaiser coloca.142
Bernardo estaria contribuindo para assimilar o tema à literatura nacional,
assunto recusado para fazer parte de uma literatura idealizada como valor
nacional.
A Ilíada inicia com uma reflexão do aedo diante da pira funerária de
Aquiles. A história que é contada ali é uma história de morte. A Odisséia leva o
nome do herói que supera a morte, não apenas voltando para o seu reino e
rompendo com o esquecimento que a morte significa, mas também descendo ao
Hades, no confronto com os medos atávicos, outro significado da morte. A
experiência transforma Ulisses, fazendo do soldado esperto, um homem sábio. A
ligação entre experiência limite, ida de um ser vivente aos infernos, reino dos
mortos, e sabedoria é retomada magistralmente por Dante.
Nem sempre, todavia, o resultado do confronto com os limites da vida e da
morte resultará em bem-aventurança para o desafiante: Prometeu paga com o
suplício eterno a ousadia de roubar o fogo da sabedoria, antes dele, Adão foi
expulso do paraíso, e antes ainda, Lúcifer perdeu seu lugar ao lado do Criador,
por querer saber sobre os mistérios da vida e da morte, próprios apenas do
Senhor. Fausto seria uma representação desta tentativa sempre renovada.
Quando aparece no texto de Goethe, o pacto entre o sábio e o diabo já é
tradição na literatura. O primeiro livro sobre o médico de que se tem
conhecimento data de 1587, publicado sem referência a autor, dirigido aos
cristãos, com claras intenções pedagógicas. Preveniria os bem-aventurados
sobre os perigos de pecarem contra os dogmas da igreja romana, questionados
142 KAISER, 2003. Especialmente o capítulo que tratam da ampliação do conceito de grotesco e suas relações com a pintura, e aquele que trata do grotesco no romantismo.
profundamente pelas artes diabólicas de Lutero. Neste tempo, Fausto já era uma
lenda, constituída sobre elementos de verdades históricas, como convém às
mitologias mais sofisticadas. Um homem com aquele nome fora objeto de uma
carta escrita por um beneditino da Universidade de Heidelberg, em 1507.143 O
documento descreve as qualidades daquele: médico, necromante, astrônomo e
astrólogo, mágico de segundo grau, quiromante, aeromante, piromante,
hidromante em segundo grau, filósofo e semideus. Loucura, gracejo? Segundo os
historiadores, excetuada a blasfêmia evidente, não necessariamente. A pessoa
nomeada na carta seria um estudioso, um alquimista, em algum momento ligado
à Universidade e integrado ao movimento dos humanistas. Banido dos círculos
universitários, em razão de suas experiências, teria circulado pela Europa, em
constante fuga das lutas religiosas do século XVI. Após sua morte, a fama que
granjeara em vida, transforma-se em lenda de gosto popular, com o argumento
básico da narrativa constituído pelo pacto entre um homem e Satã, não
exclusivamente pela vida eterna, mas pela juventude por um período pré-
acordado. Ao final daquele período, o médico morre, tornando-se escravo do
diabo pela eternidade.
A obra de 1587 divulgou amplamente a história, recebendo vinte e duas
edições em alemão e traduções em diferentes línguas antes do fim desse século.
Em 1594, foi encenada com grande sucesso, e publicada uma década depois,
The tragical history of Dr. Faustus, escrita por Christopher Marlowe .144 Duzentos
anos depois, a partir de Goethe, o drama fáustico toma lugar nos espaços da
grande literatura, um texto no qual as imagens do médico e do anjo das trevas se
143 LECOURT, 1996. passim. 144 A polêmica em torno da obra de Marlowe se mantém viva: obra em defesa da cristandade ou blasfêmia, desde ali, a invocação das forças diabólicas para vencer a natureza mortal ocupa espaço privilegiado nas letras.
confundem na exibição de força e vitalidade vencendo a morte e nas nefandas e
asquerosas conseqüências desta heresia desnaturada. Posteriormente, Fausto
se multiplica em penas diversas, com o mesmo nome ou disfarçado em outras
personæ. Os mistérios das metamorfoses do belo e sedutor Satanás, desde
Tasso até Baudelaire e Oscar Wilde, são desvendadas pelo olhar praziano.145 Na
esfera do idioma português, está Primeiro Fausto, de Fernando Pessoa.
No poema de Bernardo, a identidade com a grande obra alemã é evidente
desde os primeiros versos:
Meia-noite soou na floresta No relógio de sino de pau; E a velhinha, rainha da festa, Se assentou sobre o grande jirau (4) E a rainha co’as mãos ressequidas O sinal por três vezes foi dando, A coorte das almas perdidas Desta sorte ao batuque chamando: (32) Mil duendes dos antros saíram Batucando e batendo matracas, E mil bruxas uivando surgiram, Cavalgando em compridas estacas. (68)146
A imagem da rainha da festa, uma velha, é a convencional para as bruxas.
O horário da orgia, a meia noite, os partícipes da reunião, as almas perdidas, os
duendes e as bruxas, não deixam dúvidas quanto ao sentido dos
acontecimentos, trata-se de um encontro das criaturas da mesma estirpe
degradada que se reúnem no monte Brocken, no episódio da “Noite dos
Valpúrgis”, do Fausto:
Das bruxas corre ao monte Brocken a horda, O restolhal de pó transborda. Junta-se ali todo o montão, No topo monta Dom Urião. Por paus e pedras tudo acode,
145 PRAZ, 1996, p. 69-379. 146 GUIMARÃES, (1865) 1959, p. 144-151. Edição organizada por Alphonsus de Guimarães. Consultas complementares terão por base a edição organizada por Duda Machado, 1992. Ao lado do último verso de cada estrofe, o número daquele, entre parênteses — e assim, daqui para adiante.
Peida a bruxa, fede o bode. (3961) Honra, pois, a quem honra cabe. A velha à frente, já se sabe! Porca robusta e anciã peralta, Das bruxas segue toda a malta. (3967) Isso arfa, apita, uiva, estrebucha! (4016) 147
No período de quinze ou vinte anos que antecede a produção poética de
Bernardo Guimarães, a literatura européia do satanismo é objeto de interesse
para autores das mais diferentes estaturas e influências, surgindo tanto em
narrativas como em versos. Praz demonstra a presença basal da carne, do
sangue e da morte no romantismo. Sem que se recuse a presença fundadora do
texto goethiano no poema bernardino, ao contrário, aceitando como válida a
possibilidade de ele ser uma espécie de caixa de pandora dos vícios humanos
postos em páginas literárias, há na literatura satânica outro texto com o qual a “A
orgia dos duendes” guardaria importante intertextualidade. Trata-se do poema La
ronde du sabbat, de Victor Hugo, escrito em 1826.148
É evidente o diálogo com o poema francês, apesar das diferenças formais
que o poeta brasileiro cuida de elaborar. Hugo monta o seu poema em duas
partes contínuas, a primeira com uma única estrofe, com quarenta e dois versos
alexandrinos, e a segunda com dez estrofes, de nove versos em redondilha
menor, intercalados por estrofes de refrão, formadas por dois versos cada uma
delas e, ao final, uma quadra de versos alexandrinos. Bernardo havia dividido o
seu poema em cinco partes, com a estrofação em quadras. O ritmo do poema do
sabá é ditado pelo refrão, na orgia, pelo magnífico arranjo métrico, anotado
acima.
147 GOETHE, (1829?) 2004, p. 433-469. Tradução de Jenny Klabin Segall. Consultas adicionais, quando necessárias, referem-se à tradução francesa de Gerárd de Nerval, segundo consta, elogiada pelo autor. Idem quanto à numeração dos versos. 148 HUGO, s/d, Odes et ballades (1828).
Destaquemos outras semelhanças e diferenças.
O espaço dos acontecimentos no poema francês é o grande salão, de
negras paredes do monastério; na orgia bernardina é a floresta ampla e
efervescente. No poema brasileiro a hora é a décima segunda, anunciada pelo
grotesco relógio do sino de pau que toca na noite tropical, um eco pálido das
badaladas que ressoam no campanário, fazendo tremer o ar das salas
abandonadas e dos campos adormecidos da noite européia.149 Em La ronde
quem preside os trabalhos é Satã, na orgia uma velhinha é a Rainha da festa. Os
personagens em ambos são os mesmos, comuns à literatura satânica: bruxas,
duendes, seres rastejantes e da ordem do grotesco de modo geral. No poema
francês, os comparsas convocados pelo diabo são: filhas e irmãs, anões de pés
caprinos, vampiros femininos, judeus, boêmios, loucos, espectros, bodes,
clérigos imundos. Na orgia dos duendes a coorte é tropical: lagartixas de rabo
vermelho e cobras. Nela, aos pecadores e anatematizados são dados nomes
próprios, como Magalhães já observou. E são eles que tomam a palavra para
desfiarem suas proezas viciadas, enquanto nos versos hugoanos o diabo lista os
pecados das vis criaturas.
No fechamento do poema Bernardo propõe uma solução que, sem perder
a semelhança com o texto francês, se mostra relativamente original. Em Hugo,
Satã antecipa a chegada da aurora, impondo a todos a palavra mágica,
Abracadabra!, com a qual os malditos e desgraçados se precipitam aos infernos,
ao encontro dele. Quase imediatamente amanhece, a luz clareia as arcadas
tenebrosas da sala dos túmulos, os mortos repousam em seus lugares. É o
mesmo desfecho do conto Fête nocturne ou Assemblée des sorciers, de Charles
149 L'esprit de minuit passe, et, répandant l'effroi, Douze fois se balance au battant du beffroi. Le bruit ébranle l'air [...]. HUGO, op. cit., p. 194.
Nodier, que termina com um jovem se livrando das garras do diabo e seus
asseclas, graças à chegada da aurora, que expulsa a turma maldita para as
profundezas infernais e recupera o espaço da floresta para a vida.150
Em “A orgia dos duendes”, quem chega para tanger a súcia é a Morte — o
diabo esteve representado, mas não participou da festa. E toma suas
providências de modo dramático, no momento em que as danças orgiásticas
atingem o paroxismo:
Mais veloz, mais veloz, mais ainda Ferve a dança como um corrupio. (212) Hediondo esqueleto aos arrancos Chocalhava nas abas da sela; Era a Morte, que vinha de tranco Amontada numa égua amarela. (216) [...] “Fora, fora! esqueletos poentos, Lobisomes, e bruxas mirradas! Para a cova esses ossos nojentos! Para o inferno essas almas danadas!” (228) Um estouro rebenta nas selvas, Que recendem com cheiro de enxofre; E na terra por baixo das relvas Toda a súcia sumiu-se de chofre. (232)
O resultado da metamorfose é apresentado por uma imagem sublime,
contraponto radical às imagens baixas trazidas até então pelo texto:
E aos primeiros albores do dia Nem ao menos se viam vestígios Da nefanda, asquerosa folia, Dessa noite de horrendos prodígios. E nos ramos saltavam as aves Gorjeando canoros queixumes, E brincavam as auras suaves Entre as flores colhendo perfumes. E na sombra daquele arvoredo, Que inda há pouco viu tantos horrores, Passeando sozinha e sem medo Linda virgem cismava de amores. (244)
150 NODIER, 1822, Fête nocturne, ou Assemblée de Sorciers, p. 133-141.
Uma aparição referendada pela imagem feminina do romantismo
canônico brasileiro, das virgens etéreas, desumanamente sublimadas,
compostas sobre desejos carnais reprimidos, porém denunciados pela
insistência na imagem, como fica evidente logo que um ainda romântico
Castro Alves dá às mulheres uma carnalidade humanizada, sem que por isso
elas percam o status de musas inspiradoras de sua poesia sublime. No
contraste que estabelece, Bernardo faz a denúncia que a arte grotesca
exercita, como observa Wolfgang Kaiser, ao encontrar o ponto comum entre
pinturas tão como as de Bosch, Bruegel e Rafael:
O mundo do grotesco é o nosso mundo — e não o é. O horror, mesclado ao sorriso tem seu fundamento justamente na experiência de que nosso mundo confiável e aparentemente arrimado numa ordem firme, se alheia sob a irrupção de poderes abissais, se desarticula nas juntas e se dissolve em suas ordenações.151
A observação é fundamental para uma adequada valorização da
originalidade com que o poema de Bernardo trata da experiência da
metamorfose, constituinte fundamental da estética do satanismo. A
transformação ocorrida na natureza das coisas ali é notável, mas não é
incomum: florestas tenebrosas ou monastérios lúgubres se transmudam
freqüentemente em jardins floridos, como se viu nos textos indicados.
Aparentemente original é a substituição dos seres infernais por uma linda
virgem. Uma inversão da tradicional transformação da imagem feminina ideal
em terrível bruxa, comum aos textos do grotesco e das lendas populares
européias, que mimetizam assim a ordem natural das coisas biológicas: da
juventude para a velhice, da vitalidade para a degradação. Processo notável
em Albertus, l’âme et le peché, légende théologique, de Théophile de Gautier,
poema no qual o protagonista seduz uma bela e jovem mulher, que
151 KAISER, 2003, p. 40.
desaparece como por encanto.152 Disposto a enfrentar todos os perigos, o
herói percorre os territórios do sobrenatural, lá descobre que sua amada é
uma bruxa tenebrosa. O mesmo ocorre no conto de Nodier, citado acima, os
elegantes convivas da festa são, confessadamente, feiticeiras e feiticeiros e o
personagem que conversa com o protagonista é o diabo em pessoa.153 Para
espanto do moço, todos têm a aparência de mulheres lindas e homens belos.
Porém, diante da recusa do convite para se associar ao diabo e a persignação
de esconjuro que faz, todos se transformam em morcegos e corujas, em seres
infernais, realizando a metamorfose.
A história de Nodier terá chegado ao poeta brasileiro, senão
diretamente, pelo menos indiretamente, por intermédio de Hugo, pois entre o
que escrevem os dois franceses a intertextualidade é assumida. O poema de
um é dedicado ao outro. Smarra, de 1821, aparece na fala convocatória de
Satã, como equivalente ao sonho, que deve ser suspenso, eliminado.154 O
texto da Fête tem título, tema e desenlace similar ao poema de Hugo e
daquele de Bernardo: festa noturna, assembléia de feiticeiros, aurora e
metamorfose.
Estaria nestes termos a identidade européia do poema bernardino.
