becoming symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital...

27
Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 1 - Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional em literatura eletrônica Ermelinda Ferreira 1 Resumo: Neste ensaio realizamos uma breve análise de uma obra em literatura eletrônica da coletânea Eletronic Literature Collection, vol. 1 (http://collection.eliterature.org , 2006) organizada por Katherine Hayles, Nick Montfort, Scott Rettberg e Stephanie Strickland, intitulada Carrier: becoming symborg (1999), de autoria de Melinda Rackham and Damien Everett. Procuramos discutir as especificidades da proposta narrativa deste projeto, investigando de que maneira ele corresponde à definição estabelecida pelos organizadores da coletânea para o termo “literatura eletrônica”, tanto do ponto de vista estrutural como temático, explorando o modo como rivaliza com a linguagem dos games e do cinema, e destacando o caráter efêmero, crítico e político desta intervenção, que busca na referência à escrita confessional um vínculo com a realidade humana, para além da realidade virtual do meio onde se constrói e a partir do qual pode ser fruído. Palavras-chave: Literatura eletrônica, escrita confessional, performance, doença A literatura eletrônica: introdução Quando falamos em “literatura eletrônica”, estamos nos referindo aos textos reunidos sob esta rubrica pelos pesquisadores Katherine Hayles, Nick Montfort, Scott Rettberg e Stephanie Strickland, responsáveis pela organização da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma compilação não comercial de trabalhos criativos reunindo práticas ligadas à produção textual e multimídia em computador, com ênfase na narrativa, disponibilizada na Internet no website da Electronic Literature Organization (ELO) (http://collection.eliterature.org ) e num CD-Rom de distribuição gratuita 1 Doutora em Letras, professora da Universidade Federal de Pernambuco.

Upload: truonganh

Post on 21-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 1 -

Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional

em literatura eletrônica

Ermelinda Ferreira1

Resumo: Neste ensaio realizamos uma breve análise de uma obra em literatura eletrônica da coletânea Eletronic Literature Collection, vol. 1 (http://collection.eliterature.org, 2006) organizada por Katherine Hayles, Nick Montfort, Scott Rettberg e Stephanie Strickland, intitulada Carrier: becoming symborg (1999), de autoria de Melinda Rackham and Damien Everett. Procuramos discutir as especificidades da proposta narrativa deste projeto, investigando de que maneira ele corresponde à definição estabelecida pelos organizadores da coletânea para o termo “literatura eletrônica”, tanto do ponto de vista estrutural como temático, explorando o modo como rivaliza com a linguagem dos games e do cinema, e destacando o caráter efêmero, crítico e político desta intervenção, que busca na referência à escrita confessional um vínculo com a realidade humana, para além da realidade virtual do meio onde se constrói e a partir do qual pode ser fruído. Palavras-chave: Literatura eletrônica, escrita confessional, performance, doença

A literatura eletrônica: introdução

Quando falamos em “literatura eletrônica”, estamos nos referindo aos

textos reunidos sob esta rubrica pelos pesquisadores Katherine Hayles, Nick

Montfort, Scott Rettberg e Stephanie Strickland, responsáveis pela organização

da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma

compilação não comercial de trabalhos criativos reunindo práticas ligadas à

produção textual e multimídia em computador, com ênfase na narrativa,

disponibilizada na Internet no website da Electronic Literature Organization

(ELO) (http://collection.eliterature.org) e num CD-Rom de distribuição gratuita

                                                            1 Doutora em Letras, professora da Universidade Federal de Pernambuco. 

Page 2: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 2 -

nos Estados Unidos, desde outubro de 2006. Acompanha a coletânea o livro

Electronic literature: new horizons for the literary (Notre Dame, Indiana:

University of Notre Dame, 2008)2, de Katherine Hayles, que se propõe a “auxiliar

o avanço da literatura eletrônica na sala de aula”, revelando uma intenção

explícita de reivindicação, para o gênero, de um maior reconhecimento

acadêmico. A ELC reúne sessenta projetos literários de base computadorizada,

de autoria de quarenta e cinco artistas e/ou equipes de criadores. A seleção

cobre a produção de uma década: incluindo desde as primeiras experiências do

gênero produzidas por Alan Sondheim – Internet text – em 1994, e por Michael

Joyce – Twelve blue – em 1996; até os trabalhos mais recentes de Sharif Ezzat

(Like stars in a clear night sky), Mary Flanagan (theHouse), Richard Holeton

(Frequently asked questions about 'Hypertext') e Marko Niemi (Stud poetry),

todos de 2006.

Uma breve leitura destes seis trabalhos, que representam apenas um

décimo da totalidade do material recolhido, é suficiente para atestar a

diversidade de gêneros, temas, estilos e tecnologias representados nesta

coletânea. Sondheim convida o leitor a navegar pelos textos que publicou em

listas de correspondência online durante um ano; Joyce procura adaptar para os

constrangimentos do HTML a narrativa hipertextual que engendrou através do

pioneiro software de criação ficcional interativa Eastgate’s StorySpace; Ezzat

usa o programa Flash para veicular contos escritos em inglês e lidos

simultaneamente em árabe; Flanagan cria um ambiente arquitetônico virtual

interativo através do qual textos e formas geométricas desvendam uma

narrativa autobiográfica; Holeton se aproveita do modelo das familiares Web

FAQ, ou “Frequently asked questions” veiculadas em sites para construir uma

meditação sobre autoria, identidade, sexualidade e política, ao estilo

nabokoviano, desenvolvendo uma narrativa a partir de supostas anotações sobre

um poema; Niemi usa o programa JavaScript para criar um jogo de pôquer entre                                                             2 Traduzido para o português por Luciana Lhullier e Ricardo Moura Buckweitz. São Paulo: Global, 2009. 

