o paradigma do tempo benjamin e agamben

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O paradigma do tempo Walter Benjamin e messianismo em Giorgio Agamben

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O paradigma do tempoWalter Benjamin e messianismo

em Giorgio Agamben

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Page 3: O Paradigma Do Tempo Benjamin e Agamben

Revista Filosofia Política do Direito AGON

Vinícius Nicastro Honesko

O paradigma do tempoWalter Benjamin e messianismo

em Giorgio Agamben

Volume 3

Coordenação:João C. Galvão Jr.

Renato Nunes BittencourtWillis Santiago Guerra Filho

NPLAGON – Grupo de Estudos

Rio de Janeiro – 2009

Page 4: O Paradigma Do Tempo Benjamin e Agamben

Revista Filosofia Política do Direito AGON – Vol. 3

PRojeto GRáFico:

Daniel Rampazzo / casa de idéias

DiaGRamação:

Raquel coelho / casa de idéias

ReVisão:

Valéria isoppo

Honesko, Vinícius Nicastroo Paradigma do tempo: Walter Benjamin e messianismo em Giorgio agamben /

Vinícius Nicastro Honesko; coordenação joão c. Galvão jr., Renato Nunes Bitten-court, Willis santiago Guerra Filho. – Florianópolis : ed. do autor, 2009. – (Revista filosófica política do direito aGoN ; V. 3)

Pg. de rosto: NPL/aGoN-Grupo de estudos.Bibliografia.isBN: 978-85-909486-0-5

1. agamben, Giorgio, 1942- 2. Benjamim, Walter, 1892-1940 3. Biopolítica 4. ciência política 5. Direito - filosofia 6. messianismo 7. tempo - Filosofia i. Gal-vão junior, joão c. ii. Bittencourt, Renato Nunes. iii. Guerra Filho, Willis santiago. iV. título V. série.

09-05595 cDD-340.12

Índice para catálogo sistemático:1. Direito e a política : Filosofia 340.12

AGON – Grupo de Estudos

alexandre Fabiano mendes (UeRj)antonio augusto madureira de Pinho (UeRj)

Bruno cava (UeRj)joão c. Galvão jr. (UFF)

Renato Nunes Bittencourt (UFRj)Vinícius Nicastro Honesko (UFsc)

Willis santiago Guerra Filho (UNiRio)

NPL2009

Printed in Brazil

Page 5: O Paradigma Do Tempo Benjamin e Agamben

Sumário

Nota preliminar............................................................................. 7

Prefácio ........................................................................................ 9

Introdução ...................................................................................15

1. As duas torás: a solução messiânica judaica. ..........................27

2. Paulo e a lei da fé: a supressãomessiânica da divisão. ..............31

3. A katargein messiânica. ...........................................................39

Digressão I – Bartleby: um novo messias ....................................43

4. Salvação e tempo: o cumprimento messiânico do tempo. ..........47

5. A lei: da vigência sem significado à exceção efetiva. ..................55

Digressão II - Dispositivos ..........................................................66

6. As imagens históricas:messianismo e espetáculo .....................79

Posfácio ......................................................................................95

Referências ..................................................................................99

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Nota preliminar

Diz-se que um texto ganha independência tão logo escrito. Como anunciou Barthes, o autor está há muito morto. As ilações e possibilidades que a um texto podem ser atribuídas não per-manecem atreladas à intencionalidade do autor. Este, uma vez concluído seu trabalho, não mais consegue impor ao texto seu sentido. O texto fala por si. Dois anos após a conclusão deste tra-balho – escrito como parte da dissertação de mestrado defendida pelo autor em junho de 2007 e que, quase em sua totalidade, permanece como tal (as modificações feitas se deram principal-mente em algumas notas e trechos nebulosos) – voltar ao texto e tentar redimensiona-lo para uma publicação, além de tarefa ár-dua, mostra-se como um estranhamento inexorável entre o uma vez escrito e aquilo que hoje se intenta escrever. Por mais que o autor possa declarar que suas posições ainda sejam similares àquelas, não pode, no entanto, entender-se como idêntico àquele autor de 2007. Por óbvia que tal afirmação possa parecer, talvez não seja por isso menos importante que seja dita. Voltar a um trabalho que supostamente estava acabado, voltar a um tempo outro, cujas portas já parecem cerradas, é, para aquele que as-sim pretende, um modo de acertar as contas consigo mesmo. Porém, esse regresso, que se dá pela via do combate, exibe um imenso estranhamento entre o eu presente e o eu passado. Este, com quem aquele incessantemente pretende se encontrar, vira suas costas para a luta e, nesse gesto, deixa sim ao outro uma possibilidade de vitória, no entanto, uma vitória que só pode ser vergonhosa. O incessante jogo de apagar, reeditar, reescrever, que o já de antemão vitorioso sujeito do presente empreende li-vremente (já que o outro refutou a batalha), pode tentar camuflar as imperfeições por ele percebidas, mas jamais consegue apagar

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as indeléveis assinaturas que marcam este campo de batalha (o texto) com a sua insígnia. A aposta do autor na remoção e modi-ficação do texto – que obviamente se fazem necessárias, uma vez que esse foi extraído à força de um conjunto do qual fazia parte –, ainda que úteis acessórios para o leitor desta edição, não pode, entretanto, anular aquilo que o autor a todo custo não cessa de não aceitar como seu mas que, no entanto, é justamente aquilo que lhe é mais próprio: uma simples vergonha que, tal qual aque-le que ruboriza ao expor seu corpo nu, revela uma cara verdade de si.

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Prefácio

Sem ufanismo, por ser co-responsável pela sua edição, nem elo-gios gratuitos, muito comuns em prefácios, venho aqui registrar, brevemente, porque considero extremamente oportuna a publica-ção do presente texto, elaborado a partir da excelente dissertação apresentada pelo A. na Universidade Federal de Santa Catarina, orientada por Jeanine Nicolazzi Philippi, com a participação direta de Giorgio Agamben. Para tanto, vale começar relembrando a “1ª. Tese sobre o Conceito de História”, de Benjamin, traduzida como entendo deva sê-lo, transcrevendo em rodapé o texto original, se-guido da tradução de dois reconhecidos especialistas:

Sabemos de um autômato, construído para revidar lan-ces no jogo de xadrez, de um modo que lhe garantisse a vitória sempre. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colo-cado numa grande mesa. Um sistema de espelhos cria-va a ilusão de que a mesa era visível por todos os lados. Na realidade, um anão corcunda se sentava nela, um mestre enxadrista, e dirigia com cordéis a mão do fanto-che. A este aparato pode-se imaginar uma contrapartida na filosofia. A vitória seria sempre do boneco que cha-mamos “materialismo histórico”. Ele pode confrontar-se, sem problema, com qualquer adversário, desde que tome como serva a teologia; hoje, sabidamente, pequena e feia, não devendo deixar-se ver de jeito nenhum.1

1 “Bekanntlich soll es einen Automaten gegeben haben, der so konstruiert gewes-en sei, dass er jeden Zug eines Schachspielers mit einem Gegenzuge ewidert habe, der ihm den Gewinn der Partie sicherte. Eine Puppe in türkischer Tra-cht, eine Wasserpfeife im Munde, sass vor dem Brett, das auf einem geräumi-gen Tisch aufruhte. Durch ein System von Spiegeln wurde die Illusion erweckt, dieser Tisch sei von allen Seiten durchsichtig. In Wahrheit sass ein buckliger Zwerg darin, der ein Meister im Schachspiel war und die Hand der Puppe an Schnüren lenkte. Zu dieser Apparatur kann man sich ein Gegenstück in der Phi-losophie vorstellen. Gewinnen soll immer die Puppe, die man ‘historischen Mate-

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O que Benjamin deixa aí transparecer do que percebeu com toda clarividência, ao escrever isso em seus apontamentos finais - então prestes a pôr fim à própria vida, em face do cerco nazista -, agora está ofuscantemente claro, diante de nós. E isso, note-se, não deve nos levar a considerá-lo como profeta inspirado misti-camente, mas tão-somente como alguém dotado da hiper-lucidez dos grandes filósofos, que lhes permite perceber no presente o que a maioria precisará de muito mais tempo para se dar conta, em seu futuro. E aos comentadores, seguidores, pósteros, como o é Agamben para Benjamin, assim como Vinícius para Agamben e Benjamin, resta a tarefa de desfazer o ofuscamento, mostrando-nos o que se revelara a seus avatares.

A teologia cristã, desenvolvida ao longo de séculos, pondo a seu serviço a filosofia grega (philosophia serva theologiae), forjou ideo-logicamente a modernidade, assim como a política eclesiástica “ca-tólica apostólica romana” - uma vez adotada a religião cristã pelo Império romano periclitante, a fim de, assim, escapar, pelo menos no lado oriental, de sua crise de legitimidade, dada a perda de seu fundamento religioso – irá produzir o modelo jurídico (o Estado) e econômico (o capitalismo) adotados modernamente. E é essa teolo-gia, pequena e feia, que se mostrou tanto mais eficaz, quanto me-nos se deixou ver, uma vez revelada sua feiúra e pequenez, pela luz da razão, passando a fazer-se presente em todas as diferentes ver-sões da ideologia moderna, inclusive aquelas de matriz marxista, com seu determinismo histórico e messianismo da volta do estado primitivo paradisíaco, preconizando o advento, futuro e certo, do

rialismus’ nennt. Sie kann es ohne weiteres mit jedem aufnehmen, wenn sie die Theologie in ihren Dienst nimmt, die heute bekanntlich klein und hässlich ist und sich ohnehin nicht darf blicken lassen”. “Como se sabe, deve ter havido um autômato, construído de tal maneira que ele, a cada jogada de um enxadrista, respondia com uma contrajogada que lhe assegurava a vitória da partida. Diante do tabuleiro, que repousava sobre uma ampla mesa, sentava-se um boneco em trajes turcos, com um narguilé na boca. Um sistema de espelhos despertava a ilusão de que essa mesa era transparente de todos os lados. Na verdade, um anão corcunda, mestre no jogo de xadrez, estava sentado dentro dela e conduzia por fios a mão do boneco. Pode-se imaginar na filosofia uma contrapartida dessa aparelhagem. O boneco chamado ‘materialismo histórico’ deve ganhar sempre. Ele pode medir-se, sem mais, com qualquer adversário, desde que tome a seu serviço a teologia, que, hoje, sabidamente, é pequena e feia e que, de toda ma-neira, não deve deixar-se ver” (G.S. I-2, p. 693). Tradução [manuscrito] de J.M. Gagnebin e M. Lutz-Müller.

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comunismo. Não é de estranhar, portanto, que Benjamin receasse a publicação das suas “Teses”, temendo ser vítima da incompre-ensão de seus próprios pares, como segredou na correspondência em que as encaminhou a Greta Adorno, esposa do filósofo – um dos que teriam dificuldade de entendê-lo? Explica-se assim o ex-pediente de enviar o texto através de mãos femininas? E dentre os obstáculos ao bom entendimento estaria justamente o problema trabalhado no texto que o leitor tem às mãos, a saber, a incompre-ensão de ser o tempo messiânico ou a concepção messiânica do tempo o pano de fundo das teses que Benjamin nos legou como testamento, tanto que assim foram recebidas por Derrida (v. no seu livro “Força de Lei” o texto a ele dedicado), embora enfatizando o que nas “Teses” aparece como a oitava, e que toca mais direta-mente com a filosofia (política) do direito, à qual aludirei adiante, ao final. No momento, cabe indicar a prolongada influência secre-ta da teologia, o que se coloca como tarefa primordial a ser estu-dada, para os que se interessam por entender os tempos em que vivemos e, então, saber como intervir para favorecer a redenção, a revolução, em detrimento da danação, da destruição humana do mundo, humano e natural, com a qual nos deparamos hoje.

O anão corcunda, pequeno (mesquinho) e feio, que lembra em sua descrição o mais feio dos homens, o último homem do uni-verso nietzscheano (explorado no primeiro número dessa Revista), apresenta-se a público agora, desavergonhadamente, por exemplo, fazendo uma nova cruzada contra a vida, enquanto bíos, em nome da vida, enquanto zoé, vida nua, como a define Agamben, dentro do projeto Homo Sacer, aquela que sobra aos que foram desvesti-dos de uma qualquer forma humana de viver, nós, os ameaçados constantemente pelo estado de exceção permanente em que vive-mos, nas atuais ameaçadoras condições de vida no planeta.

Eis que nos deparamos com um incessante avanço do que já foi definido como uma “guerra civil mundial”, com motivos religio-sos e econômicos que a tornam, em tudo e por tudo, semelhante àquelas guerras civis que antecederam, na modernidade, a for-mação, como uma reação, de Estados nacionais, e na ausência de um Estado mundial correspondente à convulsionada socieda-de civil mundial, o Estado de exceção, certamente não por acaso, tende cada vez mais a se apresentar em todo lado, com intensida-

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de variada, como o paradigma de governo dominante na política contemporânea, tal com enfatiza Agamben, na esteira também de Foucault – este foi o tema do número anterior desta Revista de Fi-losofia Política do Direito. A um tal Estado não haveria outro modo de qualificar, se não pelo oxímoro “Estado de não-direito”, que é a resposta imediata do poder estatal aos conflitos internos mais ex-tremos, donde apresentar-se, paradoxalmente, como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal, com a possibilidade aterro-rizante de, a qualquer momento, qualquer um vir a ser tratado, pelos concidadãos ou agentes públicos, como os antigos romanos tratavam aqueles a quem imputavam a condição de homo sacer. O emprego constante e sub-reptício de medidas concebidas como provisórias e excepcionais, enquanto técnica de governo, regular e privilegiada, termina resultando em uma indeterminação entre democracia e autoritarismo, sendo o regime nazista um caso mais agudo e a atual situação em que nos encontramos, entre nós e pelo mundo afora, um exemplo (por enquanto) mais brando e re-cente, motivo de grande preocupação, pelo nível de degradação crescente a que se vem chegando, nessa esfera de indeterminação entre o Direito e a política. Essa é a temática a ser desenvolvida com a maior urgência, em sede de filosofia do direito e do Estado, com apoio, sobretudo, em Giorgio Agamben, o qual, por seu tur-no, retoma desenvolvimentos devidos a pensadores tão distintos, como são Walter Benjamin e Carl Schmitt, no espectro das opções ideológicas; apesar de muito próximos em termos pessoais, pois foram amigos, e intelectuais, pela crítica romântico-barroca que faziam à modernidade racionalista, ainda que por motivos diversos – a reação católica, no caso de Schmitt, e a revolução proletária, em Benjamin. Trata-se de tema que se apresenta como uma an-tinomia, geralmente evitada pelo pensamento formalista reinante no Direito, o qual não estaria preparado sequer para percebê-lo. Demonstração cabal do que se vem de afirmar é dada pelo modo como a revolução vem considerada por teoria que leva os pressu-postos formalistas às suas últimas conseqüências, como é o caso daquela kelseniana, quando há uma perspectiva a ser ofertada, e a ser ainda desenvolvida, de reação possível e proporcional a essa si-tuação-limite a que chega o Direito em tais circunstâncias, mesmo no âmbito de um Estado, formalmente, de Direito e Democrático,

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qual seja, o exercício de um direito fundamental à revolução, um direito que, negado, termina sendo “achado na violência”, como diria nosso João Galvão.

Chegados a esse ponto, para não prender por mais tempo o leitor que tenha se detido neste ‘Prefácio’, vou finalizar, tal como comecei, com outra das “Teses sobre o Conceito de História”, de Benjamin, a já anunciada These VIII, que espero, neste contexto, ajude a elucidar o que pretendi dizer agora, e, também, quem sabe, seja assim melhor elucidada.

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “Estado de exceção”, no qual vivemos, é a regra. Devemos chegar a um conceito de história que esteja à altura dele. Aí nossa tarefa será expor diante de nossos próprios olhos o efetivo Estado de exceção; e por este meio melhoramos nossa posição na luta contra o fascismo. A possibilidade disso (ocorrer) repousa, de modo significativo, no fato de que o antagonista , em nome do progresso, o considera uma lei histórica. O espanto com o que, em pleno século XX, ainda seja possível presenciar coisas assim, não é o espanto filosófico (aquele em que a filosofia tem sua origem, segundo Platão e Aristóteles – WSGF). Ele não funda nenhum conhecimento, pois se assim o fora, a concepção de história, decorrente de um tal conheci-mento, seria insustentável.2

Willis Santiago Guerra FilhoProfessor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas

da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (CCJP-UNI-RIO). Professor de Filosofia do Direito do Programa de Estudos

Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

2 No original: “Die Tradition der Unterdrückten belehrt uns darüber, daß der ´Ausnahmezustand´, in dem wir leben, die Regel ist. Wir müssen zu einem Begriff der Geschichte kommen, der dem entspricht. Dann wird uns als un-sere Aufgabe die Herbeiführung des wirklichen Ausnahmezustands vor Augen stehen; und dadurch wird unsere Position im Kampf gegen den Faschismus sich verbessern. Dessen Chance besteht nicht zuletzt darin, daß die Gegner ihm im Namen des Fortschritts als einer historischen Norm begegnen. - Das Staunen darüber, daß die Dinge, die wir erleben, im zwanzigsten Jahrhundert ´noch´ möglich sind, ist kein philosophisches. Es steht nicht am Anfang einer Erkenntnis, es sei denn der, daß die Vorstellung von Geschichte, aus der es stammt, nicht zu halten ist”.

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Introdução

Pensar a figura do tempo – que já nessa colocação figurati-va ganha espacialidade e representatividade – acomete quem assim o pretende de um sério problema, qual seja: dizer e ex-por simultaneamente o próprio tempo sem, no entanto, con-tar com uma suplementariedade temporal (um tempo outro, além do tempo em que se encontra aquele que pensa).

Representações espaciais do tempo acabam por pressupor um sentido para a história. Isto é, há uma filosofia da história, há um sentido histórico-filosófico, que encontra toda sua força na narrativa da única história possível – que é aquela que já aconteceu e já foi narrada, a História Universal (e não é por aca-so que Hegel diga que a filosofia é “o próprio tempo apreendido no pensamento”, pois aqui a história é contada à luz do conceito, ou melhor, o Espírito reconhece a história como sua para dela se apropriar determinando-se assim como liberdade1). Pensar o tempo em termos espaciais pode ser um comprometimento com uma História – e não seria demais pensar aqui de acordo com o princípio de razão suficiente leibniziano: a única história possí-vel, aquela que relata exatamente aquilo que foi.

Se toda cultura é uma forma de fazer experiência do tempo, como pensar, portanto, algo novo – uma nova concepção de direito, um agir revolucionário, uma nova cultura, um novo mundo – sem antes repensar a concepção de tempo que àque-la experiência sobeja e condiciona?2 (E é bom lembrar – em

1 Cf. GIVONE, Sergio. Il Bibliotecario di Leibniz. Filosofia e Romanzo. Torino: Einaudi, 2005.

2 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Destruição da experiência e ori-gem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005. Tradução: Henrique Burigo. p.111.

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sentido messiânico – o que disse Benjamin: “Ninguém disse, de fato, que as deformações que um dia o Messias virá a corrigir são apenas deformações de nosso espaço. São também deformações de nosso tempo.”3) Uma vez atados a uma idéia tradicional de tem-po (uma compreensão de tempo vazio, homogêneo e uniforme que deve ser preenchido pelos atos humanos), não resta muito senão a repetição do previsível e a sedução triste do totalitarismo.4

O problema do tempo não pode ser vislumbrado sem que an-tes seja vista sua conexão primordial com o problema da lingua-gem. Isto é, novamente a história. Porém, aqui se prefere declinar história no plural, portanto, histórias (e, não poderia deixar de ser diferente, narrações). O que se pretende com isso? De fato, a intenção aqui é justamente a de perder-se, abandonar um sentido histórico em detrimento de um inacabamento histórico – o infinito da possibilidade da literatura. Linguagem e tempo; linguagem no tempo, portanto, história(s).

Talvez um lugar importantíssimo (que hoje pode ser visto como caricatural) de narrativas históricas seja o confessionário católico romano – que, como lembra Agamben, quiçá seja o dispositivo5 por excelência da formação de subjetividade na cultura ocidental. Mas de que história se trata no confessionário? Da revelação de verdades onerosas sobre si de um eu a um outro que as inter-preta e as julga, liberando ou condenando aquele que as narra. A história contada pelo confessando ao confessor passa necessa-

3 BENJAMIN, Walter. A Modernidade e os Modernos. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, 1975. Tradução: Heidrun Krieger Mendes Silva; Arlete de Brito; Tânia Jatobá. p. 101.

4 Cf. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Pau-lo: Perspectiva, 2004. p. 95.

5 Como se verá Agamben desenvolve sua compreensão de dispositivo a partir de Foucault. Ainda que conceito central dos escritos foucaultianos, dispo-sitivo não é definido pelo filósofo francês. Apenas numa entrevista de 1977, publicada nos Dits et Écrits, é que Foucault dá algumas notas gerais da sua compreensão do termo. Cf. FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits. III. 1976-1979. Paris: Éditions Gallimard, 1994. p. 299. Agamben, ao contrário, trata de defi-nir o conceito de dispositivo a partir de uma pesquisa arqueológica e filológica, de modo a recuperar nos textos teológicos da Alta Idade Média uma origem do conceito. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Che cos’è un Dispositivo. Roma: Nottetempo, 2006. Há uma versão desse texto publicada no Brasil quando da visita de Agamben em 2005. Cf. AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: Outra Travessia, Revista de Literatura, nº5. Ilha de Santa Catarina, 2º Semestre de 2005. Tradução: Nilcéia Valdati. Lembro também minha recente tradução desse ensaio publicada juntamente com O que é o Contemporâneo? e O Amigo pela editora Argos. Cf. AGAMBEN, Giorgio. O que é o Contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

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riamente pelo crivo da consciência do próprio narrador; trata-se sempre da passagem de um não-dito (o que o confessando guarda para si como pecado) a um dito (a história que narra o pecado); ou, de outro modo, a consciência (saber-com) funciona como li-miar dessa passagem do não-dito ao dito (importante, contudo, é que tal passagem é feita sempre com vistas a uma negação do que foi narrado, isto é, o eu confessando, no instante mesmo em que enuncia seus pecados, nega a si mesmo para que um outro eu – novo e purificado – surja). Após a absolvição pelo sacerdote um novo sujeito nasce, agora livre do seu eu pecador; novo, porém, já fadado à fraqueza da carne (não demorará muito para que volte ao confessionário). O tempo em que vive um sujeito confessando é, portanto, sempre homogêneo e vazio; isto é, é sempre um espaço a ser preenchido com ações que giram numa repetição insondável à espera de redenção.

Num outro vértice, é importante ressaltar que além de disposi-tivo eclesiástico de governo dos fiéis, a confissão se estabelece tam-bém como gênero literário (numa espécie de auto-biografia). Talvez o maior exemplo de texto confessional sejam as Confissões de Agos-tinho. Ao buscar incessantemente a verdade e ao relatar sua vida pregressa e suas angústias, Agostinho não pode deixar de confes-sar – isto é, negar-se a si mesmo para constituir-se homem santo. Porém, como bem lembra Jeanne Marie Gagnebin, ao articular-se em texto, com uma trama, um enredo, as Confissões deixam de ser apenas uma narração de verdades factuais e passa a compartilhar das estratégias de ficção das narrativas literárias.6 O lugar da narra-ção confessional é sempre um ambíguo limiar “no qual a segurança da verificação histórica e a arbitrariedade da imaginação literária se relativizam e se constituem mutuamente”7, ou, dito de outra manei-ra, uma fronteira na qual mythos (a narração que se pretende pura narração, ficção, uma história entre histórias) e logos (a narração que se pretende verdade, conceitual, final) se tocam.

As Confissões são, portanto, o lugar no qual Agostinho mata seu velho homem, ao dizer o que permanecia não-dito sobre si, para

6 GAGNEBIN, Jeanne Marie. 7ete. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 68.

7 Idem.

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constituir-se em homem novo, a nova consciência que se abre às novas angústias; o pensamento de Agostinho, ao enunciar tais an-gústias, marca uma nova compreensão do tempo: ele sabe de sua condição temporal e mortal, ou seja, interioriza e tem consciência do tempo (é cindido interiormente entre um não-dito e um dito; sabe-com; e, portanto, confessa).

Ao ter consciência do tempo, Agostinho não se furta de tentar compreendê-lo:

Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e bre-vemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por con-seguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.8

O saber sobre o tempo é, portanto, sempre fundamental – no sentido daquilo que vai ao fundo, encolhe-se e resta não visto, ser-vindo como suporte para aquilo que vem à tona. De certo modo, o saber sobre o tempo enclausura-se numa dimensão outra (trans-cendente), não dita, silenciosa e que não consegue exprimir-se (“se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”). O que fica implícito nesses argumentos de Agostinho é, portanto, uma dicoto-mização entre uma explicação que pretende saber o tempo (um sa-ber abstrato e especulativo – filosófico – isto é, um saber sobre o ser do tempo) e uma prática cotidiana, que sabe da existência do tempo e é a própria condição para a narração (a existência de um tempo presente a partir do qual se escreve sobre um tempo passado).

Nesse vertiginoso exercício, a busca por uma essência tem-poral – um tempo em estado puro – parece fadada ao insucesso. Porém, como falar apenas de uma régua temporal distendida e sobre a qual realiza(m)-se a(s) história(s)? Na leitura que Gag-nebin faz das Confissões,9 coloca de modo elucidativo que não é

8 AGOSTINHO. Confissões; De Magistro. São Paulo: Abril Cultural, 1980. pp. 217-218.

9 Cf. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Dizer o tempo. In. Op. Cit. pp.67-77.

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disso que se trata. Ela ressalta que quando Agostinho não pro-cura mais pensar o quid do tempo, falando a partir de um fora do tempo, sobre o objeto tempo, passa a descrever a experiên-cia temporal não em termos espaciais objetivos, mas intencio-nais: a distentio, ou a luta dolorosa entre o lembrar e o esperar, e a attentio, que tenta pensar tal luta no presente privilegiado de apreensão dessa diferença.10 Entretanto, ainda que de tais análises seja possível vislumbrar já em Agostinho um tempo fragmentário e esburacado, o fato é que a espera pela redenção vindoura, num outro tempo – a cidade celeste –, é o verdadeiro desejo agostiniano.

