benjamin e som

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www.sonora.iar.unicamp.br - Vol. 3, Nº 5 - 2010 Walter Benjamin remixado: a aura musical na era da cibercultura e da arte atual Ticiano Ricardo Paludo RESUMO No presente artigo parto das reflexões apresentadas por Walter Benjamin em A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica aplicando o conceito de aura proposto pelo autor para a indústria fonográfica. No decorrer do texto, demonstro como a digitalização da música enfraquece o que chamo de “aura musical” e me servindo de paradigmas propostos por Raymond Moulin, ilumino possíveis caminhos futuros. PALAVRASCHAVE: aura; música; digital release; cibercultura; cibermúsica. Em 1936 o pensador alemão Walter Benjamin escreve A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica . O texto impressiona pelo seu caráter de atualidade e aplicabilidade nos dias de hoje. Nele, Benjamin apresenta simultaneamente traços positivos e negativos, uma relação bipolar no que se refere à arte e seus processos de reprodução de massa. O autor inicia sua reflexão lembrando que “por princípio a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens tinham feito sempre pode ser imitado por homens” (BENJAMIN, 1992, p. 75). Esta reprodução foi gradativamente se expandindo e diversos fatores contribuíram para isso: a revolução industrial, o crescimento do modelo capitalista e o domínio das diversas técnicas de reprodução podem ser apontados como decisivos neste processo. Porém, Benjamin sinaliza uma preocupação quando diz que “mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte – a sua existência única no lugar em que se encontra. [...] O aqui e agora do original constitui o conceito da sua autenticidade” (BENJAMIN, 1992, p. 77). O pensador segue seu questionamento relatando que as situações a que se pode levar o resultado da reprodução técnica da obra de arte, e que, aliás, podem deixar a existência da obra de arte incólume, desvalorizamlhe, de qualquer modo, o seu aqui e agora (BENJAMIN, 1992, p. 78). [...] A autenticidade de uma coisa é a soma de tudo o que desde a origem nela é transmissível, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico. [...] O que murcha na era da reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura (BENJAMIN, 1992, p. 79). A aura a que se refere Benjamin diz respeito ao caráter autêntico, uno, único da obra de arte. Vou além e proponho uma expansão do conceito passando a entender

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    Walter Benjamin remixado:

    a aura musical na era da cibercultura e da arte atual

    Ticiano Ricardo Paludo

    RESUMO No presente artigo parto das reflexes apresentadas por Walter Benjamin em A obra de arte na era da sua reprodutibilidade tcnica aplicando o conceito de aura proposto pelo autor para a indstria fonogrfica. No decorrer do texto, demonstro como a digitalizao da msica enfraquece o que chamo de aura musical e me servindo de paradigmas propostos por Raymond Moulin, ilumino possveis caminhos futuros. PALAVRAS-CHAVE: aura; msica; digital release; cibercultura; cibermsica.

    Em 1936 o pensador alemo Walter Benjamin escreve A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica. O texto impressiona pelo seu carter de atualidade e aplicabilidade nos dias de hoje. Nele, Benjamin apresenta simultaneamente traos positivos e negativos, uma relao bipolar no que se refere arte e seus processos de reproduo de massa. O autor inicia sua reflexo lembrando que por princpio a obra de arte sempre foi reprodutvel. O que os homens tinham feito sempre pode ser imitado por homens (BENJAMIN, 1992, p. 75). Esta reproduo foi gradativamente se expandindo e diversos fatores contriburam para isso: a revoluo industrial, o crescimento do modelo capitalista e o domnio das diversas tcnicas de reproduo podem ser apontados como decisivos neste processo. Porm, Benjamin sinaliza uma preocupao quando diz que mesmo na reproduo mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte a sua existncia nica no lugar em que se encontra. [...] O aqui e agora do original constitui o conceito da sua autenticidade (BENJAMIN, 1992, p. 77). O pensador segue seu questionamento relatando que

    as situaes a que se pode levar o resultado da reproduo tcnica da obra de arte, e que, alis, podem deixar a existncia da obra de arte inclume, desvalorizam-lhe, de qualquer modo, o seu aqui e agora (BENJAMIN, 1992, p. 78). [...] A autenticidade de uma coisa a soma de tudo o que desde a origem nela transmissvel, desde a sua durao material ao seu testemunho histrico. [...] O que murcha na era da reprodutibilidade da obra de arte a sua aura (BENJAMIN, 1992, p. 79).

    A aura a que se refere Benjamin diz respeito ao carter autntico, uno, nico da

    obra de arte. Vou alm e proponho uma expanso do conceito passando a entender

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    essa aura como a alma da obra (aprofundarei essa questo mais adiante). Retomando o raciocnio, em seu ensaio Benjamin faz referncias principalmente fotografia e ao cinema. Partindo desse ponto, procuro elucidar se possvel encontrarmos esta aura (ou alma) nos chamados lbuns musicais. Comeo lembrando que a msica em si nunca existiu fisicamente, foi sempre virtual. Nunca pudemos segurar uma msica com as mos. como o ar: existe, sentimos, mas no tocamos nele (AUTOR, 2007, p. 38). O homem por diversas vezes fez um esforo no sentido de materializar a msica, transport-la do plano imaterial para o material. No incio, os cnticos eram transmitidos atravs da oralidade e consequente imitao. A notao musical (partitura) pode ser encarada como o primeiro suporte genuno eficiente com alto grau de preciso utilizado como memria auxiliar e veculo de divulgao. Sua reprodutibilidade modesta (se comparada reproduo de massa atual) era tarefa destinada aos copistas. J na dcada de 1920, a indstria do disco comea a se desenvolver. Avanando na linha do tempo, nos anos de 1970 o mercado cresce e proliferam as gravaes e reprodues em discos de vinil e fitas K7, deixando para trs os antigos discos de acetato. Nos anos de 1980, o CD (compact disc) promete revolucionar tudo, oferecendo maior capacidade, qualidade e durabilidade. Porm, nos anos 2000, a materializao colocada em xeque em funo dos digital releases 1 , do consumo de faixas avulsas ou do download ilegal de discografias inteiras. Diante dessas transformaes ocorridas ao longo do tempo, teria a msica, ento, uma aura prpria independente do suporte? 2