Page 3: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 3 -

o leitor e alguns grandes poetas franceses, no qual os valores das cartas são

palavras.

De acordo com a crítica, um dos grandes méritos desta coletânea é a

ampla e internacional abrangência do que se entende por “literatura

eletrônica”. Os editores não restringiram a seleção a trabalhos digitais, por

exemplo, mas incluíram em seu portal obras originalmente pensadas para leitura

fora do meio eletrônico, consideradas “precursoras” de propostas mais

arrojadas, incluindo uma seleção de ficção interativa impressa de autores como

John Ingold (All roads), Aaron A. Reed (Whom the telling changed) e Emily Short

(Galatea), fornecendo os links para download dos textos. A coletânea também

anexou trabalhos em outros idiomas ou provenientes de outros países,

notadamente as produções mais representativas dos grupos franceses A.L.A.M.O.

(Atelier de littérature assistee par le mathematique et les ordinateurs) e

L.A.I.R.E. (Lecture, art, innovation, recherche, écriture), cujos poetas estão

entre os primeiros do mundo a experimentar a produção de textos gerados em

computador: Phillipe Bootz e Marcel Fremiot (The set of U) e Patrick-Henri

Burgaud (Jean-Pierre Balpe ou Les lettres dérangée) são alguns exemplos. Vale

a pena salientar que o Brasil também se encontra representado na coletânea

pelo trabalho de Gisele Beiguelman, intitulado Code Movie 1.

Uma das importantes contribuições desta coletânea é estabelecer,

mediante a promoção da leitura e da experiência direta de recepção desses

projetos, a diferença entre “literatura eletrônica” e “hipertexto”, uma confusão

até hoje muito comum. Definida pela ELO como “o trabalho com importante

aspecto literário que aproveita as capacidades e contextos providenciados pelo

computador conectado ou não em rede”, a “literatura eletrônica” não deve ser

confundida com a mera veiculação digitalizada de textos originalmente

produzidos para impressão em papel, e nem mesmo com o texto impresso

adaptado para o formato hipertextual, com janelas e links visando à leitura em

computador. O diferencial do texto considerado uma peça de “literatura

Page 4: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 4 -

eletrônica”, segundo Hayles, é ser digital born, ou seja, concebido, gerado e

fruído diretamente em computador.

A observação dos textos da coletânea também deixa claro para o leitor

que a “literatura eletrônica” não se confunde com jogos eletrônicos, filmes de

animação, arte digital ou obras de design gráfico, embora um navegador casual

possa encontrar numa única sessão de leitura todos esses procedimentos

reunidos até mesmo num único trabalho. A ELC permite que o usuário perceba

que se trata de um gênero híbrido por excelência, e diferente de tudo o que

popularmente se vem definindo como “literatura” em meio virtual: a saber,

emails como substitutos de cartas, blogs como duplos de diários íntimos, canais

de bate-papo ou chats, sistemas de mensagens instantâneas ou redes de

sociabilidade como Orkut, MySpace e FaceBook, nos quais mensagens escritas,

imagens e audios são veiculados.

Naturalmente, é preciso enfatizar que os projetos reunidos nesta

coletânea também não podem ser apreendidos nem compreendidos

satisfatoriamente por uma navegação rápida, fortuita e casual. Como nas

melhores e mais sérias produções literárias de antigamente, a natureza

complexa das propostas eletrônicas demanda tempo, atenção e disposição para

o desvendamento da construção do texto, assim como para a leitura do material

escrito propriamente dito. A contribuição da coletânea também incide no

aspecto da divulgação do gênero ao promover uma apresentação elegante e

facilitadora da pesquisa, normatizando a exibição dos projetos mediante o

fornecimento de dados relacionados à autoria, às tecnologias utilizadas e ao tipo

de ação interativa demandada – ações que seguem os parâmetros estabelecidos

pela ELO desde sua fundação em 2002, em cujo site estão compiladas mais de

2.300 obras sob esta denominação. A ideia dos pesquisadores de selecionar

apenas sessenta exemplos significativos numa coletânea à parte favorece a

familiaridade do usuário iniciante com a nova proposta.

Page 5: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 5 -

A coletânea é apresentada numa página de convidativo design que elenca,

na ordem alfabética dos sobrenomes dos autores, uma imagem retirada do corpo

de cada trabalho à guisa de “capa”. Cada instantâneo permite que se acesse

uma página contendo informações sobre título, palavras-chave, autoria, além de

uma descrição concisa ou resumo sobre a obra, elaborado pelos editores e/ou

pelos autores, que oferece ainda dados sobre a história da publicação e

instruções gerais sobre o processo e/ou os programas demandados para a

leitura.

Como se percebe, uma das mais significativas propostas desta coletânea

reside no impulso de registro, catalogação, crítica e resgate deste material

enquanto produção representativa de uma época, considerando-se que tais

projetos, forjados em programas que rapidamente se tornam obsoletos, correm

o risco de se tornaram em breve inacessíveis, na dependência da data de

validade de seus meios. Em função desta peculiaridade, alguns críticos tendem a

ver nos textos de “literatura eletrônica” objetos performáticos, essencialmente

concebidos como fenômenos culturais efêmeros, da ordem dos happenings e das

manifestações políticas, em lugar de concebê-los como artefatos duráveis ou

como “obras de arte”. Contrariando este impulso, a ELO tem por missão

estabelecer critérios e procedimentos visando à preservação dos artefatos

literários digitais. O primeiro volume da ELC, portanto, pode ser entendido

como um ato de convicção curatorial, voltado para o esforço de documentar,

promover e tornar mais acessível ao grande público, inclusive aquele não

familiarizado com tais produções, o texto literário de base computadorizada. A

iniciativa atende à necessidade de recolha da ampla gama de experimentos

surgidos e livremente veiculados na internet nas últimas décadas, com a

intenção de promover uma espécie de “tombamento” desse patrimônio digital, a

fim de preservar sua riqueza e reter sua significação social para futuras

considerações.