De modo geral, é possível dizer que há em Agostinho, por essa leitura, um germe de possibilidades para um outro pensamento sobre o tempo. Porém, para além da esperança num tempo vin-douro, é preciso experimentar um tempo-fragmento que, contu-do, sabe-se finito e efêmero e, além de tudo, insalvável.

É interessante lembrar também, de passagem, a tradição ju-daico-cristã da qual Agostinho é, de certo modo, herdeiro. Nessa compreensão, como lembra Scholem,11 a régua cronológica é bi-partida em dois olamim (mundos): olam hazzeh, o tempo profano, o mundo desde a sua criação até o seu fim, que se dá no Dia do Juízo, o grande evento escatológico, e olam habba, a eternidade que se segue ao fim do mundo, o tempo divino, o mundo que vem. A tradição judaico-cristã carrega também uma compreensão do tempo na qual este é homogêneo e linear. Ou seja, uma espera pelo tempo vindouro regulariza a temporalidade – dá-lhe um sen-tido ainda a partir do exterior.

E como romper de modo efetivo com essa idéia enclausurante? Daqui o interesse pela proposta benjaminiana. Nela há a exigên-cia de um pensamento para além da representatividade do tem-po. Benjamin propõe a fratura dessa régua temporal em espasmos lampejantes, e é justamente na fratura – diga-se, uma quebra da própria separação dos tempos (dos olamim) – que está a possibili-dade de um novo tempo, nem chronos (olam hazzeh, tempo huma-

10 Idem. p. 75-76.11 Cf. SCHOLEM, Gershom. A Cabala e seu Simbolismo. São Paulo: Perspectiva,

1978.

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no), nem eternidade (olam habba, tempo divino), mas um tempo de agora (Jetztzeit), um kairós, um tempo do messias. Essa cesura na cisão mesma dos tempos inaugura um estatuto limiar do próprio tempo e da história, esta que não poderia mais ser a intencionali-dade de uma narração rememorativa dos historiadores das classes dominantes, tampouco uma nova história, dos oprimidos e venci-dos, mas entrecortada, limiar, estilhaçada, kairológica.

A breve proposta aqui traçada tem nesse tempo de agora, que é o tempo messiânico, seu núcleo intraduzível (lembrando o ensaio sobre a tarefa do tradutor de Benjamin). Tal núcleo será caracterizado como o seio de um desperdício ontológico, uma perda de lembrança (um esquecimento) que é a matéria viva do kairós e que não quer ser lembrada numa narrativa histórica que busque a verdade – isto é, que imporia um sentido a uma suposta vacuidade linear do tempo –, mas sim apreendida como ruína, como um real que sempre se quer novamente possível. Esta e não outra é a tarefa do messias: tornar inoperante toda representação da vida num espaço cronológico (liso, homogêneo e vazio – apenas preenchido e narrado a posteriori pela história que lhe dá sentido), para que se libere toda potência explosiva do instante, do kairós.

Benjamin, no texto que talvez dê mais acabamento às suas idéias sobre o tempo – as Teses sobre o Conceito de História –, faz seus ataques contra a concepção de tempo homogêneo e vazio da social-democracia alemã de então. Assim, diz ele: “A história é o objecto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, antes formando um tempo pleno de ‘agora’.”12 A linearidade homogênea tendente a um cumprimento progressivo – idéia que vem das Luzes dos séculos XVII e XVIII – exprime-se justamente pelo seu modelo representativo: o tempo sempre é colocado como uma linha seccionada pontualmente pelo presente, que é um es-paço inapreensível e que serve apenas como indicativo de fim do passado e início do futuro. Nessa flecha que aponta para seu fim, o ponto presente esvai-se num aparente transmutar-se em nada de

12 BENJAMIN, Walter. Teses sobre a Filosofia da História. In.: Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio d’água, 1992. Tradução: Suzan Lages Kampf. p. 167.

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tempo – como o querem os céticos –, numa conexão inapreensível entre o passado e o futuro.

As representações progressistas, ao postularem um tempo-espa-cial tal qual aqui assinalado, armam, de certo modo, um dispositivo de fundamento para a História. Isto é, na constatação de sua ori-gem (nessa leitura existe uma arché cronológica do tempo – datada, originária –, uma arché como origem meta-histórica, um tempo ori-ginal, um ponto de explosão inicial do tempo) e na espera pelo seu fim, resta aos viventes preencherem tal homogeneidade-vacuidade com seus corpos mortais que esperam pela própria glorificação no além-tempo (no dia depois do juízo, isto é, na eternidade).

A idéia de um tempo outro não coincidente com o tempo pro-fano nem com o tempo vindouro, implica um novo pensamento do tempo. Uma compreensão de tempo messiânico parece estar implícita, como um pano de fundo, nas Teses sobre o Conceito de História. À eternização do passado – que se esgota “no bordel do historicismo com a prostituta ‘Era uma vez’”13 –, Benjamin preten-de “um presente que não é passagem, mas que se mantém imóvel no limiar do tempo.”14 Para ele, a cronologia historiográfica – linear e homogênea – mostra-se inapta à revelação desse tempo de agora (do kairós messiânico). Jeanne-Marie Gagenbin lembra que a opo-sição de Benjamin aos embotamentos causais do historicismo se dá justamente no seu conceito de Jetztzeit (tempo de agora).

O instante imobiliza esse desenvolvimento temporal infi-nito que se esvazia e se esgota e que chamamos – rapida-mente demais – de história; Benjamin lhe opõe a exigência do presente, que ela seja o exercício árduo da paciência ou o risco da decisão. Se o lembrar do passado não for uma simples enumeração oca, mas a tentativa, sempre reto-mada, de uma fidelidade àquilo que nele pedia um outro devir, a estes “signos dos quais o futuro se esqueceu em nossa casa” como as luvas ou o regalo que uma mulher desconhecida, que nos visitou em nossa ausência, deixou numa cadeira, então a história que se lembra do passado também é sempre escrita no presente e para o presente.15

13 Idem p. 168.14 Idem. p. 167.15 GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. p. 97.

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A visita do estranho na ausência do anfitrião (que Gagnebin lê aqui em Notícia de uma Morte, do Infância em Berlim por volta de 1900 – e o que chama atenção nesse texto é a idéia do deja vu que “nos remete ao frio jazigo do passado, de cuja abóbada o presente parece ressoar apenas como eco”16) é um signo alegórico da po-tência de um inesquecível que, mais do que relatos da lembrança voluntária – de um eu que narra a história passada na terceira pessoa –, surge como massa informe das perdas da memória, da-quilo que não foi recolhido em discurso histórico, mas que exige seu pertencimento ao presente, ainda que seja como perdido (que não exija sua comemoração) e, dessa forma, inesquecível.

A persistência de um inesquecível deve permanecer imanente-mente atrelada à possibilidade do kairós, das fagulhas da explo-são da linha do tempo. Remeter os estilhaços para a ulteriorida-de do eterno seria re-aprisionar a própria instantaneidade num dispositivo que pode ser representado pela idéia, por exemplo, de um Paraíso. Dessa maneira, os usufrutuários de tal tempo não seriam aqueles que o vivem, mas apenas seu duplo. Nesse sentido, fazem-se interessantes algumas análises de Jean-Pierre Vernant,17 para quem, já em Platão, encontra-se acabada a in-versão dos papéis – iniciada por seitas filosófico-religiosas, como os pitagóricos – entre o corpo e o fantasma. Enquanto na Grécia de Homero se fala em duplos dos viventes18 (que são uma ausên-cia na presença), cuja figura era o phasma, o fantasma, que se liberava somente após a morte e que, portanto, não poderia ser tido como uma alma, psykhé, do vivente, em Platão é o corpo vivo que se torna aparência ilusória do único ser verdadeiro e para sempre, o qual não é mais este do corpo vivente, mas sim a psykhé imortal, a alma. Assim, diz Vernant, “passamos da alma

16 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasilien-se, 2000. p. 89

17 VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito & Política. São Paulo: Edusp, 2002. pp. 427-434.

18 Idem. p. 428. “Um duplo é totalmente diferente de uma imagem. Não se trata de um objeto ‘natural’, mas também não se trata de um produto mental: nem uma imitação de um objeto real, nem uma ilusão do espírito, inscrita no mundo visível, mas que, até em sua conformidade com o que simula, singualariza-se devido ao seu caráter insólito com relação aos objetos familiares, ao cenário comum da vida. O duplo joga ao mesmo tempo sobre dois planos contrastantes: quando se mostra presente, revela-se como não sendo daqui, como pertencendo a um alhures inacessível.”

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como duplo fantasmagórico do corpo para o corpo como reflexo fantasmagórico da alma.”19 Nesse exercício platônico aconteceria o reencontro do vivente com sua centelha divina, que habita seu corpo como uma espécie de parcela de imortalidade, perenidade, divindade e imutabilidade e para a qual rumariam as experiên-cias e vivências humanas. No entanto, o completo encontro seria impossível já neste mundo, restando para o vivente apenas a es-perança de um cumprimento na pletinute dos tempos.

Do mesmo modo, também na teologia cristã se forma um dis-positivo que aprisiona a possibilidade de vivência do tempo na sua dimensão kairológica, qual seja, o corpo glorioso. A partir da idéia de uma zoé aiónios – vida eterna –, os teólogos, de Orígenes a Tomás de Aquino, substituem a doutrina da vida messiânica por aquela da vida gloriosa, esta “que isola a vida eterna e a sua inoperosidade numa esfera separada”20 e cujos atributos seriam a impassibilidade, a agilidade, a sutileza e a claridade.

Assim, tanto na idéia da psykhé platônica, quanto nas idéias de um corpo glorioso da teologia cristã, está implicitamente con-tida a concepção de uma anamnésis (de uma rememoração) de um além-mundo, de um além da história. Isto é, a armação de um sentido para a vida se dá sempre a partir de um exterior – o verdadeiro, o ser, o Absoluto.

Porém, numa concepção de história kairológica, que finca suas bases numa imanência absoluta, não é nesse exterior que se busca um sentido (na psykhé, na glória eterna etc.). Pelo contrário, é no tornar inoperante tal lógica, assumindo-se como resto, como corpo messiânico que é sim imagem e aparência deformada da eternida-de já totalmente esvaziada, que pode ser aberta uma nova perspec-tiva para a história, para a vida que é o tempo que resta.

Tocar esse complexo tema de simulações imagéticas abre um imenso campo de tensões no qual toda a discussão da filosofia da

19 Idem. p. 432.20 AGAMBEN, Giorgio. Il Regno e la Gloria. Per una genealogia teologica dell´economia

e del governo. Vicenza: Neri Pozza, 2007. p. 272. “(...) che isola la vita eterna e la sua inoperosità in una sfera separata.” [As traduções dos trechos das edições em outras línguas constantes no corpo do texto são do autor que optou por deixar o original em nota de rodapé.] Em seu último livro Agamben desenvolve melhor suas compreensões acerca da idéia de corpo glorioso. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Nudità. Roma: Nottetempo, 2009. pp. 129-146.

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história e da linguagem pode ser vista por outros ângulos (toda a questão das imagens dialéticas benjaminianas, bem como o debate contemporâneo a respeito da importância das imagens para se pensar a história21). No entanto, é importante anotar que falar em imagem aqui não é pensá-la como um arquétipo ideal, um fora da história (ou como propulsor original do tempo – uma arché com sentido de origem meta-histórica22), por mais sedutora que tal leitura possa ser. Ou seja, no seio de um tempo novo, um kairós, a imagem se enche de história e, desse modo, é a própria experiência histórica que se faz através das imagens.23 Não que isso torne a história impossível. Ao contrário, ela é sempre ana-crônica24 e kairológica, é a história no tempo messiânico. Ou ain-da, lembrando as análises de Agamben sobre as ninfas:

A história da humanidade é sempre história de fantas-mas e de imagens, porque é na imaginação que tem lu-gar a fratura entre o individual e o impessoal, o múltiplo e o único, o sensível e o inteligível e, ao mesmo tempo, a tarefa da sua dialética recomposição. As imagens são o resto, o traço daquilo que os homens que nos prece-deram esperaram e desejaram, temeram e removeram. E já que é na imaginação que algo como uma história tornou-se possível, é através da imaginação que essa deve a cada instante novamente se decidir.25

21 O profícuo debate contemporâneo passa por autores como Giorgio Agamben, Georges Didi-Huberman, Marie-José Mondzain, Raúl Antelo, para citar alguns nomes que atualmente desenvolvem pesquisas nesse âmbito.

22 Para uma discussão a respeito da questão da origem pode-se aventar os já clássi-cos textos de Benjamin e Foucault, respectivamente: BenJamin, Walter. El origen del ‘Trauerspiel’ alemán. In: Obras. Libro I/vol. I. Madrid: Adaba Editores, 2006. Traducción: Alfredo Brotons Muñoz. e FOUCAULT, Michel. Nietzsche, la Généalo-gie, l’Histoire. In.: Dits et Ecrits. 1954-1988. II 1970-1975. Paris: Gallimard, 1994. Recentemente Giorgio Agamben também desenvolve tais conceitos em alguns tex-tos interessantes. Vale ressaltar dois deles, cuja importância é salutar: AGAM-BEN, Giorgio. Archeologia di un’Archeologia. In.: MELANDRI, Enzo. La Linea e il Circolo. Studio logico-filosofico sull’analogia. Macerata: Quodlibet, 2004. e AGAM-BEN, Giorgio. Signatura Rerum. Sul metodo. Torino: Bollati Boringhieri, 2008.

23 AGAMBEN, Giorgio. Image et Mémoire. Paris: Editions Hoëbeke, 1998. p. 67.24 Interessantes a esse respeito são as análises das imagens dialéticas benjaminia-

nas desenvolvidas por Didi-Huberman. Cf. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 2005. pp. 169-199. DIDI-HUBERMAN, Georges. Images Malgré Tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. DIDI-HU-BERMAN, Georges. La Ressemblance par Contact. Archéologie, anachronisme et modernité de l´empreinte. Paris: Les Éditions de Minuit, 2008.

25 AGAMBEN, Giorgio. Ninfe. Torino: Bollati Boringhieri, 2007. pp. 56-57. “La storia dell´umanità è sempre storia di fantasmi e di immagini, perché è nell´immaginazione

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Justamente nessa instantaneidade da decisão histórica, do fazer-se história no tempo messiânico, é que se escapa ao sonho sobre o qual se fundam crenças e filosofias do arquétipo26 (arché-typos: imagem original). Desse modo, o kairós (o Jetztzeit) é sempre a plenitude do tempo comprimida e contraída no instante presente. E é também nessa abrupticidade de uma história, que “arrisca sua própria decomposição”,27 que a felicidade, tal qual anunciada pelo Fragmento Teológico-Político benjaminiano, pode ser encontrada.

A ordem do profano deve se edificar sobre a idéia de fe-licidade. A relação dessa ordem com o elemento messiâ-nico é um dos ensinamentos essenciais da filosofia da história. Essa relação condiciona, de fato, uma concep-ção mística da história, cujo problema pode ser exposto em uma imagem. Representando-se por uma flecha o objetivo para o qual se exerce a dunamis do profano, por uma outra flecha a direção da intensidade messiânica, seguramente a busca pela felicidade da livre humanida-de tende a se desviar dessa orientação messiânica; mas do mesmo modo que uma força pode, por sua trajetória, favorecer a ação de uma outra força sobre uma trajetória oposta, assim a ordem profana do profano pode favorecer o acontecimento do reino messiânico. Se o profano não é uma categoria desse reino, ele é uma categoria, e entre as mais pertinentes, de sua imperceptível aproximação. 28

che ha luogo la frattura fra l´individuale e l´impersonale, il molteplice e l´unico, il sensi-bile e l´intellegibile e, insieme, il compito della sua dialettica ricomposizione. Le imma-gini sono il resto, la traccia di quanto gli uomini che ci hanno preceduto hanno sperato e desiderato, temuto e rimosso. E poiché è nell´immaginazione che qualcosa come una storia è diventata possibile, è attraverso l´immaginazione che essa deve ogni volta nuovamente decidersi.” Também a respeito da imaginação é interessante o texto de Emanuele Coccia, no qual o autor desenvolve várias idéias atinentes ao averroísmo. Cf. COCCIA, Emanuele. Filosofía de la Imaginación. Averroes y el averroísmo. Bue-nos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2008. Traducción: María Tereza D’Meza.

26 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que Vemos, o que nos olha... p. 192.27 GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. p. 99.28 BENJAMIN, Walter. Oeuvres I. Paris: Gallimard, 2000. p. 264. “L´ordre du pro-

fane doit s´édifier sur l´idée de bonheur. La relation de cet ordre avec l´élément messianique est l´un des enseignements essentiels de la philosophie de l´histoire. Cette relation conditionne en effet une conception mystique de l´histoire, dont le problème se peut exposer en une image. Si l´on represente par une flèche le but vers lequel s´exerce la dunamis du profane, par une autre flèche la direction de l´intensité messianique, assurément la quête du bonheur de la libre humanité tend à s´écarter de cette orientation messianique; mais de même qu´une force peut, par sa trajectoire, favoriser l´action d´une autre force sur une trajectoire opposée, ainsi l´ordre profane du profane peut favoriser l´avènement du royaume messianique. Si le profane n´est donc pas une catégorie de ce royaume, il est une catégorie, et parmi les plus pertinentes, de son imperceptible approche.”

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A redenção messiânica não está no futuro cumpridor do Reino de Deus, num além do tempo profano (tampouco no profano que espera pelo sagrado), mas apenas no presente do tempo messiâni-co, que não é realizado senão naqueles que são este tempo, isto é, aqueles que irreparavelmente já se encontram sempre lançados no presente, no limiar dos tempos, o tempo do limiar. Nesse sentido, no constante aniquilamento – num niilismo perfeito, que arranca a história do seu sentido totalizante – está, ambiguamente, a possi-bilidade da política messiânica. Sem o consolo da eternidade, res-ta uma política que não é uma modulação imanente (profana) de idéias transcendentes (sagradas), mas é absolvição e aniquilamen-to da ordem do sagrado no profano – isto é a idéia da felicidade.

Repensar o tempo como tempo messiânico, portanto, abre a pos-sibilidade de uma política não mais fundada sobre a especialização de uma vida política, uma forma de vida, uma bios (que se con-traporia a uma zoé, a pura vida natural), mas uma política infun-dada, que não procura seu princípio, seu fundamento, sua arché num passado imemorial – isto é, os dispositivos de sua fundação –, mas sabe que a origem, a arché, não pode se dar senão como o sempre presente, sempre contemporânea, sempre an-arché.

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1. As duas torás: a solução messiânica judaica.

“Assim também no tempo atual constituiu-se um resto segun-do a eleição da graça. E se é por graça, não é pelas obras; do con-trário, a graça não é mais graça.” (Rm, 11:5-6) Paulo, nesse trecho da Carta aos Romanos, dá o tom de sua concepção global do que acontece com o evento messiânico e já indica a ruptura que o mes-sias deverá cumprir. Pouco antes, porém, ainda na mesma epístola (quando trata da revelação divina e do papel da fé), havia expri-mido um paradoxo que persiste no discurso messiânico – e este trecho é, em certo sentido, a chave de seu anúncio messiânico:

Agora, porém, independentemente da Lei, se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela Lei e pelos Profe-tas, justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo, em favor de todos os que crêem – pois não há diferen-ça, sendo que todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus – e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus: Deus o expôs como instrumento de propiciação, por seu próprio sangue, mediante a fé. Ele queria as-sim manifestar sua justiça, pelo fato de ter deixado sem punição os pecados de outrora, no tempo da paciência de Deus; ele queria manifestar a sua justiça no tempo presente para mostrar-se justo e para justificar aquele que é pela fé em Jesus. Onde está, então, o motivo de glória? Fica excluído. Em força de que lei? A das obras? De modo algum, mas em força da lei da fé. Porquanto nós sustentamos que o homem é justificado pela fé, sem as obras da Lei. Ou acaso ele é Deus só dos judeus? Não é também dos gentios? É certo que também dos gen-tios, pois há um só Deus, que justificará os circuncisos pela fé e também os incircuncisos através da fé. Então eliminamos a Lei através da fé? De modo algum! Pelo contrário, a consolidamos. (Rm, 3: 21-31)

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A divisão fundamental entre circuncisos (isto é, o povo de Is-rael) e incircuncisos (os outros povos), que estava na base da fé judaica – o povo escolhido, separado dos demais por seu Deus – e nos fundamentos da própria Lei, isto é, da Torá,1 é o alvo do discurso messiânico paulino. Nesse – e daí toda a crítica da Carta aos Romanos –, a divisão tem que deixar de operar.

Antes, porém, é preciso notar que a dimensão do problema se constitui sobretudo no que diz respeito ao significado da Torá, e isso implica trazer, ao menos em parte, uma discussão recor-rente nos debates judaicos sobre a vinda do messias. Gershom Scholem apresenta duas perguntas a partir das quais se abre um imenso campo para o desenvolvimento das idéias acerca da Torá, principalmente pelos cabalistas:

1. Qual teria sido o conteúdo da Torá, que deve ser con-siderada a mais alta manifestação da sapiência divina, não fosse a queda do homem? Ou, numa formulação mais radical: Se a Torá era preexistente, se ela precedeu a Criação, qual era a sua natureza antes da queda? 2. Qual será a estrutura da Torá, na Era Messiânica, quan-do o homem for restaurado a seu estado prístino?2

De modo geral, as duas perguntas se resumem em uma só, qual seja: “qual é a relação da Torá com a história fundamental do homem?”3

Scholem apresenta o debate sobre a compreensão da Torá no meio cabalista (ao qual o filósofo e também rabino dedicou prati-camente quase toda sua obra). Nesse sentido, a Torá é concebida a partir de uma divisão fundamental: a torá de-beriá e a torá de-atzilut. Nessas leituras cabalísticas, portanto, a primeira seria a Torá no estado de criação, e a segunda no estado de emanação. Assim, dois sentidos (simbólicos) diversos são atribuídos à Torá: um factual e pragmático – ligado à torá de-beriá, à lei da criação

1 Agamben sugere que Paulo toma literalmente o significado etimológico do termo gre-go nomos, com o qual o apóstolo designa a Torá e também a lei em sentido geral. Lem-bra o filósofo italiano que nomos deriva de nemō, que significa dividir, atribuir partes. Desse modo, para Paulo à lei resta um sentido partitivo, divisório. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta. Torino: Bollati Boringhieri, 2000. p. 49.

2 SCHOLEM, Gershom. A Cabala e seu Simbolismo... pp. 81-82.3 Idem. p. 82.

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– e um outro contemplativo ou místico – da torá de-atzilut, da lei que precede a criação. Outro desenvolvimento interessante dessas idéias é o que as conecta com as duas árvores do Éden – a da Vida e a do Conhecimento (elaborado pelo autor do Ra´ya mehemna e dos Tiqqune ha-Zohar). À árvore do conhecimento fica associada a torá de-beriá, no sentido que instaura uma partição entre o puro e o impuro, o bem e o mal, e dá as diretrizes práticas de regulação da vida do homem; já à árvore da vida se dá o sentido da torá de-aztilut, da emanação divina, anterior à queda do homem.

A Árvore do Conhecimento transformou-se, assim, na ár-vore das restrições, proibições e delimitações, enquanto a Árvore da Vida era a árvore da liberdade, uma árvore simbólica de uma idade em que o dualismo de bem e mal ainda não (ou não mais) era concebível, e tudo dava tes-temunho da unidade da vida divina, intocada ainda por quaisquer restrições, pelo poder da morte ou por qual-quer outro dos aspectos negativos da vida que aparece-ram tão-somente após a queda do homem. Tais aspectos restritivos, limitativos, da Torá, são perfeitamente legí-timos no mundo de pecado, no mundo não redimido, e num mundo desses a Torá não podia ter assumido qual-quer outra forma. Tão-somente após a queda e suas con-seqüências de longo alcance assumiu a Torá o aspecto material e limitado no qual hoje nos aparece. Em inteiro acordo com esta visão é que a Árvore da Vida veio a re-presentar a feição utópica da Torá. Deste ponto de vista era perfeitamente plausível identificar a Torá como Árvo-re da Vida com a Torá mística, e a Torá como Árvore do Conhecimento do bem e do mal com a Torá histórica.4

Como implicação dessa divisão permanece a idéia de que o mundo, desde a queda do homem, é regido pela Torá histórica, isto é, a torá de-beriá, que estabelece as divisões entre puro e impuro, bem e mal etc. Por isso, “enquanto o mundo será regido pela árvore do conhecimento, a Lei não poderá superar nem abolir o mal, mas somente reduzi-lo e isolar-lhe o poder.”5

4 Idem. pp. 84-85.5 AGAMBEN, Giorgio. La potenza del Pensiero. Saggi e Conferenze. Vicenza: Neri

Pozza, 2005. p. 256. “(...) finché il mondo sara retto dall´albero della conoscenza, la Legge non potrà superare né abolire il male, ma solo ridurne e isolarne il potere.”

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A lei – e aqui se fala da lei tal qual assumida na história, que é a compreensão que permanece vigendo até a contemporaneidade – é sempre partitiva (divisória) e prescreve aquilo que é lícito e o que é interdito. O problema com o qual o messias se depara na sua chegada é justamente seu confrontar-se com essa lei dicotômica (na aporia enunciada por Paulo no versículo 31, do capítulo tercei-ro da Carta aos Romanos). Os cabalistas resolvem o problema do messiânico com a oposição entre as duas torás (a da criação e a da emanação). Desse modo, o trabalho do messias é suspender as divisões da lei para a restauração de um estado paradisíaco; ou, em última análise, suspender a torá de-beriá restaurando a torá de-atzilut.

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2. Paulo e a lei da fé: a supressão messiânica da divisão.

Como Paulo, por sua vez, concebe o trabalho do messias? Jus-tamente na sua concepção de lei da fé – lei do espírito – é que ele pretende resolver o paradoxo do messianismo (de não abolir a lei pela fé, mas confirmá-la). No entanto, qual é a idéia por ele toma-da como lei da fé? Existe nela alguma prescrição, algum manda-mento imperativo?