Identidade que se constitui em meio a parcerias da alta literatura e arte —
Goethe, Hugo, Nodier, Goya, Bruegel e Bosch — produzindo originalidade
autoral a partir de arriscados exercícios de releitura. Qualidades e parentescos
a exigirem, desde já, uma revisão do lugar de Bernardo no cânone.
Porém, considerado apenas um poema europeu, ele não funcionaria no
romantismo nacionalista, uma vez que estaria na posição de uma negatividade 152 GAUTHIER, 2004, Albertus, ou l’âme et le péché, légende théologique (1832), p. 9-58. 153 NODIER, op. cit. 154 NODIER, 1821, Smarra, ou Les démons de la nuit, songes romantiques, p. 133-141.
absoluta do sentido que o objeto literário faz acontecer no contexto em que foi
concebido, caso no qual ele, objeto, não existiria. Bourdieu, ao estudar o lugar
de Baudelaire, demonstra que o lugar do escritor é construído, mesmo
daqueles mais excêntricos, como procuramos demonstrar ao discutir o lugar
de Bernardo, no capítulo anterior: a obra mais absurda e inexeqüível não se
livra do contexto.155 Ao contrário, mesmo considerando “A orgia dos duendes”
como um exercício do contraditório à moda ou seu lugar à margem, o poema
foi considerado presente no campo literário, estando, inclusive, nos discursos
de enunciação do cânone: as histórias da literatura e as antologias. É
necessário, então, elaborar de que modo tal presença existe no romantismo
brasileiro. Ao nosso ver, como se fora um portal do paraíso.
4. 2. 2 O paraíso terreal, o inferno tropical e a floresta romântica
Em que pesem as qualidades do texto do poema levantadas até agora,
que não ficam a dever aos mestres europeus da estética satânica, a grandeza
de “A orgia dos duendes” se consagrará naquilo que interfere e altera no
imaginário do romantismo e, desde ali, nos valores vigentes no campo literário
brasileiro, ainda nos dias de hoje. Um habitus que reconhece floresta e
natureza como espaços paradisíacos e, ao mesmo tempo, genuinamente
próprios da nacionalidade brasileira.
A identificação do Novo Mundo com o paraíso é tão antiga quanto os
primeiros movimentos da conquista dessas vastas terras pelos europeus.
Colombo, extasiado diante do que via, apontara os indícios de estar ali o “Paraíso
155 BOURDIEU, 1992. La conquête de l’autonomie, p. 75-164. Ver, também, MAINGUENEAU, 2001, A paratropia do escritor, p. 27-43 e A vida e a obra, p. 45-62.
Terrenal”, imaginado por teólogos e santos.156 Numa temporalidade que se
confunde com a dele, Américo Vespúcio anuncia a grandeza que se colocava
diante de seus olhos:
A terra daquelas regiões é muito fértil e amena [...] e abundante em grandíssimos rios, banhada de saudáveis fontes, com selvas amplíssimas e densas, pouco penetráveis, copiosa e cheia de todo gênero de feras. Ali principalmente as árvores crescem sem cultivador, muitas das quais dão frutos deleitáveis e úteis aos corpos humanos; outras não dão nada. [...] Se quisesse lembrar cada coisa que ali existe e escrever sobre os numerosos gêneros de animais e a multidão deles, a coisa se tornaria totalmente prolixa e imensa. [...] Ali todas as árvores são odoríficas e cada uma emite de si gomas, óleo ou algum outro líquido cujas propriedades, se fossem por nós conhecidas, não duvido que seriam saudáveis aos corpos humanos. Certamente, se o paraíso terrestre existe em alguma parte da terra, creio que não deve ser longe destas regiões [...] nunca há invernos gelados nem verões férvidos.157
A idéia de paraíso, antes de ser de indivíduos pertence à cristandade —
Criação, bem-aventurança e vida eterna após a morte, desejo, pecado e
degradação eterna são a perpetuação de antigas e diversas crenças e
concepções de mundo pela doutrina cristã. Uma articulação condizente com o
papel desempenhado pelo discurso da Igreja nas grandes navegações e na
conquista das terras além mar: fornecedor do substrato imaginário para o
empreendimento.
A descoberta de um caminho para o Oriente contornando a África e a
possessão das vastas terras a Oeste, nos séculos XV e XVI, foi uma realização
tremenda. Uma ação eminentemente pragmática, de cunho político e mercantil,
evidente nos tratados, cartas e comunicações, envolvendo governos e
156 COLOMBO, 1492. In: RIBEIRO; MOREIRA NETO, 1992, p. 19. 157 VESPÚCIO, (1503/15004) 2003, p. 45-47 e p. 184. Grifo nosso. Em carta enviada de Lisboa, em 1502, o navegador enviara uma carta a Lorenzo de Médici, na qual a alusão ao paraíso terreal é quase do mesmo teor: “Algumas vezes me maravilhei tanto com os suaves odores das ervas e das flores e com os sabores dessas frutas e raízes, tanto pensava comigo estar perto do paraíso terrestre; no meio desses alimentos podia acreditar estar próximo dele”. As dúvidas sobre a veracidade dos documentos são muitas, porém, no que interessa a esta tese, o ponto central está na evidência da circulação dos textos, na época em que se propala, indiciando o contexto simbólico-imagético que se quer estabelecer.
associações mercantis. Contudo, em todos os documentos que se possa ler,
emana uma razão pontifícia e religiosa. Em nome da difusão dos ensinamentos
de Cristo e da salvação das almas, sem, todavia, esconder os propósitos
políticos, os decretos papais abençoam as viagens, incentivam a conquista da
terra e submissão de seus povos, sem prescindir da violência extrema para a
realização dos objetivos.158 A convergência entre os interesses da Igreja e dos
Estados teria uma de suas bases na idéia da prevalência natural da religião
católica sobre as outras: as religiões, mitos e costumes que se lhe opõem são
espaços sobre os quais se projetam o terror, o medo e o pecado e, portanto,
deverão ser suprimidos ou, no mínimo, adaptados e transformados. Assim, as
imagens políticas e religiosas se aproximariam, com a antevisão do paraíso
cristão trazendo a possibilidade de uma vida de bonança na terra, um paraíso
terreal, convenientemente projetada nas terras além mar.
A todo paraíso corresponde um inferno, como o Gênesis deixa claro. Uma
concepção herdada do imaginário greco-romano, que identificava os demais
povos enquanto bárbaros e povoava os espaços desconhecidos com
monstros.159 Um imaginário mais ou menos controlado pela razão renascentista e
pelo relativo realismo pragmático dos navegadores portugueses, porém, jamais
erradicado completamente dos corações e das mentes européias. Ao contrário,
ela se manteria atuante e de um modo eficaz.
É de Camões, poeta e soldado, a palavra literária que dá conta dessa
complexidade. Em Os lusíadas, no momento da viagem em que se vêem diante do 158 RIBEIRO & MOREIRA NETO, op. cit. p., 16-18 e p. 65-74. Os decretos autorizam dominar, escravizar, matar terras e gentes. Em menos de 100 anos, milhões de índios são mortos e escravizados, ou se internam fundo nas florestas centrais. Nos duzentos anos seguintes a empresa continua, quando povos africanos inteiros sofrerão a mesma sorte, sendo deslocados de suas terras para trabalhar como escravos nas colônias européias na América. Holocaustos mantidos esquecidos na história humana escrita pelo engenho e arte dos vencedores. 159 Uma síntese da vária mitologia infernal e de seu processo de adaptação pela igreja romana está em GOFF, (1981) 1995, p. 35-64.
rochedo dominante da passagem de águas revoltas e perigosas, os marinheiros
portugueses alucinam uma visão aterrorizante. A pedra se transmuda numa
enorme criatura, pronta para se contrapor aos elevados destinos previstos para os
aventureiros.
Tão Grande era de membros, que bem posso Certificar-te que este era o segundo De Rodes estranhíssimo Colosso, Que um dos sete milagres foi do mundo: C’um tom de voz nos fala horrendo e grosso Que pareceu sair do mar profundo, Arrepiam-se as carnes e o cabelo A mi, e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.160
Entretanto, como que para afiançar o pragmatismo daquela mão que
escreve e, também, combate, a mesma visão aterrorizante servirá para incentivar
a empresa.
Pois vens ver os segredos escondidos, Da natureza, e do úmido elemento, A nenhum grande humano concebidos; De nobre, ou de imortal conhecimento [...].
Esta adaptação do mitológico aos interesses pragmáticos teve seus
fundamentos reforçados na própria experiência dos navegadores. Para Sérgio
Buarque, a visão do paraíso, do tempo da expansão ibérico-cristão, não seria
“uma sugestão metafísica ou uma passageira fantasia, mas uma idéia fixa, que
ramificada em numerosos derivados ou variantes acompanha ou precede a
atividade dos conquistadores nas Índias de Castella”. No que tange aos
portugueses, o que se condicionara desde uma tradição mítica, encontra
evidências materiais importantes, quando as caravelas transpõem a foz do
Senegal. A costa africana, até ali inóspita, revela-se “o espetáculo de um país
verdejante, florido e fértil, como a lhes lembrar um sítio encantado”, visão que
160 CAMÕES, (1572) 1931, p. 159-192.
teria seu espelho nas costas das terras transatlânticas.161 Uma nova imagem que
deixaria de ser reflexo para rapidamente se concretizar na materialidade de
índios, madeiras, animais e espaço territorial à disposição do cristão que se
aventurasse.
A carta de Pero Vaz de Caminha é exemplar das profundas relações entre o
discurso que antevê o paraíso, mas não esquece os medos do outro e do
desconhecido.162 Água, animais, pássaros, peixes, frutos, palmitos e lenha não
faltam, a pureza dos índios e índias, sempre nus, é enfatizada e as possibilidades
de uma relação pacífica entre eles e os portugueses é repetidamente anotada.
Mas há sempre o cuidado em manter os exploradores na segurança dos espaços
praianos e ribeirinhos, dominados pelos navios e batéis. Afastar-se e se misturar
com os índios para além daquelas linhas seguras, apenas os degredados. A
relação entre espaços litorâneos e segurança é uma idéia que permanece ainda no
século XVII, quando o frei Vicente de Salvador acusa os portugueses de não
promoverem a interiorização da colônia: “mas se contentam de as andar
arranhando ao longo do mar como caranguejos”.163
Idealização dos vastos espaços da terra brasilis, cobiça pelas riquezas
que ela guardaria e terror das feras que nela habitariam são sentimentos que
integram o imaginário dos europeus que delas se aproximam. José de Anchieta,
significante de texto fundador da nacionalidade louva as primícias da terra:164
Todo o Brasil é um jardim em frescura e bosque e não se vê em todo o ano árvore nem erva seca. Os arvoredos vão às nuvens de admirável altura e grossura e variedade de espécies. Muitos dão bons frutos e o que lhes dá graça é que há neles muitos passarinhos de grande
161 BUARQUE DE HOLLANDA, 1959, respectivamente p. 17 e p. 10. 162 CAMINHA (1500), In CASTRO, 1985, p. 39-98 passim. 163 SALVADOR, frei Vivente. História do Brasil 1500-1627. São Paulo: Melhoramentos, 1965, p. 61. Apud. GIUCCI, 1993, p. 190. 164 Texto fundador tomado no sentido que utilizou Darcy Ribeiro para escolher os textos de A fundação do Brasil: testemunhos, 1500-1700, ver bibliografia RIBEIRO & MOREIRA NETO, 1992. Um conceito também experimentado por ORLANDI, 1993.
formosura e variedade e em seu canto não dão vantagem aos rouxinóis, pintassilgos, colorinos, e canários de Portugal, e fazem uma harmonia quando um homem vai por esse caminho, que é para louvar o Senhor, e os bosques são tão frescos que os lindos e artificiais de Portugal ficam muito abaixo. Há muitas árvores de cedro, áquila, sândalos e outros paus de bom odor e várias cores e tantas diferenças de folhas e flores que para a vista é grande recreação e pela muita variedade não se cansa de ver.165
Entretanto, os contornos utópicos do discurso não significam um
desarmamento do espírito do padre integrado ao exército conquistador,
disputando território contra os índios e calvinistas. Numa carta aos superiores,
Anchieta mostra saber que o espaço paradisíaco é, ao mesmo tempo, ambiente
da ferocidade, do pecado e da iniqüidade: “[...] levando continuamente os
escravos, mulheres e filhos dos Cristãos, matando-os e comendo-os [...]”.166
O canibalismo concentra todos os medos, tanto que, no mesmo
diapasão, o náufrago Hans Staden observa: “Fazem isso não para matar a
fome, mas por hostilidade, por grande ódio [...]”.167 A descrição do ritual
antropófago é detalhada nas preliminares — a guerra, o aprisionamento, o
recolhimento, e a preparação — e na execução — a morte, o esquartejamento,
a divisão dos despojos e o ato canibal propriamente dito. A importância do texto
de Staden, na constituição do imaginário sobre o índio, é muito central. Lançado
como livro, em várias edições e línguas, ele continha um relato verossímel,
multiplicado em inúmeras edições, parte delas ilustradas, unindo a capacidade
metafórica do texto e a força da imagem pictórica.168 O impacto do canibalismo
sobre os europeus é violentíssimo do ponto de vista moral e ético. Laura de
Mello e Souza anota a relação que o europeu culto estabeleceu, no início do
165 ANCHIETA, 1933, p. 430-431. O trecho é o preferido das antologias. 166 ANCHIETA, 1933, p. 196-240. A carta ao Geral da Ordem, datada de 8 de janeiro de 1565, é longa, detalhando a vida e revelando a mentalidade do índio. 167 STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. In RIBEIRO & MOREIRA NETO,1992, p. 170-172. 168 Figura 6. [A cena do canibalismo]. STADEN, 1557. Uma das muitas imagens sobre o canibalismo. A presença de crianças nas imagens ressalta a banalidade do ato bárbaro entre os selvagens.
Figura 6
Nota 168: [A cena do canibalismo]. In: STADEN, Hans. Warhaftige be schreibung eyner landschafft der wilden
nacketen grimmigen menschenfresserleuthen in der newen welt America gelegen […] Getrucftzu Marpurg: bei Andres Colben uff Mariae Geburtstage, 1557. p. 167.