Page 6: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 6 -

Como dizem os apresentadores da obra de Hayles em português, os

professores Tania Rösing e Miguel Rettenmaier – e ao contrário do que se possa,

talvez, pensar – “a literatura eletrônica surge como um elemento de

humanização das práticas computacionais. Isso é um de seus elementos mais

formidáveis. Se o universo do mundo digital pode nos assustar pela maneira

autônoma como as coisas se processam na vida diária do mundo pós-industrial e

pós-humano, a literatura eletrônica mantém o fado daquela literatura que vivia

apenas das palavras”. Surpreendente como possa parecer, na verdade

encontramos em muitas dessas obras, criadas numa linguagem multimídia e

maquínica, profundos elementos de problematização e crítica sobre as

transformações impostas pela cibercultura aos modos de criar, ler e fruir um

texto, e aos processos de desconfiguração e de reconfiguração dos seres

humanos num contexto de tão violentas, drásticas e desafiadoras

transformações.

Page 7: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 7 -

Electronic Literature Collection 1 · Hayles Montfort Rettberg Strickland

Page 8: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 8 -

Carrier: becoming symborg, de Melinda Rackham e Damian Everett:

uma leitura

Preâmbulo: sobre a temática do corpo e da doença na arte

Nos dias de hoje, a tecnologia se aproxima a passos largos da biologia. As

experiências recentes com o código da vida, levando a uma manipulação genética

sem precedentes na história da humanidade, têm alterado profundamente a

configuração dos corpos e a percepção do ser humano sobre si mesmo.

Paralelamente, a comunicação em rede e a crescente inserção do sujeito no espaço

virtual projeta a mente numa existência fantasmática que corrobora a percepção

do corpo como um membro excedente, vestígio indigno fadado a desaparecer em

breve. A mística da inteligência artificial e o desprezo pelo corpo na era

cibernética chega ao extremo de produzir a utopia do corpo eletrônico, imune à

corrosão, à deficiência física e à morte. A existência no cárcere físico é vista como

um impedimento em vias de superação. Como diz Timothy Leary:

Num futuro próximo, o homem tal como o conhecemos hoje, essa criatura perecível, não será mais que uma simples curiosidade histórica, uma relíquia, um ridículo ponto perdido em meio a uma inimaginável diversidade de formas. Se tiverem vontade, indivíduos ou grupos de aventureiros poderão reconstruir essa prisão de carne e de sangue, o que, em atenção a eles, a ciência fará com prazer. (Leary apud Le Breton. Adeus ao corpo, in: Novaes, Adauto. O homem máquina, p. 126.)

No entanto, o projeto de dar conta da existência humana a partir de um

modelo mecânico que se confunde com o corpo é ultrapassado pela percepção de

que nosso corpo não é um corpo qualquer: é um corpo próprio, parece ser nossa

propriedade, temos um poder sobre ele. Segundo Renaud Barbaras,

Page 9: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 9 -

é incontestável que, numa perspectiva mecanicista ou reducionista, a dificuldade principal reside na existência de uma consciência capaz de perceber, lembrar-se e de agir livremente – existência dada como evidência numa experiência. Com efeito, a característica própria da consciência é que ela não é nada além do que lhe aparece, ela é a identidade absoluta do ser e do aparecer, de modo que sua experiência – o fato de estar consciente – é a garantia de sua existência. Segue daí que o problema da redutibilidade de toda a existência humana ao modelo mecânico remete a um problema prévio: o do valor e alcance da experiência de nossa alma, que primeiro toma a forma de uma experiência de nossa liberdade. (Barbaras. A alma e o cérebro, in: Novaes, Adauto. O homem máquina, p. 66.)

Se a consciência humana, presa aos ditames de um corpo jovem e saudável,

já sinaliza o desconforto com as limitações naturais de seu suporte, o que dizer da

alma presa a um organismo doente e disfuncionante? Susan Sontag compara a

doença “à zona noturna da vida, a uma cidadania mais onerosa”, dedicando seu

livro Doença como metáfora a analisar como é emigrar para o reino dos doentes e

lá viver, mesmo que por um período de tempo, enfrentando não apenas os

infortúnios e as transformações físicas e psicológicas exigidas pela nova condição

que se instala, mas sobretudo os estereótipos e os estigmas socialmente

construídos em torno da ideia de que nascemos e somos destinados a uma condição

ideal de saúde permanente, da qual todo e qualquer desvio – sobretudo os mais

graves e ameaçadores, que desafiam a capacidade da ciência de contorná-los – é

considerado quando não um castigo, uma verdadeira maldição. Sobretudo, e

cruelmente, a doença pode, e cada vez mais frequentemente vem sendo

interpretada, como o resultado previsível de uma irreverente, ignorante ou

deliberadamente perversa conduta do sujeito face aos ditames politicamente

corretos do “bem viver com saúde para sempre”, massivamente divulgados pela

imprensa e pela mídia como alternativas garantidas de bem-estar, longevidade e

jovialidade – resultantes das cada vez mais especializadas e minuciosas pesquisas

médicas –, desde que cumpridas à risca. Qualquer desvio pode ser evocado como

“culpa”, no caso de um tropeço do corpo, levando o sujeito a padecer, além das

dificuldades inerentes à nova condição, a dor da responsabilidade por uma situação

Page 10: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 10 -

que, efetivamente, as mais das vezes jamais esteve, minimamente, sob seu

controle.