Para compreender o percurso dessas idéias paulinas é preciso saber qual era a postura de Paulo no judaísmo. Ele era um zelota, como ele mesmo se declara: “Ouvistes certamente da minha con-duta de outrora no judaísmo, de como perseguia sobremaneira e devastava a Igreja de Deus e como progredia no judaísmo mais do que muitos compatriotas da minha idade, distinguindo-me no zelo pelas tradições paternas.” (Gal, 1:13-14) Ou seja, seu juda-ísmo era aferrado às mais fortes tradições (aquelas às quais um bom judeu deveria se ater).

Jacob Taubes, em seu seminário de 1987, na Evangelische Studiengemeinschaft de Heidelberg, analisa a situação de Paulo. Antes, porém – debruçando-se sobre o conceito de lei como fór-mula de compromisso entre o Império Romano e aqueles grupos que não prestavam culto ao Imperador, nesse caso os judeus –, fala que durante certo tempo, logo após as guerras civis, durante a época augusta, o Império Romano gozou de um longo período de paz, graças a uma aura helenística que pairava no ar. Tratava-se de uma apoteose (sua fórmula de compromisso) do conceito de nomos, isto é, de lei. Na verdade,

essa apoteose podia ser celebrada tanto em termos pa-gãos, pretendo dizer greco-helenísticos, como romanos ou hebraicos. Por “lei” cada um era livre para entender

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aquilo que lhe era mais conveniente. Vejam Filão, vejam Flávio Josefo: a lei como hipóstase. Havia, portanto, um hebraísmo muito liberal, o hebraísmo alexandrino e das vilas limítrofes, ao qual se junta uma filosofia missio-nária sob a forma de teologia do nomos. Por vezes esta apresenta traços pessoais, por vezes é pensada em ter-mos impessoais ou ainda hipostasiada.1

Porém, ainda segundo Taubes, Paulo de modo algum pode ser compreendido se lido em consonância com tal aura. “Ele procura de todos os modos desvincular-se daquele entrelaçamento entre teologia missionária grega, hebraica e helenística, que era (...) muito difundido. Paulo é um fanático.”2 No seu fanatismo – e aqui Taubes vê em Paulo uma teologia política – inverte os valo-res (apaziguados naquele cruzamento modelador do conceito de nomos), chocando-se violentamente com os cultos dos césares. Para Paulo o nomos não é o imperador (tal como aquelas bran-das figuras hipostasiadas das comunidades limítrofes e alexan-drinas), mas sim quem por ele fora crucificado, isto é, o messias. Tamanha é a inversão causada pela leitura paulina que diante dela qualquer pretensa revolta ou tentativa revolucionária seria apenas um mero estampido insignificante.

Logo após declarar seu zelo pela lei, Paulo descreve como co-meça seu ministério no messias:

Quando, porém, aquele que me separou desde o seio materno e me chamou por sua graça, houve por bem revelar em mim o seu Filho, para que eu o evangelizasse entre os gentios, não consultei carne nem sangue, nem subi a Jerusalém aos que eram apóstolos antes de mim, mas fui à Arábia, e voltei novamente a Damasco. Em seguida, após três anos, subi a Jerusalém para avistar-

1 TAUBES, Jacob. La Teologia Política di San Paolo. Milano: Adelphi Edizioni, 1997. p. 54. “Questa apoteosi la si poteva celebrare in termini sia pagani, intendo dire greco-ellenistici, sia romani, sia ebraici. Per ‘legge’ ognuno era libero di inten-dere cio che più gli era consono. Vedi Filone, vedi Giuseppe Flavio: la legge come ipostasi. Vi era dunque un ebraismo assai liberale, l´ebraismo alessandrino e dei villaggi limitrofi, cui si collega una filosofia missionária sotto forma di teologia del nómos. Talora essa presenta tratti personali, talora è pensata in termini imperso-nali o comunque ipostatizzata.”

2 Idem. p. 55. “Egli cerca in tutti i modi di svincolarsi da quell´intreccio fra teologia missionaria greca, ebraica ed ellenistica, che allora (...) era diffusissimo. Paolo è un fanatico.”

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me com Cefas e fiquei com ele quinze dias. Não vi ne-nhum apóstolo, mas somente Tiago, o irmão do Senhor. Isto vos escrevo e vos asseguro diante de Deus que não minto. Em seguida, fui às regiões da Síria e da Cilícia. De modo que, pessoalmente, eu era desconhecido às Igrejas da Judéia que estão em Cristo. Apenas ouviam dizer: quem outrora nos perseguia agora evangeliza a fé que antes devastava, e por minha causa glorificavam a Deus. (Gal, 1; 15-23)

A primeira coisa que deve ser notada é como ele se coloca como um separado por Deus desde o seio de sua mãe. Também no início da Carta aos Romanos diz-se separado: “Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado para ser apóstolo, escolhido para o evan-gelho de Deus” (Rm, 1:1). Ainda que a Bíblia de Jerusalém traga nesse trecho o termo escolhido, trata-se do particípio passado do verbo grego aphorizō, que se toma aqui, acolhendo a sugestão de Agamben, por separar. Aphōrismenos – separado – indica assim a herança judaica carregada por Paulo, aquilo que ele mesmo declara na Carta aos Filipenses: “circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamin, hebreu filho de hebreus; quanto à Lei, fariseu.” (Fil. 3: 5) Isto é, separado é um termo cha-ve do vocabulário paulino, e é preciso saber reconhecê-lo como tal: “Aphōrismenos é, na realidade, somente a tradução grega do termo hebraico paruš, ou do aramaico periš, isto é, fariseu (o de-calque grego pharisaios é proveniente do aramaico).”3

Paulo, portanto, mostra sua compreensão da Lei sempre se baseando nesse princípio de divisão – confirmando a hipótese de Taubes –, fazendo dela o pedagogo que ensina o caminho até a chegada do Messias. Porém, como fariseu, faz mais. Estes – os fariseus – não eram simplesmente separados dos pagãos como judeus que eram; na verdade, diferenciavam-se até mesmo dos demais judeus porque para eles “a lei (...) não era somente a Torá em sentido estrito, isto é, a lei escrita, mas igualmente a Torá oral, a tradição concebida como um ‘muro de divisão’ ou uma ‘cerca’

3 AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta... p. 48. “Aphōrismenos non è, infatti, altro che la traduzione greca del termine ebraico paruš o dell´aramaico periš, cioè “fariseo” (dall´aramaico proviene il calco greco pharisaíos).”

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ao redor da Torá que deve protegê-la de todo contato impuro.”4 Esse princípio de separação constante na lei é o diferencial que faz dela o pedagogo, o meio capaz de manter os pagãos separados dos judeus e na própria raça judaica (para usar os termos pauli-nos) separar os fariseus da massa.

Paulo sempre se dá conta de que a lei (nomos) opera por meio de uma divisão fundamental. Ele percebe que não se trata so-mente de uma divisão no âmbito dos princípios da Torá (que es-tabelece a Torá escrita e a Torá oral), mas que a própria idéia de nomos – de divisão – pode ser generalizada. Nesse sentido, o apóstolo entende que há todo um conjunto de cisões que operam, justamente a partir daquela entre as duas Torás, tanto interna-mente ao povo Judeu (o simples judeu do separado – o fariseu) quanto entre os judeus e os demais povos (os Judeus e os não-Judeus, que no vocabulário paulino vem expressa em termos de circuncidados e incircuncisos – ou, Ioudaioi e ethnē). O princípio normativo é em Paulo, portanto, a divisão. A ação da lei é sempre fundadora de uma bipartição entre opostos: Judeus/não-Judeus, circuncidados/incircuncisos, Ioudaioi/ethnē.

Diante disso, para Paulo, qual seria o trabalho do messias? Não outro que a neutralização de tais partições. Do mesmo modo como a torá de-atzilut deve ser restabelecida pelo messias – na idéia das duas Torás dos cabalistas – para supressão e não ape-nas controle do mal que aflige o mundo, também Paulo postula o trabalho do messias como neutralizador das divisões. À clara e exaustiva divisão original da Lei e das outras divisões a esta acopladas – Torá escrita/Torá oral, simples judeu/fariseu –, que culminava com dois grupos especificamente apontados, os cir-cuncidados e os incircuncisos, Paulo estabelece uma outra que divide a própria divisão da lei e instaura um terceiro, um resto. O signo de que essa divisão é um trabalho do messias está na Carta aos Efésios, 2:11-12: “Por isso vós, que antes éreis gentios na carne e éreis chamados ‘incircuncisos’ pelos que se chamam ‘circuncidados’... em virtude de uma operação manual na sua

4 Idem. p. 49. “(...) la legge (…) non era soltanto la Torah in senso stretto, la legge scritta, ma anche la Torah orale, la tradizione concepita come una ‘parete divisoria’ o una “siepe” intorno alla Torah, che deve proteggerla da ogni contatto impuro.”

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carne, lembrai-vos de que naquele tempo estáveis sem Cristo.” Ou seja, o messias – o cristo – é aquele que marca um novo corte, por assim dizer, no próprio corte original efetuado pela Lei.

Agamben, ao interpretar essa divisão da divisão proposta por Paulo, conta a história do duelo de dois artistas – um daqueles desa-fios clássicos que concernem à produção da melhor obra –, Protóge-nes e Apeles.5 “Protógenes traça uma linha tão fina que não parece traçada por um pincel humano. Mas Apeles, com seu pincel, divide ao meio a linha traçada pelo rival com uma linha ainda mais fina.”6 De fato, do mesmo modo como a linha de Apeles traça uma divisão à já finíssima linha de Protógenes, a estratégia messiânica de Paulo opera uma divisão da divisão da lei – já que não possui um objeto a dividir senão a própria divisão da lei.

Essa cisão paulina é, ao contrário das contumazes leituras de Paulo, a impossibilidade de um universal vir à tona, um ho-mem universal ou um cristão universal. Esse suposto universal, sobre o qual se fundam as doutrinas cristãs em sua maioria, que é colocado como fundamento transcendente, na leitura de Paulo aqui evocada não permanece como tal. O que o messianis-mo de Paulo trata de fazer é suspender radicalmente a divisão original da lei, não com bases numa universalização cooptativa (uma união dos que outrora estavam separados), mas por meio de nova separação.

5 A idéia de uma cesura da cesura entre os tempos (profano e sagrado), que aqui é extraída da conceituação dada por Agamben, já está originariamente presente no arquivo N das Passagens de Walter Benjamin: “A história anterior [Vorgeschichte] e a história posterior [Nachgeschichte] de um fato histórico aparecem nele graças a sua apresentação dialética. Além disso: cada fato histórico apresentado dialetica-mente se polariza, tornando-se um campo de forças no qual se processa o confronto entre sua história anterior e sua história posterior. Ele se transforma neste campo de forças quando a atualidade penetrar nele. E assim o fato histórico se polariza em sua história anterior e posterior sempre de novo, e nunca da mesma maneira. Tal polarização ocorre fora do fato, na própria atualidade – como numa linha, divi-dida segundo o corte apolíneo, em que a divisão é feita fora da linha.” BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. p. 512 [grifo nosso]. De acordo com Agamben, já na edição alemã das Passagens encontra-se um descuido do editor que traz o termo corte apolíneo no lugar do que deveria ser corte de Apeles (que remete à disputa artística entre Apeles e Protógenes), noção esta que guiará a interpretação de Agamben. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta… pp. 52-55.

6 AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta... p. 52. “Protogene traccia una linea così sottile che non sembra tracciata da un pennello umano. Ma Apelle, col suo penne-llo, divide nel mezzo la linea tracciata dal rivale con una linea ancora più sottile.”

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Certamente a circuncisão é útil, se observas a Lei; mas se és um transgressor da Lei, tua circuncisão torna-se incircuncisão. Se, portanto, o incircunciso guardar os preceitos da Lei, porventura sua incircuncisão não será considerada circuncisão? E o fisicamente incircunciso, cumpridor da Lei, julgará a ti que, apesar da letra e da circuncisão é transgressor da Lei. Pois o verdadeiro ju-deu não é aquele que como tal aparece externamente, nem é verdadeira circuncisão a que é visível na carne: mas é judeu aquele que o é no interior e a verdadeira circuncisão é a do coração, segundo o espírito e não segundo a letra: aí está quem recebe louvor, não dos homens, mas de Deus. (Rm, 2:25-29)

Ou seja, ao jogar com os termos, Paulo invalida a divisão no-mística, tornando-a inoperante: judeu e não-judeu distinguem-se não mais em virtude da Lei. Aliás, a própria distinção não tem mais sentido, pois o não-judeu torna-se judeu (no sentido de escolhido por Deus) por praticar o bem (que estava previsto na Lei) mesmo não conhecendo a Lei, e o judeu deixa de ser es-colhido por transgredir a Lei que conhece. O corte operado pela Lei, é desse modo novamente cortado por Paulo, de modo que a distinção taxativa entre Judeus e não-Judeus é atravessada por uma outra entre carne e espírito.

O subconjunto “Judeus” cinde-se então em “Judeus ma-nifestos” ou segundo a carne (Ioudaios... en tō phanerō, en sarki) e em “Judeus escondidos” ou segundo o espírito (en tō kryptō Ioudaios... en pneumati, Rm 2, 28-29). O mes-mo acontece (ainda que Paulo não o diga) para os não-Judeus. O que significa que “o (verdadeiro) Judeu não é o Judeu manifesto, e que a (verdadeira) circuncisão não é aquela da carne” (ibid.). Sob o efeito do corte de Apeles, a partição nomística Judeus/não-Judeus não é mais clara nem exaustiva, pois há, doravante, Judeus que não são Judeus, e não-Judeus que não são não-Judeus.7

7 Idem. pp. 52-53. “Il sottoinsieme ‘Ebrei’ si scinde così in ‘Ebrei manifesti’ o secon-do la carne (Ioudaios... en tō phanerō, en sarki) e in ‘Ebrei nascosti’ o secondo il soffio (en tō kryptō Ioudaios... en pneumati, Rm 2, 28-29). Lo stesso avviene (anche se Paolo non lo dice) per i non-Ebrei. Il che significa che “il (vero) ebreo non è quello manifesto e che la (vera) circoncisione non è quella nella carne” (ibid.). Sotto l´effetto del taglio di Apelle, la partizione nomistica Ebrei/non-Ebrei non è più né chiara né esaustiva, poiché vi saranno degli Ebrei che non sono Ebrei, e dei non-Ebrei che non sono non-Ebrei.”

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Diante disso, o resultado do corte de Apeles paulino não pode produzir um homem universal além de toda identidade (seja ju-deu ou não-judeu). Ao atuar separando a separação, o trabalho do messias rompe a lógica binária nomística nela introduzindo um resto. Não existe um fundamento último – quer seja universal, quer transcendente – para a humanidade do homem. Para além de toda divisão normativa (judeu/não-judeu etc) “há somente um resto, há somente a impossibilidade para o judeu e para o grego de coincidirem consigo mesmos.”8 Para Paulo o que está em jogo no tempo messiânico não é a busca por uma superação dos prin-cípios partitivos da lei, mas, antes, a divisão da divisão da lei – a produção de um resto. Ou, nas palavras de Paulo, “também no tempo atual constituiu-se um resto segundo a eleição da graça.” (Rm, 11:5)

8 Idem. p. 55. “(...) vi è soltanto un resto, vi è soltanto l´impossibilità dell´ebreo e del greco di coincidere con se stessi.”

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3. A katargein messiânica.

Paulo, no quarto capítulo da Carta aos Romanos, levanta uma questão de fundamental importância para a compreensão daquilo que ele entende por lei da fé. Para tanto, cita como exemplo Abraão:

Que diremos, pois, de Abraão, nosso progenitor segun-do a carne? Ora, se Abraão foi justificado pelas obras, ele tem do que se gloriar. Mas não perante Deus. Que diz, com efeito, a Escritura? Abraão creu em Deus, e isto lhe foi levado em conta de justiça. (Rm, 4:1-3)

Citando, nesse trecho da carta, Gênesis 15, 2-6, no qual Iahweh faz um pacto – uma promessa – com Abraão, a este pro-metendo uma estirpe longa e numerosa como as estrelas do céu, Paulo comenta que Abraão não cumpriu nenhum mandamento positivo de Deus, mas nele apenas creu, isto é, teve fé. Um pouco adiante, ainda no mesmo capítulo, Paulo conclui:

De fato, não foi através da Lei que se fez a promessa a Abraão, ou à sua descendência, de ser o herdeiro do mundo, mas através da justiça da fé. Porque, se os her-deiros fossem os da Lei, a fé ficaria esvaziada e a pro-messa sem efeito. Mas o que a Lei produz é a ira, ao passo que onde não há lei, não há transgressão. Por conseguinte, a herança vem pela fé, para que seja gra-tuita e para que a promessa fique garantida a toda a descendência, não só à descendência segundo a Lei, mas também à descendência segundo a fé de Abraão, que é o pai de todos nós. (Rm, 4: 13-16)

Paulo aqui contrapõe dois princípios: a promessa – o pac-to – de Deus feita a Abraão (isto é, no grego paulino, epaggelia: promessa, ou diatheke: pacto) e a aliança (entole: mandamento) feita com Moisés no Sinai, o nomos dado por Deus.” – só lembro também, Daniel, que as acentuações do grego que vc tem aí no

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arquivo em pdf devem ficar. Só não as coloquei porque estou em outro computador que não possui esses símbolos. De fato, como sugere Agamben,1 não se trata de uma questão tão simples. Em vários outros trechos das cartas, a correlação promessa/lei apa-rece de modo a não evidenciar uma sujeição da Lei em relação à fé (pistis em grego, e que está diretamente ligada à promessa), como em Gal, 3: 6-14; ou ainda, como em Rm 7:12, mostra uma reafirmação da santidade da Lei. Em qual sentido pode-se dizer, portanto, que Paulo lança tal contraposição?

Nomos, no grego da Septuaginta – da qual Paulo fazia uso –, é um termo genérico e, como tal, Paulo trata de precisar seu senti-do quando vai opor-lhe epaggelia e pistis (promessa e fé). De fato, quando há a contraposição promessa-fé de um lado e nomos (entolē) de outro, o sentido que Paulo quer evidenciar para o nomos é aquele prescritivo (da lei dos mandamentos). Segundo Agamben,

a antítese refere-se, assim, a epaggelia e pistis de um lado, e, de outro, não simplesmente a Torá, mas o seu aspec-to normativo. Por isso Paulo, numa passagem importante (Rm 3, 27), pode contrapor ao nomos tōn ergōn um nomos pisteōs, uma lei da fé: a antinomia não concerne aos dois princípios irrelatos e totalmente heterogêneos, mas é uma oposição interna ao próprio nomos – a oposição entre um elemento normativo e um elemento promissivo. Há, na lei, algo que excede constitutivamente a norma e é irredutível a esta – e é a esse excesso e a essa dialética interna à lei, que Paulo se refere através do binômio epaggelia (cujo cor-relato é a fé)/ nomos (cujo correlato são as obras).2

A nova lei, a lei do messias – a lei da fé – não é, nesse sentido, a simples negação da antiga lei (a mosaica) para instituição de

1 AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta... pp. 89-91.2 Idem. p. 91. “L´antitesi riguarda dunque epaggelía e pistis da una parte, e,

dall´altra, non semplicemente la Torah, ma il suo aspetto normativo. Per questo Paolo, in un passo importante (ibid. 3, 27) può contrapporre al nomos tōn ergōn un nomos pisteōs, una legge della fede: l´antinomia non concerne due princìpi irrelati e affatto eterogenei, ma è un’opposizione interna allo stesso nomos – l´opposizione fra un elemento normativo e un elemento promissivo. Vi è, nella legge, qualcosa che eccede costitutivamente la norma ed è irriducibile a essa – ed è a questo ec-cesso e a questa dialettica interna alla legge che Paolo si riferisce attraverso il bi-nomio epaggelía (il cui correlato è la fede)/nomos (il cui correlato sono le opere).”

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novos preceitos e ditames legais. Tampouco é a abertura de um espaço completamente anômico, que ainda assim mantenha re-lação com a Lei através da sua negação (uma relação de bando3). Trata-se, antes, de uma figura não normativa da Lei (algo como uma suspensão efetiva da Lei; isto é, num sentido benjaminiano, um estado de exceção efetivo).4

Paulo encara a passagem desse estado prescritivo da lei para o estado não normativo como uma libertação – o ingresso no tempo messiânico. “Quando estávamos na carne, as paixões pe-caminosas que através da Lei operavam em nossos membros produziram frutos de morte. Agora, porém, estamos livres da Lei, tendo morrido para o que nos mantinha cativos, e assim podermos servir em novidade de espírito e não na caducidade da letra.” (Rm, 7:5-6) Aparentemente o apóstolo está acusando a lei, como se esta fosse o pecado. No entanto, na seqüência (Rm, 7:7) ele demonstra que não é exatamente disso que se tra-ta. “Que diremos, então? Que a lei é pecado? De modo algum!” O paradoxo da lei no estado messiânico, tal qual formulado em Rm, 3:31, portanto, reaparece. Nesse sentido, qual seria a feição da lei da fé?

A Bíblia de Jerusalém usa o termo “caducidade da lei” em Rm, 7:6. Ainda que caduco – aquilo que perdeu a força; envelheceu – possa, de certo modo, trazer a idéia do messiânico, deixa escapar a noção paulina da não negação da lei, isto é, de que aquilo que ocorre no tempo messiânico não é simplesmente a negação da lei. Agamben, por outro lado, mostra que o verbo utilizado por Paulo é katargeō, “um composto de argōs, que por sua vez deriva do

3 Agamben desenvolve essa idéia de bando a partir da leitura que faz de Jean-Luc Nancy. Cf. NANCY, Jean-Luc. L’Impératif Catégorique. Apud AGAMBEN, Gior-gio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002. Tradução: Henrique Burigo. p. 66. “Abandonar é remeter, confiar ou entregar a um poder soberano, e remeter, confiar ou entregar ao seu bando, isto é, à sua proclamação, à sua convocação e à sua sentença. Abandona-se sempre a uma lei. A privação do ser abandonado mede-se com o rigor sem limites da lei à qual se encontra exposto. O abandono não constitui uma intimação a comparecer absolu-tamente diante da lei, diante da lei como tal na sua totalidade. Do mesmo modo, ser banido não significa estar submetido a uma certa disposição de lei, mas estar submetido à lei como um todo. Entregue ao absoluto da lei, o banido é também abandonado fora de qualquer jurisidção... O abandono respeita a lei, não pode fazer de outro modo.”

4 Cf. BENJAMIN, Walter. Teses sobre Filosofia da História...

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adjetivo argōs, que significa ‘inoperante, não-em-obra (a-ergos), inativo’. O composto quer dizer, então, ‘torno inoperante, desati-vo, suspendo a eficácia’.”5 Além disso é interessante ressaltar que o verbo argēo é aquele utilizado pela Septuaginta para traduzir o hebraico kuta – repousar –, designado para a suspensão sabática das obras.6 Contraponto de energeō – colocar em obra; a energeia; o ato –, katargeō indica à saída do ato (no caso, da lei) e a entrada no seu estado de suspensão, seu estado potencial (de dýnamis, de potência). A lei messiânica opera, portanto, uma desativação (uma suspensão) total do nomos prescritivo judaico.

A oposição tipicamente grega entre dýnamis e energeia (po-tência e ato) sofre, a partir do messiânico, uma inversão. Quando Paulo, na sua Segunda Carta aos Coríntios, compara-se aos por ele ironicamente chamados “eminentes apóstolos” – aqueles que se gloriam no Cristo; que pregam um outro messias; os falsos apóstolos etc –, o faz segundo o discurso destes, ou, como Paulo mesmo designa, o discurso do insensato:

Visto que muitos se gloriam de seus títulos humanos, também eu me gloriarei. De boa vontade suportais os insensatos, vós que sois tão sensatos! Suportais que vos escravizem, que vos devorem, que vos despojem, que vos tratem com soberba, que vos esbofeteiem. Digo-o para vergonha vossa: poder-se-ia crer que nós é que somos fracos... Aquilo que os outros ousam apresen-tar – falo como insensato – ouso-o também eu. São he-breus? Também eu. São israelistas? Também eu. São descendentes de Abraão? Também eu. São ministros de Cristo? Como insensato digo: muito mais eu. Mui-to mais, pelas fadigas; muito mais, pelas prisões; infi-nitamente mais, pelos açoites. Muitas vezes, vi-me em perigo de morte. (...) E isto sem contar o mais: a minha preocupação cotidiana, a solicitude que tenho por todas as Igrejas! Quem fraqueja, sem que eu também me sinta fraco? Quem cai, sem que eu também fique febril? (2 Cor,11:18-23, 28-29)

5 AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta... p. 91. “(...) un composto di argós, che deriva a sua volta dall´aggettivo argós, che significa ‘inoperante, non-in-opera (a-ergos), inat-tivo’. Il composto vale quindi ‘rendo inoperante, disattivo, sospendo dall´efficacia’.”

6 A respeito da condição sabática, da inoperosidade e da festa cf. o ensaio Una fame da bue. In.: AGAMBEN, Giorgio. Nudità. Roma: Nottetempo, 2009. pp. 147-159.

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Ainda que ele se autorize a fazer tal discurso – pois se confessa a Deus, diz apenas uma verdade sobre si, portanto pode falar tal qual os insensatos (isto é, em soberba, porém esta apenas apa-rente) sem ser insensato –, ao final declara que seu verdadeiro gloriar-se não está nas suas obras, mas na sua fraqueza: “Se é preciso gloriar-se, de minha fraqueza é que me gloriarei.” (2 Cor, 11:30) Portanto, a fim de não se encher de soberba – de insensa-tez –, Paulo é impelido a sofrer os flagelos aos quais se remete no seu discurso “insensato”. Justamente quando fraco, no entanto, é que ele se diz digno de gloriar-se, cumprindo assim a inversão messiânica do fim da potência. Essa não se exaure no ato, no seu ergon (trabalho; por em obra), mas, pela fraqueza, permanece potência (como o apóstolo mesmo declara em 2 Cor 12: 10: “Pois quando sou fraco, então é que sou forte”).