Fundação Biblioteca Nacional: www.bn.br/XXXX. Acesso em 18 mar 2006.
século XVI, entre o canibalismo ritual dos tupinambás e as referências medievais
do canibalismo das bruxas. 169
O destino de náufragos caídos nas mãos dos selvagens é relatado por frei
Vicente de Salvador:
[...] que por todos que eram mais de cem pessoas, os quais, posto que escaparam do naufrágio com vida, não escaparam do gentio caité que naquele tempo senhoreava aquela costa, o qual, depois de roubados e despidos, os prenderam e ataram com cordas, e poucos a poucos os foram matando e comendo [...].170
Sob o ato selvagem se reúne toda a ritualística cosmográfica, religiosa e
social dos habitantes autóctones, servindo de perfeita justificativa para as ações
civilizatórias no mínimo tão cruéis quanto o ritual a ser combatido. A superação
desta relação de causa e conseqüência somente aconteceria e, de um modo
relativo, duzentos anos depois, quando o suíço Jean-Jacques Rousseau relê o
que o francês Montaigne escreveu sobre o canibal e eleva o selvagem da terra
brasilis o modelo para a igualdade entre os homens.
Mentalidade similar ao do padre jesuíta impregna o discurso de Jean
Léry, religioso calvinista que esteve na França Antártica.171 O texto fala das
gentes, descrevendo detidamente os corpos e as relações sociais dos índios
com seus pares e com os estrangeiros. Os mamíferos, as cobras e serpentes,
os lagartos, os tatus e “outros animais monstruosos”, os pássaros e papagaios,
os grandes morcegos, abelhas, moscas, mosquitos, escorpiões, caranguejos e
vermes estranhos são descritos nas minúcias de sua morfologia e
169 SOUZA, op. cit. p. 42-43 e 206-207. 170 SALVADOR, frei Vicente. História do Brasil 1500-1627. São Paulo: Ed. Itatiaia, 1982. p. 147-148. In: RIBEIRO & MOREIRA NETO, 1992. p. 175. 171 LÉRY, (1578) 1994. Depois da edição de 1578, surgiram outras quatro em língua francesa, durante a vida do autor. Antes do final século XVIII, apareceram traduções em latim, italiano, alemão, holandês e inglês, indicando ampla circulação do discurso francês no imaginário europeu. A presença de vários exemplares destas edições no acervo da Biblioteca Nacional brasileira, algumas com o carimbo da Real Biblioteca de Lisboa, indicam a recepção do texto também no mundo português. Segundo Levi Strauss o texto de Léry é uma “obra capital da literatura etnográfica”, expressão utilizada em Tristes Trópicos (1955) e relembrada na entrevista que abre a edição consultada. LÉRY, (1578) 1994, p. 5.
comportamentos. Quando descreve a vegetação, da qual o índio tira a
mandioca e o milho e o europeu cobiça o pau-brasil, o texto é escritural: cada
árvore, cada palma, cada raiz recebe observações detalhadas. Ao final, diante
da grandeza do que vê, o calvinista é bíblico, na afirmação do aspecto divino do
espetáculo que presencia: “O Senhor Deus o quanto tuas obras diversas são
maravilhas para o mundo inteiro: o que tu fizeste por grande sabedoria! Em
suma, a terra estará plena de tua generosidade”.172 A mensagem do salmo 104,
versículo 24, da tradução huguenote, de 1562, é precisa, invocando os poderes
divinos na criação da terra prometida a Abraão, ou seja, um paraíso terrestre.
O religioso francês sugere uma casualidade na escolha do trecho bíblico,
mas tal característica se mostra relativa, pois a frase é um elo preciso entre o
utópico e o pecaminoso que, naquele paraíso, se revelam claramente aos olhos
de Deus e dos homens de boa vontade, como no Éden os pecados de Adão,
Eva e Caim. Aquelas palavras enfeixam e concluem os capítulos sobre as
primícias da terra e servem de preâmbulo para os capítulos seguintes, que
descreverão as provações do europeu nos trópicos, a guerra, a ardileza e as
armas dos selvagens, seus costumes pagãos, o canibalismo e o casamento
consangüíneo: o inferno na terra.173
Para o europeu, os espaços da floresta, de qualquer floresta, nunca
foram de fácil assimilação. Nela, realidade e imaginário se misturaram. Lugar
de sombras e caminhos estreitos sem fim, seria o ambiente das feras, dos
seres rastejantes e voadores, dos proscritos, ladrões e bandidos, desde
172 Cf. LÉRY, p. 334. O salmo 104, versículo 24, da tradução huguenote, de 1562 — O Seigneur Dieu que tes oeuvres divers sont merveilleux para le monde univers: O que tu as tout fait par grand sagesse ! Bref, la terre est pleine de ta largesse — corresponderia ao salmo 103, versículo 24, na versão romana. 173 Figura 7. [A tentação na terra]. Grav. Théodore de Bry. In: LÉRY (1578), 1994.
Figura 7
Nota 173: [A tentação na terra]. Gravura de Théodore de Bry. In.: LÉRY, Jean de. Histoire d’um Voyage faict en la terre du Brésil (1578).
Texte établi, présenté et annoté par Frank Lestringant d’aprés 2e édition 1580. Paris: Le Livre de Poche, 1994.
tempos imemoriais. Ambiente das plantas e das ervas, ela seria o lugar dos
druidas e os feiticeiros, nomes ligados aos ritos secretos e expurgados do
cotidiano cristão. Sendo isso tudo, a floresta possuiria uma “virtualidade”, nela
trafegariam as forças de Lúcifer. O encontro com a floresta guarda o
significado da morte, como Macbeth sabia.174
Nos trópicos, a situação é mais complicada, pois os espaços não estão
demarcados em suas diferenças e não há distâncias que protejam os
personagens, a terra toda e a floresta se confundem, o único espaço diferenciado
está nas estreitas linhas das praias. Os medos se potencializam. Luxuriante e
densa, a selva tropical seria impenetrável para o europeu, nela vivem as feras e
os animais, o único que ali habita é o índio, sem demora considerado um animal:
“Como conviver com a natureza de dimensões tão poderosas e obscuras senão
sendo meio animal”.175 Idéia para a qual os ritos canibais tão bem contribuíram.
O teatro de Anchieta é exemplar da vigência destas dicotomias:
civilização-floresta, índio-natureza. Uma carta do padre Fernão Cardim, de 1585,
relata uma visita a uma aldeia, recebida com um teatro dos índios. Na entrada,
sob um arvoredo, as encenações dos curumins nus, cantando e tocando cantigas
pastoris: “Nem faltou um Anhangá, scilicet diabo, que saiu do mato. [...]. A esta
figura fazem os índios muita festa por causa de sua formosura, gatinhas e
trejeitos que faz [...]”.176
No teatro jesuítico, o índio se transveste em romano, cristão e santo, em
César, Pompeu, Nero e Júpiter, em anjo, demônio e pajé, índio bom e índio mal.
174 O destino de Macbeth dependeu da distância que conseguiu manter da floresta de Birnam. 175 NEVES, 1980, p. 54. Esta questão seria discutida por Manuel da Nóbrega, em pelo menos duas vezes, no discurso sobre a conversão do gentio e nas cartas do Brasil, como observa o autor. Vinculada diretamente ao debate sobre a presença de uma alma divina no índio, apresenta-se central para a política escravista, do índio e do negro. 176 Citado por PRADO, O teatro colonial In: PIZZARRO, 1993, p. 415-463.
Como observa Décio de Almeida Prado, um caos histórico que se comporia com
um único objetivo: tornar compreensível a luta entre o bem e o mal e esclarecer o
lugar de cada um, principalmente o do índio, no concerto do reino de Deus na
terra.177 O corpo do índio é o objeto da metamorfose que é o grande projeto de
adaptação direta e local do imaginário europeu nos espaços brasílicos — em
outras palavras, a tentativa de ocupação do grande cenário formado pelo conjunto
aldeia-floresta. Uma expressão literária do sentido da missão da companhia de
Jesus, os soldados de Cristo.
A ação jesuítica na cena da colonização teria o compromisso em fazer
acontecer o cristianismo.178 O achamento do novo mundo criara a oportunidade
de uma espécie de “re-encontro com regiões de si que se teriam afastado física e
mentalmente” e não o habitual encontro com o Outro, enquanto uma alteridade
diferenciada. O novo mundo seria um espaço de luta no qual o missionário é
posto a prova em sua coragem e ardileza, no combate contra aquele único
ousado o suficiente para enfrentar os desígnios divinos, o demônio. O trabalho da
catequese seria não deixar espaço para o mal ocupar, nem no coração e na alma
dos homens, nem na terra, onde eles vivem afinal, aquele bem poderia ser o
espaço do paraíso. Neste sentido, o índio a ser catequizado e, no romantismo,
alçado à categoria de ícone da nacionalidade, pouca importância teria, sendo
inclusive eliminado como povo capaz de opor uma resistência efetiva ao
cristianismo. O quê esteve em jogo sempre foi a redução do mundo estranho a
esquemas mentais europeus — Novo Mundo, paraíso ou inferno, habitado por
anjos ou por feras-humanas, imagens do imaginário do homem europeu, nada
menos que isso.
177 PRADO, op. cit. 178 NEVES, 1978.
Nos séculos seguintes, o mito edênico se atualiza, sempre servindo de
substrato para o avanço da civilização, unindo um ideal mítico e o pragmatismo
cobiçoso.
Os argumentos de Simão de Vasconcelos sobre esta possibilidade são
relativamente simples, mas grandemente ousados — por eles foi ameaçado de
processo por heresia.179 A tradição clássica e os doutores da Igreja previram o
paraíso terreal nas regiões orientais, posto que nada fora encontrado por lá, sua
localização bem poderia estar nas latitudes brasílicas.
A permanência dos mitos edênicos sobre a floresta e a natureza brasílica é
um contraponto importante à dura realidade que foi a interiorização do projeto
colonizador, uma história de miséria, fome e doenças e de violências e
barbaridades. Transpor as serras, penetrar nos sertões terá exigido que se
projetasse sobre esse interior mitologia similar àquela que impulsionou os
navegadores portugueses. Uma terra prometida, não apenas das primícias
sublimes, mas de uma concretude mineral de tesouros fantásticos em ouro, prata e
pedras preciosas.
O donatário Duarte Coelho é claro quanto às intenções e consciente
quanto às dificuldades da empreitada:
Quanto Senhor, às cousas do ouro, nunca deixo de inquirir e procurar sobre o negócio e cada dia se esquentam mais as novas mas como sejam longe daqui [...] e se há de passar por três gerações de mui perversa e bestial gente [...] há de se passar esta jornada com muito perigo e trabalho [...] não se pode fazer senão indo como se deve ir [...] e não fazer como os do Rio da Prata que se perderam passante de mil homens castelhanos e como os do Maranhão que se perderam setecentos [...].180
179 VASCONCELOS (1663), “Notícias antecedentes, curiosas e necessárias das cousas do Brasil”, In RIBEIRO; MOREIRA NETO, op. cit. p. 117-119. S. de Vasconcelos, provincial e reitor dos colégios jesuítas da Bahia e do Rio de Janeiro, usaria argumentos tão ousados que beirariam a heresia, com o trecho de sua Crônica da Companhia de Jesus (1663) sofrendo censura da própria Ordem, informa Sérgio Buarque, quando divulga o texto, na terceira edição de Visão do Paraíso, em 1977. 180 COELHO (1542), Carta de Duarte Coelho a El Rei, 1542. In: RIBEIRO; MOREIRA NETO, op.cit., p. 361.
Entre realizações e frustrações dos desbravadores, o mesmo padre Simão
de Vasconcelos expõe uma visão da riqueza hiperbólica desse paraíso material:
[...] descobriu Sebastião Fernandes uma grande, e formosa pedreira de esmeraldas, e outra de safiras, que estão junto a uma lagoa; e 60 ou 70 léguas da barra do Rio Doce para o sertão ao redor do mesmo rio, vieram dar com umas serras cheias de arvoredo, onde também se acharam pedras verdes. Correram mais acima 4, ou 5 léguas para a parte Sul, deram em outra serra, onde lhes afirmou o gentio, havia pedras verdes, e vermelhas de comprimento de um dedo, e outras azuis, todas resplandecentes. Dessa serra corrente ao Leste pouco mais de légua, deram em outra de fino cristal, que cria em si esmeraldas, e juntamente pedras azuis.181
Em qualquer das formas, a terra vasta é o palco dos acontecimentos e, ao
mesmo tempo, o grande adversário a ser dominado. Floresta ou sertão, nela a
proximidade entre a realização utópica e o fracasso trágico com que personagens
históricos e literários ultrapassem facilmente as fronteiras entre o céu e o inferno,
regiões que se completam no imaginário.
Quase trezentos anos depois de Anchieta escrever que a floresta brasílica
era “um jardim” e cento e oitenta anos após Simão de Vasconcelos argumentar
sobre o paraíso em terras brasileiras, a identificação entre floresta-natureza e
mitos edênicos seria atualizada pelo romantismo, que as eleva à categoria de
imagens constituintes da brasilidade. O exercício resulta na bela e sublime
floresta dos textos de Gonçalves Dias e José de Alencar, uma floresta que a arte
de Bernardo Guimarães mostra quão grotesca ela pode ser.
4. 2. 3 O portal do paraíso: variações em torno da natureza e da floresta
O ideário romântico se instalaria propondo valores nacionalistas para a
literatura, aspecto genotípico do romantismo radical alemão, transposto em
diferentes ritmos pelos países em que o movimento chegou, de acordo com o
181 VASCONCELOS (1663), apud LOPES, 1997, p. 22-23.
respectivo substrato político-cultural.182 No Brasil, em pleno processo de
independência política, acontece um entrelaçamento de influências estabelecido
através da leitura de obras originais de autores das diversas regiões européias.
Porém, a importância da influência francesa na modelagem do romantismo
brasileiro se destaca, através de vários fatores. De um lado, obras alemãs e
inglesas estiveram disponíveis, quase sempre, em traduções francesas, caso do
Fausto por Gérard de Nerval (1828) e Blaise de Bury (1840), proporcionando uma
inflexão relativamente inconsciente, mas importante na recepção dos textos. Por
outro lado, aconteceu uma relação direta entre intelectuais de Paris e estudantes
brasileiros.