    Assim como Benjamin, acredito que a fotografia deve ser pensada como um

    divisor de guas no processo de reproduo de massa e como instrumento de anlise anloga msica para que possamos pensar sobre o fenmeno. Cito o autor:

    [...] com o aparecimento da fotografia, o primeiro meio de reproduo verdadeiramente revolucionrio, [...] a arte sente a proximidade da crise que, cem anos mais tarde, se tinha tornado inequvoca, reagiu com a doutrina da lart por lart, que uma teologia da arte. Dela surgiu precisamente uma teologia negativa na forma de uma arte, como tambm toda a finalidade atravs de uma determinao concreta. [...] a reprodutibilidade tcnica da obra de arte emancipa-a, pela primeira vez na histria do mundo, da sua existncia parasitria no ritual (BENJAMIN, 1992, p. 83 grifo do autor).

    Questiono Benjamin perguntando se os lbuns musicais no seriam inseparveis

    de ritualizao, e, portanto, ainda parasitrios? Como veremos adiante, o texto parece apresentar uma contradio, ora levantando a bandeira da liberdade em funo da libertao do ritual, ora afirmando que o ritual deve sempre estar presente. Trazendo para o campo musical, estabeleo a seguinte relao: primeiramente, faz-se necessrio

    1 lbuns virtuais formados exclusivamente por arquivos digitais em formato MP3, WMA e/ou WAV, disponveis para aquisio atravs da internet. 2 Os DVDs sero deixados de lado pois no os consideraremos como lbuns musicais.

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    compreender o que entendo por lbum musical. Para elucidar o conceito, podemos traar um paralelo com os lbuns de fotografia. Nesse sentido, o lbum corresponde a um registro de um momento que fez parte da sua vida 3 (AUTOR, 2007, p. 42). Portanto, o registro sonoro ser um conjunto de fotografias musicais daquele momento em que o lbum foi produzido (AUTOR, 2007, p. 44 grifo do autor). A elaborao envolve tambm um processo de criao conceitual:

    Sempre que produzo um lbum me preocupo muito com o conceito. No apenas o conceito musical, mas o conceito artstico como um todo. Isso engloba todos os pequenos detalhes que fazem parte desse processo: a ordem das faixas, o tipo de letra utilizada na arte grfica, as imagens, a letra das canes, os tipos de acordes, arranjo, cores, sonoridade e tessituras. Criar um conceito forte, agrupar e arranjar bem as canes, pensar na unidade do todo (parte grfica/visual + parte artstica + parte musical) pode representar a diferena gritante entre ser lembrado ou esquecido com o passar dos anos. O lbum acaba sendo um registro preciso e fiel de sua alma 4 e ela se propagar por toda a eternidade (AUTOR, 2007, p. 44).

    No passado, a arte e a religio apresentavam um elo forte e

    determinante. Seja na pintura ou na escultura, a arte era basicamente financiada pela igreja (salvo os casos de arte pela arte ou aqueles em que a nobreza cobria os custos). Da a questo de culto versus aura levantada por Benjamin em seu texto:

    A singularidade da obra de arte idntica sua forma de se instalar no contexto da tradio. Essa tradio, ela prpria, algo de completamente vivo, algo de extraordinariamente mutvel. Uma esttua antiga da Vnus, por exemplo, situava-se num contexto tradicional diferente, para os Gregos que a consideravam um objecto de culto, e para os clrigos medievais que viam nela um dolo nefasto. Mas o que ambos enfrentavam da mesma forma, era a sua singularidade, por outras palavras, a sua aura. O culto foi a expresso original da integrao da obra de arte no seu contexto tradicional. Como sabemos, as obras de arte mais antigas surgiram ao servio de um ritual, primeiro mgico e depois religioso. , pois, de importncia decisiva que a forma de existncia desta aura, na obra de arte, nunca se desligue completamente da sua funo ritual. Por outras palavras: o valor singular da obra de arte autntica tem o seu fundamento no ritual em que adquiriu o seu valor de uso original e primeiro. Este, independentemente de como seja transmitido, mantm-se reconhecvel, mesmo nas formas mais profanas do culto da beleza, enquanto ritual secularizado (BENJAMIN, 1992, p. 82).