A katargein (desativação) messiânica leva o ato (a energeia) ao seu estado de suspensão numa pura potencialidade (dýnamis). Ou seja, a potência messiânica opera pela neutralização da lei, tornando-a inoperante, em suma, desativando-a. Somente nesse sentido é possível ler o paradoxo messiânico (aquele que vem para cumprir e ao mesmo tempo revogar a lei), traduzido na figura da nova lei, a lei da fé: esta desativa, lança ao estado de suspensão a lei das obras e, ao mesmo tempo, cumpre-a.

Digressão I – Bartleby: um novo messias

A figura da lei no estado de katargein messiânico pode ser comparada à idéia de uma potência pura – de uma potência em estado absoluto, que, porém, não é desvinculada do ato, mas sempre permance atrelada a ele (um jogo de desativação e cum-primento da lei) – que é sempre potência de ou potência de não ao mesmo tempo.7 A suspensão não é uma simples indiferença,

7 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Nudità... pp. 67-68. “Che la potenza sia sempre anche costitutivamente impotenza, che ogni poter fare sia anche già sempre un poter non fare è l’acquisizione decisiva della teoria della potenza che Aristotele svolge nel libro IX della Metafisica (...) ‘Impotenza’ non significa qui soltanto assenza di po-tenza, non poter fare, ma anche e soprattutto ‘poter non fare’, poter non esercitare la propria potenza. Ed è próprio questa ambivalenza specifica di ogni potenza, che è sempre potenza di essere e di non essere, di fare e di non fare, che definisce anzi la potenza umana. L’uomo è, cioè, il vivente che, esistendo sul modo della potenza, può tanto una cosa che il suo contrario, sia fare che non fare. Questo lo espone, più

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mas uma potência purificada de toda razão – e exemplar, nesse sentido, é o escrevente Bartleby, personagem de Herman Melville que com seu “Preferiria não” parece estar em completo estado de indiferença à realidade circundante, mas que, na verdade, apre-senta-se como a fórmula de uma pura potência.

Defrontando-se com o “princípio da razão suficiente” leibnizia-no (o qual diz que há uma razão pela qual algo existe mais do que nada – “ratio est cur aliquid sit potius quam non sit”8), a palavra de Bartleby “libera a potência (potius, de potis, isto é, ‘mais potente’) ao mesmo tempo de sua conexão com uma ratio e de sua subor-dinação ao ser.”9 A aversão por qualquer potência livre da razão é completamente subvertida por Bartleby. Àquela idéia leibniziana de que cada possível exige tornar-se real, opõe-se agora – através do “Preferiria não” – o existente que exige tornar-se possibilidade (Bartleby).

“O não ter mais razão para existir do que para não exis-tir é a existência mesma de algo e não apenas nada”. À boutade do Príncipe da Dinamarca, que resolve todo o problema numa alternativa entre o ser e o não ser, a fórmula do escrevente opõe um terceiro termo, que transcende os outros dois: o “não mais que” (ou “e não apenas”). E essa lição é a única a que se atém.10

A fórmula de Bartleby expõe sem reservas a fratura da onto-teo-lógica ocidental, isto é, aquela que opõe o ser ao nada (o ser divino ao nada). De fato, no seu não mais que – que rompe com a lógica binária opositiva: positivo/negativo, ser/nada, e ainda,

di ogni altro vivente, al rischio dell’errore ma, insieme, gli permette di accumulare e padroneggiare liberamente le proprie capacitá, di trasformarle in ‘facoltà’. Poiché non soltanto la misura di ció che qualcuno può fare, ma anche e innanzitutto la capacita di mantenersi in relazione con la propria possibilità di non farlo definisce il rango della sua azione.”

8 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Bartleby, la fórmula de la creación In: MELVILLE, Herman; DELEUZE, Gilles; AGAMBEN, Giorgio; PARDO, José Luis. Preferiría no Hacerlo. Bartleby el escribiente de Herman Melville seguido de tres ensayos sobre Bartle-by. Valencia: Pré-Textos, 2005. p. 116.

9 Idem. “(...) libera la potencia (potius, de potis, es decir, ‘más potente’) al mismo tiempo de su conexión con una ratio y de su subordinación al ser.”

10 Idem. p. 118. “‘(...) el no tener más razón para existir que para no existir es la existencia misma de algo y no más bien nada’. A la boutade del Principe de Dina-marca, que resuelve todo el problema en una alternativa entre el ser y el no ser, la fórmula del escribiente opone un tercer término, que trasciende a los otros dos: el ‘no más que’ (o ‘y no más bien’). Y esta lección es la única a la que se atiene.”

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norma/anomia, natureza/cultura, humano/inumano – abre o caminho para uma pura potência, para uma exceção efetiva e, ao extremo, para o estado messiânico de suspensão da Lei. Ou seja, é a via para a supressão do relacionamento, ou articulação entre os pólos, inexorável entre o possível e o real (ainda que esta relação seja mantida com um irrelato, como no caso da re-lação de bando – o abandono – do mecanismo de funcionamento da política).

Fugidia é também a fórmula à apreensão pela verdade. Agam-ben, no seu ensaio sobre Bartleby, diz que o experimento ao qual Melville submete Bartleby é “sem verdade” e que pode ser definido pela seguinte pergunta: “em que condições poderá tal coisa ser veri-ficada e (ou seja: ao mesmo tempo) não ser verificada, ser não mais verdadeira do que falsa?”11 Isto é, a experiência está fora de qual-quer relação com a verdade. Porém, poder-se-ia questionar sobre a possibilidade atual (no sentido de estar em ato, contraposto ao esta-do potencial) desse experimento. Este não remete ao ser ou ao não ser de algo em ato, mas à possibilidade (ao ser em potência).

E a potência, enquanto pode ser ou não ser, subtrai-se, por sua própria definição, de toda condição de verdade e, antes de tudo, ao mais firme de todos os princípios, ao princípio da contradição. Um ser que pode ser e, ao mes-mo tempo, não ser, recebe na filosofia primeira o nome de contingente. O experimento ao qual se submete Bar-tleby é um experimento da contingentia absoluta.12

Do mesmo modo, à interrogação da in-atualidade do experi-mento pode-se responder com Paulo: “quando sou fraco, então é que sou forte.” (2 Cor, 12:10) Isto é, na inversão messiânica entre ato e potência, Paulo apresenta sua concepção de fé (pistis) como aquilo que está além da essência e da existência (em termos ontológicos). Desse modo, a inversão messiânica ato/potência é

11 Idem. p. 121. “¿En qué condiciones podrá tal cosa verificarse y (o sea: al mismo tiempo) no verificarse, ser no más verdadera que falsa?.”

12 Idem. “Y la potentia, en quanto que puede ser o no ser, se sustrae, por su propia definición, a toda condición de verdad y, ante todo, al más firme de todos los prin-cipios, al principio de contradicción. Un ser que puede ser y, al mismo tiempo, no ser, recibe en la filosofía primera el nombre de contingente. El experimento al que se arriesga Bartleby es un experimento de contingentia absoluta.”

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equivalente ao experimento de Melville com Bartleby. Em outros termos, “a potência passa ao ato e alcança seu telos não na forma da força e do ergon, mas sob aquela da asthéneia, da fraqueza.”13 Ou seja, em Paulo a suspensão messiânica equivale à instaura-ção de um estado de exceção efetivo, no qual a divisão da Lei é re-dividida numa inoperosidade suspensiva instaurada pela vin-da do messias – na franja ultra-histórica14 do tempo messiânico. Bartleby é, nesses termos, propriamente um messias.

13 AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta... p. 93. “(...) la potenza passa all´atto e raggiunge il suo telos non nella forma della forza e dell´ergon, ma in quella della asthéneia, della debolezza.”

14 Cf. AGAMBEN, Giorgio. L´Aperto. L´uomo e l´animale. Torino: Bollati Boringhieri, 2002. p. 19.

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4. Salvação e tempo: o cumprimento messiânico do tempo.

O objeto da salvação, desde os profetas, não é o todo de Israel, mas apenas um resto. Paulo cita, em Rm, 11, Isaías 10: 22 (“Com efeito, ó Israel, ainda que o teu povo seja como a areia do mar, só um resto dele voltará”) e Oséias 2: 25 (“Eu a semearei para mim na terra, amarei a Lo-Ruhamah e direi a Lo-Ammi: ‘Tu és meu povo’, e ele dirá: ‘Meu Deus’.” Aqui Lo-Ruhamah é não-minha-amada, e Lo-Ammi não-meu-povo) justamente para mostrar a ordem paradoxal da salvação e expor seu sujeito, que é esse resto de Israel.

As citações feitas por Paulo apontam que já nos profetas a idéia de resto é fundamental. Antes de analisar a concepção de resto, é preciso compreender uma distinção entre o tom apostó-lico do anúncio de Paulo e aquele profético de Isaías e Oséias.1 O diferencial em Paulo é que a idéia não é mais lançada para o fu-turo – no tom das profecias –, mas é imposta a um presente, a um “tempo atual”, no qual o resto vive segundo a eleição da graça. Os profetas (no caso dessas citações, Isaías e Oséias) trazem uma palavra que não lhes pertence, ou seja, que é sempre palavra de Deus. Aquilo que anunciam (o conteúdo do anúncio que, no caso da profética judaica, resume-se principalmente à vinda do messias) realizar-se-á sempre num tempo que não é o presente (isto é, o tempo do anúncio profético), mas num futuro (daí as fórmulas: “Naquele dia, acontecerá...”, “e dirás naquele dia...”, bem como a sempre presente “oráculo do Senhor”).

1 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Nudità... pp. 7-18. Nesse ensaio intitulado Creazione e Salvezza, ainda que Agamben não trace as diferenciações entre profeta e após-tolo, como em Il Tempo che resta (pp. 61-65), deixa inferir a contigüidade subs-tancial com o tema do tempo messiânico.

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A diferença entre o profeta – o nabi – e o apóstolo é, portanto, o tempo para o qual falam. Ao contrário daquele, o apóstolo não fala para um futuro, predizendo a vinda do messias; antes, fala sempre a partir da vinda do messias. Seu tempo é sempre o presente messiâ-nico, o tempo do messias – o kairós. Desse modo, o discurso apostó-lico distingue-se também daquele escatológico (ou apocalíptico). No eschaton, no fim do tempo – no instante em que o tempo deixa de existir –, que na escatologia judaica é identificado com o dia da cólera (o dia do juízo, que assume um importante papel no credo católico romano: “está sentado à direita de Deus Pai todo poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos”), ocorre a passagem deste mundo para a eternidade atemporal, de modo que o discurso apocalíptico é o que prediz justamente o dia do fim, o dia do julgamento.

O anúncio apostólico paulino traça, da mesma forma que a divisão da divisão da Lei, uma divisão da divisão do tempo. Isto é, o tempo no qual e para o qual Paulo profere seu anúncio mes-siânico não é simplesmente o tempo profano, mas é sempre o tempo a partir da chegada do messias, o tempo messiânico – que na terminologia paulina diz-se kairós –, que adquire a feição de um resto, isto é, de um tempo que resta.

A conexão entre o tempo messiânico e aquele resto de Israel mostra-se, portanto, mais profunda do que num primeiro mo-mento é possível ver. Diante disso, é necessário pensar sobre a pergunta: seria tal resto apenas uma parte de Israel, um número de predestinados, os sobreviventes aos cativeiros e catástrofes pelas quais Israel passou; ou ainda coincidente com o todo de Israel, desde sua eleição dentre os demais povos?

Na verdade, a questão, assim formulada, não consegue captu-rar a dimensão do problema no messianismo de Paulo. Ainda que existam interpretações nesse sentido, uma leitura mais atenta – que leve em conta a divisão da divisão operada por Paulo – mostra que o resto não é nem o todo, nem uma parte de Israel. De fato, “o resto é muito mais a forma ou a figura que Israel assume em relação à eleição ou ao evento messiânico. Esse não é, então, nem o todo, nem uma parte sua, mas significa a impossibilidade para o todo e para a parte de coincidirem consigo mesmos e entre si.”2

2 AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta... p. 57. “(...) il resto è, piuttosto, la consis-tenza o la figura che Israele assume in relazione all´elezione o all´evento messia-

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Dessa conformação entre o resto de Israel e o resto de tempo é que Paulo constrói todo seu messianismo. Daqui também a ne-cessidade de se compreender que o messianismo diz respeito à íntima correlação entre o tempo e aqueles que, por assim dizer, o protagonizam (interessante, de toda forma, é lembrar a já citada afirmação de Benjamin: “Ninguém disse, de fato, que as deforma-ções que um dia o Messias virá a corrigir são apenas deformações de nosso espaço. São também deformações de nosso tempo”3).

A partir dessa compreensão e valendo-se da idéia de tempo operativo do lingüista Gustave Guillaume, Agamben traz este conceito como paradigmático do conceito de tempo messiânico. De acordo com Guillaume, lembra Agamben,

a mente humana tem a experiência do tempo mas não sua representação e deve, por isso, recorrer, para re-presentá-lo, a construções de ordem espacial. Assim a gramática representa o tempo verbal como uma linha infinita composta de dois segmentos, o passado e o fu-turo, separados pelo corte do presente.4

No entanto, a perfeição dessa representação expõe a sua in-suficiência, ao mostrar um tempo desde sempre construído sem, por outro lado, mostrá-lo constituindo-se no pensamento. A re-presentação justa para o tempo seria aquela que se mostrasse inclusive no seu processo de formação.

É preciso poder representar as fases que o pensamento percorreu para construi-lo. Cada operação mental, por rápida que seja, necessita de certo tempo para se cum-prir, este que pode ser brevíssimo, mas não é por isso menos real. Guillaume define “tempo operativo” o tempo que a mente emprega para realizar uma imagem-tempo.5

nico. Esso non è, cioè, né il tutto né una sua parte, ma significa l´impossibilità per il tutto e per la parte di coincidere con se stessi e fra loro.”

3 BENJAMIN, Walter. A Modernidade e os Modernos... p. 101.4 AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta.... pp. 65-66. “(...) la mente umana ha

l´esperienza del tempo, ma non la sua rappresentazione e deve perciò ricorrere, per rappresentarlo, a costruzioni di ordine spaziale. Così la grammatica rappre-senta il tempo verbale come una linea infinita, composta da due segmenti, il pas-sato e il futuro, separati dal taglio del presente.”

5 Idem. p. 66. “(...) bisogna poter rappresentare le fasi che il pensiero ha percorso per costruirlo. Ogni operazione mentale, per quanto rapida, necessita per compier-si di un certo tempo, che può essere brevissimo, ma non è per questo meno reale. Guillaume definisce ‘tempo operativo’ il tempo che la mente impiega per realizza-re una immagine-tempo.”

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Nas representações do tempo sempre está implicado um tem-po outro, que não é capturado pela representação. Além do tem-po cronológico – o qual se busca representar – existe um outro tempo que com aquele não pode coincidir. Ocorre que esse tempo outro não está além do tempo cronológico, mas lhe é interior e “mede apenas meu deslocamento em relação a esse, o meu ser em separação e em não-coincidência em relação à minha repre-sentação do tempo, mas, exatamente por isso, também a minha possibilidade de cumpri-la e apreendê-la.”6

Aplicando tais análises ao tempo messiânico, Agamben traça uma definição do mesmo:

É o tempo que o tempo nos coloca para acabar – ou, mais exatamente, o tempo que nós empregamos para fazer acabar, para cumprir nossa representação do tempo. Não é nem a linha – representável, mas impen-sável – do tempo cronológico, nem o instante – também impensável – de seu fim; tampouco é simplesmente um segmento retirado do tempo cronológico, que vai da ressurreição ao fim do tempo: é, antes, o tempo ope-rativo que urge no tempo cronológico, e o trabalha e transforma desde o interior, tempo do qual temos ne-cessidade para fazer acabar o tempo – nesse sentido: tempo que nos resta. Enquanto a nossa representação do tempo cronológico, como tempo em que estamos, nos separa de nós mesmos, transformando-nos, por assim dizer, em espectadores impotentes de nós mes-mos, que olham sem tempo o tempo que foge, o seu in-cessante faltar a si mesmos, o tempo messiânico, como tempo operativo, no qual apreendemos e cumprimos nossa representação do tempo, é o tempo que nós mes-mos somos – e, por isso, o único tempo real, o único tempo que temos.7

6 Idem. p. 67. “(...) misura soltanto la mia sfasatura rispetto a esso, il mio essere in scarto e in non-coincidenza rispetto alla mia rappresentazione del tempo, ma, proprio per questo, anche la mia possibilità di compierla e di afferrarla.”

7 Ibidem. pp. 67-68. “(...) esso è il tempo che il tempo ci mette per finire – o, più esattamente, il tempo che noi impieghiamo per far finire, per compiere la nostra ra-ppresentazione del tempo. Esso non è né la linea – rapresentabile ma impensabile – del tempo cronologico né l´istante – altrettanto impensabile – della sua fine; ma non è nemmeno semplicemente un segmento prelevato sul tempo cronologico, che va dalla ressurrezione alla fine del tempo: è, piuttosto, il tempo operativo che urge nel tempo cronologico e lo lavora e trasforma dall´interno, tempo di cui abbiamo bisogno per far finire il tempo – in questo senso: tempo che ci resta. Mentre la nos-

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O tempo que resta, portanto, é aquele para o qual não há mais salvação vindoura, pois nele já se está salvo (ou irreparavelmente perdido). Não é um tempo além do tempo cronológico, mas neste se contrai; é o átimo do presente incapturável por representações e que apenas é vivido naquele que o vive. Em suma, aquele que vive o tempo se confunde com o próprio tempo, é o tempo. Aqui a parábola sobre o reino messiânico que Benjamin conta (certa-mente a tinha ouvido de Scholem) ganha sentido:

Os chassidim contam uma história sobre o mundo por vir, que diz o seguinte: lá, tudo será precisamente como é aqui; como é agora o nosso quarto, assim será no mundo que há-de vir; onde agora dorme o nosso fi-lho, é onde dormirá também no outro mundo. E aquilo que trazemos vestido neste mundo é o que vestiremos também lá. Tudo será como é agora, só que um pouco diferente.8

Também em um trecho de seu ensaio em homenagem aos dez anos da morte de Franz Kafka, no ponto em que comenta O Ho-menzinho Corcunda, Benjamin conta, ainda que brevemente e de outra forma, tal história: “Em O Homenzinho Corcunda, a canção simbolizou a mesma coisa. Este homenzinho é o inquilino da vida desfigurada, e se desvanecerá quando vier o Messias, de quem um grande rabino disse que não pensa em transformar o mundo com violência, e sim ajustá-lo só um pouquinho.”9 Ou seja, aquele um pouco diferente do reino messiânico é o resultado da apreensão da suspensão do tempo messiânico, na forma da sua desconexão com o tempo cronológico, isto é, como tempo operativo – tempo usado para cumprir a representação do tempo, jamais coinciden-te com nenhum ponto interior àquela representação, tampouco fora dela, num além-tempo.

tra rappresentazione del tempo cronologico, come tempo in cui siamo, ci separa da noi stessi, trasformandoci, per così dire, in spettatori impotenti di noi stessi, che guardano senza tempo il tempo che sfugge, il loro incessante mancare a se stessi, il tempo messianico, come tempo operativo, in cui afferriamo e compiamo la nostra rappresentazione del tempo, è il tempo che noi stessi siamo – e, per questo, il solo tempo reale, il solo tempo che abbiamo.”

8 BENJAMIN, Walter. Apud. AGAMBEN, Giorgio. A Comunidade que vem. Lisboa: Editorial Presença, 1993. p. 44.

9 BENJAMIN, Walter. A Modernidade e os Modernos... pp. 99-100.

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Nessa articulação – tempo cronológico/tempo operativo –, Paulo dá o seu sentido para o dia do juízo, a segunda vinda (anunciada pelas instituições religiosas cristãs de modo geral) do messias, a Parousia. No evangelho de Mateus, no capítulo 24, Jesus faz sua afirmação sobre a destruição do Templo. Intrigados com as pala-vras do mestre, seus discípulos lhe perguntam: “Dize-nos quando vai ser isso, e qual o sinal da tua Vinda (Parousia) e da consumação dos tempos”. (Mt, 24:3) O termo Parousia designava na antiguidade greco-romana a visita oficial de um príncipe a um lugar qualquer, porém, os cristãos o adotaram como termo técnico para a vinda do messias. (cf. 1 Cor, 15: 23) A interpretação corrente desse termo, principalmente no que tange à tradição católica, tende a decompô-lo de modo que a intervenção messiânica no mundo seria efetivada por etapas: uma primeira vinda do Messias (a que já teria se dado) e uma segunda, vindoura, que se daria no dia da cólera – a Vinda Gloriosa: esta é a vulgata da Parousia. Ocorre que desse modo a concepção de tempo messiânico fica restrita justamente àquela de um tempo linear e vazio, uma vez que este seria apenas uma faixa de tempo entre o tempo profano (olam hazzeh) e a eternidade atem-poral (olam habba). Não haveria nessa interpretação uma contração do tempo, mas, ao contrário, uma dilação infinita de uma faixa de tempo que teria início com a primeira vinda e que findaria com a segunda vinda do messias. Tal leitura seria, de certo modo, anta-gonista à idéia de contração messiânica do tempo, isto é, contra as palavras proferidas por Paulo justamente quando da abertura de seu discurso sobre a condição do vivente no tempo messiânico: “Eis o que vos digo, irmãos: o tempo se fez curto” (1 Cor, 7: 29).

Para não incorrer nessa dilação e suplementação do tempo mes-siânico é preciso compreender o termo parousia de outra maneira.

Parousia significa em grego simplesmente: presença (pa-ra-ousia, literalmente: estar ao lado; no presente o ser está, por assim dizer, ao lado de si mesmo). Essa não in-dica nem um complemento, que se junta a algo para tor-ná-lo completo, nem um suplemento, que se junta ulte-riormente sem jamais conseguir atingir o cumprimento. Paulo se serve dessa noção para designar a íntima estru-tura unidual do evento messiânico, enquanto composto de dois tempos heterogêneos, um kairós e um chronos, um tempo operativo e um tempo representado, conjun-

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tos, mas não adicionáveis. A presença messiânica está ao lado de si mesma porque, sem jamais coincidir com um instante cronológico e sem juntar-se a este, todavia, apreende-o e o conduz do interior ao cumprimento.10

Não existe um outro tempo suplementar; não há possibilidade de se adicionar ao tempo cronológico um tempo ulterior, um dife-rir do tempo. Tendo como paradigma o tempo operativo, o tempo messiânico é o tempo da parousia. Na divisão da divisão dos tem-pos não há um tempo universal, suplementar, diferido, mas sim um tempo do cumprimento do tempo cronológico (o chronos e o kairós são articulados de modo que este é o que cumpre aquele; o kairós não está fora do chronos, porém não é como este represen-tável). “O messias já chegou, o evento messiânico já se cumpriu, mas a sua presença contém no seu interior um outro tempo, que nele distende a parousia, não para diferi-la, mas, ao contrário, para torná-la apreensível. (...) O messias faz já sempre o seu tem-po – isto é, conjuntamente, faz seu o tempo e o cumpre.”11 O reino messiânico, na dilatação da parousia, encontra-se entre os tempos profano e sagrado sem entretanto ser uma representação transicional de uma faixa de tempo diferida entre ambos; está, isso sim, na transformação da experiência do tempo cronológico, na ruptura do tempo profano e no átimo, no instante do presente irrepresentável (cujo paradigma é o tempo operativo).

Nesse sentido, é possível ler a crítica benjaminiana aos go-vernos social-democratas como estendida à concepção de tempo homogêneo e vazio, no qual se desenvolve um progresso da es-pécie humana, tão cara àquela ideologia progressista. Benjamin

10 AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta... p. 70-71. “Parousia significa in greco semplicemente: presenza (para-ousia, letteralmente: essere accanto; nel presente, l´essere sta, per così dire, accanto a se stesso). Essa non indica né un complemen-to, che si aggiunge a qualcosa per renderlo completo, né un supplemento, che si aggiunge ulteriormente senza giungere mai a compimento. Paolo se ne serve per designare l´intima struttura uniduale dell´evento messianico, in quanto composto da due tempi eterogenei, un kairós e un chronos, un tempo operativo e un tempo rappresentato, congiunti, ma non addizionabili. La presenza messianica sta ac-canto a se stessa, perché, senza coincidere mai con un istante cronologico e senza aggiungersi a esso, tuttavia lo afferra e porta dall´interno a compimento.”

11 Idem. p. 71. “Il messia è già arrivato, l´evento messianico è già compiuto, ma la sua presenza contiene al suo interno un altro tempo, che ne distende la parousía, non per differirla, ma, al contrario, per renderla afferrabile.(...) Il messia fa già sempre il suo tempo – cioè, insieme, fa suo il tempo e lo compie”

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pretende “um presente que não é passagem, mas que se mantém imóvel no limiar do tempo.”12 Do mesmo modo, para Paulo, as duas extremidades do tempo (do tempo profano, com seu fim, e do tempo que vem, no seu início) se contraem no tempo messiâ-nico e “o passado (o acabado) reencontra uma atualidade e torna-se inacabado e o presente (o inacabado) adquire uma espécie de acabamento.”13

O átimo, que na concepção social-democrata é homogeneizan-te e esvazia o tempo (tornando-o inapreensível e fugidio), é a dis-tensão do tempo messiânico, isto é, é o único tempo que resta, o único tempo possível – “o tempo que nós mesmos somos”.14 Isto é, a conexão entre tempo messiânico e o resto de Israel se faz plena justamente no tempo que resta, na contiguidade entre o tempo e aquele que o vive (o resto).

Livrando-se da linha vazia da representação do tempo e assu-mindo o tempo despendido para formulação de tal representação – o tempo operativo – como único tempo que resta, o homem abre o espaço do agora, do reino messiânico, do estado de exceção efetivo – verdadeiro – tal qual se pode ler na oitava tese benjaminiana.15

12 BENJAMIN, Walter. Teses sobre Filosofia da História. p. 167.13 AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta... p. 74. “(...) il passato (il compiuto) ritrova

attualità e diventa incompiuto e il presente (l´incompiuto) acquista una sorta di compiutezza.”