Em torno da década de 30, do século XIX, Chateaubriand e Lamartine
dominavam os debates na Societé des Études Historiques, freqüentada no
mesmo período por intelectuais franceses da estirpe de Michelet, Saint-Hilaire e
Debret e pelos jovens Gonçalves de Magalhães, Torres Homem e Araújo Porto-
Alegre, estes fundadores de Nictheroy — Revista Brasiliense, desde aí
consagrados como personagens centrais do campo literário de seu país.183 Uma
influência praticamente naturalizada pela doxa, ainda nos dias atuais, mas que
182 Em cada país em que surge, o romantismo toma uma feição. A partir dos estudos enciclopédicos de Georges Gusdorf (1993), é possível levantar algumas diferenças entre eles. Na Alemanha ele teria um sentido nacionalista, e se articularia, mesmo que pelas diferenças, com um Sturm und Drang denso e consistente. Na Inglaterra, o romantismo seria mais uma invenção de historiadores, pois nenhum movimento clássico unificado e de larga vigência, a ser contraditado, teria ocorrido lá. Byron, o grande nome inglês do movimento, cultivaria uma lira anti-romântica, por exemplo. O que as ilhas britânicas teriam oferecido ao romantismo foram algumas fontes significativas, como as lendas arturianas, Shakespeare e Milton, além de uma farsa, Ossian. O romantismo na França, teria espaço somente na Restauração, sendo defasado em relação ao alemão, um dado esquecido, muitas vezes. A arte da Revolução Francesa, movimento que tanto inspirou o romantismo no restante do mundo, é neoclássica, tal qual a do Império. Sua inspiração inicial mais significativa estaria nas referências de Mme. Staël, que ao apresentar o romantismo alemão, em 1813, enfatiza a dicção romântica da poesia de Goethe, enquanto poesia “musicada” e “cantada” pelo povo. Considerada a importância dos românticos franceses para o movimento brasileiro, este seria um detalhe a ser lembrado para o entendimento das sutilezas da recepção do romantismo e de seus autores pelos intelectuais do país. 183 Beatriz Barel aprofunda a questão. Entre outros pontos, trabalha com a idéia do significado didático e pedagógico da Revista Nichteroy. BAREL, 2002.
tem o significado de ampliar os quadros mentais sobre os quais se escreve o
texto literário brasileiro, como analisam Candido e, mas recentemente, Ana
Beatriz Barel.184
A requerida apropriação transformadora, importante marca do
romantismo, acontece de modo contraditório pois, ao mesmo tempo em que
a crítica exige um modo poético abrasileirado, os valores simbólicos que
estabelecem condições para esta identidade continuam sendo europeus,
como evidencia o valor atribuído aos comentários de Ferdinand Denis,
Almeida Garret entre outros — incluindo-se entre elas a importância da
opinião canônica de Alexandre Herculano, sobre a poesia de Gonçalves
Dias. Contradições constituintes do romantismo brasileiro, fator de sua
identidade e complexidade, como destacamos anteriormente, neste mesmo
capítulo.
No espaço aberto por esta complexidade, está o manifesto de
Gonçalves de Magalhães, de 1836, que denuncia os vícios do modelo
tradicional da poesia brasileira.185 Denuncia e aponta os temas privilegiados
pelo romantismo tropical: a Natureza, naqueles aspectos físicos e naqueles
espécimes animais e botânicas inexistentes em outras regiões e, portanto,
próprios para os artistas nacionais, palmeiras, aves, galhos, laranjeiras, rios.
Sugestões que acompanham aquelas articuladas por Ferdinand Denis,
quando relacionara as influências da natureza tropical sobre a imaginação
184 CANDIDO, 1989, Literatura de dois gumes, p. 163-180. CANDIDO, 1989, Literatura e subdesenvolvimento, p. 140-162. BAREL, 2002. 185 MAGALHÃES, 1994, p. 36-37. “A poesia brasileira não é uma indígena civilizada; é uma grega vestida à francesa e à portuguesa, e climatizada no Brasil; é uma virgem de Melicon que, peregrinando pelo mundo, estragou o seu manto, talhado pelas mãos de Homero, e, sentada à sombra das palmeiras da América, se apraz ainda com as reminiscências da pátria, cuida de ouvir o doce murmúrio da Cartália, o trepido sussurro do Lodo e do Isauro, e toma por rouxinol o sabiá que gorjeia entre os galhos da laranjeira”. Apesar de historicamente o Discurso ser posterior aos poemas reconhecidos como introdutores do movimento, ele é tomado como o seu manifesto e Nictheroy o veículo de comunicação do movimento.
dos homens.186 Citando referências francesas para as origens do
romantismo, especialmente Études sur la nature (1784) e Paul et Virginie
(1787), de Bernardin de Saint-Pierre, ele indica aos europeus o uso que
poderiam fazer dos grandes cenários daquelas regiões. Uma argumentação
que seria devidamente desenvolvida e enriquecida com exemplos retirados
da própria produção dos poetas brasileiros.187 A grandeza dos espaços e da
natureza americana, que tanto marcou a literatura colonial, seria atualizada
para a modernidade romântica, através do francês, aliás, naquele momento
em que lança o texto que o tornaria famoso, menos um literato que um jovem
curioso e observador atento não apenas da situação cultural como da
comercial e política. A posição que adota o levaria a criticar duramente a
poesia de Cláudio Manuel da Costa, por haver o poeta utilizado
preferencialmente metáforas européias e não as que a natureza do novo
mundo lhe proporcionava.
Entretanto, o que se lê apresentado habitualmente como elaboração
francesa, guarda origens alemãs significativas. Investigando o interesse alemão pela
Natureza, Karin Volobuef frisa a essência subjetiva da categoria, advinda da
importante influência da filosofia do Eu, de Fichte sobre as formulações do
movimento romântico.188 Justamente o subjetivismo fichteano daria as bases para o
186 DENIS, 1824. A indicação de determinados temas para serem adotados pelos autores nacionais é uma longa história, na qual se misturam nacionalismo e ocupação de espaço no campo literário com preconceito racial e geográfico pautado por teorias naturalistas dos séculos XVIII e XIX. Faremos algumas indicações sobre o assunto no próximo capítulo. 187 DENIS, 1826. In: CÉSAR, 1978, p. 35-82. 188 VOLOBUEF, 1999, p. 118-129. A autora analisa a prosa de ficção, da qual retira seus variados exemplos, contudo, o que se afirma até aqui não se coloca em desacordo com o entendimento que propomos para o discurso analítico de Goethe, validado por Fausto. Benedito Nunes, estudando a visão romântica de mundo, acompanha as relações entre a filosofia e as realizações literárias românticas. Segundo ele, a filosofia do romantismo derivaria do criticismo kantiano. De um lado a metafísica do Espírito, de Fichte, e a metafísica da Natureza, de Schelling; de outro, estabelecendo as raízes da visão de mundo romântica, um conjunto de sistemas e doutrinas, incluindo a teologia sentimental de Schleiermacher e o realismo mágico de Novalis. Ver também NUNES, 1978. In: GUINSBURG, 2002, p. 51- 74, passim.
rompimento com a estética neoclássica — sob a nova estética, pouco interessaria
ao poeta copiar ou imitar, na medida em que o Belo derivaria do olhar do sujeito.
Forma-se uma nova concepção de beleza para a arte, na qual “poesia” e
“imaginação” substituem o bom gosto.
A Natureza romântica, entretanto, não seria a mesma Natureza do Sturm und
Drang. Com o Goethe de 1774, a Natureza já se apresenta como depositária de
todo o drama humano.
O intenso sentimento do meu coração pela natureza em seu esplendor, sentimento que tanto me deliciava, transformando em paraíso o mundo que me cerca, tornou-se para mim um tormento intolerável, um fantasma que me tortura por toda parte. [...] Eu via todas as forças insondáveis da natureza agir umas sobre as outras, e juntas se fecundarem na profundeza da terra e sob os céus.189
Aquele que fala, escrevendo, é um homem desiludido e distanciado das
grandezas da Natureza: “Outrora [...] eu via em torno de mim tudo germinar e
frondescer”. Reinando sobre o mundo inteiro, ele se reconhece um ser limitado —
“Pobre homem insensato, que julgas todas a coisas pequenas, por que és,
também, tão pequeno?”.
É devida aos Stürmer a idéia do gênio, “não o indivíduo com dotes
excepcionais, mas aquele que se abandona aos impulsos de sua imaginação”,
realizando uma “obra livre e independente de toda injunção externa”, produto do seu
Eu, observa Volobuef. Idéia transformada em metáfora coletiva pelo romantismo, no
qual a feição hiperbólica de versos como “Eu sinto em mim o borbulhar do gênio”, de
Castro Alves, não supera os limites propostos por Musset: “Écouter dans son cœur
lécho de son génie”.190 Subjetivismo e sentimentalismo, melancolia e isolamento,
valorização da originalidade e oposição à normativa clássica, interesse pelo caráter
189 GOETHE, (1774), 1971, p. 65. 190 CUNHA, 1971. O “borbulhar do gênio”: metáfora coletiva, p. 88-94. Os exemplos são de Cunha.
nacional e anseio pelo retorno à Natureza.191 Um retorno que seria uma espécie de
re-encontro do homem consigo mesmo — mística que, na essência, convergiria para
aquela que movera o empreendimento jesuítico nas colônias, idéia que moveu os
alquimistas, entre eles um certo Doutor Fausto.
Daquela visão da Natureza derivariam duas diferentes posturas. Uma
delas, assumida pelo próprio Goethe, retornaria às concepções iluministas das
relações entre homem e Natureza, em que o projeto humano é dominá-la,
mesmo que com a possibilidade de conseqüências trágicas. O resultado literário
seria uma obra como Fausto, personagem demoníaco, significante de toda uma
tradição do embate do homem contra as forças naturais. A outra derivação
estaria marcada por uma postura místico-religiosa, na qual a arte seria religião, o
artista seu sacerdote, conforme se estrutura desde os Fragmentos.192 A Natureza
que interessa ao romântico não é aquela visível e concreta, “mas a sua face
oculta, ou seja, o lado em que se pressente algo superior e infinito”. Não mais
“algo inerte e insensível, mas um” organismo “mutável e criador”, tal qual o
indivíduo de quem é um prolongamento.
Na vertente canônica do romantismo francês, moldada por O gênio do
cristianismo (1802), de Chateaubriand, e confirmada por Harmonias poéticas e
religiosas (1830), de Lamartine, todo o aspecto radical elaborado por Goethe é
recalcado, em favor daquela idéia de natureza que se apresenta como o templo,
no qual se realizaria a comunhão entre o mundo sensível e o sentimental. “A
natureza se transforma numa teofania. Os bosques, as florestas, o vento, os rios,
o amanhecer e o anoitecer, os murmúrios, as sombras, as luzes — de tudo que
191 VOLOBUEF, 1999, p. 29 e 30. 192 LACOUE-LABARTE. NANCY, 1978, p. 195. Luiz Montez, estabelecendo um contraditório em relação às análises que recepcionam o romantismo como um movimento revolucionário no absoluto, lembra o caráter declaradamente reacionário, do ponto de vista político e religioso, das formulações de Novalis e do grupo de Jena. MONTEZ, 2002, p. 88-102 passim.
não é humano e se constitui espetáculo para o homem”, na síntese de Benedito
Nunes.193 A natureza seria o modelo transcendente ao homem, modelo que o
determina e subordina.
Uma articulação que atravessaria todo o romantismo brasileiro, desde
Magalhães até quando, trinta anos depois, Castro Alves confirmaria, com todas
as letras, que “Todo universo é um templo”.194 Uma pequena variação da frase La
Nature est um temple où de vivants pilliers, que inicia um poema de Baudelaire,
da ousada e censurada coletânea Les fleurs du mal, de 1857.195 Na composição
baudelairiana, a Natureza é um templo no qual pilares vivos deixam escapar
palavras confusas, percorrido pelo homem que passa entre as florestas de
símbolos, ecos, perfumes que trazem lembranças insondáveis ao espírito e aos
sentidos. Um texto sintomático da concepção mística do universo, tido como um
sistema vivo e pulsante, de símbolos, correspondências e emblemas, a ser lido e
sentido pelo poeta, proposta por Lamartine, em 1830.196
Floresta, selva, bosque, arvoredo que servem de abrigo e cenário para
personagens ou são eles mesmos tema de toda uma variedade de composições
que o romantismo produziu, marcando-os como espaço privilegiado da lírica
nacionalista. Já na plenitude do romantismo, A confederação dos tamoios (1856),
de Gonçalves de Magalhães, confirmaria o enquadre:
Das Américas plagas venturosas, Que às mais plagas do mundo nada invejam, Ufana-se o Brasil como a primeira. Formosa é sempre aqui a Natureza, Eterna a primavera, o outono eterno. Em leitos diamantinos pura linfa Em correntes caudais seus campos rega.
193 NUNES, 1978, op. cit., p. 65 e 68, respectivamente. 194 CASTRO ALVES, 1966, Poeta (1868), p. 357-358. Inspirado assumidamente em versos de Lamartine. 195 BAUDELAIRE, Charles, 1981, Correspondances, p. 33. Esta similitude me foi apontada por Celina Moreira de Mello. 196 WELLEK, s/d, p. 154. O autor, a quem esta referência é devida, chama a atenção para as fontes ocultas do romantismo francês, ou seja, aquelas místicas, presentes tanto na poesia e narrativa canônica, quanto nos textos de ruptura, como acabamos de destacar.
Inúmeras, pujantes catadupas, Voz dando à solidão, em cristais curvos De rochedos alpestres se despenham; E de horrendo estridor pejando os ermos, De vale em vale, entre ásperas fraguras, Onde atroam também gritos de feras, Das serpes os sibilos, e os trinados Dos pássaros, e a voz dos roucos ventos, Viva orquestra parece a Natureza, Que a grandeza de deus sublime exalta! [...] Nesta vasta extensão do Éden terrestre.197
Um modelo ao qual prestaria obediência Gonçalves Dias, reconhecido
como o maior poeta do romantismo, responsável pelos cantos inaugurais do
indianismo romântico.198 Para ele, a floresta é o lugar no qual o índio vive a sua
plenitude, seus dramas e seus amores.