Talvez por isso, diversos estudiosos têm-se dedicado, na atualidade, a rever

os conceitos sobre saúde e doença ainda hoje vigentes. Georges Canguilhem, em O

normal e o patológico, afirma que a pior doença do homem contemporâneo é a

crença numa suposta “normalidade”, na ideia da uniformidade incorruptível do

normal, como se fosse possível ao corpo existir sem registrar as agressões do meio

ambiente, sem reagir a elas, e sem jamais sofrer os efeitos da entropia. Como se os

corpos fossem destinados a uma existência ideal e atemporal, sobre a qual não

recaíssem jamais a fatalidade, a corrupção e o fim. A intolerância ao caráter

efêmero da vida, em lugar de provocar uma maior discussão e investigação sobre a

morte, leva, ao contrário, ao afastamento desta questão da pauta das relações

humanas, e a uma popularização da utopia do corpo perfeito, salvo da falência

pelas práticas salutares da nutrição balanceada, do consumo de suplementos

vitamínicos, da prática de exercícios físicos, do uso do crescente arsenal da

cosmetologia anti-idade, para além das intervenções mais drásticas e radicais das

cirurgias plásticas reconstrutoras. O espetáculo da doença, da velhice e da morte

deixou de ser corriqueiro, parte da realidade da existência num corpo com prazo

de validade, como mais sabiamente ocorria em tempos pré-modernos. Hoje em dia,

como diz Norbert Elias, a morte é cada vez mais recalcada:

A morte é um dos grandes perigos biossociais na vida humana. Como outros aspectos animais, a morte, tanto como processo quanto como imagem mnemônica, é empurrada mais e mais para os bastidores da vida social durante o impulso civilizador. Para os próprios moribundos, isso significa que eles também são empurrados para os bastidores, são isolados. (Elias, Norbert. A solidão dos moribundos, p. 19)

Para Elias, uma das características das sociedades desenvolvidas que merece

menção como pré-condição da peculiaridade de sua imagem da morte é o alto grau

e padrão específico de individualização. A imagem da morte na memória de uma

Page 11: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 11 -

pessoa está muito próxima de sua imagem de si mesma e dos seres humanos

prevalecente em sua sociedade. Em grupamentos mais desenvolvidos, as pessoas

em geral se vêem como seres individuais fundamentalmente independentes, como

mônadas sem janelas, como sujeitos isolados, em relação aos quais o mundo

inteiro, incluindo todas as outras pessoas, representa “o mundo externo”. Seu

mundo interno, aparentemente, é separado desse mundo externo, e portanto das

outras pessoas, como que por um muro invisível. Esse modo específico de

experimentar a si mesmo, segundo o autor, na auto-imagem do homo clausus

característica de um estágio recente da civilização, está intimamente ligado a um

modo igualmente específico de experimentar, como antecipação de nossa própria

morte e provavelmente na situação real, nosso próprio ato de morrer:

Mas a pesquisa sobre a morte – por razões que não são independentes da repressão social – ainda está num estado incipiente. Há ainda muito a fazer para uma melhor compreensão da experiência e das necessidades dos moribundos e da conexão entre tal experiência e tais necessidades, de um lado, e o modo de vida e auto-imagem, de outro. (Elias, Norbert. A solidão dos moribundos, p. 62)

Além do individualismo contemporâneo, contribui para a atual visão da

morte o cientificismo inoculado no discurso e na prática da medicina moderna, que

não raro resulta na consolidação de uma atitude que pode ser considerada, até

certo ponto, como “colonizadora” do sujeito doente. Emigrar para o reino da

doença, como diz Sontag, frequentemente significa, em nosso contexto, passar a

viver num regime de submissão do corpo à ciência e à radical autoridade de seus

discursos, o que não raro produz o silenciamento da experiência individual do

“paciente” no texto médico, objetivador e pragmático da anamnese.

Na prática médica moderna, o doente não fala, é falado. Em The wounded

storyteller: body, illness and ethics, Arthur W. Frank discute a existência de um

reconhecido desnível de forças na atual relação médico-paciente, que habilita o

profissional de saúde a intervir na existência daquele que o procura com uma

Page 12: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 12 -

história de sofrimento, elencando diagnósticos, prescrições, intervenções e

prognósticos os quais, por escaparem ao entendimento, percepção e poder

decisório do outro, tendem a submetê-lo a uma vontade superior, arbitrária e as

mais das vezes inquestionável. Tal situação é agravada com a crescente tendência

à valorização do emprego de tecnologias de ponta na medicina, e com a prática

cada vez mais habitual de substituição da clínica pela avaliação laboratorial,

repassando aos equipamentos maquínicos a tarefa, antes delegada a um ser

humano, de analisar o estado daquele outro ser humano que se apresenta em

sofrimento. Como a aposta da medicina moderna reside na manutenção da vida e

da saúde a qualquer preço, o corpo sofredor em situações-limite – tanto aquelas

que desafiam a competência do domínio científico e fazem pouco de seus aparatos,

como as que se deparam com a inevitabilidade da decrepitude e da morte – é

também, muitas vezes, ignorado.