    3 Entenda-se sua vida como a vida do artista. 4 Entenda-se sua alma como a alma do artista.

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    Nota-se a contradio do autor que antes afirmava que a ligao com o ritual era parasitria e agora diz que a obra nunca deve se desligar da funo ritualstica. Em 1998, escrevi minha monografia de graduao intitulada Kiss, o mito vivo 5 na qual analiso as relaes entre mito, ritual e indstria do disco. Assim como nos espetculos e/ou shows musicais, na audio de um fonograma 6 isolado ou lbum completo possvel detectar-se traos de ritual, principalmente quando a audio do tipo contemplativa-imersiva, ou seja, aquela na qual o ouvinte encontra-se absolutamente concentrado e em estado de devoo ao dolo musical. Indo alm, um simples pster ou foto de um artista utilizado de forma ornamental pode ser entendido funcionalmente como um totem para a adorao. Portanto, no caso da msica pop, o ritual parte fundamental do processo. Lgico que a passagem do plano eminentemente religioso (culto religioso/arte sacra) para o plano mercadolgico (msica pop) que existe hoje se deu de forma gradual. Conforme Benjamin, nos primrdios, a obra de arte, devido ao peso absoluto que assentava sobre o seu valor de culto, transformou-se, principalmente, num instrumento da magia que s mais tarde foi, em certa medida, reconhecido como obra de arte (BENJAMIN, 1992, p. 86-87). Analisando historicamente, a obra de arte nasce para ser cultuada (mas no a obra em s e sim a sua mensagem interiorizada; depois, passa, ento, para um plano no qual a obra que cultuada e, finalmente, retorna ao carter de culto mgico, dessa vez do conjunto obra + artista). Em outra passagem do texto de Benjamin reforada a necessidade de contextualizao histrica: [...] o modo em que a percepo sensorial do homem se organiza o mdium em que ocorre condicionado no s naturalmente, como tambm historicamente (BENJAMIN, 1992, p. 80). Esta percepo sensorial est ligada a questes histricas e contextuais e, inclusive, s possibilidades e capacidades do pblico de acordo com seu repertrio pessoal e viso de mundo. Isto , as percepes sobre uma obra podem sofrer alteraes com o passar do tempo. Comungo das idias de Benjamin: as possibilidades de interpretao so to variveis que ficaria impossvel delimitar um quadro geral de interpretao padronizada (AUTOR, 2007, p. 42 grifo do autor).

    Retomando o objeto de estudo de Benjamin (indstria cinematogrfica), notamos que este e a indstria do disco possuem laos estreitos, uma vez que tal objeto forneceu diversos paradigmas para a legitimao da segunda. No que se refere ao cinema, Benjamin diz o seguinte:

    Nas obras cinematogrficas, a reprodutibilidade tcnica do produto no uma condio imposta do exterior para a sua divulgao em massa, contrariamente ao que sucede, por exemplo, com as obras literrias ou de pintura. A reprodutibilidade tcnica da obra cinematogrfica tem o seu fundamento directamente na tcnica da sua reproduo. Esta possibilita no s a sua

    5 Disponvel em 6 No mercado musical qualquer msica gravada recebe o nome de fonograma.

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    imediata divulgao em massa, como tambm a impe. Impe-a porque a produo de um filme to cara que algum que pudesse, por exemplo, comprar um quadro, no poderia certamente dar-se ao luxo de comprar um filme (BENJAMIN, 1992, p. 83-84).

    Concordo plenamente com o autor e afirmo que o mesmo vale para a indstria

    musical. Tomando como base o custo de produo de um lbum de um artista independente, podemos atualmente estabelecer o valor para a produo da fita matriz na casa de R$ 40.000,00. um valor elevado, menor do que o de um filme, mas ainda assim elevado. As semelhanas com o cinema no terminam neste ponto. Seguindo com o pensamento de Benjamin:

    No h dvida que no teatro o desempenho artstico do actor apresentado ao pblico pela sua prpria pessoa; pelo contrrio, o desempenho artstico do actor de cinema apresentado ao pblico por um equipamento, o que tem dois tipos de conseqncias. No se espera do equipamento que transmite ao pblico a actuao do actor de cinema, que respeite essa actuao na sua totalidade. Sob a direo do operador da cmara, esse equipamento toma constantemente posio perante essa mesma actuao. A sequncia de cenas que o montador compe, a partir do material que lhe fornecido, que constitui o filme acabado. Este engloba um determinado nmero de momentos de aco, reconhecidos como tal pela cmera, para no falar de planos especiais, de primeiros planos. Assim, a representao do actor submetida a uma srie de testes pticos. Esta a primeira consequncia do facto de a representao do actor de cinema ser apresentada pelo equipamento. A segunda assenta no facto de que uma vez que o actor de cinema no representa perante o pblico, no pode adaptar, durante a actuao, o seu desempenho reaco do mesmo, possibilidade reservada ao actor de teatro. Por essa razo, o pblico assume a atitude de um apreciador que no perturbado pelo actor, uma vez que no tem qualquer contacto pessoal com ele. A identificao do pblico com o actor s sucede na medida em que aquele se identifica com o equipamento (BENJAMIN, 1992, p. 90-91).

    A descrio acima genialmente aplicvel msica. O msico, ao gravar um

    disco, atua no para a cmera, mas para o microfone. Ou seja, o pblico o equipamento. No espetculo ao vivo, o pblico tem contato direto com o artista e sua atuao cnica. No caso da msica gravada, o mesmo no ocorre. Ou seja, como afirma Benjamin, no atua em sua totalidade. Assim como existe a seqncia de cenas, existe a seqncia de faixas musicais; a figura do montador anloga a do produtor musical ou engenheiro de som; se existem testes ticos no cinema, existem testes sonoros na msica (como, por exemplo, a timbragem de uma guitarra). No entanto, como mencionei anteriormente, pode existir, sim, um valor de culto no momento da audio do lbum. O Starsystem (no cinema) denominado por Edgar Morin (1972) forneceu as

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    bases para a construo das estrelas musicais. Para citar um nico exemplo, basta analisar a influncia de Theda Bara em Madonna.