Aqui na Floresta Dos ventos batida, Façanhas de Bravos Não geram escravos, Que estimem a vida Sem guerra e lidar.199 Da noite a viração, movendo as folhas, Já nos cimos do bosque rumoreja. Eu sob a copa da mangueira altiva Nosso leito gentil cobri zelosa Com mimoso tapiz de folhas brandas, Onde o frouxo luar brinca entre flores. [...]No silêncio da noite o bosque exala.200
Eis que, neste cenário, ambiente de tantas epopéias e dramas, tantas
belezas e elevação, na qual a Natureza se mostra sinônimo de um paraíso de
feição indianista, uma velhinha convoca para uma folia grotesca e baixa, abrindo
a porta para as profundezas da floresta, um inferno povoado por bruxas,
esqueletos, lobisomens, mulas-sem-cabeça, galos-pretos, morcegos, sapos, 197 MAGALHÃES, (1856) 1994, p. 34 e 36. 198 Alencar buscaria seu espaço no campo literário a partir da crítica dura e violenta que faz à Confederação dos tamoios. Com o debate que se estabelece entre Alencar e os partidários do então chefe do movimento romântico, Gonçalves de Magalhães, entre eles Pedro II, o futuro romancista se vê interlocutor dos principais literatos do Império. Para o debate, ver CASTELLO, 1953. 199 DIAS, 1998. O canto do guerreiro (1847). p. 106. 200 DIAS, op. cit. Leito de folhas verdes. p. 378-379.
cobras, lagartixas, crocodilos, diabos e diabinhos, taturanas, getiranas e
mamangavas, padres, papas, freiras, condessas e reis reunidos numa dança de
luxúria, desejo e pecado. Uma festa na qual ecoariam os rituais antropofágicos
indígenas, próprios de feras ou de homens sem alma, uma orgia na qual a
presença do índio não aconteceu.
É este o trabalho que o poema não cessa de realizar: um exercício de
revelação do oculto, tolerado, mas desqualificado pelo olhar canônico. Entretanto,
nós vimos acima que a folia bernardina é de alta estirpe, por ela o olhar do leitor
se reforma, rompendo com a tradição do sublime baseado no recalque,
aproximando-se de uma outra tradição de um outro sublime, pautada justamente
pela circulação da pena e do olhar em meio ao que foi recalcado.
4. 3 UM ESTRANHO NO PARAÍSO
4. 3. 1 Corpus braziliensis: genocídio, canibalismo e nudez
O índio não aparece na orgia dos duendes, apesar de ela acontecer no seu
ambiente natural, a floresta, e o caráter infernal da festa fazê-la equivaler, neste
aspecto, a seus ritos antropofágicos, conforme os europeus os valoravam. A
ausência não deve ser casual, embora a priori não tenhamos condições de inferir
uma intencionalidade do autor nessa naquela configuração. Entretanto, é possível,
considerando aquela ausência como sintoma, suspeitar que entre o índio e o texto
literário existam razões que escapem ao senso comum e buscá-las.
A identificação da figura do índio como protótipo da nacionalidade,
conforme assumido no âmbito do processo de independência política e no
romantismo literário, certamente terá sido um processo simbólico nem um
pouco natural. Os autóctones do chamado novo mundo nunca foram de
assimilação fácil para o europeu. Como visto no capítulo anterior, no geral do
empreendimento da conquista, eles eram os inimigos óbvios, a serem
combatidos de comum acordo pelas armas da fé cristã e do poder militar dos
reis europeus.
Desde a chegada oficial dos primeiros navegadores, os habitantes do
Novo Mundo, causam uma impressão ímpar nos europeus, significando um
Outro, no sentido mais radical que o termo adquire no discurso psicanalítico.201 O
espetáculo de seus corpos nus, seus costumes e modo de vida seduzem e
horrorizam os conquistadores.
Os textos do século XVI indicam uma relação do europeu com o índio tão,
ou mais, ambivalente quanto aquela com a floresta. O olhar jesuítico via naqueles
seres uma alma a ser salva e, num piscar de olhos, um selvagem feroz e
indomável, o inimigo a ser combatido e exterminado. Os comentários de
Anchieta, sobre a guerra contra os índios em São Vicente, são exemplares desta
ambivalência: “[...] Entre os bens que a Divina Bondade soube tirar desta guerra,
foi um que batizaram e ajudaram a morrer alguns escravos dos
Portugueses[...]”.202 Naquele tempo, escravo equivalia a índio. A lógica do
pensamento europeu, referida nos versos do jesuíta, em louvor da vitória de Mem
de Sá sobre os calvinistas, mostra que a sorte e a morte daqueles seres não era
exatamente obra da providência divina, fossem eles conversos ou não.
[...] Junto ao mar o estrondo ecoa medonho,
201 O Outro, neste caso, é o Estranho, lugar ou a imagem sobre a qual o eu do sujeito se constitui, numa distinção possível pela identificação que circula entre o dono do discurso e o objeto deste discurso. FREUD, O estranho [1919], 1972. v. XVII. p.273-313. LACAN, La chose freudienne, 1999, vol. 1, p. 398-433. 202 ANCHIETA, José de. Carta ao “Geral Diogo Lainez, de São Vicente, a 16 de abril de 1563”.: In: RIBEIRO & MOREIRA NETO, 1992. p. 174.
enfurece horrendo na praia o soldado matando e enterrando vitoriosos na areia corpos aos montes e almas no inferno, desses que cevavam as carnes em carnes humanas e impingavam os ventres [com o sangue dos homens. Já não se alonga o combate, já não pensa o inimigo Em entesar o arco e defender a vida com brio. [...] Fossem mais crentes os colegas, mais viris os seus braços, Fervessem-lhes no peito um sangue mais quente, Acompanhassem sempre, lado a lado, o seu chefe, E esse dia marcaria a ruína desses feros selvagens, Atirando-os para as sombras eternas do inferno [...] 203
Os mesmos sentimentos, ou melhor, a mesma falta de sentimentos ficam
evidentes na palavra laica. Mem de Sá, autoridade civil, escreve: “[...] e ante
manhã, duas horas, dei na aldeia e a destruí e matei todos os que quiseram
resistir, e a vinda vim queimando e destruindo todas as aldeias que ficaram para
trás [...]”. Luta cujo sucesso é medido em indígenas abatidos, estimados em
uma fila de meia légua, acima de dois quilômetros, a fila de corpos de índios
mortos, na beira da praia.204 Setenta anos depois, já no século seguinte, é a
própria Rainha de Portugal que recomenda “fazer-lhes guerra, com que se
extingam de uma vez”.205
Num contexto em que os discursos do branco identificam o selvagem com
a Natureza, a facilidade de seus movimentos na floresta inóspita, para os
humanos europeus, sugeriu que fossem feras. Para recuperarem a condição de
humanidade, foi necessário um decreto papal, de 1534. Apesar disto, nos séculos
seguintes, a situação não mudou na prática. No movimento no qual a empresa
bandeirante surge e consolida o seu papel na expansão das fronteiras interiores,
203 ANCHIETA, José de. De Gestis Mendi de Saa. Tradução de padre Armando Cardoso. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1958, p. 81-83. In: RIBEIRO & MOREIRA NETO, 1992. p. 178. 204 SÁ, Mem de. “Instrumentos dos serviços de Mem de Sá”, 1570. Annaes da Biblioteca Nacional, vol. XXVII (1905). Rio de Janeiro, 1906. p. 131-135. In: RIBEIRO & MOREIRA NETO, 1992. p. 179. 205 DOCUMENTOS históricos da Biblioteca Nacional. “Carta Régia da Rainha de Portugal D. Luiza de Gusmão”. Vol. 66. Rio de Janeiro: Typ. Batista de Souza, 1944. p. 176-177. In: RIBEIRO & MOREIRA NETO, 1992. p. 194.
no século XVII, o índio a ser escravizado é uma das mercadorias objeto dos
negócios, junto como a conquista de espaço para o gado e a cana. A
concretização de um paraíso mineral nas Gerais, com as descobertas de ouro,
prata e diamantes, é o paradigma desse caldeirão de cobiça, desejo, lendas,
medos, coragem e realizações, que foi a interiorização do projeto colonizador.
Tempo de guerra renovada contra os autóctones: “Não tenho que dizer de novo
senão que continua a mesma cobiça e perseguição e, a qual cresceu muito agora
[...]”, testemunha o padre Antônio Vieira, em torno de 1654.206
Na perspectiva do texto do europeu, aquele ser meio-homem meio-fera é,
antes de tudo, um guerreiro bárbaro, disposto a defender seu território
violentamente. A tragédia da redução do índio pelos invasores e os feitos de
Cunhanbebe, constituído significante da luta dos selvagens, são relatados por
Antônio Torres, num texto assumidamente de ficção, porém estruturado nos
cronistas da época e no trabalho de pesquisadores renomados, como Tasso
Fragoso e Viriato Corrêa. 207
Nas raras oportunidades em que a voz do índio obtém registro, a
identidade que transparece nos relatos é a de alguém que pretende ser sujeito de
seu destino. As correspondências assinadas por Pedro Poti, aliado dos
holandeses, e Felipe Camarão, do partido dos portugueses, nas guerras coloniais
em Pernambuco, deixam claro que ambos são guerreiros, prontos para defender
as suas crenças, e dotados de capacidade de argumentação.
Tendes tido algum contentamento na sociedade desta gente perversa? O que tendes no fim das contas é uma grande carga entre as mãos, e
206 VIEIRA, Antônio. Carta do Pe. Antônio Vieira ao Pe. Provincial do Brasil sobre a bandeira de Raposo Tavares (circa 1654). In: RIBEIRO & MOREIRA NETO, 1992. p. 300. Vieira teve um antagônico em Antonil. As divergências ideológicas constituídas nos textos de um e outro, que expõem as contradições do projeto colonial, são analisadas por BOSI, 1992, p. 119-175. 207 TORRES, 2000.
se continuardes com a sua amizade ficareis perdido no corpo e na alma (...)208 “Não Phillippe, vós vos deixais iludir; é evidente que o plano destes celerados Portugueses não é outro senão o de se apossarem deste país, e então assassinarem ou escravizarem tanto a vós quanto a nós todos”. 209
Ainda no século XVIII, Basílio da Gama e Santa Rita Durão trasbordaram
os acontecimentos para o campo literário. O índio de Uraguai (1769) é heróico e
lírico, um guerreiro bravo e destemido, tão cruel quanto os ibéricos que
combatia.210 O selvagem de Caramuru (1781) é um antropófago, subordinado às
artes de um pajé-demônio, sendo necessária uma ilusão pirotécnica e a força
imanente ao discurso cristão para que seus hábitos se alterem.211
Este modo de ver e compreender o habitante do Novo Mundo se mantém
ainda no século XIX, inclusive no texto de Ferdinand Denis, referência central
para o estabelecimento do discurso romântico, no qual a imagem idealizada do
índio se constitui e fortalece. Falando sobre o caraïbe, o francês lembra da
terrível imagem do guerreiro tupinambá pintado e paramentado para a guerra e
para as festas.212 Canibalismo, a deglutição do corpo do inimigo, é o ritual mais
apavorante que a mentalidade indígena ofereceu ao invasor, sobre aquele ato as
potências demoníacas se projetam.
Entretanto, aquele não seria o único costume dos povos americanos que
perturbaria a alma e os sentidos do branco europeu: a nudez tem efeito igual ou
maior que o canibalismo, rivaliza com ele em estranheza. Se pensarmos nos
Ensaios, de Montaigne, será ela, enquanto atitude anterior ao pecado original, o
único ato capaz de condicionar, relativizando, a barbárie do ritual antropófago.
208 CARTA do capitão Antonio Felipe Camarão a Antônio Paraúpaba (4 de outubro de 1645): In: RIBEIRO & MOREIRA NETO, 1992. p. 229. 209 CARTA de Pedro Poti (31 de outubro de 1645). In: RIBEIRO & MOREIRA NETO, 1992. p. 229 et seq. 210 TEIXEIRA, 1996, p. 19. 211 DURÃO, 2004. 212 DENIS, 1836, I-XV. In: DEFOE, 1836.
Todavia, num mundo em que nudez significava ignonímia e banho indicava
concupiscência, a exposição livre e sem qualquer resquício de pudor de corpos
nus é um impacto profundo para as mentes e corações cristãos. Nos autos-de-fé
inquisitoriais, o desfile dos acusados com os pés e torsos nus era uma forma
adicional de os humilhar e fazer pagar pelos pecados, assim como não tomar
banho sequer uma vez na vida, foi evidencia de pureza de Agnés, mãe de
Henrique IV, de França, que, por isso, foi santificada. Na doutrina de São
Jerônimo, qualquer pessoa contrariava as leis de Deus, ao tomar banho.213 O
corpo exposto do índio coloca em xeque os parâmetros morais daquela tradição,
mesmo que não tenha força para alterá-los ou termine por reforçá-los. O
calvinista Léry, descompromissado com as doutrinas romanas, escreve:
[...] o que mais nos maravilhava nessas brasileiras era o fato de que, não obstante não pintarem o corpo, braços, coxas e pernas como os homens, nem cobrirem de penas, nunca pudemos conseguir que se vestissem [...] alegavam, para justificar a sua nudez, que não podiam dispensar os banhos e lhes era difícil se despir tão freqüentemente, pois em cada fonte ou rio que encontravam, metiam-se na água, molhando a cabeça e mergulhando o corpo todo como caniços, não raramente mais de doze vezes por dia. 214
Na seqüência do texto, o religioso cuida de explicar que, apesar do
olhar maravilhado, a rudeza das mulheres e a selvageria dos ornamentos
evitaram a concupiscência dos brancos.
A preocupação em distinguir o autóctone do europeu, nos hábitos ou na
cor, também seria demonstrada por Pero Vaz de Caminha. Estabelecimento
de diferenças, no sentido comparativo, entre o europeu e índio, de um modo
mais sofisticado no francês, mais óbvio no português, ao fim sempre favorável
aos conquistadores. Desde os primeiros parágrafos, a carta do português
registra a condição natural dos habitantes da terra “pardos, todos nus, sem
213 BARROS, 1995. p. 193-195. 214 LÉRY, op. cit.
coisa alguma que lhes cobrisse as suas vergonhas”, uma nudez tão inocente
quanto “mostrar o rosto”. Ao longo do texto, o olhar do leitor é dirigido para a
nudez de todo o povo — a reunião de “duzentos homens, todos nus” e
armados impressiona o escriba — e para a das mulheres — “vergonhas tão
altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, as muito bem
olharmos (sic), não tínhamos nenhuma vergonha”. A exibição dos corpos da
índias nas gravuras do livro de Léry, mesmo nas cenas bárbaras, e nas
pinturas românticas de Meirelles e Américo estão bem de acordo com o
espanto e o interesse que as palavras de Caminha denotam. A observação
atenta e detalhada avança sobre os corpos tingidos de preto das “mulheres
moças”, pintura que não impedia de se verem as “suas vergonhas tão nuas e
com tanta inocência descobertas, que não havia nisso vergonha alguma”. No
discurso do português, a vergonha circula denegada entre os corpos,
projetada ora nas índias, ora no próprio europeu. Olhares indiscretos,
prenúncio de desejos, controlados pelos cuidados de oferecer “camisas” e
cobrir os corpos dos índios adormecidos. Quando os índios assistem à missa,
o escrivão registra o fato como uma alvissareira pré-disposição daqueles seres
para os ritos da doutrina romana, condição importante para o controle
daqueles corpos, qualidade fundamental num tempo que anunciava grandes
disputas no campo da fé.215
A forte sublimação presente nos discursos dos grupos hegemônicos, traz
consigo a imagem da sexualidade do índio, associada diretamente à evidência de
sua nudez, como se o processo de contensão das mentes e dos desejos e a
constante exposição de imagens corpóreas que se mantêm receptivas a desejos,
215 CAMINHA, (1500) 1985, p. 75-98.
apesar de tantos cuidados, estivessem integrados num único movimento.