Transformado em “caso clínico”, o doente nas sociedades ocidentais

avançadas perde não só a identidade que construiu no “país dos sãos”: perde o

direito a verbalizar a experiência única, singularíssima, que a condição patológica

representa em sua vida. Sua narrativa – a história dos eventos que culminaram

numa condição extrema e não raro incapacitante para aquele sujeito específico;

reformulando, muitas vezes de maneira drástica, as suas relações identitárias,

emocionais e existenciais com seus grupos de origem – é desconsiderada em favor

de uma suposta soberania da razão científica. Em Medicine and literature, John

Salinsky analisa como a literatura de Franz Kafka, por exemplo, traduz uma

profunda compreensão desta exclusão na radical alteridade que a doença imprime

aos seres humanos, quando subitamente se descobrem transformados em corpos

abjetos, repulsivos e dependentes. Como em A metamorfose, essas pessoas,

desumanizadas por uma aparência ou uma condição não convencional, e sobretudo

pelo silenciamento que lhes é imposto, ou pela incapacidade que revelam, pelos

mais diversos motivos, de se exprimirem, são reduzidas a uma condição sub-

humana, alijada do contexto de uma humanidade inócua, salva, não contaminada –

Page 13: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 13 -

“pura”, enfim – no interior da qual navegam os corpos circunstancialmente (ainda)

intocados pela fatalidade e pela dor.

O “texto”: considerações

Layout da página no ELC:

Carrier

(becoming symborg) Melinda Rackham and Damien Everett

The hepatitis C virus is hauntingly personified in

this portmanteau multimedia piece. In envisioning

the virus as a conscious agent, carrier enables us

to think of the disease and the sufferings of those

afflicted with it in a new light.3

                                                            3 O vírus da hepatite C é assombrosamente personificado nesta peça multimídia. Imaginando o virus como um agente consciente, portador nos permite pensar na doença e no sofrimento daqueles atingidos por ela sob uma nova luz. 

Page 14: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 14 -

Author description: carrier investigates the fluid

boundaries of the body and the self via viral

symbiosis in the biological and virtual domains by

weaving an intimate love story between the viewer

and the hepatitis C virus. The site integrates

artificial and viral intelligence with immune system

and computer operating system discourse within the

swarming electronically networked nervous system of

our planet — the world wide web, immersing the

viewer in VRML worlds, Shockwave games, and Java-

generated textual landscapes. We are lead through

the site by sHe, an intelligent viral agent, who

crosses our species boundary, penetrating our

cellular core, repositioning viral infection as

positive biological merging with the flesh. We

become symborg as the boundaries between human /

machine / species dissolve. carrier comes in several

versions, allowing the viewer to navigate alone or

with the virus, as well an offline gallery stand-

alone version.4

Previous publication: carrier was published by

Rackham in 1999 on her site,

http://www.subtle.net/carrier.5

                                                            4 Descrição do autor: portador investiga as relações fluídicas do corpo e do ser via simbiose viral nos domínios biológico e virtual, através da veiculação de uma história íntima de amor entre o observador e o vírus da hepatite C. O site integra inteligência artificial e viral com o discurso do sistema imune e do sistema operacional do computador no interior do sistema nervoso eletronicamente disposto em rede do nosso planeta – a world wide web -, imergindo o observador em mundos VRML, em jogos Shockwave, e em paisagens textuais geradas em Java. Somos conduzidos através do site por sHe, um agente viral inteligente, que atravessa os limites de nossa espécie, penetrando no nosso código celular, reposicionando a infecção viral como uma fusão biológica positiva com a carne. Nós nos tornamos symborg quando os limites entre humano/máquina/espécie se dissolvem. Portador vem em diversas versões, permitindo ao observador navegar sozinho ou com o vírus, ou fora da rede numa versão em CD. 5 Publicação prévia: Portador foi publicado em 1999 por Rackham em seu site http://www.subtle.net/carrier.

 

Page 15: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 15 -

Comentário:

A proposta do projeto de literatura eletrônica que selecionamos para este

comentário põe em destaque todas essas questões, e muitas outras. Intitulado

“Portador (tornando-se symborg)”, a obra pode ser entendida como um complexo

narrativo digital e interativo que abrange muitos gêneros. Numa das duas

alternativas oferecidas para a navegação neste site, o leitor se depara com uma

elaboração ficcional, baseada na criação de uma espécie de jogo virtual entre um

ser (personagem-narrador) identificado pelo ambíguo termo “sHe” – na verdade

uma caracterização do vírus da Hepatite C – que é posto a dialogar com o leitor

num ambiente que recria uma atmosfera comum aos filmes de ficção científica de

suspense.

O cenário, que lembra uma placa de petri ampliada, com estruturas

microscópicas flutuando na tela e uma música de fundo ameaçadora, contribui para

criar uma sensação de desconforto, quando “alguém” (o vírus “sHe”) dirige-se ao

espectador digitando uma mensagem, como numa conversa informal em MSN. A

intenção do ser “alienígena” é estabelecer um contato íntimo com o ser humano;

sua primeira investida, portanto, é perguntar o nome do seu interlocutor, passando

então a dirigir-se a ele de forma personalizada.

A ideia de um vírus capaz de conversar e de utilizar várias técnicas de

sedução através da linguagem verbal causa constrangimento e incômodo no seu

eventual “parceiro”, que percebe que está sendo vítima de assédio. Além disso, em

sabendo da natureza do seu atacante, intui para onde deve conduzir tal conversa,

o que acentua a impressão de mal-estar. Mas o programa não deixa alternativa. Ou

você desiste do “jogo” ou, se tem curiosidade de ir adiante, precisa aceitar o

“contágio” e virar um “portador” – o que equivale a dizer que aceita a invasão,

mesmo ficcional, dessa microcápsula proteica no seu organismo, e aceita ver-se a

si mesmo como um “doente”.

Page 16: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 16 -

O vírus não desiste até conseguir autorização para a fusão de seu corpo com

o do seu interlocutor. A partir daí, quando o navegador já se encontra em estado

de hibridização com aquela estranha forma de vida inteligente, o programa fornece

a opção de navegação independente, sem a desagradável intervenção da “fala” do

vírus.