14 Idem. p. 68. “(...) il tempo che noi stessi siamo.”15 Cf. a tradução da tese apresentada no prefácio por Willis Santiago Guerra Fi-

lho.

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5. A lei: da vigência sem significado à exceção efetiva.

Ao traçar algumas observações acerca do Direito das Gentes na Idade Média, Carl Schmitt diz ser preciso fazer uma distinção entre a anarquia da Idade Média e o niilismo do século XX:

A ordenação medieval da Europa foi seguramente muito anárquica (...), se lhe aplicam as medidas de uma em-presa moderna que funciona sem problemas, mas, em que pese todas as guerras e disputas, não era niilista porquanto não havia perdido sua unidade fundamental de ordenação e assentamento.1

A tal unidade fundamental de ordenação Schmitt dá a desig-nação Respublica Christiana. Esta, por mais fragmentária que pudesse ser a organização e partição do solo, mantinha sua uni-dade intacta. Nem as suas guerras intestinas eram capazes de suspender ou negar essa organização geral. Tais guerras eram “contendas no sentido de reclamações de direitos, realizações de direitos ou exercício de um direito de resistência e se desenvol-viam à margem da mesma ordenação geral que abarca ambas as partes combatentes.”2

O intento de Schmitt é salientar que a Respublica Christiana é um prolongamento cristão do Império Romano. Antes de expor o

1 SCHMITT, Carl. El Nomos de la Tierra. In. AGUILAR, Héctor Orestes. Carl Sch-mitt, Teólogo de la Política. México: Fondo de Cultura, 2001. p. 476. “La orde-nación medieval de Europa fue seguramente muy anárquica (...), si se le aplican las medidas de una empresa moderna que funciona sin problemas, pero, pese a todas las guerras y disputas, no era nihilista mientras no había perdido su unidad fundamental de ordenación y asentamiento.”

2 Idem. p. 477. “(...) contiendas en el sentido de reclamaciones de derechos, rea-lizaciones de derechos o ejercicio de un derecho de resistencia y se desarrollan en el margen de la misma ordenación general que abarca a ambas partes com-batientes.”

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pensamento de Schmitt, é preciso dizer que o que se encontra por trás das suas concepções político-jurídicas é sua idéia de seculari-zação, traduzida na famosa frase presente na sua Teologia Política I: “todos os conceitos significativos da moderna teoria do Estado são conceitos teológicos secularizados.”3 Como esclarecer este ter-mo – secularização4 – para melhor compreensão do pensamento de Schmitt e de suas implicações na moderna teoria do Estado e do Direito? Agamben relata que, ao contrário de Weber – para quem “a secularização era um aspecto do processo de crescente desencanto e des-teologização do mundo moderno”5 –, em Schmitt a seculariza-ção “mostra, ao contrário, que a teologia continua a estar presente e a agir no moderno de modo eminente.”6 Porém, não se trata de uma contiguidade substancial entre os conceitos teológicos e os moder-nos conceitos políticos, isto é, de uma identidade significativa entre ambos, mas de uma estratégia que marca os conceitos políticos com os traços de seu originário caráter teológico. Secularização, nesse sentido, é uma assinatura (no sentido que Agamben, desenvolvendo as lições de Foucault, dá a esse termo), isto é,

algo que num signo ou num conceito o marca e o excede para enviá-lo a uma determinada interpretação ou a um determinado âmbito sem, no entanto, sair do semiótico para constituir um novo significado ou um novo concei-to. A assinatura move e desloca os conceitos e os signos de uma esfera para outra (nesse caso, do sacro ao profa-no e vice-versa) sem redefini-los semanticamente.7

3 SCHMITT, Carl. Teologia Política. In. AGUILAR, Héctor Orestes. Carl Schmitt, Teó-logo de la Política. México: Fondo de Cultura, 2001. p. 43. “Todos los conceptos significativos de la moderna teoría del Estado son conceptos teológicos seculariza-dos.”

4 O tema da secularização em relação aos problemas de filosofia da história é tra-tado exemplarmente por Karl Löwith. De fato, ele diz que a própria idéia de uma filosofia da história só pôde se tornar possível por causa da secularização. Isto é, diz que a noção de um sentido final para história, o em vista de que dos eventos históricos, é possível através da secularização do sentido escatológico constante na tradição judaico-cristã. Cf. LÖWITH, Karl. Histoire et Salut. Les présupposés théologiques de la philosophie de l´histoire. Paris: Gallimard, 2002. pp. 21-42.

5 AGAMBEN, Giorgio. Il Regno e la Gloria... p. 15. “(...) la secolarizzazione era un aspetto del processo di crescente disincanto e de-teologizzazione del mondo moderno”

6 Idem. “(...) mostra, al contrario, che la teologia continua a essere presente e ad agire nel moderno in modo eminente.”

7 Idem. p. 16. “(...) qualcosa che, in un segno o in un concetto, lo marca e lo eccede per rimandarlo a una determinata interpretazione o a un determinato ambito, senza,

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Assinando os conceitos políticos modernos, a secularização neles marca sua origem teológica, forçando uma busca das ori-gens das noções políticas correntes, sem com isso duplicar os conceitos, isto é, sem uma nova elaboração conceitual.

Na idéia de uma Respublica Christiana, apontada por Schmitt como a continuação histórica do Império Romano, está um pri-meiro passo para a secularização do conceito de poder soberano que aparecerá no pensamento schmittiano (da doutrina cristã do poder do Império até, na modernidade – obviamente que com to-das as diferenças que se podem sinalizar – a figura do Estado moderno). O ponto, por assim dizer, teológico a partir do qual Schmitt lança suas análises é sua interpretação do enigmático capítulo 2 da Segunda Carta de Paulo aos Tessalonicenses:

Quanto à Vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, e à nossa reunião com ele, rogamo-vos, irmãos, que não percais tão depressa a serenidade de espírito, e não vos pertu-beis nem por palavra profética, nem por carta que se diga vir de nós, como se o Dia do Senhor já estivesse próximo. Não vos deixeis enganar de modo algum por pessoa al-guma; porque deve vir primeiro a apostasia e aparecer o homem ímpio (anomos), o filho da perdição, o adversário, que se levanta contra tudo que se chama deus, ou recebe um culto, chegando a sentar-se pessoalmente no templo de Deus, e querendo passar por Deus. Não vos lembrais de que vos dizia isto quando estava convosco? Agora tam-bém sabeis o que é que ainda o retém (to katechōn), para aparecer só a seu tempo. Pois o mistério da impiedade (anomia) já está agindo, só é necessário que seja afastado aquele que ainda o retém (ho katechōn)! Então, aparecerá o ímpio (anomos), aquele que o Senhor destruirá com o sopro de sua boca, e o suprimirá (katargēsei) pela mani-festação de sua Vinda (parousia). Ora, a vinda do ímpio (anomos) será assinalada pela atividade de Satanás, com toda a sorte de portentos, milagres e prodígios mentiro-sos, e por todas as seduções da injustiça, para aqueles que se perdem, porque não acolheram o amor de verda-de, a fim de serem salvos. (2 Tes, 2:1-10)8

però, uscire dal semiotico per costituire un nuovo significato o un nuovo concetto. Le segnature spostano e dislocano i concetti e i segni da una sfera all´altra (in questo caso, dal sacro al profano e viceversa) senza ridefinirli semanticamente.”

8 As anotações em grego trazidas no texto são intencionais e não aparecem na tradução de A Bíblia de Jerusalém. Elas são extraídas de Il Tempo che Resta,

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Schmitt valoriza a força histórica da figura do katechon, identi-ficando-o à figura do Império e, consequentemente, da Respublica Christiana. Desse modo, a esses (Império; Respublica) também seria incumbida a tarefa de deter – reter – a chegada o anomos e o fim do presente tempo, do presente mundo.9 O Império cristão carregaria consigo a dimensão do seu fim, previsto com o afastamento daquele que o retém (refreia) – o Katechon. A interpretação do jurista remon-ta àquela feita por Tertuliano no Da Ressurreição da Carne, no qual, lendo o mesmo trecho de 2 Tessalonicenses, o padre declara sobre o katechon: “Qual obstáculo senão o Império Romano, cujo desmem-bramento nas mãos de dez reis trará o reino do Anticristo?”10

Tal linha interpretativa valoriza o papel daquele que retém – do katechon (e é a partir dela que a teologia católica – e também a protestante – estabelece a segunda vinda do Cristo como termo do fim da história). Ao katechon, portanto, é atribuído o papel de refrear o mistério da anomia,11 justificando seu poder enquanto autoridade constituída.

Em contraponto à idéia legitimadora de uma teologia política é que Erik Peterson – que assim como Schmitt era católico (e, como tal, não podia negar a segunda vinda do Cristo, isto é, sua fé escatológica) mas que, ao contrário deste, não era jurista, e sim teólogo – marca sua posição.12 Com Schmitt ele partilha a idéia de que um katechon é aquilo que refreia o fim do mundo. Ou seja, para Peterson o presente estado histórico da humanidade não é mais do que a espera da fundação do Reino celeste, do fim da história. Porém, o que os diferencia é como encaram tal força: “para Schmitt, esse elemento retardatário é o Império; para Peter-

pp. 166-167, no qual Agamben traz o texto grego da edição crítica de Eberhard Nestlé (Novum Testamentum graece et latine, sob a cura de Erwin Nestlé e Kurt Aland. Londres: United Bible Societies, 1963).

9 SCHMITT, Carl. El Nomos de la Tierra… pp. 478-479.10 TERTULIANO. Oeuvres I. Paris: Chez Lous Vivès, Libraire-Éditeur, 1872. Trad.

M. de Genoude. p. 472. “Quel obstacle, sinon l’empire romain, dont le démembre-ment entre les mains de dix rois amènera le règne de l’Antéchrist?”

11 Vale lembrar que no texto da Bíblia de Jerusalém, cuja tradução corrente pode ser remetida a uma tradição proveniente de Jerônimo, não se constata o uso do termo grego anomia (ou, sem-lei), mas impiedade. De fato, esse descuido filológico acaba por tornar o trecho ainda mais nebuloso, condicionando sua interpretação àquelas de um messianismo institucionalizado.

12 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Il Regno e la Gloria... pp. 13-29; 83-124.

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son, a recusa dos hebreus a crer no Cristo.”13 No primeiro, uma verdadeira teologia política pode ser construída, uma vez que a história é possível somente através da manutenção de um poder soberano – o Império – que refreie o fim do mundo, enquanto no segundo não há tal possibilidade, dado que não é um poder impe-rial que retém o fim do presente tempo, mas a falta de conversão dos hebreus (em Peterson, lembra Agamben, o katechon justifica, por sua vez, a existência da Igreja14).

Ainda que ambos discordem sobre a admissibilidade ou não de uma teologia política, ou sobre a natureza do katechon, o de-cisivo é que suas idéias convergem no que tange a suspensão ou neutralização do fim do mundo, ou, do fim da história. “No ponto em que o plano divino da oikonomia15 era levado a cumprimento com a vinda do Cristo, produziu-se um evento (a faltosa conver-são dos hebreus, o império cristão) que tem o poder de manter em suspenso o eschaton.”16 Tanto em Schmitt, quanto em Peterson, portanto, há uma falta na economia salvífica divina, de modo a fazer do evento messiânico apenas a abertura de um tempo sus-penso (um tempo de transição) até a segunda vinda – parousia – do messias que porá fim ao tempo.

Voltando ao trecho de 2 Tessalonicenses 2:1-10, é possível verifi-car que não fica explícita nenhuma referência positiva ao katechon. Ao contrário, é somente através da sua abolição que poderá apa-

13 Idem. p. 19.“(...) per Schmitt, questo elemento ritardante è l´Impero; per Peterson, il rifiuto degli ebrei di credere in Cristo.”

14 Idem.15 O termo grego oikonomia (economia) está atrelado à compreensão cristã da trin-

dade. Oikonomia é o termo empregado pelos padres para designar a organização interna das pessoas divinas na trindade. Assim, Deus é uno em essência, mas trino quanto à sua oikonomia. De certo modo, e esse é um dos pontos mais inves-tigados por Agamben em Il Regno e la Gloria, a oikonomia marca a práxis de deus, sua intervenção na história (parte do plano de salvação); a diferença da organiza-ção pessoal trinitária em face de sua essência una. Ou seja, em última análise, trata-se da marcação da dicotomia ontologia/práxis. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Il Regno e la Gloria... em especial pp. 31-82. Outra filósofa contemporânea também se debruçou sobre o termo oikonomia para alavancar interessantes idéias sobre a questão da imagem e seus atrelamentos aos problemas do poder. Trata-se de Marie-José Mondzain. Cf. MONDZAIN, Marie-José. Image, Icône, Économie. Les sources byzantines de l’imaginaire contemporain. Paris: Seuil, 1996.

16 AGAMBEN, Giorgio. Il Regno e la Gloria... p. 19. “Nel punto in cui il piano divino dell´oikonomia era giunto a compimento con la venuta del Cristo, si è prodotto un evento (la mancata conversione degli ebrei, l´impero cristiano) che ha il potere di tenere in sospeso l´eschaton.”

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recer plenamente o anomos, aquele “que o Senhor destruirá com o sopro de sua boca, e o suprimirá (katargēsei) pela manifestação de sua Vinda (parousia).” Ou seja, ao contrário das legitimações le-vantadas tanto por Schmitt, na figura de um Império que suspende o fim da história, quanto por Peterson, na idéia da Igreja que per-dura enquanto não houver a conversão dos judeus – no interior da concepção católica e, de certo modo, também das protestantes –, o intento paulino não parece ser o de legitimar a estruturação de um poder capaz de refrear o aparecimento do anomos. Em Paulo so-mente com a presença efetiva do anomos é que o poder messiânico toma toda sua força. Isto é, o desvendamento do mistério da anomia “significa a aparição à luz da inoperosidade da lei e da substancial ilegitimidade de todo poder no tempo messiânico.”17

Os poderes que ocultam o mistério da anomia são seculariza-dos nas teorias modernas do Estado, atravessando os séculos até sua forma contemporânea, desde o Império Romano – em Tertu-liano –, até sua continuação na Respublica Christiana – segundo a leitura de Schmitt –, ou, ainda que num outro sentido, na Igre-ja – de acordo com Peterson. 18 Assim, à luz dessa perspectiva, é possível ver na força decisória do soberano de Schmitt o liame fundamental entre o poder secular do Estado – cumprindo seu papel de katechon – e o estado de exceção que se oculta por trás de suas malhas normativas.

A reivindicação schmittiana por uma relação constante en-tre estado de exceção e soberano (que neste capítulo é vista na compreensão do katechon) e a insistência de Peterson na faltante conversão dos judeus, assinalam o ponto em que suas conste-lações teóricas brilham com forte vigor anti-messiânico. Entre-tanto, um autor pertencente ao mesmo milieu cultural tanto de Schmitt quanto de Peterson, que estava, porém, no lado oposto

17 AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta... p. 104. “(...) significa l´apparire alla luce dell´inoperosità della legge e della sostanziale illegittimità di ogni potere nel tempo messianico.”

18 Além do sentido divergente entre Schmitt e Peterson (a negação da teologia polí-tica deste e sua não legitimação de um poder soberano secular como descenden-te daquele do Ancien Régime), Agamben mostra como as idéias de Peterson são legitimadoras de um outro paradigma: a teologia econômica que, concomitan-temente à teologia política, funciona como um dos pólos daquilo que o filósofo italiano chama de máquina governamental do Ocidente. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Il Regno e la Gloria... pp. 18-29 e pp. 81-82.

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da contenda por ser um judeu, e, justo por isso, que porventura estaria em condições de marcar uma compreensão do messianis-mo de maneira díspar, parece tramar uma interpretação da ques-tão messiânica em termos próximos aos dos seus antagonistas. Trata-se de Gershom Scholem.

Depois de anunciar a Benjamin que havia aconselhado o reda-tor chefe do Jüdische Rundschau a convidá-lo para escrever um artigo sobre os dez anos da morte de Kafka, Scholem e o amigo trocam várias correspondências nas quais, dentre outros assun-tos, falavam sobre as suas interpretações de Kafka. Em uma de-las, de 17 de julho de 1934, Scholem escreve:

O mundo de Kafka é o mundo da revelação, embora naquela perspectiva que se volta para o seu vazio, para o nada. Portanto não posso concordar com sua negação deste aspecto, se é que ela deve ser encarada realmente como uma rejeição e não se trata de um mal-entendido, provocado pela sua polêmica com autores como Scho-eps e Brod. A inexiqüibilidade do revelado fornece a cha-ve para a compreensão do mundo kafkiano e nisso coin-cide com uma teologia entendida corretamente (...). O problema, caro Walter, não é sua ausência num mundo pré-animista, não. O problema é sua inexiqüibilidade. É sobre este aspecto que teremos que nos pôr de acordo. E aqueles estudantes, a que você se refere no final, não são os que perdem o texto (...), mas sim estudantes que não conseguem decifrá-lo. Um mundo no qual as coi-sas são incrivelmente concretas e qualquer passo é ine-xeqüível, forçosamente se apresenta com uma imagem abjeta e de forma alguma idílica.19

Os estudantes aos quais se refere Scholem encontram-se em um trecho do ensaio sobre os dez anos da morte de Kafka de Ben-jamin (cujo manuscrito estava nas mãos do rabino), no qual este desenvolve a sua idéia do redobramento como direção do estudo (dos seus estudantes que velam) e que culmina com a transfor-mação da vida em escritura:

O direito que não é mais exercido e que é só estudado, é a porta da justiça. A porta da justiça é o estudo. E

19 BENJAMIN, Walter; SCHOLEM, Gershom. Correspondência. São Paulo: Perspec-tiva, 1993. pp. 177-178.

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certamente Kafka não se atreve a associar a esse estudo as promessas que a tradição associava aos estudos da Thora. Seus ajudantes são sacristãos que ficaram sem paróquia; seus estudantes, escolares sem escrita. Agora nada mais os detém em sua viagem ‘alegre e vazia’.20

Na verdade, o que aqui Scholem não consegue compreender é como uma vida pode transformar-se em escritura, de maneira que formula sua inexiqüibilidade, isto é, a dilação de uma revela-ção que se abre para o niilismo (para o nada).

Em carta de 11 de agosto de 1934 Benjamin responde a Scho-lem perguntando: “Peço-lhe que me esclareça a sua perífrase de que Kafka representa ‘o mundo da revelação, embora naquela perspectiva que se volta para o seu vazio, para o nada’.”21 Scho-lem, em carta de 20 de setembro de 1934, responde:

Você me pergunta o que entendo pelo “Nada da reve-lação”? Entendo um estado em que a revelação parece destituída de significado, no qual ela consegue se impor à medida que é válida, mas nada significa. Quando de-saparece a riqueza do significado e o elemento que sur-ge se reduz à própria nulidade embora não desapareça (e a revelação é algo que surge), pois aí se revela o seu Nada. É óbvio que no sentido religioso este é um caso limítrofe, sendo questionável se pode ser executado na realidade. Não posso compartilhar sua opinião de que é a mesma coisa se os alunos perdem “a escrita” ou se não logram decifrá-la. Vejo nesse ponto um dos graves erros que você pode cometer. É justo a diferença entre essas duas posições que pretendi definir ao me referir ao vazio da revelação.22

O que Scholem pretende, nesse sentido, é que a preservação da lei (da revelação) – ainda que aqui discutam Kafka, o sentido é abrangente e engloba a questão da discussão da lei mesma (da Torá) –, na forma de sua suspensão numa vigência sem signifi-cado, é a dimensão fundamental do messianismo (nessa mesma posição se enquadram as interpretações tradicionais do termo

20 BENJAMIN, Walter. A Modernidade e os Modernos... p. 105.21 BENJAMIN, Walter; SCHOLEM, Gershom. Op. cit. p. 188-189.22 Idem. p. 197.

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parousia, que fazem do tempo messiânico uma dilação do tempo profano até o seu fim; isto é, o tempo messiânico seria visto como um tempo suspenso cuja vivência seria impossível). No entanto, ao se conservar uma lei que não tem mais significado, é a dimen-são de uma força de lei que vem à tona. Isto é, trata-se aqui, com suas nuances, da idéia schmittiana de uma relação intrínseca e intransponível entre direito e anomia.

Benjamin, ao contrário, ao identificar vida e escrita, e ao trazer a figura do direito que não é mais aplicado, mas apenas estuda-do, parece encontrar um lugar para o direito após sua deposição messiânica exatamente na figura do novo advogado que não pra-tica, nem exige o cumprimento da lei, mas que apenas a estuda – figura que o próprio Kafka poderia ser representante, já que era o advogado que não exercia a advocacia. Um outro uso para a lei (para o direito) é, portanto, a possibilidade de entrada na justiça, ao contrário do que intenta Scholem – e especularmente Schmitt – quando vê numa lei que vige sem significar o confim do messiâ-nico. Assim, o que Paulo demonstra aos Romanos, isto é, o efeito do tempo messiânico sobre a lei (o que a chegada – a presença – do Messias causa sobre a lei), é o que Benjamin pretende a partir da leitura de Kafka: somente através de uma inteira coincidência entre escrita e vida é que a suspensão da lei será integralmente cumprida. Não basta a suspensão formal numa vigência sem sig-nificado; é preciso abandonar o abandono da lei.23

Uma nova leitura de 2 Tes, 2:1-10 pode ser intentada: não mais legitimadora de um poder profano que tende a se estender numa dilação infinita, e em cujo núcleo encontra-se recoberta a anomia, com a qual nunca deixa de manter relação (perpetuando uma vigência sem significado). Nessa nova leitura,

é possível, então, que o katechōn e o anomos (...) não sejam duas figuras distintas, mas designem um único poder, antes e depois do desvendamento final. O poder profano – Império romano ou outro – é a aparência que recobre a substancial anomia do tempo messiânico. Com o desvendamento do “mistério”, essa aparência é banida, e o poder assume a figura do anomos, do fora-da-lei ab-

23 Cf. nota 3 do terceiro capítulo.

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soluto. O messiânico se cumpre assim no confronto de duas parousiai: a do anomos, marcada pelo ser em ato de Satã em cada potência, e a do messias, que tornou a energeia inoperante (com uma clara referência a 1 Cor 15, 24: “assim o fim, quando ele remeterá o reino a Deus e ao Pai, quando terá tornado inoperantes [katargesei] todo principado, toda potestade e toda potência.”)24

Aqui o messiânico de Paulo é mostrado como a possibilida-de de cumprimento daquilo que Benjamin chama de estado de exceção verdadeiro (efetivo) – ou, ousando, que a conclamação a um estado de exceção efetivo em Benjamin é reflexo do mes-sianismo paulino. Pode-se ver também uma maneira pela qual se suspende tanto o tempo quanto a lei além de suas meras suspensões formais. Ao se entender o katechōn e o anomos como uma só figura, antes e depois do desvendamento final do mistério da anomia, o estado de exceção confunde-se intei-ramente com a regra (vida e lei – vida e escrita – entram num completo estado de indistinção). É o cumprimento daquela vio-lência que depõe o direito da qual fala Benjamin em seu ensio Crítica da Violência;25 é também a lei da fé que, na katargein messiânica coloca em estado de inoperosidade a Torá – a lei no seu sentido prescritivo.

A partir do debate entre Scholem e Benjamin é possível cons-tatar como a katargein messiânica, ao tornar inoperante a Lei, tem um duplo significado: conserva (no seu cumprimento) e ao mesmo tempo abole (pela caducidade) a lei. Ainda no seu O Tem-po que Resta, Agamben declara ter feito uma descoberta que o surpreendeu, qual seja: que katargein é traduzida por Lutero

24 AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta... pp. 104-105. “È possibile, allora, che il katechōn e l´ánomos (…) non siano allora due figure distinte, ma designino un unico potere, prima e dopo lo svelamento finale. Il potere profano – Impero romano o altro – è la parvenza che copre la sostanziale anomia del tempo messianico. Con lo scioglimento del ‘mistero’, questa parvenza è tolta di mezzo, e il potere assume la figura dell´ánomos, del fuorilegge assoluto. Il messianico si compie così nello scontro di due parousíai: quella dell´ánomos, segnata dall´essere in atto di Sata-na in ogni potenza, e quella del messia, che ne renderà inoperosa l´enérgeia (con un chiaro riferimento a I Cor. 15, 24: ‘quindi la fine, quando consegnerà il regno a Dio e al padre, quando renderà inoperante ogni principato, ogni potestà e ogni potenza’).”

25 Cf. BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência. In.: Documentos de Cultura. Docu-mentos de Barbárie: escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1986.

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como Aufheben, justamente o termo do qual Hegel faz uso para fundar sua dialética.

É com toda probabilidade, portanto, através da tradu-ção das cartas paulinas que o termo adquiriu a particu-lar fisionomia que Hegel deveria recolher e desenvolver. É porque foi usado para produzir o gesto antinômico da katargēsis paulina (...) que o verbo alemão assumiu esse duplo significado. (...) Um termo genuinamente messi-ânico, que exprime a transformação da lei por efeito da potência da fé e do anúncio, torna-se, assim, o termo chave da dialética. Que essa seja – nesse sentido – uma secularização da teologia cristã, não é nenhuma novi-dade; mas que Hegel – não sem certa ironia – tenha aplicado à teologia uma arma que ela mesma continha – e que esta arma fosse autenticamente messiânica – certamente não é irrelevante.26

Desse modo, o messianismo, com seus termos intrincados, parece correr subterraneamente aos conceitos decisivos do pen-samento moderno (de Hegel a Derrida, passando por Heidegger, Bataille, Blanchot, Deleuze, dentre tantos outros, por mais que possa parecer uma generalização e uma contradição em rela-ção ao pensamento desses autores). Este pode ser visto, de cer-to modo, como uma espécie de interpretação e secularização do tema messiânico – com todas as suas divergências e variações (e obviamente que não se trata aqui da afirmação de uma depen-dência e atrelamento do pensamento moderno em face ao mes-sianismo). A lei da fé paulina – e, assim, todo o seu messianismo –, cujo espaço aporético expresso por Rm, 3: 27-30 pode ser lido como um paradigma27 da dialética secular, exprime o paradoxo

26 AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta... p. 95. “(...) È dunque con ogni proba-bilità attraverso la traduzione delle lettere paoline che il termine ha acquisito la particolare fisionomia che Hegel doveva raccogliere e sviluppare. È perché è stato usato per rendere il gesto antinomico della katargēsis paolina (...) che il verbo tedesco ha assunto quel doppio significato. (...) Un termine genuinamente messia-nico, che esprime la trasformazione della legge per effetto della potenza della fede e dell´annuncio, diventa così il termine chiave della dialettica. Che questa sia – in questo senso – una secolarizzazione della teologia cristiana, non è una novità; ma che Hegel – non senza qualche ironia – abbia applicato alla teologia un´arma che essa stessa conteneva – e che quest´arma fosse autenticamente messianica – non è certo irrilevante. ”

27 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Signatura Rerum... pp. 11-34.