Exposição, aliás, incessante, como memória, mesmo quando a nudez daqueles
seres é coberta por vestimentas e outros aparatos repressivos.
As nuances na adjetivação recebida pelo índio pelo discurso civilizatório
é indicativa de algo mais que simples surpresa. Ele passa rapidamente a ser
mostrado como um pecador incestuoso. Muitas vezes, a contradição acontece
no mesmo discurso. Vespúcio observa o “costume extravagante, e que parece
incrível: que as mulheres, sendo libidinosas, fazem inchar o membro de seus
maridos tanto, que parecem brutos [...]”.216 A descrição detalhada do viajante e
desbravador Gabriel Soares de Sousa mostra que os olhares colonizadores
estão dirigidos para o mesmo ponto: “É este gentio tão luxurioso que poucas
vezes tem respeito às irmãs e tias, e porque é este pecado é contra seus
costumes, dormem com elas pelos matos, e alguns com suas próprias filhas
[...]”. Mais adiante, ele continua, confirmando Vespúcio: “mas há muitos que lhe
costumam por o pelo de um bicho tão peçonhento que lho faz logo inchar [...]
com o que lhe faz o seu cano tão disforme de grosso que os não podem a
mulher esperar, sem sofrer [...]”.217
O índio como degenerado moral é uma idéia que se firmou como habitus,
mesmo no discurso erudito atual. Um tratado médico relativamente recente, posto
que editado pela primeira vez em 1977, atualiza conceitos do passado, de
maneira peremptória:
Feroz, desconfiado e dissimulado, avesso ao trabalho sedentário, o habitante das selvas impressionou pelo aspecto físico, visível na mais cândida nudez. Pele acobreada, estatura mediana, rijo esqueleto e boa musculatura. Cabeça grande, cabelos escuros, grossos, duros e escorridos, rosto largo sem barba ou bigode, maçãs salientes, afastadas, olhos asiáticos, pequeno nariz achatado, lábios finos e dentes fortes, amarelados. Membros bem proporcionados, órgãos
216 VESPÚCIO, (1503/15004) 2003, p. 45-47. Grifos nossos. 217 SOUSA, 1587. In: RIBEIRO; MOREIRA NETO, 1992, p. 223.
sexuais pequenos e não afanados. Somente uma ou outra tribo praticava a circuncisão.218
Machos de pênis pequeno e pouco ardor sexual, características opostas
àquelas observadas por Vespucio, note-se, são qualidades utilizadas anos antes
pela sociologia de Gilberto Freire, para explicar o ardor das mulheres e o
evidente interesse delas em se entregar aos brancos. Explicação que desvaloriza
as análises mais problematizadas da questão da dominação, que vêem naquela
ocorrência um processo de incorporação do vencido à cultura do vencedor,
conforme a lição de Capistrano de Abreu.219
Apesar desta relação tão problemática da mentalidade européia com o
autóctone, seria a imagem do índio, aquela que seria escolhida como modelo
para a nação que se constituía.
4. 3. 2 Um corpo nacional: o índio idealizado do contexto romântico
O indianismo romântico surgiria no contexto da Independência, ligando-
se ao projeto de constituição do país como nação, uma articulação de ações
políticas e simbólicas que pressuporiam, entre outras tantas, um rompimento
com imagens poéticas européias tradicionais. O Discurso sobre a História da
Literatura do Brasil, reconhecido como o manifesto do romantismo, conclama
seus leitores à busca de uma poesia de características próprias, condizentes
com a natureza e a história do povo brasileiro. Denuncia a falácia da literatura
dos tempos coloniais que, mesmo “naturalizada na América”, a musa de feição
homérica, européia que fora, não houvera esquecido dos “bosques do
218 SANTOS FILHO, (1977) 1991, p. 93. 219 Cf. BARROS, 1995.
Parnaso”.220 Porém, o caráter fortemente nacionalista do Discurso não esconde
as suas fontes: os textos de Ferdinand Denis e Madame de Stäel. Desta última
recolhe importantes argumentos libertários: influência do clima sobre os povos e
as conseqüências disso sobre a produção intelectual, o reconhecimento do valor
da produção local e da mitologia dos povos bárbaros como importantes.
Estas propostas são influenciadas assumidamente por pensamentos
naturalistas da época, que pretenderam explicar o atraso e o progresso, a riqueza
e a pobreza dos povos segundo o clima e o lugar em que viviam. Pensamentos
como o de Buffon que, revistos hoje, mostram toda a sua inflexão reacionária e
desfavorável aos povos que vivem nos espaços entre a linhas do Equador e dos
trópicos. Seria o caso de refletir sobre até que ponto tais fundamentos do
romantismo brasileiro ofereceram fundamentos filosóficos e condições teóricas
para que uma literatura escrita por e projetada sobre por um povo formado por
índios, negros e europeus, nascidos nas antigas colônias, produzisse uma
literatura de padrão nivelado às européias, ou melhor, que fosse reconhecida
como tal. Reconhecimento a ser assumido tanto por aqueles que a escreveram,
jamais isentos da influência das metrópoles européias, quanto por aqueles outros
que formularam os fundamentos, vozes que integram, em posição radical, os
rituais de consagração?221
De qualquer modo, são os espaços abertos por idéias como estas que
discurso romântico brasileiro ocupam, é sobre aquele texto estrangeiro que a
nacionalidade pretende se constituir. As afirmações feitas por Denis são
repetidas quase diretamente por Magalhães — quando afirma ser a poesia
220 MAGALHÃES, [1836] 1994. 221 MELLO, 1997, supõe um processo no qual os literatos vão circulando entre as mais diferentes teorias e idéias e, pouco a pouco, organizando-as segundo uma ótica e interesses muito próprios, não necessariamente coerentes com o autor original, até que a síntese de Machado de Assis ocupe o espaço.
brasileira uma “grega vestida à francesa e à portuguesa”, que “se apraz ainda
com as reminiscências da pátria”, e “toma por um rouxinol o sabiá que gorjeia
entre os galhos da laranjeira” o brasileiro está ecoando as palavras francesas: 222
“[...] deve rejeitar as idéias mitológicas devidas às fábulas da Grécia [...] deve ter
pensamentos novos e enérgicos como ela mesma”.223
A escolha da imagem do índio para compor a nova cena não é, todavia,
uma decisão peremptória. O acontecimento foi um processo de longo prazo,
correspondente a múltiplas exigências anteriores ao romantismo e, certamente,
outras posteriores a ele, como a breve observação feita acima sobre a doxa
erudita contemporânea pretendeu não deixar esquecer.
No campo pictórico, por exemplo, a América aparece como índia numa
alegoria de uma terra opulenta e provedora, já numa gravura de 1671.224 Uma
imagem que serviria não apenas e exclusivamente ao imaginário mercantil e
exótico, segundo Afonso Arinos de Mello Franco. Em sua elaboração poderosa, o
pesquisador revela que os selvagens do Novo Mundo foram também um Outro
idealizado e utópico para os habitantes do Velho Continente.225 Aqueles povos
sem lei e sem rei, circulando entre a barbárie do canibalismo e a pureza da nudez
sem pejo, teriam inspirado a própria idéia de liberdade, no sentido que o século
XVIII concebe. Na trilha imaginária que percorreria entre os Ensaios, de
Montaigne, e o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade dos
homens, de Rousseau, o selvagem e sua vida influenciaram obras como O elogio
da loucura, de Erasmo, A utopia, de Morus, A tempestade, de Shakespeare e a
fantasia geográfica rabelaisiana. E influenciaram filósofos e literatos como
222 MAGALHÃES, [1836] 1994, p. 256-7. 223 DENIS, (1826), 1978, p. 35-82. 224 Figura 8. América. Anônimo. 225 MELLO FRANCO, 2000.
Baudier, Malherbe, Boileau, Grotius, Pudfendorf, Locke, Lafitau, Raynal,
Montesquieu, Voltaire e Diderot. Se fosse possível formular teoricamente uma
contradição exemplar, ela estaria no fato que o índio perseguido, escravizado e
morto pelos conquistadores de todos os credos e nações européias, influenciaria
a Revolução Francesa e, através dela, retornaria às Américas para integrar os
movimentos de autonomia política de seus povos.
No contexto da Independência nacional, a busca de uma imagem que
significasse este projeto foi uma articulação sofisticada, no sentido extremo do
termo, conforme Candido. Descartou o branco, visto como o opressor, e o negro,
sujeito à escravidão, ambos não funcionariam como modelo de um povo que
acabara de se libertar. Prevaleceu a imagem do indígena, sobre a qual se
projetou uma aura de pureza, coragem e capacidade de luta, qualidades ideais
do ser brasileiro. O novo corpo identitário nacional mostrou-se eficiente, inclusive,
no confronto simbólico, a ser travado com o principal adversário da
independência, o português, que, coincidentemente, foram os algozes dos índios
nos tempos da conquista. Naquele compasso, a aura dos vencidos se combinaria
com os imperativos do projeto maior, determinando um afrouxamento das
contradições do processo. Uma tremenda ironia, pois os restos sombrios das
violências que sofreu não se apagariam do imaginário da sociedade para a qual a
imagem deveria funcionar como verdade, como habitus.226
A atitude positiva em relação ao índio seria notada na Academia dos
Renascidos, no século XVIII, quando por ocasião da catalogação de biografias
dos ilustres da terra, chefes indígenas aparecem ao lado de magistrados,
226 A questão dos restos de memória, mormente a presença dos traumas relativos aos restos sombrios de violência sofrida pelo objeto, os índios, no modelo idealizado de sociedade nacional é algo da ordem do mal estar da cultura. Sem esquecer que, ao sujeito praticante da violência, o colonizador e seus descendentes, seus próprios restos de memória invocarão assassinatos do Outro e respectivos gozos ou culpas.
governadores, senhores de terras e guerreiros. A figura das “princesas de sangue
brasílico” resolveria problemas delicados de mestiçagem e de purificação das
estirpes familiares que, sem esta adaptação psicológica e social jamais poderiam
almejar uma “pureza de sangue dos quatros costados”, essencial para o exercício
da cidadania plena, posto que tais predicados seriam condições sine qua non
para a ocupação de cargos e funções na administração pública, funcionando
também como itens primordiais nos processos da Inquisição.227 Some-se às
enumeradas vantagens, mais uma, da ordem do mal estar civilizatório: aplacar
algum eventual resquício de memória de estrupos e violências contra as
mulheres índias.
No ápice do projeto imperial, constitucional e civilizado, a imagem do índio
se consagraria como seu modelo, modelo que as artes desenvolvem muito bem.
Um exemplo pictórico disso é uma litografia representando a imagem da índia
liberta das garras do despotismo colonial por D. Pedro, seu defensor perpétuo,
seu imperador constitucional.228 Um príncipe da Casa de Orleans e Bragança, um
português de antigas estirpes nobiliárias européias, uma imagem do autóctone
distanciada daquelas da nudez, do canibalismo e da belicosidade bárbaras.
A complexidade do processo de formação do imaginário nacional se
articula com a complexidade dos acontecimentos em torno do romantismo
literário. Se o indianismo, especificamente, não foi uma construção
exclusivamente romântica, além de não ter sido produto de uma partogênese,
determinada pela simples presença de seres humanos nos vastos territórios
das Índias Ocidentais, o romantismo brasileiro não surgiu de um simplório
hábito de imitação de um modismo europeu. Romantismo e indianismo
227 CANDIDO, 1989, p. 174-175. 228 Figura 8. Salve! Querido Brasileiro. De Lasteyrie”. s.d.
F i g u r a 1 0
Nota 267: [O cauim]. In: THEVET, Andre. La Cosmographie Universelle d’André Thevet. Ilustrée de diverses figures. Paris: Chez Pierre l’Huillier, 1575. p. 917.
por assegurar aos chefes e guerreiros os grandes feitos, na medida em que são
os intérpretes dos sinais da Natureza e dos sonhos, fundamentais na guerra e
nas decisões tribais, segundo Florestan Fernandes.270 Para os conquistadores e
os jesuítas, ele não é um simples pagão, a ser convertido, trata-se de um herege,
contra quem se dirige o combate pela alma do selvagem.271 No teatro jesuítico,
ele é o índio mau, a fera mais degradada, o próprio Lúcifer.
Ao estudar as relações de ódio e amor aos estrangeiros, Sigmund Freud
chega à conclusão de que a principal fonte de terror de coisas aparentemente
desconhecidas seria o que elas possuem de mais absolutamente familiar, aquilo
que se identifica como igual e não o distante e o diferente, como se pensa
correntemente.272 Ter-se-ia medo de si mesmo, ou daquilo que estando em si,
mantém-se escondido, não sendo facilmente visto. O exemplo que o psicanalista
utiliza para desenvolver a questão é um fato acontecido com ele próprio. Viajando
em um trem, uma curva e um balanço mais acentuados fazem com que Freud
veja sua cabine invadida por um velho de roupão e chapéu de viagem. Levanta-
se de imediato para impedir a desagradável invasão de privacidade.