    Benjamin aponta algumas questes que, segundo ele, acabam por comprometer a aura no momento em que o artista se v obrigado a representar para a mquina em funo da massificao da obra de arte:

    A estranheza do actor perante o equipamento [...] essencialmente do mesmo tipo da estranheza que se sente perante a prpria imagem reflectida no espelho. Mas agora, a imagem separvel da pessoa, transportvel. E para onde transportada? Para diante do pblico. O actor de cinema nunca deixa de ter conscincia desse facto. O actor de cinema, quando est perante a cmara, sabe que em ltima instncia est ligado ao pblico: ao pblico dos receptores, que constituem o mercado. Este mercado, no qual o actor empenha no s a sua fora de trabalho, mas tambm todo o seu ser, no momento em que efectua um determinado desempenho, -lhe to inacessvel como qualquer produto feito numa fbrica. No ter esta circunstncia a sua parte de influncia na inibio, na nova ansiedade, que acomete o actor perante o equipamento? O cinema reage ao aniquilar da aura, com a construo artstica da personality fora do estdio. O culto da estrela, promovido pelo capital cinematogrfico, conserva a magia da personalidade que, h muito, se reduz magia ptrida do seu carcter mercantil (BENJAMIN, 1992, p. 94-95 grifo do autor).

    Para a sociloga francesa Raymonde Moulin, a questo mercantil faz parte da

    vida artstica:

    A constituio dos valores artsticos efetua-se com a articulao do campo artstico e do mercado. No campo artstico so operadas e revisadas as avaliaes estticas. No mercado se realizam as transaes e se elaboram os preos. Ainda que eles possuam, cada um, seu prprio sistema de fixao de valor, essas duas redes mantm relaes de estreita interdependncia (MOULIN, 2007, p. 9).

    Mais uma vez questiono Benjamin: no caso da msica, o artista to ingnuo a ponto de permitir que, em funo do processo de produo em massa adotado pela indstria cultural, a aura de sua msica seja aniquilada? Acredito que os verdadeiros artistas no o faam. Conforme escrevi:

    Vivemos na poca das celebridades instantneas, da busca desenfreada (e s vezes at doentia) pela fama. No nada raro (e quem trabalha com produo musical de forma sria sabe muito bem disso) encontrar artistas wanna be que simplesmente buscam os holofotes se esquecendo de que a msica negcio, mas arte acima de qualquer coisa (AUTOR, 2007, p. 54).

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    Ou seja, para mim o processo de reproduo tcnica avanado no aniquila a aura. Entendo que artista profissional aquele que vive da sua arte. Assim sendo, a questo mercantil seria um mal necessrio? A resposta sim. Recorro a outras publicaes minhas para incrementar esse remix cultural:

    S porque ax, pagode ou sertanejo so moda, no adianta formar um grupo musical nesse estilo se o artista no for, em sua essncia, pertencente a esse grupo social. A essncia deve ser orgnica e no artificial. Tambm j disse uma vez e sempre digo isso para os artistas com os quais trabalho que um artista genuno aquele que vive de sua arte, sendo que esta arte verdadeira, e no simulada (AUTOR, 2007, p. 56).

    Moulin fala sobre o conceito de artista, ao diferenci-lo do arteso:

    A natureza da lei remete a uma definio social da obra de arte herdada do sculo XIX. Essa definio contestada, mas dominante, ela mesma o produto de uma histria ao longo da qual a arte tornou-se autnoma, ao se diferenciar do artesanato e da indstria. A primeira etapa desse longo processo de diferenciao das atividades situa-se na Itlia e ao final do sculo XV: as atividades do pintor, do escultor e do arquiteto consideradas como radicalmente distintas dos ofcios manuais alcanaram a dignidade de artes liberais. O artista no mais um arteso, mas um criador, uma espcie de alter deus subtrado s normas comuns. A segunda poca coincide com a primeira revoluo industrial: diviso do trabalho, produo em srie, aos valores utilitrios, a obra de arte se ope como produto nico do trabalho indiviso de um criador nico e ela exige uma percepo pura e desinteressada (MOULIN, 2007, p. 94 grifo do autor).

    Complemento a idia com o seguinte recorte:

    Pode parecer cruel entender que o mercado musical e artstico um negcio, mas se analisarmos adequadamente veremos que isso mesmo o que ocorre e que esta constatao no nenhum bicho papo. As gravadoras principalmente as majors sempre foram duramente criticadas pelos artistas, como se existissem nica e exclusivamente para explorar pobres almas indefesas. Construir um artista, mesmo que ele seja legtimo, custa caro. Antigamente (e me refiro principalmente s dcadas de 70, 80 e 90), no era raro ver uma gravadora investir alto para alavancar e construir uma carreira musical. Como tudo que sobe, desce e tudo que investido pressupe retorno, lgico que este retorno acabava por vir da venda dos lbuns desses artistas. Da o mito de explorao artstica das gravadoras. Vivemos num mundo capitalista e sabe-se que a base do capitalismo o lucro. Claro que as gravadoras no so santas e muito menos instituies filantrpicas preocupadas em promover a arte pela arte agora, colocar sobre elas esse peso

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    solitrio de culpa uma atitude adolescente, simplria e ingnua. Livre de maniquesmos, constatamos que sim, a arte verdadeira existe, mas ela um negcio como qualquer outro (e isso no privilgio exclusivo da msica, ocorre com as artes plsticas, com a dana, com o teatro, teledramaturgia e assim por diante) (AUTOR, 2007, p. 56).