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da desativação (suspensão; o tornar inoperante; katargein) e do cumprimento (conservação; operatividade) da Lei, figurando como aquilo que a leva à sua plenitude (o plērōma do grego de Paulo). A lei da fé, portanto, não pode ser encarada como uma nova Lei, isto é, como prescrições a serem cumpridas, mas como justiça da lei sem Lei. Eis a figura da Lei inoperante.

Digressão II - Dispositivos

Dispositivo é “qualquer coisa que tenha de algum modo a ca-pacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os dis-cursos dos seres viventes.”28 É assim que Agamben, após o levan-tamento genealógico que faz do termo dispositivo – desde suas origens na teologia cristã até seu uso por Foucault –, desenvol-ve sua idéia. Revelando a conexão dispositivo/governo, o filósofo italiano realça uma dicotomia: seres viventes (correspondentes à substância, à ontologia) e dispositivos (que capturam – do mesmo modo como a oikonomia divina está intimamente conectada com a essência sem fundamentar-se nela – o vivente, sem, no entanto, serem essencialmente ligados a ele). Dessa captura, do contato direto entre vivente e dispositivo surge, segundo Agamben, um terceiro elemento: o sujeito; isto é, o processo de captura dos vi-ventes pelos dispositivos pode ser chamado de subjetivação.29

A subjetividade é algo que, por assim dizer, se sobrepõe à substância, sem que o faça completamente, de modo que os pro-cessos de subjetivação podem ser vários para um mesmo vivente. Na atual proliferação dos dispositivos – que, além de Foucault (na leitura agambeniana aqui trazida), não são apenas os presídios, os manicômios, as escolas, as fábricas, mas também a escritu-ra, a agricultura, o comércio, a televisão, o computador, a inter-

28 AGAMBEN, Giorgio. Che cos`è un Dispostivo? Roma: Nottetempo, 2006. p. 21-22. “qualunque cosa abbia in qualche modo la capacità di catturare, orientare, determinare, intercettare, modellare, controllare e assicurare i gesti, le condotte, le opinioni e i discorsi degli esseri viventi.”

29 Sujeito – o resultado desse processo –, nesse sentido, é aquele vivente que toma consciência de si e ao mesmo tempo sotopõe-se a um poder (que não é um poder de domínio, mas um governo – em última instância, uma gestão, uma oikonomia). Isto é, o processo de subjetivação é aqui pressuposto do governo dos homens.

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net, o telefone celular, os jogos, o direito etc (e talvez até mesmo a linguagem seja o mais antigo dos dispositivos) – igualmente proliferam os processos de subjetivação (que, não obstante, hoje não firmam identidades subjetivas, como num primeiro momento pode aparentar, mas giram velozmente expondo apenas o fundo dessubjetivo sobre o qual um sujeito se edificaria).

A formação da subjetividade relaciona-se diretamente com a linguagem (e daí a idéia, sugerida por Agamben, da linguagem como dispositivo primeiro). De fato, a posição de sujeito pare-ce sempre marcada pela enunciação pronominal, isto é, sempre relacionada à tomada da fala, ao contato com a língua. Dizendo eu o vivente estabelece-se na posição subjetiva. Émile Benvenis-te, em ensaio fundamental para a lingüística contemporânea,30 denominou esses mecanismos de entrada em contato com a lín-gua, ou, mecanismos que possibilitam a enunciação, indicadores de enunciação. De acordo com Benveniste, tanto os pronomes como alguns advérbios (aqui, agora etc.) estão inscritos nessa categoria. Tais indicadores não representam nenhum conteúdo semântico predeterminado, mas somente podem ter um referen-te quando analisados a partir da instância de discurso (“os atos discretos e cada vez únicos pelos quais a língua é atualizada em palavra por um locutor”31) na qual se encontram. Benveniste ex-plicita sua análise a partir das duas primeiras pessoas dos pro-nomes pessoais eu e tu:

Qual é, portanto, a “realidade” à qual se refere eu ou tu? Unicamente uma “realidade de discurso”, que é coi-sa muito singular. Eu só pode definir-se em termos de “locução”, não em termos de objetos, como um signo nominal. Eu significa “a pessoa que enuncia a presente instância de discurso que contém eu”. Instância única por definição, e válida somente na sua unicidade. Se percebo duas instâncias sucessivas de discurso conten-do eu, proferidas pela mesma voz, nada ainda me asse-gura de que uma delas não seja um discurso referido, uma citação na qual eu seria imputável a um outro.

30 BENVENISTE, Émile. A Natureza dos Pronomes. In.: Problemas de Lingüística Geral I. Campinas: Unicamp, 1995.

31 Idem. p. 277.

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É preciso, assim, sublinhar este ponto: eu só pode ser identificado pela instância de discurso que o contém e somente por aí. Não tem valor a não ser na instância na qual é produzido. Paralelamente, porém, é também enquanto instância de forma eu que deve ser tomado; a forma eu só tem existência lingüística no ato de pala-vras que a profere. Há, pois, nesse processo uma dupla instância conjugada: instância de eu como referente, e instância de discurso contendo eu, como referido. A de-finição pode, então, precisar-se assim: eu é o “indivíduo que enuncia a presente instância de discurso que con-tém a instância lingüística eu”. Conseqüentemente, in-troduzindo-se a situação de “alocução”, obtém-se uma definição simétrica para tu, como o “indivíduo alocutado na presente instância de discurso contendo a instância lingüística tu”.32

Os indicadores de enunciação não se referem a uma realidade exterior (léxica), como os demais signos lingüísticos, mas, como que esvaziados de sentido, mostram-se preenchíveis apenas em uma instância de discurso. A conversão operada pelo uso dos indicadores de enunciação na instância discursiva é aquela pas-sagem da significação à indicação, isto é, da língua – como código – à fala; da linguagem ao discurso. “Assim”, lembra Agamben ao se referir a concepção de Benveniste, “a enunciação não se refere ao texto do enunciado, mas a seu ter lugar e o indivíduo só pode pôr em funcionamento a língua na condição de se identificar no próprio evento da palavra, e não naquilo que, nela, se encontra dito.”33 Aquelas duas instâncias que se apresentam irremediavel-mente separadas, a língua e o discurso, entram em consonância, na enunciação, em algo como um apropriar-se da língua.

Esse eu que enuncia não é propriamente um indivíduo real (isto é, não se configura como uma realidade autônoma, como um eu substância), mas somente diz respeito àquele indivíduo que diz (que enuncia) eu, e isso exclusivamente no momento da enuncia-

32 Idem. pp. 278-279.33 AGAMBEN, Giorgio. Quel che Resta di Auschwitz. L´archivio e il testimone. To-

rino: Bollati Boringhieri, 1998. p. 108. “L´enunciazione non si riferisce, cioè, al testo dell´enunciato, ma al suo aver luogo e l´individuo può mettere in funzione la lingua solo a patto di identificarsi nell´evento stesso del dire e non in ciò che, in esso, viene detto.”

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ção. Ou seja, é apenas o reflexo lingüístico do vivente que enuncia eu. Em outros termos: é a imagem do vivente na linguagem e a condição pressuponente do sujeito – do subjectum, da hipóstase – que marca um espaço virtual de imputação, isto é, a consciência. A enunciação do pronome eu marca a presença de um sujeito. A característica dos indicadores de enunciação – principalmente o agora – está no fato de eles marcarem a possibilidade de uma representação temporal para o homem. Essa representação, en-tretanto, é como um sinal do fracasso da apreensão do átimo, do instante presente, no qual se encontra lançado o vivente, este que fica como que a correr atrás de si mesmo, no seu ser já sido, pos-to que aqui o tempo permanece numa dilação inapreensível. Para viver o agora, nesse sentido, basta ao homem dizê-lo – enunciá-lo –, inseri-lo no mundo através da sua palavra.

Mas, exatamente por isso, porque não tem outra rea-lidade que a discursiva, o “agora” – como o prova toda tentativa de apreender o instante presente – é mancha-do por uma negatividade irredutível; exatamente porque a consciência não tem outra consistência que a lingua-gem, tudo aquilo que a filosofia e a psicologia acredita-ram descobrir é apenas a sombra da linguagem, uma “substância sonhada”. A subjetividade, a consciência, em que nossa cultura acreditou encontrar seu funda-mento mais firme, repousa sobre aquilo que há de mais frágil e precário no mundo: o evento da palavra; mas esse precário fundamento se reafirma – e torna a des-moronar – cada vez que colocamos em função a língua para falar, na mais vã tagarelice como na palavra dada de uma vez por todas a si e aos outros.34

A consistência tênue e frágil do evento da palavra funciona como o marco maciço e firme sobre o qual a subjetividade pode

34 Idem. pp. 113-114. “Ma, proprio per questo, proprio perché non ha altra realtà che di discorso, l´‘ora’ – come prova ogni tentativo di afferrare l´istante presente – è segnato da una negatività irriducibile; proprio perché la coscienza non ha altra consistenza che di linguaggio, tutto ciò che la filosofia e la psicologia hanno credu-to di scorgervi non è che un´ombra della lingua, una ‘sostanza sognata’. La sog-gettività, la coscienza, in cui la nostra cultura ha creduto di trovare il suo più fermo fondamento, riposano su quanto vi è al mondo di più fragile e precario: l´evento di parola; ma questo labile fondamento si riafferma – e torna a sprofondare – ogni volta che mettiamo in funzione la lingua per parlare, nella chiacchiera più frivola come nella parola data una volta per tutte a sé e agli altri.”

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se consolidar. Porém, a cada instante em que um vivente fala, subjetivando-se, expõe-se, no fundo, uma dessubjetivação – a impossibilidade de uma substancialização, de uma substância sonhada para o sujeito.

Um meio interessante para exibir esse paradoxo da subjeti-vação (paradoxo porque não há subjetivação desconectada de uma dessubjetivação) são as análises dos testemunhos sobre os campos nazistas. Primo Levi, em certo ponto do seu Se Questo è un Uomo – que é, talvez, um dos mais intensos testemunhos so-bre a vida nos campos –, fala de uma categorização geral que se pode fazer entre os homens: os submersos e os salvos. Segun-do Levi, essa é mais notória do que outras duplas antagônicas (como os bons e os maus, os desgraçados e os afortunados etc.), ainda que nas situações cotidianas normais, aquela não apare-ça com a nitidez que tem nos campos.35 Nestes, diz Levi, todos encontram-se a sós, numa luta por sobrevivência regida aber-tamente por uma lei feroz: “a quem tem, será dado; a quem não tem, deste será retirado.”36 Desse modo, os mais fortes dentro do campo sobrevivem, os outros, os muçulmanos (que, no jar-gão dos campos, designavam os que não tinham mais forças, os inertes, aqueles que certamente já estavam votados para a sele-ção da câmara de gás), ao contrário, estavam fadados à morte.

Aos muçulmanos, aos homens em dissolução, não vale a pena dirigir a palavra, uma vez que já se sabe que se lamentariam e contariam aquilo que comiam em suas casas. Muito menos vale a pena fazer amizade com eles, porque não têm nenhum conhecido ilustre no campo, não comem nada além da ração, não trabalham em Kommandos vantajosos e não conhecem nenhum modo secreto de se organizar. E, por fim, sabe-se que estão aqui de passagem e dentro de algumas semanas deles não sobrará nada mais que um punhado de cinzas em algum campo não distante, e sob o registro um número de matrícula riscado.37

35 LEVI, Primo. Se Questo è um Uomo. Torino: Einaudi, 2005. pp. 79-80.36 Idem. p. 80. “(...) a chi ha, sarà dato; a chi non ha, a quello sarà tolto.”37 Idem. pp. 80-81. “Ai mussulmani, agli uomini in dissolvimento, non vale la pena

di rivolgere la parola, poiché già si sa che si lamenterebbero, e racconterebbero quello che mangiavano a casa loro. Tanto meno vale la pena di farsene degli amici, perché non hanno in campo conoscenze illustri, non mangiano niente extrarazione,

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As tenebrosas figuras inumanas, cuja encarnação se dá nos muçulmanos, continua Levi,

não têm história de modo algum: eles seguiram o barran-co até o fundo, naturalmente, como o riacho vai ao mar. Desde sua chegada ao campo, por essencial incapacida-de, por azar, ou por qualquer banal incidente, eles foram nocauteados antes mesmo de ter podido se adaptar; são abatidos a tempo, não começam a aprender o alemão e a discernir algo na infernal confusão de leis e de interditos, senão quando seus corpos já estão esfacelados e nada mais poderia salvá-los da seleção ou da morte por fra-queza. A sua vida é curta, mas seu número venceu; são eles, os Muselmänner, os submersos, o nervo do campo; eles, a massa anônima, continuamente renovada e sem-pre idêntica, os não-homens que marcham e se fadigam em silêncio, em quem a centelha divina está extinta, já muito vazios para sofrerem verdadeiramente. Hesita-se ao chamá-los vivos: hesita-se chamar morte a sua morte, diante da qual esses não temem porque estão muito can-sados para compreendê-la.38

A figura do muçulmano dos campos é aquela da vida nua, amortizada no interior da situação normal mas que é intrínseca a esta e que, nos momentos limítrofes – de exceção – vem à tona; é aquilo que permanecia num estado topológico latente, mas que agora surge numa topografia permanente – isto é, quando a ex-ceção coincide com a regra (e os exemplos se multiplicam: aque-les com morte cerebral nos CTIs hospitalares, os refugiados nas

non lavorano in Kommandos vantaggiosi e non conoscono nessun modo segreto di organizzare. E infine, si sa che sono qui di passaggio, e fra qualche settimana non ne rimarrà che un pugno di cenere in qualche campo non lontano, e su un registro un numero di matricola spuntato.”

38 Idem. pp. 81-82. “(...) non hanno storia; hanno seguito il pendio fino al fondo, naturalmente, come i ruscelli che vanno al mare. Entrati in campo, per loro es-senziale incapacità, o per sventura, o per un qualsiasi banale incidente, son stati sopraffatti prima di aver potuto adeguarsi; sono battuti sul tempo, non cominciano a imparare il tedesco e a discernere qualcosa nell´infernale groviglio di leggi e di divieti, che quando il loro corpo è già in sfacelo, e nulla li potrebbe piú salvare dalla selezione o dalla morte per deperimento. La loro vita è breve ma il loro numero è sterminato; son loro, i Muselmänner, i sommersi, il nerbo del campo; loro, la mas-sa anonima, continuamente rinnovata e sempre identica, dei non-uomini che mar-ciano e faticano in silenzio, spenta in loro la scintilla divina, già troppo vuoti per soffrire veramente. Si esita a chiamarli vivi: si esita a chiamar morte la loro morte, davanti a cui essi non temono perché sono troppo stanchi per comprenderla.”

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fronteiras entre os Estados e nos aeroportos, os milhares de esfo-meados dos países pobres etc.).

A partir dos relatos de Levi, no terceiro capítulo de Quel che Resta di Auschwitz, Agamben, fazendo uma análise da subjetivi-dade, pergunta-se quem seria o sujeito do testemunho dos cam-pos. Assim responde:

Dir-se-ia, aparentemente, que seja o homem – o sobre-vivente – que testemunha pelo não-homem, pelo mu-çulmano. Mas, se o sobrevivente testemunha para o muçulmano – no sentido técnico de “em conta de”, “por delegação” (“nós falamos em seu lugar, por delegação”), então, de alguma maneira, segundo o princípio jurídi-co segundo o qual os atos do delegado imputam-se ao delegante, é o muçulmano que testemunha. Mas isso significa que aquele que verdadeiramente testemunha no homem é o não-homem, isto é, que o homem é ape-nas o mandatário do não-homem, aquele que lhe em-presta sua voz. Ou, ainda, que não há um titular do testemunho, que falar, testemunhar significa entrar em um movimento vertiginoso, no qual algo vai ao fundo, se dessubjetiva integralmente e torna-se mudo, e algo se subjetiva e fala sem ter – propriamente – nada a dizer (“eu conto coisas ... que não vivi por minha conta”). As-sim, isto é, aquele que é sem palavra faz falar o falante, e aquele que fala leva na sua própria palavra a impossi-bilidade de falar, de modo que o mudo e o falante, o não-homem e o homem entram – no testemunho – numa zona de indistinção na qual é impossível designar a po-sição do sujeito, de identificar a “substância sonhada” do eu e, com essa, o verdadeiro testemunho.39

39 AGAMBEN, Giorgio. Quel che Resta di Auschwitz… pp. 111-112. “Si direbbe, in apparenza, che sia l´uomo – il superstite – a testimoniare del non-uomo, del musulmano. Ma se il superstite testimonia per il musulmano – nel senso tecnico di “per conto di” o “per delega” (“parliamo noi in loro vece, per delega”), allora, in qualche modo, secondo il principio giuridico per cui gli atti del delegato si imputano al delegante, è il musulmano a testimoniare. Ma ciò significa che colui che veramente testimonia nell´uomo è il non-uomo, che, cioè, l´uomo non è che il mandatario del non-uomo, colui che gli presta la voce. O, piuttosto, che non vi è un titolare della testimonianza, che parlare, testimoniare significa entrare in un movimento vertiginoso, in cui qualcosa va a fondo, si desoggettiva integralmente e ammutolisce, e qualcosa si soggettiva e parla senza avere – in proprio – nulla da dire (“racconto di cose... non sperimentate in proprio”). Dove, cioè, colui che è senza parola fa parlare il parlante e colui che parla porta nella sua stessa parola l´impossibilità di parlare, in modo che il muto e il parlante, il non-uomo e l´uomo entrano – nella testimonianza – in una zona d´indistinzione in cui è impossibile

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Nesse sentido, nos campos o sujeito do testemunho é sempre aquele que testemunha a dessubjetivação – num lance que põe numa zona de indistinção o processo de subjetivação e aquele de dessubjetivação.

A certeza consciente da modernidade – desde o Ego cogito de Descartes –, porém, marca, ou melhor, tenta marcar a fundação do sujeito como a firme substância que é o eu, esquivando-se do lugar sobre o qual o sujeito faz morada – a dessubjetivação que lhe é implícita, a fugacidade e volatilidade do evento da palavra.

Por isso a subjetivação, o produzir-se da consciência na instância do discurso, é frequentemente um trauma do qual os homens sofrem para se curar; por isso o frágil tecido da consciência incessantemente se esfacela e se apaga, mostrando à luz o descarte sobre o qual é cons-tituído, a constitutiva dessubjetivação de toda subjeti-vação.40

Pode-se dizer que o processo de subjetivação, paradigmatica-mente àquele que se dá nos testemunhos dos campos, manten-do-se preso ao falar, é refém da própria condição; isto é, marca o passo com o seu reverso, a dessubjetivação. Ao falar, o vivente se afunda num silêncio profundo, num abismo sigético, numa Voz;41 ou seja, dessubjetiva-se para poder dar lugar ao sujeito (confirmando a sobreposição do sujeito sobre a substância do vivente, porém, marcando justamente o ponto em que ambos não coincidem e um resto – um não-sujeito – suporta o peso do eu). Diante disso, estendendo tais análises ao zōon logon ekhon aris-totélico – o vivente que possui a linguagem, figura do humano na tradição ocidental –, é possível dizer que o vivente homem, na sua atual humanidade, erige-se sob um fundo vazio de humanidade, sob um inumano.

assegnare la posizione di soggetto, identificare la “sostanza sognata” dell´io e, con essa, il vero testimone.”

40 Idem. p.114. “Per questo la soggettivazione, il prodursi della coscienza nell´istanza del discorso, è spesso un trauma da cui gli uomini stentano a guarire; per questo il fragile testo della coscienza incessantemente si sfalda e cancella, mostrando alla luce lo scarto su cui si è costruito, la costitutiva desoggettivazione di ogni soggetti-vazione.”

41 Para a compreensão dessa idéia de Voz, como um conceito nodal no pensamento de Agamben, cf.: AGAMBEN, Giorgio. El Lenguaje e la Muerte. Un seminario sobre el lugar de la negatividad. Valencia: Pre-Textos, 2002. Traducción: Tomás Segovia.

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A linguagem – aqui exposta na sua função dispositiva – cap-tura o vivente homo sapiens, que a partir de então diz-se homem. Assim, o dispositivo é uma máquina que produz subjetivações e, como tal, é uma máquina de governo,42 cuja figura emblemática pode ser encontrada no dispositivo da confissão – que Agamben insistia em afirmar, no seu curso Teoria sui Dispositivi, na IUAV em Veneza, ser o principal formador de algo como a subjetividade ocidental.43 Na confissão “um novo Eu se constitui através da negação e, ao mesmo tempo, da assunção do velho. A cisão do sujeito operada pelo dispositivo penitencional era, nesse sentido, produtora de um novo sujeito, que encontrava a própria verdade na não-verdade do eu pecador repudiado.”44

Agamben, ao se referir à confissão, utiliza os verbos no pas-sado, de modo que dá a entender que o dispositivo penitencial parece não mais manter a mesma força de outrora. E é isso, de fato, que afirma logo em seguida:

O que define os dispositivos com os quais temos que lidar na fase atual do capitalismo é que estes não agem mais tanto pela produção de um sujeito quanto pelos processos que podemos chamar de dessubjetivação. Um momento dessubjetivante estava certamente implícito em todo processo de subjetivação e o Eu penitencial se constituía, havíamos visto, somente por meio da própria negação; mas o que acontece agora é que processos de subjetivação e processos de dessubjetivação parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dão lugar à recomposição de um novo sujeito, a não ser em forma larvar e, por assim dizer, espectral. Na não-verdade do sujeito não há mais de modo algum a sua verdade.45

42 AGAMBEN, Giorgio. Che cos`è un Dispostivo?... p. 29.43 Por subjetividade ocidental, tal qual expõe Agamben, pode-se entender algo que

é, ao mesmo tempo, dividido e seguro de si, cujo núcleo duro é uma consciência, um com-saber, o sujeito da passagem de um não-dito a um dito.

44 AGAMBEN, Giorgio.Che cos’è un Dispositivo?... pp. 29-30. “(...) un nuovo Io si cos-tituisce attraverso la negazione e, insieme, l´assunzione del vecchio. La scissione del soggetto operata dal dispositivo penitenziale era, cioè, produttiva di un nuovo soggetto, che trovava la propria verità nella non-verità dell´Io peccatore ripudiato.”

45 Idem. pp. 30-31. “Quel che definisce i dispositivi con cui abbiamo a che fare nella fase attuale del capitalismo è che essi non agiscono piú tanto attraverso la produzione di un soggetto, quanto attraverso dei processi che possiamo chiamare di desoggetti-vazione. Un momento desoggettivante era certo implicito in ogni processo di sogget-tivazione e l´Io penitenziale si costituiva, lo abbiamo visto, solo attraverso la propria

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De certo modo, o espectro do não-sujeito contemporâneo já havia sido exposto por Debord46 e, assim como ele, também Agamben pretende mostrar com mais ênfase a condição do ho-mem contemporâneo. Este gira num vazio do seu não sujeito que, como descreve o coletivo Tiqqun,47 não é mais do que uma exis-tência branca, uma presença indiferente, aquele que é o mais íntimo na extraneidade, o Bloom (Tiqqun faz referências a Leo-pold Bloom, de James Joyce): “último homem, homem da rua, homem dos loucos, homem de massa, homem-massa, é assim que SE nos tinha primeiramente representado o Bloom: como o triste produto do tempo das multidões, como o filho catastrófico da era industrial e do fim de todos os encantamentos.”48

O atual jogo de captura dos dispositivos (internet, telefone celu-lar, televisão, shopping center etc) deixa escorregar por entre suas garras aquilo de que se nutre: o sujeito. Ao não mais se subjetivar o Bloom carrega consigo um germe de ingovernabilidade, o ponto em

negazione; ma quel che avviene ora è che processi di soggettivazione e processi di desoggetttivazione sembrano diventare reciprocamente indifferenti e non danno luo-go alla ricomposizione di un nuovo soggetto, se non in forma larvata e, per così dire, spettrale. Nella non-verità del soggeto non ne va più in alcun modo della sua verità.”

46 DEBORD, Guy. La Société du Spectacle. Paris: Gallimard, 1992.47 Tiqqun era um coletivo anônimo de jovens franceses (atuante até meados de 2007)

que mantinha publicações de cunho filosófico com agudas reflexões a respeito do contemporâneo (mais atidos à realidade francesa e européia em geral) e que também era politicamente ativo (ligado aos grupos anarquistas franceses). É pre-ciso lembrar que recentemente, em 11/11/2008, nove ex-integrantes do coletivo (todos entre 20 e 34 anos) foram presos numa fazenda num vilarejo francês (na planície de Millevaches) acusados de formação de associação com fins terroristas. A principal acusação a eles imputada era a de terem sido os responsáveis por atos que danificaram os pantógrafos de alguns trens da linha de TGV Paris-Lille. Ainda que a polícia e a brigada anti-terrorista francesa não tivessem provas con-tundentes do envolvimento dos jovens com os tais atos terroristas (que, segundo a própria polícia, não poderiam causar nenhum dano às pessoas ), todos foram presos preventivamente, uma vez que com eles foram apreendidos uma lista com os horários dos trens e uma escada, supostamente usadas para o planejamento dos atos. Obviamente que o delírio da polícia está em atrelar os horários dos trens (que é comum nas mãos de qualquer pessoa na Europa) e uma escada à idéia de terrorismo por parte dos jovens. Tal fato mal chegou a ingressar nos noticiários franceses e, por aqui, passou praticamente desapercebido pela imprensa (exceção feita a Leneide Duarte-Plon, que no Observatório da Imprensa alertou justamente para a ausência de notícias sobre o fato). Outras leituras a respeito do assunto podem ser feitas no quinzenal Sopro, editado e publicado em Florianópolis pelos colegas Alexandre Nodari e Flávia Cera: www.culturaebarbarie.org/sopro

48 TIQQUN. Théorie du Bloom. Paris: La fabrique editions, 2000. pp. 16-17. “Dernier homme, homme de la rue, homme des foules, homme de masse, homme-masse, c´est ainsi que l´ON nous avait d´abord représenté le Bloom: comme le triste pro-duit du temps des multitudes, comme le fils catastrophique de l´ère industrielle et de la fin de tous les enchantements.”