A partir de então, a obra abandona o caráter lúdico da simulação de um

diálogo ficcional em MSN, adquirindo uma característica mais séria, expondo uma

nova proposta de ordem didática, confessional e performática. Didática porque

permite que sejam acessadas, durante a navegação na “placa de petri”,

informações úteis e importantes sobre a doença determinada pela infecção do

vírus, a Hepatite C. Confessional porque, neste momento, o navegador tem acesso

ao núcleo da narrativa, feito de um compêndio de cartas-testemunhos de

portadores reais deste vírus, ou de seus familiares, que redigem os depoimentos

mais impressionantes sobre suas experiências indubitavelmente reais de

relacionamento com o vírus.

O discurso médico e técnico, frio e indiferente – que se limita a fornecer

informações científicas sobre a patologia –, é posto, portanto, ao lado de uma

gama surpreendente de relatos dramáticos, intensos, trágicos e de inegável

riqueza, inclusive para a pesquisa médica, na medida em que relatam os sintomas

em sua diversidade, as respostas favoráveis ou não aos tratamentos disponíveis e as

trocas sobre tratamentos alternativos, fitoterápicos e outros que só circulam entre

portadores desesperados, dificilmente chegando aos circuitos oficiais da ciência.

Diversas histórias podem ser inferidas a partir desses relatos; imensos dramas

pessoais se constroem nestas narrativas de vida, morte e sobrevivência. Enredos

que em nada deixam a dever aos dos mais imaginativos romances, exibem-se em

potencial neste universo, traçados em algumas poucas e sempre apaixonadas linhas

escritas para veiculação no espaço democrático e liberal da internet.

A diferença deste “romance” epistolográfico de caráter dramático/trágico é

que seus enredos remetem a pessoas reais, que estão efetivamente sofrendo dentro e

Page 17: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 17 -

fora da rede de comunicação eletrônica, e com as quais o navegador, se quiser,

poderá entrar em contato, pois seus emails são disponibilizados no corpo da obra. Daí

o caráter “performático” desta experiência, que reedita um pouco a essência do

happening ou da literatura-manifesto, de clara intenção política, voltada sobretudo

para a denúncia da postura excludente da sociedade “sã” face à sociedade dos

“infectados”, cujas “comunidades” marginais proliferam à medida em que novas

“invasões” virais surgem e ameaçam as populações em escala planetária.

Os “ataques” dos vírus – esses seres incompletos, nem sequer considerados

“seres vivos” pela unanimidade da comunidade científica, porém altamente lesivos

para a humanidade –, em versões modernas e desconhecidas para as quais não

existe ainda uma forma de controle eficaz, têm surgido e se multiplicado como

nunca nos últimos tempos (aids, antraz, ebola, gripe aviária, gripe suína, dengue,

hepatite, etc), gerando uma atmosfera escatológica de terror e insegurança

comparável apenas às determinadas pelas grandes pandemias ao longo da história

(lepra, peste bubônica, varíola, gripe espanhola, etc.), que varreram populações

inteiras, e que já se acreditavam erradicadas com o advento da penicilina, no caso

do ataque de bactérias, e das vacinas, no caso do ataque de vírus.

Nenhum E.T. de filmes de ficção científica pode rivalizar, nem

imaginativamente, em capacidade real de dano ao ser humano, com o elemento

parasitário viral. Com a agressão humana à natureza, responsável pelo

desequilíbrio ímpar e irreversível da homeostase da biosfera; com as pesquisas

cada vez mais radicais na área da manipulação genética, seja na agricultura e na

pecuária (referentes ao controle de pragas e à optimização da produção), seja na

indústria farmacêutica, cosmética e alimentícia (com a crescente inserção no

mercado de substâncias artificiais para consumo e uso); além da recente

possibilidade aberta ao terrorismo biológico pela facilidade de acesso aos

laboratórios e mesmo pela possibilidade de acidentes os mais diversos com esses

materiais, a manipulação da vida em seu âmago, com a determinação real de

Page 18: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 18 -

ameaças nunca dantes imaginadas, nunca foi tão intensa, aleatória e devastadora

como nos dias que correm.

Compreende-se, portanto, a proposta dos autores deste exemplar de

literatura eletrônica, que mostram uma ínfima faceta da nova natureza do

problema da saúde pública resultante deste quadro. Obras como esta nos fazem

pensar em como este problema vem se inserindo em nosso cotidiano num ritmo tal

que os discursos filosófico, ético e jurídico não têm dado conta de acompanhar.

Informação científica sobre a doença oferecida no site

Hepatite C (HCV) é um vírus que afeta humanos. Entre as pessoas

expostas ao HCV alguns vão eliminar o vírus, porém a maioria vai

ter a longo prazo uma infecção crônica. A maioria das pessoas

infectadas com o HCV não sabem que são portadores e podem ser

assintomáticos. Em outros, os sintomas podem levar de onze a vinte

anos para se desenvolver. Muitas pessoas com infecção crônica não

têm sintomas perceptíveis ou dano hepático e parecem bem. No

entanto, estão infectadas e devem tomar cuidado para reduzir os

riscos de transmissão do vírus para outras pessoas. A principal

forma de transmissão do HCV é através do contato com sangue

contaminado. Os sintomas refletem os danos causados ao fígado pelo

HCV na maioria dos casos: cansaço, desconforto abdominal e náuseas.

Atualmente não há nenhuma maneira de se prever as conseqüências

desta infecção em qualquer pessoa. Os sintomas podem ser nulos ou

mesmo desproporcionalmente incapacitantes em relação à quantidade

de danos causada ao fígado. A causa da fadiga associada à hepatite

C ainda não está totalmente clara, no entanto, sabese que o uso de

álcool agrava os danos causados pelo HCV. Com o tempo, a infecção

crônica pode resultar em cicatrizes permanentes no fígado

determinantes de cirrose. A cirrose, em si, não constitui risco de

morte, mas com o tempo e a extensão do quadro, pode resultar em

insuficiência hepática ou câncer de fígado, podendo levar a óbito.