Imediatamente, ele toma consciência de que estava diante de si mesmo, iludido
por um reflexo no espelho. Surpreende-se! — não com a ilusão óptica, mas com
o sentimento de estranhamento com a presença de sua própria imagem, que
deveria ser sua conhecida íntima. A aparição da figura do duplo coloca o sujeito
diante de si e dos seus limites. Naquele caso específico, a aparição de um
homem idoso, no lugar que a memória afetiva idealizava estar um jovem,
270 FERNANDES, Florestan, 1963. 271 BAETA-NEVES, op. cit. 272 FREUD, 1972. O estranho [1919], p.273-313. O termo comporta o sentido de o não familiar, o não doméstico, tal como Das Unheimliche, título original. Na tradução francesa resultou em L’inquiétante étrangeté. O próprio Freud buscou em outras línguas a raiz etimológica para o conceito desenvolvido no texto.
despertou angústia no sujeito, na medida em que a realidade colocou em risco o
imaginário da relação entre sujeito e objeto, equilíbrio fundamental para a sua
existência como sujeito, ordenador de sua vida e de suas relações.
Os dois elementos convocados pelos versos bernardinos causam efeitos
desta ordem. Pelo que são, índio e bebida de índio pertenceriam quase
obviamente ao indianismo — o modelo idealizado da identidade nacional. O
cauim não está ausente da obra de Gonçalves Dias, que dá voz e espaço aos
costumes mais bárbaros dos selvagens, chegamos a ressaltar acima. Nesta
semelhança dissonante, os versos de Bernardo funcionam como estranhos ao
romantismo, perturbando o sentido do indianismo canônico e, portanto, teriam de
sofrer censura. E o são.
Por outro lado, os personagens do Elixir do pajé possuem outras
qualidades pouco convencionais e as apresentam de maneira pouquíssimo
usuais. Choram a impotência — o maior dos medos masculinos — e sonham
com orgias desregradas e indecentes: copular mil mulheres, morrer copulando,
ser eleito o rei dos “caralhos” — algumas das maiores pretensões dos machos.
Usam de uma linguagem baixa, escatológica e pornográfica — que nada teria de
lírica.
Curiosamente, ao fazê-lo se aproximam de algumas das maiores obras
poéticas de que se tem notícia — os clássicos greco-latinos e o grande Bocage,
nome principal da Arcádia portuguesa, o único em Portugal, capaz de fazer
frente a Camões. Camões que também seria invocado pelo cantor do elixir
bandalho, “Que tudo vencer pode: engenho e arte”, na distorção de servir a
seus interesses fornicantes. Acrescente-se a isso que a convocação de uma
intertextualidade entre o texto bernardino e a poesia portuguesa de Souto-Maior
e dos cantores do maldizer medieval sugere a existência de uma tradição lírica
marcada por erotismo, sátira e pornografia, na qual o poema brasileiro tomaria
parte. Entretanto, a lista do inferno da Biblioteca Nacional da França, preparada
por Apollinaire, as referências à literatura clássica, mostradas aqui, lembra que
a literatura fescenina transcende às fronteiras de Portugal, tratando-se de uma
tradição européia ativa e tão antiga quanto o cânone sublime. Um problema que
será elaborado após os comentários que se fizerem ao terceiro poema do
corpus dessa tese.
Por ora, o poema do elixir se apresenta como um jogo bernardino, no qual
uma grande farsa convocaria a alta cultura, marcada nos clássicos e nos grandes
poetas, para se apresentar no texto popular, transformando e sendo
transformada num poema de dimensões plurais e rara densidade. A utilização de
um palavreado escatológico e de situações poucos usuais e, em decorrência
destas presenças, a convocação ao riso e ao nojo, mantém tais características
discretas ao observador desprevenido. Uma articulação curiosamente próxima à
que Bakhtin viu em Rabelais.273
Tal movimento de aproximação entre o alto e o baixo, aparentemente
causaria um mal estar no status quo do campo literário, o que faz dele objeto de
violento combate e segregação pelos interesses canônicos. Teria um destino
desta ordem, ou desta desordem, o poema obsceno de Bernardo de Guimarães:
convocar o indianismo para um encontro com os seus personagens. Convocação
comandada por um narrador sutilmente oculto e por um índio desabusadamente
exposto, ambos, em princípio, partícipes de um diálogo no qual o índio, o grande
derrotado pelo europeu civilizador, é transformado em alegoria do que o projeto
273 BAKHTIN, (1965) 2002.
do vencedor tem de mais elevado e idealizado. O movimento bernardino é
realizado na direção oposta às sublimações românticas, o personagem expõe
aquilo que tem de mais próximo de sua natureza humana: a sexualidade sempre
tão exposta e tão denegada nesta terra brasilis, desde quando Pero Vaz de
Caminha escreve sua missiva fundadora. Neste sentido, o índio bandalho seria
como um novo ator que alteraria a idealizada cena indianista: um estranho no
paraíso da literatura, conforme organizado pela perspectiva canônica.
4. 4 A ORIGEM DO MÊNSTRUO
4. 4. 1 Corpos em sacrifício: o feminino ideal
As representações mais primitivas para o feminino são pequenas
esculturas do paleolítico. Cabeças com a cabeleira cuidadosamente
trabalhada, sem os detalhes do que seria o rosto, e um especial destaque para
vaginas, peitos e bundas avantajados. Uma enciclopédia de história da arte
chama a atenção para o fato de as deformações e exageros da imagem serem
intencionais, com objetivos mágicos que invocariam diferentes aspectos da
fecundidade, entre os quais a iniciação feminina, o parto e a caça — o vital e o
mágico. 274 Nos dias de hoje as estatuetas são conhecidas como Vênus: de
Willendorf, de Lespugue, entre outras.275 Note-se que a hipótese é um
deslocamento específico para o feminino de características que Hauser
propõe para imagens pré-históricas de modo geral, em especial as pinturas de
Lascaux.276
274 ENCICLOPÉDIA, 1995. 275 Figura 11. Virgem de Willendorf, circa 20.000 aC. 276 Ver HAUSER, 1995, p. 4 e seg.
F i g u r a 1 2
Nota 338: [Vênus e Júpiter]. Raphael (1483-1520). Sem especificação. In: Ovídio Metamorphoses, XIV, 585-591. www.latein-
pagina.de/ovid/ovid_m14.htm. Acesso 6 jan 2006.
cumprirá o seu destino fundador de Roma, dos mil anos No texto camoniano, o
herói, Gama, fará suas conquistas, para honra e glória da cristandade e dos
portugueses. Em “a origem do mênstruo”, Galatéia e todas as mulheres
cumprirão o destino de menstruarem. Todas vicissitudes já inscritas no livro do
destino, precipitado por Vênus, por motivos torpes, apresentados por um ângulo
seu mais afastado das idealizações que sempre circundaram as referências
mitológicas, até o romantismo pelo menos, até Freud certamente.
A heresia cometida por “A origem do mênstruo” tem se mostrado
inaceitável para o status quo do cânone, que a rejeita fortemente, influenciando,
inclusive os ousados editores dos versos obscenos de Bernardo. Neste sentido
chama a atenção que as advertências de Machado e de Bandeira, quanto às
qualidades elevadas da lira bernardina, não tenham produzido efeito de alterar a
recepção do poeta pelos demais operadores do cânone. Mesmo agora, que
existe um maior interesse pelo texto de Bernardo, o interesse é relativo e restrito,
não se estendendo ao conjunto da obra. Uma postura que se vê em Haroldo de
Campos, um dos patronos dos estudos atuais. Mesmo Antonio Candido, que
privilegia a obra bernardina extensivamente, quando realiza estudos específicos,
que aprofundam análise da poesia obscena e pantagruélica, recusa-se a
trabalhar com o poema do mênstruo.
A qualidade da crítica de Bernardo aos modelos hegemônicos no
romantismo brasileiro seria sua desgraça, motivo que, segundo Süssekind, o
colocaria à margem.340 Ao nosso ver, esta exclusão também tem entre seus
fundamentos a aproximação que faz dos clássicos, de características heréticas e
340 SÜSSEKIND, op. cit.
de modo rebaixado, embora inegavelmente precisa nas escolhas, aspecto que
faz de sua obra pornográfica uma arte de grandes qualidades. Neste aspecto a
censura que sofre não é diferente daquela sofrida por outros autores de posição
destacada e segura nas esferas canônicas. Censura que aparece de mais de
uma forma. Um caso é a da famosa Priapeia, apresentada como da pena de
Virgílio, numa edição de suas obras completas de 1469, seria censurada em
outras edições posteriores ou seria atribuída a outros poetas mais
reconhecidamente lascivos.341 Ação exemplar é aquela censura sofrida por
Horácio, quando seus versos expõem libidinagem e sexualidade numa linguagem
mais direta, comentada em capítulo anterior.342 Como seria possível censurar um
dos nomes que não cessam de significar o próprio cânone? Certamente que não
será uma atitude fortuita e, muito menos, inocente, tomada por um editor
isoladamente. Ao contrário, trata-se de uma postura que se mantém por um
período longo, em mais de uma das grandes traduções da obra do autor,
conforme demonstra Bélkior. Todo o processo parece ligado à manutenção do
equilíbrio das forças do campo literário, pois não parece aceitável para o conceito
adotado pelo grupo hegemônico, que sentimentos e ideais degradantes ou
animalescas possam estar no texto de um autor canônico, daí não se poupar o
grande Horácio ou um Bernardo qualquer.
O poema sobre o mênstruo, assunto tabu, lembram os psicanalistas e os
antropólogos, realiza um complexo exercício poético, trata do feminino, assunto
privilegiado para o romantismo, e faz uma apropriação dos clássicos da estirpe
de Ovídio, Camões e Gonçalves Dias, sem que fique a dever aos parodiados, a
não ser uma atitude menos herética — não fosse a paródia um recurso dos mais
341 Ver O estranho do paraíso. 342 BÉLKIOR, op. cit.
sofisticados. Faz isso de uma forma absolutamente visceral, mostrando uma
mulher bem distante da virgem dos lábios de mel, da índia pura e bela, dominada
pelo abraço do jovem e mulherengo imperador brasileiro, pagando por tanta
audácia o preço de ser excluído da própria exclusão. Visceral, para não haver
dúvidas, no sentido que toca na imagem feminina no que ela tem de mais íntimo
e de interesse vital para a manutenção da espécie, seu sexo e sua capacidade
de reprodução, que a menstruação indica.
5 CONCLUSÃO
Entre todos os comentários e análises que se fizeram sobre os poemas
obscenos de Bernardo Guimarães, destaca-se aquele acusatório de o poeta
trair os elevados deveres de construir uma literatura de alto nível, feito por
Arthur Azevedo, em 1885. Uma acusação que explicita a vigência de uma
ideologia vinculando literatura e atividade do escritor com pátria e
nacionalidade, que se contrapõe a toda produção que não funcione convergindo
para ela. Evidentemente que aí estão inclusas noções específicas do campo
político, como pátria, nação etc., noções que interessam ao campo literário.
A afirmação, proferida por uma voz canônica, firma de modo indelével
uma vinculação entre o poeta e as suas produções obscenas, apenas dois
poemas desta qualidade são conhecidos, como sabemos. Ao deixar de lado sua
vasta produção bestialógica, na qual não falta escatologia e obscenidades, que
fez dele um poeta famoso entre os estudantes paulistas de Direito, Azevedo
evidencia que o bestialógico nunca representou um problema para o cânone e
para o idealismo projetado sobre a literatura, desde ali.
“Elixir do pajé” e “A origem do mênstruo” fazem parte do imaginário da
literatura brasileira, como paradigmas do poema obsceno e pornográfico, como
se observa com a sua presença numa antologia pornográfica, editada em 2004.
No lugar de estranhamento que é o das obras deste teor, as contradições não
param de se revelar. As duas edições de luxo aparecidas entre as décadas de
50 e 80, do século passado, são indicativas de uma presença importante no
meio editorial brasileiro, especialmente cauteloso nos seus investimentos.
Antologistas, historiadores e críticos mesmo quando não tratam dos poemas,
excluindo-os de seus trabalhos, não deixam de sinalizar a sua existência, que
não seja registrando que não opinam sobre versos daquele baixo estrato. O
exemplo definitivo disso não é a ausência dos poemas da edição das poesias
completas do autor, produzido pelo Ministério da Educação, mas a preocupação
do organizador em avisar que elas foram expurgadas.
Quando iniciamos nossa pesquisa indagamos sobre o que haveria de
literário naqueles versos? Acrescentemos uma pergunta, o que atrai e repulsa
naqueles versos, capazes de desencadear tantos sentimentos contraditórios?
Estas perguntas se fundem como o objeto principal desta conclusão!
Todos os assuntos e sentimentos humanos são temas da atividade
poética de tradição sublime, mesmo episódios de erotismo intenso e
sexualidade explícita. Naqueles casos, o ajuste que se faz está na elevação de
qualquer personagem ou acontecimento para níveis elevados, míticos ou
divinos. O herói é sempre o melhor dos heróis, o canalha é sempre o pior dos
canalhas. O sofrimento ou a bem-aventurança é sempre o mais absoluto.
Entretanto, há poemas que não se configuram dentro daquelas normas,
muito pelo contrário: mesmo quando as cenas se mostram similares àquelas
primeiras, os sentimentos e as ações dos personagens parecem pouco
civilizados ou até animalescos. E textos assim não são assimilados pela cena
canônica, permanecendo à margem, mesmo quando suas qualidades poéticas
são reconhecidas.
A situação é curiosa, pois escritores e estudiosos vêm insistindo para a
dificuldade de estabelecer de modo concreto, preciso e incontestável, quais
sejam as características que fazem das obras objetos estranhos aos espaços
canônicos, devendo ser objeto de censura, em alguma de suas muitas formas.
Eliane Robert Moraes, em defesa desta impossibilidade, anota a observação de
Henry Miller quanto à inexistência de um dado intrínseco à obra que permita
afirmar a sua pornografia ou obscenidade concreta.343 A palavra de Miller é
radical, afirmando que o que se lê na obra está no leitor. A partir do que
constata o escritor, a pesquisadora sugere que a obscenidade seria um efeito,
ou seja, um excesso, um fetiche. Sem negar a constatação, no texto obsceno a
linguagem adquire concretude exatamente na palavra obscena, no palavrão, no
termo que refere o corpo e as funções fisiológicas. Concretude inaceitável na
perspectiva que concebe uma relação intransitiva ente o texto e o seu leitor, na
qual os sentidos são passageiros e originais, com duração estrita e efêmera,
mas que nas injunções do cânone, adquirem durabilidade e transitividade,
portanto concretude.