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que a máquina governamental pode entrar em colapso – e aqui é possível expor a ingenuidade ou a nocividade dos movimentos iden-titários, uma vez que aquilo contra o que lutam (os poderes institu-ídos, o governo, ou não importa qual nome a estes sejam dados) é justamente o ponto ao qual sua luta os leva ao encontro (o reconhe-cimento de uma identidade por este poder, sua postura como sujei-to). Não é sem coincidências que na atual fase capitalista, em que os poderes encontram-se diante do corpo social mais dócil e frágil de que se tenha notícia na história,49 faz-se cada vez mais necessá-rio para os poderes o uso freqüente (numa proliferação incansável de dispositivos: das câmeras de vigilância às normativas dos aero-portos, das impressões digitais a algo como o projeto Genoma50) de dispositivos que intentam circundar a inteira vida desses obedientes cidadãos (cidadãos que giram como fantasmas num mundo em que não se reconhecem, a não ser no seu espectro exterior).

Entendendo-se a máquina governamental como uma herança teológico-econômica – no sentido dado por Agamben51 –, então

49 AGAMBEN, Giorgio. Che cos`è un Dispositivo?... p. 31.50 Cf. o interessnte ensaio de Agamben intitulado Identità senza persona. In.:

AGAMBEN, Giorgio. Nudità... pp. 71-82.51 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Il Regno e la Gloria. A tese levantada por Agamben nessa

obra é justamente a de que o governo moderno é uma herança da teoria da oiko-nomia, proveniente da teologia cristã. Essa oikonomia, além de figurar na doutrina da trindade como aquilo que permite a não proliferação de pessoas divinas no seio do cristianismo (marcando um Deus uno em essência, mas trino na sua economia, na sua administração interna) é também empregada no sentido de governo divino do mundo. (é importante marcar que esse uso, ainda que reconfortante para di-namitar essa divisão, acaba por gerar uma fundamental cisão ulterior no próprio seio do Deus: entre ser e práxis, teologia e economia, Reino e Governo.) Nesse sentido, esse governo providencial do mundo cessaria com o evento escatológico e a máquina providencial teria seu funcionamento interrompido, uma vez que não haveria mais cesura entre a essência e a práxis divina para ser suturada. Tal má-quina seria composta pelo Reino, isto é, a soberania divina, sua essência, seu ser, e pelo Governo do mundo, a práxis divina, seu atuar na história humana. O centro dessa máquina seria vazio, ou seja, não teria uma função propriamente operati-va – isto é, seria inoperante. No entanto, para que a máquina funcione a teologia cristã tramou uma série de conceituações de modo a revestir esse núcleo inope-rante com o que chamou de Glória de Deus. Somente mediante esse revestimento é que se tornaria possível a articulação (de fato, uma supressão, ainda que virtual, da cesura ser e práxis) da aporia de um Deus que reina (ser) mas não governa (práxis), porquanto ainda exista este mundo e o mundo por vir. Após o evento escatológico, isto é, no paraíso, não haveria mais governo divino porque o próprio Deus voltaria a ser “tudo em todos” e a gestão salvífica do homem tornar-se-ia desnecessária. Toda essa série de armações conceituais assinalam de que modo as concepções cristãs intitucionalizadas acabam por postergar a possibilidade de uma inoperosidade apenas para uma eternidade atemporal. Isto é, apenas depois de cumprido o plano de salvação divino é que se abriria ao homem a possibilidade

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o atual governo dos homens (o emblema secular do divino go-verno providencial do mundo), cujo pressuposto é a constituição subjetiva dos governados, gira no vazio. Daqui a disseminação indiscriminada e incessante de dispositivos que intentam, em vão, produzir novas subjetividades. A teologia cristã afirma que somente no fim anunciado dos tempos é que o governo divino do mundo terá fim (um encontro aproximativo desse tema pode ser visto no debate filosófico sobre o fim da história). Porém, a ces-sação do governo anunciada não veio e contemporaneamente os dispositivos proliferam-se pelo mundo – ainda que a produção de algo como um sujeito contemporâneo esbarre sempre na própria impossibilidade do processo de subjetivação.

Agamben lembra, por outro lado, que existe na teologia cris-tã uma única exceção com relação ao fim do governo divino do mundo: o inferno.

O inferno é o lugar em que o governo divino do mundo sobrevive eternamente, ainda que seja numa forma pu-ramente penitenciária. E, enquanto os anjos no paraíso, ainda que conservando a forma vazia das suas hierar-quias, abandonarão toda função de governo e não serão mais ministros, mas somente assistentes, os demônios são, ao contrário, os ministros indefectíveis e os algozes eternos da justiça divina.52

De fato, levando-se em conta que a idéia de um governo provi-dencial seja um legado teológico que ainda se encontra em pleno funcionamento e, considerando-se que a política moderna é a tentativa de governar a qualquer custo e para sempre, as pala-vras do messias “o Reino de Deus está entre vós” (Lc, 17: 21) es-tão hoje diametralmente revertidas, e aquilo que “está entre vós” não pode ser outra coisa senão o inferno.

de supressão de sua dúbia condição de vivente (sua condição ôntico-ontológica; sua cisão interna: ser/práxis), restando para o tempo presente apenas a governa-da angústia da espera por sua redenção.

52 AGAMBEN, Giorgio. Il Regno e la Gloria... p. 181 “L´inferno, è, cioè, il luogo in cui il governo divino del mondo sopravvive in eterno, anche se in una forma puramente penitenziaria. E mentre gli angeli in paradiso, pur conservando la forma vuota delle loro gerarchie, abbandoneranno ogni funzione di governo e non saranno più ministri, ma solo assistenti, i demoni sono invece i ministri indefettibili e i carnefici eterni della giustizia divina.”

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6. As imagens históricas: messianismo e espetáculo

Guy Debord enuncia na sexta tese do seu La Société du Spec-tacle:

O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mes-mo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um suplemento para o mundo real, sua decoração sobreposta. Ele é o coração do irrealismo da sociedade real. Sob todas suas formas particulares, in-formação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmação onipre-sente da escolha já feita na produção e seu consumo coro-lário. Forma e conteúdo do espetáculo são, identicamente, a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo é também a presença permanente dessa justificação, enquanto ocupação da parte principal do tempo vivido fora da produção moderna.1

As imagens que são exibidas durante a leitura dessa tese no fil-me La Société du Spectacle são as de um ensaio fotográfico, no qual as modelos desfilam para um fotógrafo; posam e encenam seus gestos, como se estes não lhes pertencessem – de fato, no mundo da moda, a gestualidade é capturada pelas lentes e imobilizada

1 DEBORD, Guy. La Société du Spectacle… pp. 17-18. “Le spectacle, compri dans sa totalité, est à la fois le résultat et le projet du mode de production existant. Il n´est pas un supplément au monde réel, sa décoration surajoutée. Il est le coeur de l´irréalisme de la société réelle. Sous toutes ses formes particulières, information ou propagande, publicité ou consommation directe de divertissements, le spectacle constitue le modèle présent de la vie socialement dominante. Il est l´affirmation omnipresente du choix déjà fait dans la production, et sa consommation corollaire. Forme et contenu du spectacle sont identiquement la justification totale des con-ditions et des fins du système existent. Le spectacle est aussi la presence perma-nente de cette justification, en tant qu´occupation de la part principale du temps vécu hors de la production moderne.”

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numa imagem-mercadoria que não é senão um puro meio isolado, o revelar do nada que está por trás do movimento do corpo da mo-delo. A sociedade do espetáculo tem como escopo, portanto, captu-rar até mesmo o gesto, esse meio suspenso que, segundo Agamben, pode ser uma terceira via à dicotomia meios e fins capaz de abrir uma verdadeira dimensão ética. Assim propõe o filósofo italiano:

O que caracteriza o gesto é que, nele, não se produz, nem se age, mas se assume e suporta. Isto é, o ges-to abre a esfera do ethos como esfera mais própria do homem. (...) Se o fazer é um meio em vista de um fim e a práxis é um fim sem meios, o gesto rompe a falsa alternativa entre fins e meios que paralisa a moral e apresenta meios que, como tais, se subtraem ao âmbi-to da medialidade, sem por isso tornarem-se fins. (...)O gesto é a exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio como tal. Este faz aparecer o ser-num-meio do homem e, deste modo, abre para ele a dimensão ética.2

Na sociedade do espetáculo o gesto, ao contrário dessa pro-posta, também está capturado; tudo está apreendido e até mesmo um meio suspenso, um gesto, não consegue se revelar simplesmente enquanto meio, mas é preso pelo mundo da mer-cadoria. Desse modo, aqueles gestos encenados pelas modelos no filme não se revelam como gestos, mas apenas como imagem-propaganda-mercadoria. Portanto, a sociedade do espetáculo ao funcionar não somente como modo de justificação total do meios e condições de produção existentes, mas cooptando tam-bém todo tempo além da produção (basta pensar na lógica im-perativa do lazer e entretenimento contemporâneos), tem como objetivo a apreensão da própria inoperosidade (que pode ser tida como o centro vazio da articulação ontologia/práxis) exposta por um gesto. O espetáculo toma os atributos de uma imagem justa-mente na medida em que eles não podem ser consumidos (como as fotos ilustrativas das campanhas publicitárias) e faz disso um novo objeto de consumo. A imagem, na qual nada mais há para ver, é apreendida por um mecanismo espetacular que reen-

2 AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o Gesto. In: Artefilosofia. no4, jan. 2008. Ouro Preto: Tessitura, 2008. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. p. 12-13.

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via para além dela mesma, como se sempre houvesse algo para se ver para além do ali visível.3

De fato, essa exibição de uma imagem como referência a uma invisibilidade sempre está atrelada a uma questão dispositiva de governo dos homens (isto é, a questão da imagem carrega o peso não de um discurso que se diria de cunho neutro, simplesmente estético, mas que tem sempre consigo um peso político; assim também, especularmente, é possível ler a questão do nada de re-velação da lei, de sua vigência sem significado, na compreensão do tempo messiânico de Scholem). O intento de Debord é mostrar que não somente no mundo da moda os gestos foram capturados

3 De certo modo, esse é um princípio de endereçamento a um poder maior, um poder da imagem que permanece não visível. Isto é, a imagem na sociedade do espetáculo paradoxalmente remete sempre a um invisível, este que lhe permane-ce como fundamento e sentido último. Em questão está mais do que um simples atributo de visibilidade da imagem, mas as suas correlações com um sistema de governo e domínio dos homens. Nesse sentido, é interessante a análise empre-endida por Marie-José Mondzain a respeito da questão iconoclasta no mundo bizantino. De acordo com Mondzain, todo o debate bizantino a respeito da ques-tão da imagem se deve justamente ao fato de ter sido aquele um período de crise política. Toda a discussão sobre a imagem tem a ver com um problema de poder político, de modo que a urgência de perguntas, por exemplo, “o que seria a en-carnação do Cristo senão o tornar-se visível de uma invisibilidade que, ao mes-mo tempo, mantém-se invisível?”, sempre se relacionam com a fundamentação de poder político. A filósofa parte, para tanto, assim como Agamben, do proble-ma da oikonomia (a gestão interna das pessoas da trindade, bem como o modo de intervenção salvífico de Deus no mundo) atrelando-o de modo homofônico à questão do Icône, ou seja, da representação imagética de um invisível. Toda a trama para sublevação ou não do poder político do imperador se dava, no mundo bizantino, ao redor da questão imagética. Aqueles que queriam a destruição da imagem tinham em vista a conquista do poder temporal, e, ao contrário, aqueles que a defendiam conclamavam um poder soberano justamente sobre aquilo que os seus oponentes buscavam destruir: a imagem. A astúcia dos anti-iconoclas-tas estava justamente na cunhagem do modelo oikonomico. Melhor dizendo, à reivindicação da destruição das imagens por parte dos iconoclastas, respondiam com a aceitação da destruição, porém, ressalvavam que aquilo que estava sendo destruído não era a imagem, mas um objeto. O dispositivo que os padres da igreja criaram para dar sustentação ao regime das imagens – em parte calcados na homofonia ícone/oikonomia, que Mondzain alega ter sido freqüente para os gregos bizantinos – foi justamente o Ícone. Assim como a oikonomia servia como dispositivo (dispositio é a tradução latina para oikonomia) da gestão interna das pessoas divinas na trindade e como modo de ingresso divino na história (gover-no divino do mundo), também o ícone possui como característica a articulação dos dois eixos (ontologia: essência invisível, ser divino; práxis: ação governativa divina), porém agora em relação ao estatuto da visibilidade (no fundo, da visi-bilidade do poder). Assim, o ícone tem, tal qual a oikonomia, um duplo regime: ao retratar o visível (a entrada de Deus na história) sempre o faz em vistas de uma remissão a um invisível (o Deus invisível na sua essência além da história). Cf. MONDZAIN, Marie-José. Image, Icône, Économie. Les sources byzantines de l’imaginaire contemporain. Paris: Seuil, 1996.

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e tornados mercadoria, mas que a sociedade do espetáculo (que pode ser entendida como um grande dispositivo) aprisiona a esfe-ra da gestualidade humana como um todo.

A sociedade do espetáculo atua de modo gestional-produtivo. A captura por ela empreendida é a mais fugaz e, ao mesmo tem-po, a mais incisiva. Tiqqun anota a condição do mundo na era espetacular:

O regime de poder sob o qual nós vivemos não parece em nada com aquele que pôde acontecer nas monar-quias administrativas e cujo conceito perecido perma-neceu até uma data recente, isto é, no seio mesmo das democracias biopolíticas, o único inimigo reconhecido pelos movimentos revolucionários: aquele de um meca-nismo de entrave, de coerção puramente repressiva.A forma contemporânea da dominação é, ao contrário, essencialmente produtiva. Por um lado, ela rege todas as manifestações de nossa existência – o Espetáculo; por ou-tro, ela gere as condições dessa existência – o Biopoder. O Espetáculo é o poder que quer que vocês falem, que quer que vocês sejam alguém. O Biopoder é o poder benevolente, pleno de uma solicitude de pastor por sua tropa, o poder que quer que vocês vivam. Preso na braçadeira de um controle ao mesmo tempo tota-lizante e individualizante, cerrados numa dupla contração que nos nega no próprio movimento em que nos faz existir, o maior número dentre nós adota uma sorte de política da desaparição: fingir a morte interior e, como o Cativo diante do Grande Inquisidor, guardar o silêncio.4

4 TIQQUN. Théorie du Bloom… pp. 33-34. “Le régime de pouvoir sous lequel nous vivons ne ressemble en rien à celui qui a pu avoir cours sous les monarchies admi-nistratives, et dont le concept périmé est demeuré jusqu´à une date récente, c´est-à-dire au sein même des démocraties biopolitiques, le seul ennemi reconnu par les mouvements révolutionnaires: celui d´un mécanisme d´entrave, de coercition purement répressif.

La forme contemporaine de la domination est au contraire essentiellement pro-ductive. D´une part, elle régit toutes les manifestations de notre existence – le Spectacle; de l´autre, elle gère les conditions de celle-ci – le Biopouvoir.

Le Spectacle, c´est le pouvoir qui veut que vous parliez, qui veut que vous soyez quelqu´un.

Le Biopouvoir, c´est le pouvoir bienveillant, plein d´une sollicitude de pasteur pour son troupeau, le pouvoir qui veut que vous viviez. Pris dans l´étau d´un contrôle à la fois totalisant et individualisant, murés dans une double contrainte qui nous anéantit dans le mouvement même où elle nous fair exister, le plus grand nombre d´entre nous adopte une sorte de politique de la disparition: feindre la mort in-térieure et, comme le Captif devant le Grand Inquisiteur, garder le silence.”

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O espetáculo é a máquina gestional do vazio inessencial en-quanto tal. Em outros termos, é aquilo que pretende, a todo ins-tante, dispor a exposição em si da linguagem (do gesto, enfim, da medialidade como tal: daí as figuras das propagandas, do discur-so universitário engajado – que nada mais faz do que cumprir seu papel na cena espetacular em que se transforma a universidade –, da política contemporânea etc).

A partir da idéia de que seja possível compreender etimologi-camente religião não segundo o tradicional atrelamento ao religar (religare), mas como tendo suas origens em reler (relegere, a ati-tude de escrúpulos que deveria manter separados os homens e os deuses),5 o espetáculo parece ser uma prolongação dessas separa-ções (inclusive daquela entre ser e práxis, constante no debate teo-lógico cristão sobre a trindade). Assim, levando adiante as análises benjaminianas do capitalismo como religião,6 Agamben propõe:

Poderíamos dizer então que o capitalismo, levando ao ex-tremo uma tendência já presente no Cristianismo, gene-raliza e absolutiza em todo âmbito a estrutura da sepa-ração que define a religião. Onde o sacrifício assinalava a passagem do profano para o sagrado e do sagrado para o profano, está agora um único, multiforme e incessante processo de separação, que investe toda coisa, todo lugar, toda atividade humana para dividi-la de si mesma e é to-talmente indiferente à cisão sagrado/profano, divino/hu-mano. Na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a pura forma da separação, sem mais nada a separar.7

5 AGAMBEN, Giorgio. Profanazioni. Roma: Nottetempo, 2005. p. 85. “Il termi-ne religio non deriva, secondo un´etimologia tanto insipida quanto inesatta, da religare (ciò che lega e unisce l´umano e il divino), ma da relegere, che indica l´atteggiamento di scrupolo e di attenzione cui devono improntarsi i rapporti con gli dèi, l´inquieta esitazione (il “rileggere”) davanti alle forme – e alle formule – da osservare per rispettare la separazione fra il sacro e il profano. Religio non è ciò che unische uomini e dèi, ma ciò che veglia a mantenerli distinti.”

6 Idem. pp. 91-92. O capitalismo não é apenas uma secularização do protestan-tismo, mas sim propriamente uma religião, desenvolvida parasitariamente ao cristianismo. No capitalismo encontra-se um elemento cultual – no qual todos os atos são executados com referência a um culto e não a um dogma; seus atos executórios deste culto são sempre praticados na indiferenciação absoluta entre festa e dia de trabalho (já que o próprio trabalho é o culto por excelência), ou seja, trata-se de um culto permanente; e esse culto não é voltado para a reden-ção, mas apenas para a própria culpa (não para a salvação, mas para a catás-trofe, a destruição).

7 Idem. p. 93. “Potremo dire, allora, che il capitalismo, spingendo all´estremo una tendenza già presente nel Cristianesimo, generalizza e assolutizza in ogni ambito

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De fato, o que a sociedade espetacular faz é apreender dispo-sitivamente o inapreensível, é grilar o próprio ter lugar da lingua-gem humana, não tendo outro intento senão distender a palavra no seu vazio de significado até a catástrofe. Modelos exemplares da apreensão espetacular estão por todos os cantos: das mais banais propagandas à indústria pornográfica.

No cinema de Debord, as críticas lançadas à sociedade do espetáculo não são apenas sua condenação e seu ressentimento diante da configuração atual do mundo (ainda que o livro tenha sido publicado pela primeira vez em 1967, pode-se dizer que La Société du Spectacle fez constatações e anúncios da concretiza-ção do espetáculo cujos efeitos hoje aparecem de modo ainda mais claro que em 1967). Debord, com sua crítica, já arma sua estratégia anti-espetacular: no decorrer de La Société du Specta-cle a montagem8 das imagens faz o entrelaçamento destas com a narração das teses (que é um elemento externo às imagens do filme, uma vez que estas são recortes de telejornais, de filmes oficiais etc), de modo que seu intento é mostrar a imagem en-quanto imagem, mostrá-la como um meio puro; é a tentativa de livramento da exibição imagética de sua captura pelo dispositivo espetacular. Em outros termos, Debord pretende uma katargein da imagem, uma separação daquela separação (que é a pura forma da separação do capitalismo espetacular, da qual já no século XIX Marx havia se dado conta) empreendida pela socie-dade do espetáculo – e, nesse sentido, a estratégia de Debord é messiânica (é a produção de um resíduo imagem e a exposição

la strutura della separazione che definisce la religione. Dove il sacrificio segnava il passaggio dal profano al sacro e dal sacro al profano, sta ora un unico, multi-forme, incessante processo di separazione, che investe ogni cosa, ogni luogo, ogni attività umana per dividerla da se stessa ed è del tutto indifferente alla cesura sacro/profano, divino/umano. Nella sua forma estrema, la religione capitalista realizza la pura forma della separazione, senza piú nulla da separare.”

8 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Image et Mémoire... pp. 69-73. A montagem aqui é colo-cada como a técnica composicional fundamental do cinema. Nela existem duas condições transcedentais, por assim dizer: a repetição e o corte. A primeira é o retorno daquilo que foi como novamente possível; é uma projeção da possibili-dade e da potência para o passado (o impossível). A segunda é o traço poético do cinema (do cinema de Debord, nesse caso), a possibilidade de interromper – não em sentido cronológico –, de subtrair as imagens do poder da narração para exibi-las enquanto tal. Tais condições da montagem se fundem, de modo que ambas formem um sistema em conjunto.

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da mesma enquanto tal; é uma operação nos moldes de um cor-te de Apeles).

Debord desenvolve sua estratégia no cinema porque nele a ima-gem perde imobilidade e se reconfigura numa relação histórica. As-sim, Didi-Huberman lembra da relação fundamental que as ima-gens entretêm com o tempo e, por conseqüência, com a história:

a questão das imagens está no coração desta grande agitação do tempo, nosso “mal-estar na cultura”. Se-ria preciso saber olhar nas imagens aquilo a que elas são sobreviventes. Para que a história, liberada do puro passado (este absoluto, esta abstração), nos ajude a abrir o presente do tempo.9

No cinema, portanto, a falsa suposta rigidez das imagens (tra-ta-se de uma rigidez psicologizada) é tirada do lugar, e o que vem à tona é uma imagem capaz de abrir a possibilidade de uma ação no e para o presente, ou seja, no tempo messiânico; uma imagem que é sempre anacrônica, sempre movimento, impossível de ser mantida num pólo objetivo de uma análise histórica epistemolo-gicamente recortada.

Diante de uma imagem – por mais antiga que seja –, o presente não cessa jamais de reconfigurar-se por pou-co que o despreendimento do olhar não tenha cedido de todo o lugar ao costume enfadado do “especialista”. Diante de uma imagem – por mais recente, por mais contemporânea que seja –, o passado não cessa nunca de reconfigurar-se, dado que essa imagem somente tor-na-se pensável numa construção da memória, quando não da obsessão. Enfim, diante de uma imagem, temos humildemente que reconhecer o seguinte: que provavel-mente ela sobreviverá a nós, que diante dela somos o elemento frágil, o elemento de passagem e que frente a nós ela é o elemento do futuro, o elemento da duração. A imagem frequentemente tem mais de memória e mais de porvir do que o ser que a olha.10

9 DIDI-HUBERMAN, Georges. Images Malgré Tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. p. 226. “La question des images est au coeur de ce grand trouble du temps, notre ‘malaise dans la culture’. Il faudrait savoir regarder dans les images ce dont elles sont les survivantes. Pour que l´histoire, libérée du pur passé (cet absolu, cette abstraction), nous aide à ouvrir le présent du temps.”

10 DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el Tiempo. Historia del arte y anacronismo de

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A imagem não é um arquétipo ideal, fora da história, por mais que possa parecer. Ela é sempre reconfiguração, dinamismo. “A experiência histórica se faz pela imagem e as imagens são elas mesmas carregadas de história”.11 Nesse sentido, a história ana-crônica12 que se faz perceber na imagem é uma história kairológi-ca, é a história no tempo messiânico.

De fato, toda imagem é animada por uma polaridade antinômica: de um lado, ela é a reificação e a anulação de um gesto (é a imago como máscara de cera do mor-to ou como símbolo), de outro, ela conserva-lhe intac-ta a dynamis (como nos instantes de Muybridge ou em qualquer fotografia esportiva). A primeira corresponde à lembrança de que se apodera a memória voluntária, a segunda à imagem que lampeja na epifania da memória involuntária. E, enquanto a primeira vive num mágico isolamento, a segunda envia sempre para além de si mesma, para um todo do qual faz parte. Mesmo a Mo-nalisa, mesmo Las Meninas podem ser vistas não como formas imóveis e eternas, mas como fragmentos de um gesto ou de fotogramas de um filme perdido, somente no qual readquiririam o seu verdadeiro sentido. Pois em toda imagem está sempre em ação uma espécie de liga-tio, um poder paralisante que é preciso desencantar, e é como se de toda história da arte se elevasse um mudo chamado para a liberação da imagem no gesto.13

las imágenes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2006. p. 12. “Ante una imagen – tan antigua como sea –, el presente no cesa jamás de reconfigurarse por poco que el desasimiento de la mirada no haya cedido del todo el lugar a la costumbre infatuada del ‘especialista’. Ante una imagen – tan reciente, tan con-temporánea como sea –, el pasado no cesa nunca de reconfigurarse, dado que esta imagen sólo deviene pensable en una construcción de la memoria, cuando no de la obsesión. En fin, ante una imagen, tenemos humildemente que reconocer lo siguiente: que probablemente ella nos sobrevivirá, que ante ella somos el elemento frágil, el elemento de paso, y que ante nosotros ella es el elemento del futuro, el elemento de la duración. La imagen a menudo tiene más de memoria y más de provenir que el ser que la mira.”