Page 19: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 19 -

Cartas de pacientes e/ou de parentes de portadores escritas para o site de relacionamento na internet voltado para o apoio aos infectados pelo HCV

De: Adele <[email protected]> Assunto: Re: discriminação

Eu simplesmente não revelo mais que sou portadora do

virus da hep C, depois de ter uma série de tratamentos

recusados pelos especialistas. Tanto o dentista local como a

minha ginecologista, por exemplo, me disseram que havia mais

sobre essa doença do que estava sendo revelado ao grande

público. Sei que intervenções mínimas podem se tornar

perigosas graças às práticas pouco seguras de esterilização de

materiais na comunidade. Entretanto, estou exausta de ser

discriminada como viciada em drogas injetáveis apenas por ser

portadora do vírus da hep C.

Devido aos meus filhos e ao meu emprego como advogada

numa pequena cidade, não posso revelar minha situação

também no trabalho, principalmente por causa das

reportagens sensacionalistas veiculadas na TV, que sempre

associam hep C ao consumo de drogas e às populações

carcerárias. Isto me coloca, enquanto advogada e portadora,

“do outro lado” da justiça. Mas estou sempre tão cansada que

vivo me arrastando pelo escritório, e temo que isso me venha

a fazer perder o emprego, considerando as muitas licenças

médicas que fui obrigada a requisitar no ano passado.

Os médicos afirmam que escondo o meu passado... mas a

verdade é que não tenho a menor ideia de onde pude pegar

esse vírus. Só tive três parceiros sexuais, nenhum dos quais

Page 20: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 20 -

portadores ou sujeitos à contaminação pelo vírus da hep C:

não fizeram transfusões, tatuagens, ou tiveram

comportamento de risco. Da mesma maneira que eu.

Se o HCV não fosse tão estigmatizado nem tão invisível

como é – o que eu acho difícil de acreditar, considerando que

somos quatro milhões de pessoas infectadas neste país – então

talvez eu pudesse revelar minha condição e receber o suporte

profissional e o tratamento de que preciso dentro da minha

própria comunidade. Mas do jeito que as coisas são, sinto-me

forçada a me mudar para uma cidade grande, levando a minha

família, a fim de ter alguma oportunidade de manter o meu

trabalho durante a progressão da doença.

Agradeço a todos vocês o apoio deste grupo, é o único

lugar hoje onde posso dizer que me sinto uma pessoa normal

☺.

Adele

De: Kerry Anne [email protected] Assunto: Re: crianças

Cada vez que olho para Brendon me sinto tão culpada de

ter passado uma doença incurável para ele. Ele é um

menininho tão alegre e inocente, não tem a menor ideia de

que é portador de um vírus que o torna diferente das outras

pessoas. Eu não sabia que era portadora do HCV até fazer um

exame de sangue de rotina quando fiquei grávida pela primeira

vez, e foi aterrorizante precisar lidar com a revelação desta

doença e com o medo de transmiti-la à minha criança ainda

Page 21: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 21 -

não nascida. Os médicos disseram que os riscos de transmissão

eram de 5%, uma vez que eu não apresentava sintomas, minha

função hepática era boa e a possibilidade de infectar a criança

era baixa. O fato é que não consegui fazer um aborto,

havíamos esperado tanto, tanto tempo para ter essa preciosa

criança, até que tivéssemos uma condição financeira estável e

tivéssemos comprado a nossa casa. Como somos ambos casados

pela segunda vez, já não tínhamos idade para arriscar outras

gravidezes, e não quisemos pensar em esperar a eventualidade

de que eles encontrassem a cura dessa doença nos próximos

cinco anos. Por isso, decidimos continuar a gravidez, mas o

parto acabou sendo difícil e acidentado, e durante a cirurgia a

criança ficou coberta com o meu sangue. Mesmo assim

esperamos. Sabemos que crianças nascidas de mães portadoras

fazem o teste sanguíneo entre 12 e 18 meses de idade, quando

perdem os anticorpos da mãe e ficam expostas ao vírus. Apesar

de não haver relato da passagem do vírus pelo leite, preferi

não amamentar o meu filho, pensando em diminuir as chances

que ele teria de desenvolver a doença. No entanto, a cada

terrível exame de sangue, minhas esperanças diminuíam.

Tenho muita sorte de contar com um companheiro

maravilhoso, não teria suportado tudo o que passei se não

fosse ele. Odiei ter que fazer todos aqueles testes em

Brendon, para descobrir que possivelmente ele está mesmo

infectado. Não sou religiosa, mas se fosse tenho certeza de

que estaria implorando a Deus pela cura, não minha, mas do

meu bebê. Tornei-me uma mãe superprotetora e assustada.

Embora ele seja lindo e saudável, fico apavorada com aquilo

Page 22: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 22 -

que está por vir, com as histórias terríveis que ouço de

crianças portadoras de HIV que são banidas dos parquinhos e

das escolas, e de famílias que precisam fugir para cidades

grandes a fim de manter o anonimato e esconder da

comunidade a condição de seu familiar portador do vírus.

Brendon é a razão da minha vida. Hoje eu já não viveria sem

ele. Espero que mais e mais pessoas se conscientizem sobre

essa doença, para que ele possa viver num mundo melhor. Se

você está na minha situação, não posso aconselhá-la sobre o

que fazer... essa é uma decisão que só cada um pode tomar.

Kerry Anne

De: Fredrick <[email protected]>

Assunto: Re: Dezoito coisas que aprendi sobre meu HCV nestes 4 anos pós-diagnóstico

18. Meu HCV me fez mais vivo.

17. Meu HCV finalmente me ajudou a crescer, depois de quatro

décadas e meia de vida.