    Atualmente, a construo da aura musical indissocivel do marketing. Isso ocorre, conforme exposto anteriormente, devido carga gentica do Starsystem presente na indstria do disco. Conforme aponta Benjamin, a reprodutibilidade tcnica da obra de arte altera a relao das massas com a arte (BENJAMIN, 1992, p. 100). Ou, ainda, conforme Moulin, a internacionalizao da arte contempornea indissocivel de sua promoo cultural (MOULIN, 2007, p. 29). Essa via tem mo dupla. A construo do artista tambm alterada em funo da reprodutibilidade, e, conseqentemente, os esforos para legitimao da aura. Hoje a questo do belo j no se faz necessria. Embora a msica pop ainda permanea atrelada a esse paradigma, diversos artistas produzem msica experimental de aceitao razovel e tem reconhecida a sua aura artstica. Mas, como ento, se poderia identificar um artista genuno? Como distingui-lo da massa? Segundo minhas constataes a questo pode ser respondida da seguinte maneira:

    Atingimos realmente o status de artistas quando pessoas que desconhecemos por completo comeam a admirar nossa obra. E no momento em que passarmos para o outro plano, seremos julgados, amados, admirados ou odiados por aquilo que produzimos. Esse registro estar justamente nos nossos lbuns (AUTOR, 2007, p. 44).

    Embora a anlise do texto de Benjamin contemple o cinema e no a msica, conforme j apontado, existem muitas semelhanas. Quando o filme colocado em cartaz, e, analogamente, no momento em que um disco gravado e colocado no mercado, acaba por perde-se o seu aqui e agora. Segundo Benjamin, desse modo a aura seria destruda:

    O pequeno equipamento representar para o pblico a sua sombra, e o actor tem que se contentar com a representao perante a mquina. Pode caracterizar-se o mesmo facto da seguinte forma: pela primeira vez e isso obra do cinema o homem v-se na situao de actuar com a sua totalidade de pessoa viva, mas sem a sua aura. Porque a aura est ligada ao aqui e agora. Dela no existe cpia. A aura que se manifesta em torno de um Macbeth no pode ser separada da que, para um pblico ao vivo, rodeia o actor que representa aquele personagem. A especificidade do registro em estdio cinematogrfico reside no facto de colocar o equipamento no lugar do pblico. Assim, a aura que envolve o actor tem de desaparecer e, por conseguinte, tambm a do personagem representado. [...] Para a obra de arte que surge integralmente da

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    sua reproduo tcnica como o filme no h maior contraste que o palco (BENJAMIN, 1992, p. 92).

    Se o disco uma construo, o show o igualmente. Deduzo que o nico aqui e

    agora na sua forma mais pura s possvel na msica no momento exato da composio. A partir da, o aqui e agora comear cada vez mais a se distanciar. Para amortizar a questo, quando produzo um lbum musical busco justamente evitar que a aura (ou, como proponho nesse ensaio, a alma artstica) se perca durante o processo de representao do msico para a mquina, e posterior circulao mediante a reprodutibilidade tcnica. O carter nico me parece intangvel no caso da msica. Talvez uma partitura perdida ou uma gravao caseira esquecida pudessem se enquadrar nessa categoria una e casta. No caso dos lbuns musicais que assim como no dos filmes cinematogrficos nascem j com o propsito da circulao massiva a aura, seguindo rigidamente os moldes propostos por Benjamin, se mostra utpica. Mesmo no caso de uma apresentao ao vivo isto complexo, uma vez que, segundo minha viso, o aqui e agora de uma msica existiria nica e exclusivamente no momento de sua concepo, isto , de sua criao. Retomando a analogia entre cinema e msica, Benjamin aponta o carter efmero das sucessivas imagens que compe um filme:

    Comparemos a tela em que se desenrola um filme com a que est subjacente a um quadro. Esta ltima convida o observador contemplao, perante ela pode entregar-se ao seu prprio processo de associaes. Diante do filme no pode faz-lo, mal registra uma imagem com o olhar e j ela se alterou. No pode ser fixada (BENJAMIN, p. 107).

    Novamente proponho um questionamento sob a seguinte tica: o autor afirma que a imagem no cinema no pode ser fixada. No caso da msica, o mesmo poderia ser dito sobre os sons que desfilam diante do ouvinte no momento da audio de um espetculo musical. Porm, hoje com a diversidade de suportes digitais (DVD e arquivos de vdeo para o filme, e CD ou digital release para a msica), o pblico tem a possibilidade de repetir a experincia do contato com a obra tantas vezes quanto queira. Esse recurso permite no apenas uma maior fixao, como igualmente mudanas de percepo que podem ocorrer a cada nova exposio perante a obra. Mas nem tudo negativo. Para Benjamin, existe um trao positivo na reproduo, um trao emancipatrio:

    Poderia caracterizar-se a tcnica de reproduo dizendo que liberta o objecto reproduzido do domnio da tradio. Ao multiplicar o reproduzido, coloca no lugar de ocorrncia nica a ocorrncia em massa. Na medida em que permite reproduo ir ao encontro de quem apreende, actualiza o reproduzido em cada uma das situaes. Ambos os processos provocam abalo no reproduzido, um

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    abalo da tradio que o reverso da crise actual e a renovao da humanidade (BENJAMIN, 1992, p. 79).