11 AGAMBEN, Giorgio. Image et Mémoire... p. 67. “L expérience historique se fait par l´image, et les images sont elles-mêmes chargées d´histoire.”

12 Cf. DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el Tiempo… pp.28-29. “...el anacronismo pa-rece surgir en el pliegue exacto de la relación entre imagen e historia: las imáge-nes, desde luego, tienen una historia; pero lo que ellas son, su movimiento propio, su poder específico, no aparece en la historia más que como un síntoma – un males-tar, una desmentida más o menos violenta, una suspensión. (…) quiero afirmar que su temporalidad no será reconocida como tal en tanto el elemento histórico que la produce no se vea dialectizado por el elemento anacrónico que la atraviesa.”

13 AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o Gesto. In: Artefilosofia. nº4, jan. 2008. Ouro

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A idéia de uma imagem-movimento é aqui recomposta por aquele filme perdido do qual resta a imagem que a ele remete a todo instante. Assim, a conexão da imagem com o messianismo se cumpre na dimensão histórica por este suscitada. Esta

é uma história da Salvação, é preciso salvar algo. E é uma história última, é uma história escatológica, na qual algo deve ser cumprido, julgado, deve se passar aqui, mas num outro tempo, deve, portanto, se subtrair à cronologia, sem sair em um outro lugar. É a razão pela qual a história messiânica é incalculável.14

Não é por acaso que as previsões da chegada do messias estão sempre em tela nas tradições judaicas (e não só aí, mas também em uma série de tradições cristãs que tentam prever o suposto segundo momento da presença, da Parousia).

Na tradição judaica há toda uma ironia do cálculo, os rabinos faziam cálculos muito complicados para prever o dia da chegada do Messias, mas eles não cessavam de repetir que eram cálculos interditos, pois a chegada do Messias é incalculável. Mas ao mesmo tempo cada mo-mento histórico é aquele de sua chegada, o Messias des-de sempre já chegou, ele já está desde sempre aí. Cada momento, cada imagem é carregada de história, porque ela é a pequena porta pela qual o Messias entra.15

A porta de entrada do messias, a deflagração da temporalida-de messiânica já encontra seu postulado imagético em Paulo:

Eis porque, como por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, e assim a mor-

Preto: Tessitura, 2008. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. p.12. Cf. também: AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza Fine. Note sulla política. Torino: Bollati Bo-ringhieri, 1996. pp. 49-50.

14 AGAMBEN, Giorgio. Image et Memoire... pp. 67-68. “C´est une histoire du Salut, il faut sauver quelque chose. Et c´est une histoire dernière, c´est une histoire es-chatologique, où quelque chose doit être accompli, jugé, doit se passer ici, mais dans un autre temps, doit donc se soustraire à la chronologie, sans sortir dans un ailleurs. C´est la raison pour laquelle l´histoire messianique est incalculable.”

15 Idem. “Dans la tradition juive, il y a toute une ironie du calcul, les rabbins faisaient des calculs très compliqués pour prévoir le jour de l´arrivée du Messie, mais ils ne cessaient de répéter que c´était des calculs interdits, car l´arrivée du Messie est incal-culable. Mais en même temps chaque moment historique est celui de son arrivée, le Messie est toujours déjà arrivé, il est toujours déjà là. Chaque moment, chaque image est chargée d´histoire, prce qu´elle est la petite porte par laquelle le Messie entre.”

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te passou a todos os homens porque todos pecaram. Pois até a Lei havia pecado no mundo; o pecado, porém, não é levado em conta quando não existe lei. Todavia, a morte imperou desde Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram de modo semelhante à transgressão de Adão, que é a figura daquele que devia vir... (Rm, 5: 12-13)

Quando o apóstolo se refere a Adão, o faz contrapondo-o àque-le que viria, isto é, o messias. O paralelo é visto pouco abaixo, nos versículos 18-19:

Por conseguinte, assim como pela falta de um só resultou a condenação de todos os homens, do mesmo modo, da obra de justiça de um só, resultou para todos os homens justifi-cação que traz a vida. De modo que, como pela desobediên-cia de um só homem, todos se tornaram pecadores, assim, pela obediência de um só, todos se tornarão justos.

O contraponto Adão-Messias, se faz com base na idéia de que Adão é a figura (Rm, 5:13) – typos no grego de Paulo – do messias. Não se trata de uma referência exemplar, como ponto de oposição entre a entrada do pecado no mundo por meio de um só homem e a salvação de todos por meio de um só. Para além dessa evidente dico-tomia, o messianismo é a própria relação tipológica em si: typos/an-titypos (Messias/Adão). Se as considerações até aqui tecidas sobre o tempo messiânico marcam-no como um corte de Apeles da divisão dos tempos (dos mundos), então ele “não é nem o acabado, nem o inacabado, nem o passado, nem o futuro, mas sua inversão”.16

Mas em que a relação tipológica messiânica pode ser relacio-nada à questão da imagem? Por que a imagem é fundamental para a compreensão do messianismo?

No final de seu Il Tempo che Resta, Agamben apresenta uma co-nexão entre a relação tipológica paulina e a questão da imagem em Walter Benjamin.17 “Bild” – imagem – “é, portanto, para Benjamin, tudo aquilo (objeto, obra de arte, texto, lembrança ou documento)

16 AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta... p. 74. “(...) non è né il compiuto né l´incompiuto, né il passato né il futuro, ma la loro inversione.”

17 A questão da imagem dialética benjaminiana pode ser percebida em todo o ar-quivo N das Passagens, no qual Benjamin guarda algumas de suas embrioná-rias concepções a respeito de uma teoria do conhecimento. Cf. BENJAMIN, Wal-ter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

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em que um instante do passado e um instante do presente se unem numa constelação, na qual o presente deve saber se reconhecer sig-nificado no passado e este encontra no presente seu sentido e seu cumprimento.”18 A leitura agambeniana da imagem dialética de Ben-jamin acaba por aproximá-la da questão atinente à relação tipológica em Paulo. Como um arquivista (um arqueólogo), Agamben procura, por meio de consultas aos arquivos de Benjamin, um modo de com-provar sua hipótese, que vê uma espécie de ligação não declarada de Benjamin com Paulo. Agamben sugere que Benjamin chega a Paulo por via oblíqua, sem ser direto, utilizando-se daquilo que cha-ma citação sem aspas.19 O porquê de Benjamin ter usado o termo Bild (imagem) e não tipo ou figura (fato que demonstraria uma direta referência ao typos de Paulo) estaria na tradução feita por Lutero de Rm, 5: 14, na qual typos é traduzido justamente por Bild.

Assim, na contração, na recapitulação do tempo messiânico, no átimo fluído da imagem – que a fotografia congela e apresenta como o núcleo do processo de recapitulação que há na constante inversão do tempo messiânico – o messias abole toda condição de pertença, toda marca separatória entre um tempo profano e um tempo sagrado, entre olam hazzeh e olam habba, entre judeus e não-judeus, entre a Lei e anomia.

A partir desse jogo de inversões do messianismo, uma outra passagem das cartas de Paulo que expõe a condição dos viventes no tempo messiânico pode ser lembrada (e deve ser usada como estratégia daquilo que aqui se denomina um messianismo levado ao extremo). Trata-se de 1 Cor, 7: 29-31:

Eis o que vos digo, irmãos: o tempo se fez curto. Resta,

pois, que aqueles que têm esposa, sejam como se não a

18 AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta... p. 131. “Bild è dunque, per Benjamin, tutto ciò (oggetto, opera d´arte, testo, ricordo o documento) in cui un istante del passato e un istante del presente si uniscono in una costellazione, in cui il presen-te deve sapersi riconoscere significato nel passato e questo trova nel presente il suo senso e il suo compimento.”

19 Agamben levanta toda uma série de hipóteses sobre as implicações de Paulo no messiânismo de Walter Benjamin. Um dos pontos do final do livro é justamente a análise de uma técnica de citação sem aspas utilizada por Benjamin, que con-sistia no espaçamento entre as letras das palavras que deveriam ser ressaltadas no texto e que, segundo o filósofo italiano, demonstraria uma possível relação da leitura de Benjamin com o texto das epístolas paulinas. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta... pp. 128-135.

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tivessem; aqueles que choram, como se não chorassem; aqueles que se regozijam, como se não se regozijassem; aqueles que compram, como se não possuíssem; aque-les que usam deste mundo, como se não usassem ple-namente. Pois passa a figura deste mundo.

Ainda que na tradução da Bíblia de Jerusalém as contrapo-sições internas venham mediadas por um “como se não”, ao se acolher as sugestões levantadas por Agamben, em Paulo não se poderia falar que o tempo messiânico, por ele anunciado logo no início da passagem, seja compreendido hipoteticamente. O hōs mē do grego paulino (o “como se não” da Bíblia de Jerusalém) quer dizer apenas “como não”, isto é, a contraposição entre os termos é imediata: “aqueles que têm esposa, como não as tendo, aqueles que choram como não chorando” etc.20 Desse modo,

no signo do “como não”, a vida não pode coincidir con-sigo mesma e se cinde em uma vida que vivemos (vitam quam vivimus, o conjunto dos fatos e dos eventos que definem a nossa biografia) e em uma vida para qual e na qual vivemos (vita qua vivimus, isto é, que torna a vida vivível e dá a esta um sentido e uma forma). Viver no messias significa, então, revogar e tornar inoperante em todo instante e em todo aspecto a vida que vivemos, fazer aparecer nessa a vida para qual vivemos, que Paulo cha-ma a “vida de Jesus” (zoé tou Iesou – zoé, não bios!).21

No tempo messiânico a vida não se subsume a um modelo, a uma cisão normativa (nomos):

A vida messiânica é a impossibilidade da vida de coincidir com uma forma predeterminada, a revogação de todo bios para abri-lo à zoé tou Iesou. E a inoperosidade que aqui tem lugar não é simplesmente inércia ou repouso, mas é, ao contrário, a operação messiânica por excelência.22

20 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Il Tempo che Resta… pp. 15-23.21 AGAMBEN, Giorgio. Il Regno e la Gloria... p. 271. “Nel segno del ‘come non’, la

vita non può coincidere con se stessa e si scinde in una vita che viviamo (vitam quam vivimus, l´insieme dei fatti e degli eventi che definiscono la nostra biografia) e in una vita per cui e in cui viviamo (vita qua vivimus, ciò che rende la vita vivible e dà a essa un senso e una forma). Vivere nel messia significa appunto revocare e rendere inoperosa in ogni istante e in ogni aspetto la vita che viviamo, fare appa-rire in essa la vita per cui viviamo, che Paolo chiama la ‘vita di Gesù’.”

22 Idem. p. 272. “La vita messianica è l´impossibilità della vita di coincidere con una

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Na inoperosidade do tempo messiânico – na katargein – está a abertura de um lugar em que a vida é inseparável de sua forma – uma vez que a forma da vida messiânica é a katargein de toda forma; é o viver “como não”.

A sociedade do espetáculo, na qual a verdade é um momento do falso,23 a captura pelos dispositivos se reflete por tudo e até mesmo a idéia messiânica de uma vida que não é senão revoga-ção de toda forma de vida parece ser capturada. De fato, isso se dá quando aqui se fala da atual proliferação dos dispositivos que pretende apreender até mesmo este ingovernável que é a condição da vida na era messiânica. Que tal captura não seja algo recente já está claro no antigo dispositivo teológico do corpo glorioso (da vida eterna).24 Na sociedade espetacular é preciso saber identificar as versões secularizadas desse dispositivo glorioso: desde a pornogra-fia até a propaganda e em todo dispositivo que prevê a fruição total de uma forma de vida ainda sobre a terra (a glória resplandecente de toda aclamação dos famosos, dos poderosos etc.).

Que a sociedade do espetáculo atua como um dispositivo – por-tanto, como um poder-governo, como uma oikonomia – já foi aqui demonstrado. No entanto, o seu componente fundamental que deve ser exposto é justamente a glória. A princípio esta aparece, com certa ambigüidade, na figura do Kabod do Antigo Testamento, que signifi-caria a própria glória de Deus (doxologia) e as aclamações e os hinos de louvor a ele prestados. Agamben mostra, ao contrário, que

forma predeterminata, la revocazione di ogni bios per aprirlo alla zoé tou Iesou. E l´inoperosità che qui ha luogo non è semplice inerzia o riposo, ma è, al contrario, l´operazione messianica per eccellenza.”

23 DEBORD, Guy. La Société du Spectacle... p. 19.24 Lendo a passagem de 1 Cor, 15: 35-53 (que trata do modo como haverá de acontecer

a ressurreição dos mortos) os teólogos desenvolvem-na até a cunhagem da idéia de um corpo glorioso dos bem-aventurados. Na verdade perguntas como: terá o corpo ressucitado a mesma feição da pessoa no momento de sua morte ou a feição do tempo em que ainda era jovem? Se o morto tivesse perdido um membro pouco tempo antes de morrer deveria ressuscitar com ou sem ele?, causavam grande tormento para os teólogos. Assim, a concepção de um corpo glorioso, de uma vida gloriosa, suplanta uma idéia de vida messiânica a partir do momento em que na glória eterna há a separação da vida em uma outra esfera, isto é, a eternidade, o mundo sagrado. Com isso, a inoperosidade da vida messiância é lançada para fora do instante presente, para além do tempo messiânico, para a eternidade que sucederá ao evento escatológico. Em Paulo, ao contrário, o tema da vida eterna não representa apenas uma condição futura, mas uma especial condição da vida no kairós – a vida em Jesus messias. Cf. também o interessante ensaio Il corpo glorioso, de Agamben, recentemente publicado: AGAMBEN, Giorgio. Nudità. Roma: Nottetempo, 2009. pp. 129 -146.

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doxologia e aclamações constituem, de algum modo, um limiar de indiferença entre a política e a teologia. E como as doxologias litúrgicas produzem e reforçam a glória de Deus, assim as aclamações profanas não são um orna-mento do poder político, mas o fundam e justificam.25

Desse modo, algo como o poder (no sentido de Reino, contra-posto portanto a Governo) pode ser fundado.

Mas mais do que registrar essas correspondências, nos interessa compreender suas funções. Em que modo a liturgia “faz” o poder? E se a máquina governamental é dupla (Reino e Governo), quais funções desenvolve nessa a glória? Para os sociólogos e antropólogos permanece sempre possível o recurso à magia, como à esfera que, fazendo confins com a racionalidade e imediatamente precedendo-a, permite explicar em última análise como uma sobrevivência mágica aquilo que não conseguimos compreender da sociedade em que vivemos. Nós não cremos num poder mágico das aclamações e da liturgia e estamos convictos de que nem mesmo teólogos e im-peradores alguma vez nelas acreditaram. Se a glória é tão importante na teologia, isso é acima de tudo porque essa permite manter juntas na máquina governamental trindade imanente e trindade econômica, o ser de Deus e a sua práxis, o Reino e o Governo. Definindo o Reino e a essência, essa determina também o sentido da econo-mia e do Governo. Isto é, essa permite colmatar aquela fratura entre teologia e economia da qual a doutrina tri-nitária nunca conseguiu chegar ao fim e que somente na figura deslumbrante da glória parece encontrar uma possível conciliação.26

25 AGAMBEN, Giorgio. Il Regno e la Gloria... p. 253. “(...) dossologie e acclamazioni costituiscono, in qualche modo, una soglia di indifferenza fra la politica e la teolo-gia. E come le dossologie liturgiche producono e rafforzano la gloria di Dio, così le acclamazioni profane non sono un ornamento del potere politico, ma lo fondano e giustificano.”

26 Idem. “Ma più che registrare queste corrispondenze, ci interessa capirne la funzio-ne. In che modo la liturgia ‘fa’ il potere? E se la macchina governamentale è doppia (Regno e Governo), quale funzione svolge in essa la gloria? Per i sociologi e gli antropologi resta sempre possibile il ricorso alla magia, come alla sfera che, confi-nando con la razionalità e immediatamente precedendola, permette di spiegare in ultima analisi come una sopravvivenza magica ciò che non riusciamo a capire del-le società in cui viviamo. Noi non crediamo a un potere magico delle acclamazioni e della liturgia e siamo convinti che nemmeno teologi e imperatori ci abbiano mai ve-ramente creduto. Se la gloria è così importante in teologia, ciò è innanzitutto perché essa permette di tenere insieme nella macchina governamentale trinità imanente e

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Enquanto – de acordo com a teologia cristã – o evento esca-tológico não acontece e o Governo divino do mundo não tem um fim, a máquina governamental funciona de maneira binária, Rei-no e Governo, em cujo centro a glória resplandece ofuscando e escondendo o vazio inoperante que ali se encontra. “A glória, tan-to em teologia como em política, é precisamente aquilo que toma o lugar daquele vazio impensável que é a inoperosidade do poder; e, todavia, exatamente essa indizível vacuidade é aquilo que nu-tre e alimenta o poder (ou melhor, aquilo que a máquina do poder transforma em nutrimento).”27

Nesse sentido, a sociedade do espetáculo – isto é, as democra-cias contemporâneas – parece ser hoje o centro glorioso da secu-larizada máquina governamental. No espetáculo, as aclamações se transferem do âmbito da liturgia para o da opinião pública. Dessa maneira, a função central da glória no sistema político vem à tona em toda sua perplexidade, de modo que

a democracia contemporânea é uma democracia integral-mente fundada sobre a glória, isto é, sobre a eficácia da aclamação, multiplicada e disseminada pelas mídias além de toda imaginação (que o termo grego para glória – doxa – seja o mesmo que designa hoje a opinião pública é, desse ponto de vista, algo além de uma coincidência). E, como sempre já havia acontecido nas liturgias profanas e ecle-siásticas, esse suposto “fenômeno democrático originário” é ainda uma vez capturado, orientado e manipulado nas formas e segundo a estratégia do poder espetacular.28

trinità ecconomica, l´essere di Dio e la sua prassi, il Regno e il Governo. Definendo il Regno e l´essenza, essa determina anche il senso dell´economia e del Governo. Essa permette, cioè, di colmare quella frattura fra teologia ed economia di cui la dottrina trinitaria non è mai riuscita a venire a capo fino in fondo e che solo nella figura abbagliante della gloria sembra trovare uma possibile conciliazione.”

27 Idem. p. 265. “La gloria, tanto in teologia che in politica, è precisamente ciò che prende il posto di quel vuoto impensabile che è l´inoperosità del potere; e, tuttavia, proprio questa indicibile vacuità è ciò che nutre e alimenta il potere (o, meglio, ciò che la macchina del potere trasforma in nutrimento).”

28 Idem. p. 280. “La democrazia contemporanea è una democrazia integralmente fondata sulla gloria, cioè sull´efficacia dell´acclamazione, moltiplicata e dissemi-nata dai media al di là di ogni immaginazione (che il termine greco per gloria – doxa – sia lo stesso che designa oggi l´opinione pubblica è, da questo punto di vista, qualcosa di più che una coincidenza). E, com´era già sempre avvenuto nelle liturgie profane ed ecclesiastiche, questo supposto “fenomeno democratico origina-rio” è ancora una volta catturato, orientato e manipolato nelle forme e secondo le strategie del potere spettacolare.”

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Aquilo que a sociedade do espetáculo captura – através de suas várias facetas: as democracias consensuais contemporâ-neas, a sistematização planetária da economia de mercado, em suma, as sociedades de consumo como um todo – é o que o dispo-sitivo da glória (na figura do corpo glorioso) já capturava na idade média cristã: a inoperosidade constitutiva dos viventes.

Em todo caso, a democracia consensual, que Debord chamava “sociedade do espetáculo” e que é tão cara aos teóricos do agir comunicativo, é uma democracia glorio-sa, na qual a oikonomia tornou-se integralmente glória e a função doxológica, emancipando-se da liturgia e dos cerimoniais, absolutiza-se de maneira inaudita e pene-tra em todo âmbito da vida social.29

Por trás da idéia messiânica está então a desativação total de qualquer mecanismo fracionário (isto é, capaz de separar alguma coisa de si mesma: a vida de sua forma, a lei de sua forma etc). Assim, contra a atual máquina política que conduz à catástrofe, uma estratégia messiânica levada às últimas conseqüências pode ser um sinal para o cumprimento subversivo – no sentido da in-versão messiânica (profanatório, diria Agamben) – de um estado de exceção além da sua mera virtualidade, hoje, espetacular. Isto é, levando-se ao extremo o poder de depor as cesuras que é ínsito ao messiânico é que se torna possível a destruição da sociedade do espetáculo, ainda que esta a todo instante lance seus disposi-tivos que intentam capturar inclusive o próprio messiânico. Des-se combate depende a possibilidade de algo como uma verdadeira comunidade que, nesse sentido, só poderá ser messiânica e as-sim in-fundada e in-pressuposicional, capaz de restituir a política ao seu posto eminentemente político.

29 Idem. p. 283. “In ogni caso, la democrazia consensuale, che Debord chiamava ‘società dello spettacolo’ e che è così cara ai teorici dell´agire comunicativo, è una democrazia gloriosa, in cui l´oikonomia si è integralmente risolta nella gloria e la funzione dossologica, emancipandosi dalla liturgia e dai cerimoniali, si assolutiz-za in misura inaudita e penetra in ogni ambito della vita sociale.”

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Posfácio

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda mais uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira”.1 O demônio nietzscheano como um provocador fáustico para avaliar o tempo da vida humana, como pensar suas exigências? Para uma vida finita, irretornável no devir de amplas margens do rio heraclitiano e, justamente por isso, sempre à beira do irreparável e da consumação, que nova densidade nos traz o eterno-retorno como medida para a leveza mais profana e abandonada por todos os deuses? Nietzsche que, a julgar por sua “Segunda considera-ção intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida”, de 1873, guardava extrema desconfiança em relação às concepções cronológicas de tempo e seus correlativos historiográ-ficos progressivos e lineares. Filósofo que tampouco pretendeu restabelecer cosmologias.

Ora, a forma de temporalidade proposta no eterno-retorno é a da intensidade. Suspensão do tempo que se dilata e interrompe a ficção seqüencial. Esta vida, aqui, neste instante, retornando ininterruptamente. Quem estaria à altura desta convocação, não

1 NIETZSCHE, Friedrich. Gaia Ciência (1881/820). In: Obras Incompletas. Tradu-ção Rubens Torres Filho. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. pp. 208-209.

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tornando a mera imagem do eterno-retorno o mais infernal e té-trico dos pesadelos? Em Nietzsche, apenas um espírito livre e dançarino riria da admoestação do genius, respondendo-a com um faminto e leve “sim!”. Para tal resposta é absolutamente pres-cindível se a ampulheta volte ou não a ser virada.

Nietzsche e seu perturbador demônio nos apontam para uma evidência ontológica: o debate sobre temporalidade(s) não pode ser dissociado de sua correspondência com formas-de-vida. E é justamente nesta peculiar intersecção entre formas-de-vida e tempo que talvez seja possível localizar Nietzsche, ao lado do messianismo paulino, da “Recherche du temps perdu” e da tra-dição do materialismo, como um dos proto-textos para as “Üben den Begriff der Geschichte” de Walter Benjamin. Teses que, em “O Paradigma do Tempo”, de Vinícius Nicastro Honesko, voltam a ser discutidas com a densidade que o debate exige.

É corrente na história da filosofia a notícia de que os gregos possuíam três figuras distintas para tratar do tempo. Inicialmen-te Chronos: deus que, entre os latinos, é Saturno, representado em uma pintura de Francisco Goya, - um mural da Quinta del Sordo, de 1823 -, como o antropófago que devora seu filho. O Deus de um tempo avassalador, terminal. Mas também dos cro-nogramas e projetos. Presente, passado e futuro capturados e es-pacializados (vide Bergson) em um fluxo com olhos compulsiva-mente voltados para frente: o não-mais de um passado-cadáver e o ainda-não de um futuro a ser consumido pela fome de um estômago voraz. Entre os dois, um presente pensado como ins-tante de intermezzo, fugidio, volátil, lacunar. Não-lugar: rapidez da autopista e do ponteiro do relógio. Chronos como a figura de tempo hegemônica na modernidade, a versão vencedora.

Uma imagem de tempo mais obscura para a modernidade se-ria o Aion, ou o tempo divino. Para Heráclito, um menino brincan-do com algumas pedras. O Sempiterno: sem começo e sem fim. Para Deleuze, Aion não se submeteria nem a Zeus tampouco a Saturno, é o tempo dos acontecimentos incorporais, sob os aus-pícios de Hércules. Aion também como o tempo de uma physis da qual nos restam apenas fragmentos textuais.

A última forma de temporalidade é o Kairós. Os gregos o re-presentavam com uma imagem sutil e brutal: o exato momento

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em que um guerreiro consegue agarrar o outro pelas melenas e degolá-lo. O instante, a oportunidade carregada de tensões. O tempo da virtú política (que o diga Maquiavel) mas também a morada do prazer. Kairós que nos impõe outra relação com o pas-sado e com o futuro: ambos estão no presente e dependem das lutas no presente. Um presente, como Benjamin apresentará na tese XVI, que não é transição, mera lacuna entre passado e futu-ro, mas uma temporalidade que se dilata e se imobiliza, explodin-do o continuum catastrófico da história: a revolução, prenhe de estilhaços messiânicos, não como meta final na travessia mortal do progresso, mas no agora, na vida que resta, na interrupção do tempo (Tese XVII a). Um sim demasiadamente profano e, justa-mente por isso, embalando consigo, em braços tão-somente hu-manos, o Messias.

Dissemos que a história da filosofia ocidental apenas nos no-ticia as três temporalidades. A exigência de cada uma ao pensa-mento, principalmente a forma do Kairós e sua específica mo-dulação messiânica, é um nó górdio ainda a ser deslindado (ou proliferado!). A análise de Vinícius Nicastro Honesko, em sua pe-culiar interlocução com os insights de Walter Benjamin e Giorgio Agamben, converge como contribuição decisiva para o enfrenta-mento contemporâneo de tais aporias.

J. Francisco Barbosa São Paulo, maio de 2009

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