A presença de lexemas desta ordem ou providos destas qualidades por
vozes autorizadas no “Elixir do pajé” e em “A origem do mênstruo” é decisiva
para o modo como os poemas são qualificados. A importância excessiva dada
ao termo de baixo calão no poema do elixir faria dele um texto banal,
condicionado aos poemas elevados, do indianismo de Gonçalves Dias, que ele
decalcaria de forma debochada, ou paródica. Limitado assim, o poema seria
apenas um subproduto, mais ou menos engraçado, do romantismo brasileiro.344
Nos versos sobre o mênstruo, a linguagem tornaria a obra impronunciável até
no nome, objeto de tabu tão radical que é tornado invisível entre os invisíveis —
não aparece no título das edições em que é reproduzido, como vimos
anteriormente.345 Abjeção constituída sobre conteúdos latentes de sadismo e
perversidade, coerentes com sua obra narrativa — na qual não faltam tortura e 343 MORAES, 2003, p. 121-130. 344 Cf. O Estranho no paraíso. 345 Cf. A origem do mênstruo.
violência explícitas referidas a escravas brancas, seminaristas emasculados,
crimes de honra — ou simples continuidade aos poemas do bestialógico,
elaborados na forma do riso e do humor romântico estudantil. Considerada
assim, a poesia de Bernardo seria consumida na perspectiva dos restos
históricos de um movimento literário que já passou, algo a ser preservado como
tradição. Seria considerada como resultante de uma patologia, mais pertinente
aos domínios dos distúrbios mentais, algo da ordem dos distúrbios mentais,
sendo o produto, a poesia, um produto da tensão entre a saúde e a doença. Ou,
ainda, produto de jovens burgueses no exercício de suas liberalidades
estudantis temporárias. Todas perspectivas de não pouco valor, mas
eventualmente tendentes a uma certa estagnação.
Contudo, a inclusão no conjunto de “A orgia dos duendes” ao conjunto
altera este quadro. O poema sobre a festa maldita se enquadra explicitamente
numa outra tradição, da literatura satânica que prolifera de modo consistente no
romantismo, escrita por alguns dos grandes nomes do movimento — Victor
Hugo, Théophile de Gautier, Charles Nodier —, remonta à grande obra de
Goethe até ultrapassar os limites do campo literário, quando remete à tradição
alquimista e feiticeira. A grande mágica realizada pelos duendes bernardinos é
um exercício de revelação do sublime que não tem por base o recalque e sim o
prazer do excesso e da circulação relativamente livre entre as normas e os
tabus. O poema da orgia avisa que sob a floresta idílica, em que a virgem
passeia vaporosa, existe a morte, o pecado, o som lúgubre e a música torpe
querendo todos o seu espaço na terra, nem que seja numa folia noturna.
Nesse novo enquadre, o poema do elixir deixa de ser uma paródia
subordinada ao corte indianista do romantismo e vai ocupar o seu espaço na
tradição pornográfica de Bocage e Apuleio — poetas clássicos, naquilo que
clássico significa modelo a ser copiado finamente. Faz isto mais bem resolvido
que eles, pois enquanto o argumento do poema bocageano é da ordem do
desamparo e o poema clássico é premido pela pedagogia moralizante, o poema
bernardino funciona nos vastos horizontes do excesso e do prazer.
O bárbaro pajé, centro da autonomia cultural dos povos autóctones,
depois de assassinado pela metáfora apaziguadora do indianismo de feições
européias, recupera a virulência de funcionar como uma metonímia dos vastos
perigos das florestas imensas e luxuriantes, onde está o cauim inebriante, o
canibalismo do inimigo e as muitas “conas” e “cus” indianos.
A protagonista do poema sobre o mênstruo surge na cena romântica
como uma deusa de navalha na mão, sangue nas pernas, “cona” ardendo, ódio
nos olhos, praga na boca. Ela rapta as mulheres sublimes da poesia do
romantismo canônico, que desprevenidas passearam pela floresta da luxúria,
como se por ali não circulassem feras, espectros, pajés e narradores priápricos
de poemas do elixir. Rasga as vestes imaculadas daquelas, expõe os seus
corpos e desejos, condenando-as ao sangue, ao odor e as dores do mênstruo.
A dureza das penalidades sofridas pela obra de Bernardo é fruto de sua
extrema competência em utilizar a própria poesia para satirizar e ironizar o
romantismo tradicional. Porém, ao escrever seus poemas, ele está propondo
um lugar novo para a poesia de seu tempo.
Paródia, como definida tradicionalmente estaria ligada à idéia de
subordinação ao modelo parodiado.346 Visto pela ótica de Haroldo de Campos,
ela não seria necessariamente uma imitação burlesca, mas uma espécie de
346 VIEIRA HEAD, p. 98-99.
canto paralelo. Um discurso que nasce agregado e condicionado ao texto que
parodia, porém, com a assimilação de sua estrutura própria, ele está
imediatamente pronto para receber novos sentidos: seria um texto autônomo,
até para ser parodiado.347 As alusões e associações de idéias em torno da
palavra chula são formas de convocar o riso, esse elemento que prescinde de
explicações racionais e deforma o mundo, mas o reconstrói em outra bases e
valores. Este é o sentido da palavra obscena, em Bernardo. Com ela o poema
do elixir abre espaço para um índio diverso daquele idealizado no poema de
Gonçalves Dias. No poema de Vênus, ela avisa que existe outra mulher na cena
romântica. Em ambos chama a atenção para o oculto.
Nunca é demais lembrar o registro e a artesania cuidadosos do verso de
Bernardo Guimarães — entre todos que leram os poemas da floresta
enfeitiçada e dos corpos da luxúria é difícil encontrar quem discorde disto. O
que parece acontecer ao final é a surpresa da crítica diante da violência do
texto de Bernardo que rompe com os parâmetros da tradição lírica, embora se
mantenha evidentemente pautada por ela, numa sofisticada inflexão
neoclássica, e coloca em cheque os interesses dos grupos hegemônicos,
interesses projetados sobre obras e autores que integram as lutas simbólicas no
campo literário brasileiro no tempo de vida do poeta e agora.
Para este nosso tempo, fica a reivindicação desta tese: é hora dos
poemas bernardinos serem colocados ao lado dos Macunaíma, dos Poema
Sujo e de tantos sujeitos poéticos que nasceram para ser gauche na vida,
ampliando os espaços constitutivos do campo literário, posto que tanto quanto
aqueles o pajé priáptico e a deusa desejante integram o imaginário da literatura,
347 Cf. SCHENAIDERMAN, 1980, p. 89- 113.
mesmo que recalcados e censurados. Este é o trabalho do texto bernardino!
Isto é algo de literário que há nele.
6 REFERÊNCIAS
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GUIMARÃES, Bernardo. Elixir do pajé. [?]: [Minas Gerais/], [1875?].
GUIMARÃES, Bernardo. Elixir do pajé, A origem do mênstruo e A orgia dos duendes. Introdução Romério Rômulo. Ilustração Fausto Prats. Programação visual Sebastião Nunes. Sabará, MG: Edições Dubolso, 1988.
GUIMARÃES, Bernardo. O elixir do pagé. Ilustrado. Rio de Janeiro: Edições Piraquê, 1958.
GUIMARÃES, Bernardo. A orgia dos duendes. In: ———. Poesias: Poesias diversas. Rio de Janeiro: Livraria B.-L. Garnier; Paris: Aug. Durand, 1865. p. 269-283.
GUIMARÃES, Bernardo. Poesias completas de Bernardo Guimarães. Introdução, organização e notas Alphonsus de Guimaraens F°. Rio de Janeiro: INL/MEC, 1959.
GUIMARÃES, Bernardo. Poesia erótica e satírica. Prefácio, organização e notas Duda Machado. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
GUIMARÃES, Bernardo. Produções satíricas e bocageanas de Bernardo Guimarães [Livro eletrônico] www.bn.br. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2002. Consultada em 14 de março de 2005.
6. 2 ARTIGOS, CAPÍTULOS E LIVROS COM REFERÊNCIAS AO AUTOR ALPHONSUS, João. A posição moderna de Bernardo Guimarães. MINAS GERAIS, Belo Horizonte, 18 jul. 1970. Suplemento Literário, p. 4.
ANTHOLOGIE DE LA POÉSIE ROMANTIQUE BRÉSILIENNE. Poèmes choisis par Izabel Patriota P. Carneiro. Présentés et harmonisés par Didier Lamaison. Préface d’Alexei Bueno. Paris : Editions Eulina Carvalho-UNESCO, 2002.
AZEVEDO, Arthur. Bernardo Guimarães. Almanaque, de Heitor Guimarães, 1885. p. 223.
ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade (24/mar./1873). In: ______. Obra completa: poesia, crítica, crônica, epistolário. Vol. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 801-809.
ASSUNÇÃO, Newton. As poesias de Bernardo Guimarães. CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro, p. 10, 5 jul. 1958.
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6. 3 OBRAS DE OUTROS POETAS E REFERÊNCIAS ÀS SUAS OBRAS
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ANTOLOGIA de poesia portuguesa erótica e satírica (dos cancioneiros medievais à actualidade). Seleção, prefácio e notas Natália Correia. 3ª ed. Lisboa : Antígona: Frenesi, 1999. AZEVEDO, Manoel Antônio Álvares de. Obras de Manoel Antônio Álvares de Azevedo. 7ª edição. 3 v. Rio de Janeiro: Garnier, 1900.
BAUDELAIRE, Charles. Correspondances. ———. Les fleurs du mal (1857). Présentation et notes de Claude Lémie et Robert Sctrick.Paris : Presses Pocket, 1981. BILAC, Olavo. Bocage. Conferencia realizada no Theatro Municipal de S. Paulo em 19-3-17. Porto: Edição da Renascença Portuguesa, 1917. BOCAGE, Manuel M. de B. du. Poesias eróticas, burlescas e satyricas. 2ª edição. Bruxellas: MC, 1860. CAMINHA, Pero Vaz de. Carta de 1° de maio de 1500. In CASTRO, Sílvio de (introdução, atualização e notas). A carta de Pero Vaz de Caminha - o descobrimento do Brasil. Porto Alegre: LP&M, 1985. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas (1572). Edição fac-símile. Lisboa: Imprensa Nacional, 1931. CANTIGAS d’escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medievais galegos portugueses. Organização e apresentação Manuel Rodrigues Lapa. 2ª edição. Revista e acrescentada. Coimbra: Editorial Galáxia, 1970. DIAS, Gonçalves. Poesia e prosa completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998. DURÃO, J. Santa Rita. Caramuru: São Paulo: Martin Claret, 2004. ESPRONCEDA, José de. Obras completas de D. José de Espronceda. Edición, prologo y notas de D. Jorge Campos. Madrid: Ediciones Atlas, 1954. MONIZ, Fábio Frohwein de Salles. Na (contra)mão da ordem e do cânone: vida e poesia de Laurindo Rabelo. Orientador Wellington de Almeida Santos. Rio de Janeiro, 2004. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. GAUTHIER, Théophile de. Œuvres poétiques complètes. Édition établie par Michel Brix. Paris : Bartillat, 2004. p. 9-58. GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia. Primeira parte. Tradução Jenny Klabin Segall. Apresentação, comentários e notas de Marcus Vinicius Mazzoni. São Paulo: Editora 34, 2004. ————. Werther. São Paulo: Abril Cultural, 1971.
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VIRGÍLIO, s/d.. Eneida. Tradução David Jardim Júnior. Introdução Paulo Rónai. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
6. 4 DICIONÁRIOS, GRAMÁTICAS E OUTRAS OBRAS DE REFERÊNCIA ABBAGNANO, NICOLA. Dicionário de filosofia. Tradução Alfredo Bosi. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ARAÚJO, Wanderley Pinho de. Salões e damas do Segundo Império. 7a ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1970. AZEREDO, José Carlos. Fundamentos da gramática do português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia (A idade da fábula). Tradução David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1965. CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. 4ª edição revista e aumentada. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995. CÉSAR, Guilhermino (organização e notas) Historiadores e críticos do romantismo. Rio de Janeiro: Edusp, 1978. CHEMAMA, Roland (organizador). Dicionário de psicanálise. Tradução Francisco Franke Settineri. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. CUNHA, Celso, CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. DENIS, Ferdinand. Resumo da História Literária do Brasil: considerações gerais sobre o caráter que a poesia deve assumir no Novo Mundo (1826). In: CÉSAR, Guilhermino (organização e notas). Historiadores e críticos do romantismo. Rio de Janeiro: Edusp, 1978. p. 35-82. ———. Scènes de la Nature sous les Tropiques, et leur Influences sur la Poésie, suivies de Camoens et Jozé Índio. Paris : L. Janet, 1824. ———. Notice sur le matelot Selkirk, sur Saint-Hyacinthe, sur l’ile de Juan-Fernandez, sur les Caraïbes et les Puelches. In DEFOE, Daniel. Robinson Crusoé . Trad. Pedrus Borel, enrichi pde l avie de Daniel de Foé [...]. Paris : Borel, 1836. I-XV
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6. 5 CENSURA, MARGINALIDADE, OBSCENIDADE E PORNOGRAFIA ALESSANDRIAN. História da literatura erótica. Tradução Ana Maria Scherer e José Laurênio de Mello. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. BARROS, Huston Lemos de. Carne, moral e pecado no século XVI – o Ocidente e a repressão aos “deleites” da volúpia e aos “delitos” por cópula “ilícita”. João Pessoa: Almeida Gráfica e Editora Ltda., 1995. BATAILLE, Georges. L’Erotisme. Paris: Les Éditions de Minuit, 1995. BATAILLE, Georges. A história do olho. Tradução e prefácio Eliane Robert Moraes. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. GAUTIER, Théophile. Les grotesques. Bassac (France) : Plein Chant, (1844) 1993. HUNT, Lynn (organização). A invenção da pornografia: obscenidade e as origens da modernidade 1500-1800. Tradução Carlos Szlak. São Paulo: Hedra, 1999. KAISER, Wolfgang. O grotesco. 1ª edição, 1ª reimpressão. São Paulo: Perspectiva, 2003.
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6.6 OUTROS LIVROS, ARTIGOS E ENSAIOS ARRIVÉ, Michel. Lingüística e psicanálise: Freud, Saussure, Hejlmslev, Lacan e os outros. Prefácio Jean-Claude Coquet. Tradução Mário Laranjeira e Alain Mouzat. 2ª edição. São Paulo: Edusp, 2001. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 7ª edição. Tradução Michael Lahud e Yara F. Vieira. São Paulo: Hucitec, (1929) 1995.
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