    Complemento a idia com a seguinte afirmao: enquanto houver CTRL V no mundo (para propagar cpias e cpias de nosso material sonoro bem acabado e lapidado) estaremos vivos, eternizados pela nossa obra (AUTOR, 2007, p. 44).

    Sabemos que assim como a indstria cinematogrfica, na indstria do disco a

    produo de um lbum realizada com a finalidade de duplicao e circulao de massa. Assim sendo, diferente do que ocorre com a pintura ou escultura, o carter de singularidade se torna complexo. No caso da arte atual, a valorao e legitimao do artista e de sua obra passam pela atuao indispensvel do que denomino neo-marchands:

    A grande maioria das obras est sujeita a desclassificaes e reclassificaes sucessivas. A reviso permanente da escala dos valores obedece a motivos complexos em que se misturam s modas, a influncia dos valores estticos contemporneos, o progresso da pesquisa erudita e dos interesses do mercado. A reviso das hierarquias ocasionada igualmente pela rarefao das grandes obras e pela elevao dos preos. Os especialistas e os marchands levam a outras partes sua curiosidade, contribuindo assim para a renovao da oferta (MOULIN, 2007, p. 17-18).

    No caso da msica, estabeleo uma relao entre os marchands e as gravadoras.

    Estas assumiriam o carter de neo-marchand e teriam como dever no apenas a comercializao, mas a utilizao e desenvolvimento de tcnicas de marketing para construo do artista e de sua obra. Podemos observar que assim como os atores econmicos e culturais, as gravadoras neo-marchands igualmente realizaram esforos para colocar os artistas musicais em evidncia. As obras de arte nicas (quadros, pinturas, esculturas) so expostas principalmente em museus. Como afirma Moulin, os museus de arte contempornea so, pela aura do lugar e pela erudio do conservador, a instncia maior de validao da arte (MOULIN, 2007, p. 30). E a msica? O lbum serve de moldura e enquadramento sob a qual repousam os fonogramas. Sua vitrine de exposio consiste nas lojas que comercializam discos. Mas, muitas vezes um lbum que em seu lanamento foi sucesso e teve prestgio e reconhecimento (inclusive monetrio) acaba sendo reproduzido em sucessivas tiragens segundo o modelo best price que consiste em oferecer um material com acabamento grfico pobre e valor de venda baixo. Conseqentemente, seu valor artstico tende a decair, depreciando a obra. Podemos fazer uma analogia conforme o pensamento de Moulin. Ela explana bem esta questo, dizendo que um quadro de mestre , com efeito, um valor slido, indivisvel e pouco lquido a curto prazo: se a mesma obra revendida vrias vezes em venda pblica em datas prximas, ela sofre uma depreciao (MOULIN, 2007, p. 38). A falta

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    de tradio tambm deve ser levada em conta como fator complicador: em relao obra de arte que recebeu o consentimento dos sculos, a arte contempornea maximiza a incerteza e o risco (MOULIN, 2007, p. 43 grifo do autor).

    Vivemos atualmente um momento mpar na histria. Os meios de produo e circulao encontram-se democratizados e ao alcance de vrias pessoas. A internet e a informtica catalisaram este processo. Ainda que a liberao do plo emissor seja positiva, e de que o lema iniciado nos anos 1960 pela contra-cultura, pela pop art de Andy Warhol e pelo movimento punk nos anos de 1970 sob a bandeira do do it by yourself (faa voc mesmo) possua um carter de liberdade e igualdade (levantado, inclusive na Revoluo Francesa), tudo isso acaba por dificultar a construo artstica e valorao da aura. O ouvinte de hoje no consome (no necessariamente no sentido comercial) mais lbuns, consome faixas avulsas e discografias completas aos borbotes. A noo de lbum se transmuta e se perde. O digital aniquila o enquadramento proporcionado pelo analgico. Benjamin mostra que, de fato, esses ideais j podiam ser observados com o surgimento da imprensa de massa e com o cinema. No caso da imprensa, observamos o que segue:

    Com a crescente expanso da imprensa, [...] uma parte cada vez maior de leitores comeou por, de incio ocasionalmente, passar a escrever. Tudo isto comeou com a imprensa diria a abrir aos leitores o seu correio, e actualmente a situao tal que quase no deve haver um europeu, inserido no mundo do trabalho, que no tenha tido possibilidade de publicar uma experincia laboral, uma reclamao, uma reportagem, ou algo afim. Assim, a diferena entre autor e pblico est prestes a perder o seu carter fundamental. [...] O leitor est sempre pronto a tornar-se um escritor (BENJAMIN, 1992, p. 96-97 grifo do autor).

    No caso do cinema, diz Benjamin que qualquer pessoa tem a possibilidade de [...] passar de simples transeunte a figurante de cinema (BENJAMIN, 1992, p. 96). Complementando, [...] em determinadas circunstncias, qualquer um pode ser parte de uma obra de arte (BENJAMIN, 1992, p. 96). Ou ainda, [...] qualquer homem, actualmente, pode ter a pretenso de ser filmado (BENJAMIN, 1992, p. 96). Se todos so atores, existe pblico? Existe espetculo? Conforme escrevi em 2007, os artistas que alcanam reconhecimento e respeito tm sempre um trao comum: a verdade da sua arte (AUTOR, 2007, p. 56). Esta verdade nada mais do que a aura musical, que quando verdadeira, se torna imaculada mesmo mediante sua reproduo massiva, ainda que o desenquadramento digital fragilize-a. Moulin aponta que, em relao ao mercado atual:

    [...] a distino se impe, no entanto, entre duas categorias de obras stars, de um lado as grandes obras do passado, raras, valorizadas pelo tempo e pela histria, e de outro lado, as obras vedetes da arte contempornea com destino

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    artstico e financeiro incerto, mas altamente especulativas (MOULIN, 2007, p. 46).

    Tanto Benjamin quanto Moulin apontam em diversas passagens de seu texto a preocupao em limitar-se as tiragens e resistir reprodutibilidade tcnica. Numa era em que a cpia digital se mostra perfeita, em que os canais de circulao abundam, em que todos querem os seus minutos de fama e exposio, ir na contra-mo, ou seja, reproduzir em pequenas quantidades retomando o carter artesanal, parece uma sada interessante. Uma das tcnicas sugeridas por Moulin seria aquela segundo a qual existe um controle rgido na tiragem:

    A cmera de vdeo , com o aparelho fotogrfico, um dos instrumentos importantes da criao artstica atual. Desde que se trate de vdeo, existe apenas uma obra original no sentido histrico do termo, o master, que se apresenta sob diferentes formas: uma fita VHS, um filme de 35 ou 16 mm, uma fita Beta, um DVD. Ainda que a legislao no mencione as videoimagens sob a rubrica obra de arte qual nos referimos, os procedimentos de rarefao so calcados naqueles da fotografia: tiragem limitada, certificado de autenticidade contando o nmero de exemplares, o nmero de srie e a assinatura do artista. O artista proprietrio do master que o equivalente do negativo do fotgrafo ou do molde do fundidor. So editadas em geral trs cpias originais para o mercado e uma ou duas provas de artista (MOULIN, 2007, p. 100-101 grifo do autor).

    No caso do disco, seguidamente observamos apelos da indstria fonogrfica

    tendo em seu discurso citaes como no compre CD pirata, compre original. Estaria correta essa colocao? Conforme Moulin, [...] a partir de um gesso original que so tirados os exemplares em bronze, todos autnticos porque tm a mesma provenincia, mas no originais (MOULIN, 2007, p. 96). [...] Tomemos o exemplo da gravura de tipo clssico feita a partir de uma placa de cobre: a placa gravada que constitui o verdadeiro original; os exemplares tirados a partir desse original nico so todos cpias (MOULIN, 2007, p. 96). Observamos ento que o apelo refere-se a cpias com procedncia original, mas no o original de fato. As artes plsticas gozam de certa regalia. Observe o modelo apresentado por Moulin:

    Diante da escultura do sculo XIX que se prestava por suas tcnicas multiplicidade, a escultura do sculo XX privilegiou as obras nicas. Numerosas esculturas contemporneas em papelo, barbante, chapa de ferro, sucata, etc., no so concebidas para ser reproduzidas (MOULIN, 2007, p. 96).

    Talvez uma instalao sonora pudesse se encaixar no modelo acima. Um lbum

    musical, jamais. As tentativas de validao podem extrapolar o campo da reproduo e incluir o campo da exposio quando o nmero de exemplares certificado e as

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    condies de exposio e de difuso so prescritas pelo artista (MOULIN, 2007, p. 101). Como aponta Benjamin, a recepo da arte verifica-se com diversas tnicas, das quais se destacam duas, polares. Uma assenta no valor de culto, a outra no valor de exposio da obra de arte (BENJAMIN, 1992, p. 84-85). Ou ainda, conforme exemplifica Moulin:

    Os artistas, zelosos da singularidade de sua obra, exigem muitas vezes que as fitas de vdeo, adquiridas por um museu, sejam mostradas no contexto de uma instalao multimdia, com vrios monitores, acompanhadas de objetos, o carter reprodutvel da imagem sendo contrabalanado pela no-reprodutibilidade de forma idntica da instalao (MOULIN, 2007, p. 101).

    Os discos de vinil possuam o seu romantismo. Eis que em 2008, um ano aps ter questionado o seu ressurgimento em minha coluna mensal na revista Backstage, observo a indstria musical colocando-os novamente em circulao 7. Nota-se que a indstria procura recuperar seu prestgio, seja atravs dos saudosistas, ou por meio dos novatos que apresentem algum potencial de curiosidade latente. interessante observarmos que alguns desses lbuns relanados em formato vinl foram lanados originalmente em mono para posterior reconstruo em estreo. Algumas reedies atuais em vinil como forma de preservar a aura musical tem o cuidado de serem editadas no em estreo, mas sim em mono, procurando desse modo preservar as caractersticas puras do material original 8. Embora uma srie de artistas demonstrem certo deslumbramento com o pensamento tecnolgico vigente, outros repudiam-no e seguem firmes em seus ideais puristas. o caso da banda de rock AC/DC. Conforme a matria Ns te saudamos, AC/DC publicada no jornal Zero Hora e escrita por Roger Lerina, a nova profisso de f roqueira do quinteto chama-se Black Ice, disco que j vendeu mais de 5 milhes de cpias e que a banda se recusa a comercializar pela internet (LERINA, 2008, p. 6). Ao final da matria, o jornalista escreve:

    Em tempos em que o rock anda de braos dados com a msica eletrnica e as novas tecnologias, no mnimo curioso que uma megabanda d de ombros para a incontornvel presena da internet: Black Ice saiu em CD e at em vinil, mas o grupo recusou-se a comercializar as msicas separadamente na rede pelo iTunes. Ns no fazemos compactos, ns fazemos lbuns, justifica Angus9 (LERINA, 2008, p. 6).

    Em uma analise superficial, pode realmente parecer estranho nadar contra a

    mar digital. Porm, o pensamento expresso pelo integrante do grupo AC/DC aponta para o que propus nesse ensaio. Se a msica sempre foi virtual, o lbum fsico esteja

    7 Para mais detalhes, acesse o blog temtico da MTV sobre vinil em http://www.mtv.com.br/vivaovinil. 8 Poderamos considerar as verses mono e estreo de um mesmo lbum como duas obras distintas. 9 Angus Young, guitarrista, compositor e lder do grupo de rock AC/DC.

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    ele disponvel no suporte CD ou vinil no uma simples moldura para a obra de arte musical. Tudo o que o compe (a parte grfica, o encarte, a capa, as letras, o ordem das faixas, fotos e a prpria msica) so, de fato, a aura musical (prevalecendo o vinil sobre o CD, j que o primeiro analgico e o segundo digital). Retomar o analgico catalisaria o retorno reconstrutivo da aura. Conforme j havia escrito em 2007:

    Acompanhamos por diversos meios a sangria em que o mercado musical agoniza. Nunca se produziu e consumiu (no sentido de se ouvir, no necessariamente de se comprar) tanta msica como ocorre hoje em dia. As gravadoras no conseguiram acompanhar o boom da web e do mp3 e agora sofrem as conseqncias. Vendas decrescentes e consumidores revoltados, esta a realidade que se apresenta. Precisamos ser criativos no s na arte, mas no negcio tambm, pois, sem negcio, a arte morre (inclusive de fome) (AUTOR, 2007, p. 56 grifo do autor).

    E essa criatividade qual me refiro seria exatamente entendida como o que? No

    caso da msica pop que foi o objeto de analise ela deve ser entendida como o equilbrio da equao reprodutibilidade tcnica versus preservao da aura. Para Benjamin, isso seria impossvel. Para Moulin, as copias controladas poderiam ajudar. Para mim, o que tem de certo modo aniquilado a aura no a sua reprodutibilidade, mas a vulgarizao das cpias e, paralelamente, o retorno imaterialidade da msica. O consumo fragmentado de faixas avulsas tambm deve ser levado em conta. O lbum personifica a obra e sua aura, torna-a palpvel. Embora ela continue sendo de certo modo virtual, a soma dos elementos abstratos (conjunto de fonogramas) com os concretos (arte grfica, ordenamento dos fonogramas, concepo geral do lbum) devem ser buscadas por aqueles que no quiserem ter a sua alma musical reduzida a p. Claro que o talento musical como j foi apontado antes imprescindvel. Embora hoje seja fcil se expressar para a maioria das pessoas que tem acesso aos recursos tecnolgicos de reprodutibilidade e circulao, poucos conseguem de fato expressar idias interessantes. Aqueles que conseguirem criar obras relevantes, to relevantes que independentemente do nmero de cpias ou suporte em que forem acondicionadas consigam deixar a aura intacta, tero como prmio a permanncia no hall de reconhecimento artstico independente de modismos. Mas, no momento em que os fonogramas so comercializados de forma isolada, simples arquivos binrios que no prezam pela qualidade sonora e unicidade (na contramo da escuta em fragmentao, faixas como migalhas), a aura se corri. O espetculo sempre ser supremo. Porm, ele possui um tempo de vida til. A experincia ao vivo depende do artista estar vivo. O lbum proporciona que novas geraes tenham contato com a obra. Assim foi com Jimi Hendrix, Beatles e uma srie de grandes artistas para a minha gerao.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS BENJAMIN, WALTER. Sobre arte, tcnica, linguagem e poltica. Lisboa: Relgio Dgua Editores, 1992. LERINA, ROGER. Ns te saudamos, AC/DC. In: Zero Hora, Segundo Caderno. Porto Alegre: RBS, 2008. MOULIN, RAYMONDE. O Mercado da Arte. Porto Alegre: Ed. Zouk, 2007. AUTOR, AUTOR. Ai que saudades do meu vinil. In: BACKSTAGE N 150. Rio de Janeiro: HSheldon, 2007. _________________. lbum ou Demo? In: BACKSTAGE N 151. Rio de Janeiro: HSheldon, 2007. _________________. Arte ou Negcio? In: BACKSTAGE N 154. Rio de Janeiro: HSheldon, 2007. _________________. Mainstream ou Underground? A fbula da indstria fonogrfica. In: BACKSTAGE N 157. Rio de Janeiro: HSheldon, 2007. OBRAS CONSULTADAS CHAPPLE, Steve et GAROFALO, Reebee. Rock e Indstria. Lisboa: Caminho, 1989. MORIN, Edgar. As Estrelas Mito e seduo no cinema. Rio de Janeiro: Editora Jos Olympio, 1972. MTV ONLINE. Viva o vinil. < http://www.mtv.com.br/vivaovinil > acesso em 29.10.2008 s 22hs. AUTOR, AUTOR. Kiss, O Mito vivo. Porto Alegre, 1998. U2. The Best of 1980-1990. Disco Compacto. Brasil: Polygram, 1998. WIKIPEDIA. Theda Bara. < http://pt.wikipedia.org/wiki/Theda_bara > acesso em 24.10.2008 s 23hs. __________. Walter Benjamin. < http://pt.wikipedia.org/wiki/Walter_Benjamin > acesso em 30.10.2008 s 21hs.