16. Meu HCV me deu o presente de me confrontar com a minha

própria mortalidade.

15. Meu HCV me forçou a não perder tempo.

14. Meu HCV me ensinou que é inútil pensar em mim mesmo

como uma vítima.

Page 23: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 23 -

13. Meu HCV me ensinou que, embora eu não possa escapar das

conseqüências do passado, a auto-punição é fútil e egoísta.

12. Meu HCV me lembra constantemente do quanto amo minha

mulher e meus filhos.

11. Meu HCV me tornou mais grato pelo que eu tenho do que em

qualquer outra época da minha vida.

10. Meu HCV me tornou mais concentrado agora do que jamais

fui.

9. A redução de ferro por retirada de sangue reduz minha ALT e

AST. Não sei se isso reduz a destruição do meu fígado.

8. Como não reativo ao interferon, tenho somente uma mínima

chance de responder ao interferon e a ribavirina combinados.

Mas tentarei esta combinação de qualquer forma.

7. Preciso observar tudo o que como e bebo – pouca gordura,

muita fibra, nenhum álcool.

6. Algumas vitaminas, minerais e anti oxidantes me fazem sentir

melhor: zinco, sódio, sulfato, N-acetyl cistina, acido lipoico,

cholina, inositol, selênio, vit. C e vit. E.

5. Ervas chinesas que suportam cozimento e fervura mantêm as

minhas enzimas estáveis. Em 1995, estava no estágio 2 de

fibrose. Embora me sentisse bem durante 96 e 97, os testes

mostraram uma evolução para o estágio 3 de fibrose.

4. Se eu tomar um drink de proteína de leite de cabra, água e

guaraná pela manhã, observo que tenho muito menos sintomas e

meu teste sanguíneo apresenta resultados melhores.

3. Manter o regime, contudo, não diminui o risco para o meu

fígado.

2. Manter o regime, custa uma fortuna.

Page 24: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 24 -

1. Apesar disso, acho que os meus suplementos, ervas e

vitaminas são válidos do ponto de vista da minha qualidade de

vida.

Considerações finais

Se a palavra “Cyborg” vem da fusão dos termos Cybernetic e Organic,

sugerindo um ser híbrido com características tecnológicas e biológicas (silício e

carbono), poderíamos deduzir que “Symborg” pressupõe a fusão dos termos

Symbolic e Organic, sugerindo o “portador” (Carrier) como um ser híbrido entre um

sistema lingüístico arbitrário e um organismo vivo. Entender a estrutura viral como

um código lingüístico não está muito longe da verdade, determinando, talvez, a

adequabilidade do termo na sua transposição para a linguagem dos computadores.

O “vírus” virtual é identificado com um pequeno programa que se insere dentro de

outros programas. Quando estes outros programas são executados, o vírus também

é executado, e tenta se multiplicar para atingir mais programas ainda. Desta

forma, ele se alastra pelos programas do computador da mesma forma como um

vírus biológico no corpo humano. Os vírus maquínicos, por definição, podem

"infectar" qualquer tipo de código executável, que seriam os equivalentes dos

núcleos celulares no interior dos quais os vírus biológicos, seres muito elementares

e altamente invasivos, adquirem meios para a mutação necessária à sua

reprodução.

A célula que se reproduz após a invasão viral já não é uma célula comum,

nem o vírus é simplesmente um vírus: trata-se de um complexo híbrido, no qual a

parca informação individual deste encontra-se indelevelmente anexada à mais

complexa informação de seu invólucro, transformado em portador posto a seu

serviço. Já não é possível desvincular, portanto, na célula contaminada, o que é

Page 25: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 25 -

“vírus” do que não é “vírus”. Uma célula colonizada por um vírus é uma célula

doente, no sentido que propõe Canguilhem: não uma célula “maldita”, mas uma

célula “errada”. Ali haverá sempre um erro de leitura, que configurará uma

interpretação desviada, determinando uma função diferente daquela esperada para

aquele ente antes do evento do ataque.

Seres portadores de células comprometidas tornam-se organismos

simbolicamente afetados de múltiplas maneiras. Suas vidas pessoais e em

sociedade sofrem uma reviravolta radical, especialmente quando não há outra

alternativa além do tratamento paliativo e da longa espera pelo desenvolvimento

de uma condição mórbida crônica e progressivamente incapacitante. A inexistência

de programas eficientes de suporte psicológico, informação, educação e adaptação

dos portadores, seus familiares e demais contactantes à nova condição real e

simbólica que se instala, isola essas pessoas num silêncio destrutivo, que não só

contribui para agravar os seus problemas diversos, como para favorecer a

disseminação dos vírus, uma vez que os portadores preferem ocultar dos demais a

sua condição e não tomar as precauções necessárias à limitação do contágio.

No entanto, como mostram os depoimentos citados nesta obra de literatura

eletrônica, nem sempre as reações à adversidade são negativas. Muitas pessoas

encontram formas positivas e criativas de continuar a viver, e articulam processos

de compensação para as dificuldades capazes de transformá-las em verdadeiros

exemplos de força e resiliência. O abismo entre o discurso científico e a real

situação “symborg” dos portadores de vírus extremamente agressivos como o da

Hepatite C torna-se patente no corpo desta obra, mostrando que há muito a ser

feito com relação às comunidades de contaminados que proliferam no mundo.

Neste aspecto, a incômoda e desagradável estratégia de intercâmbio imaginada

pelos criadores deste site entre um vírus inteligente e seu interlocutor humano,

que abre a experiência de fruição desta obra, parece necessária como uma etapa

de sensibilização do receptor para a gravidade do assunto de que se vai tratar, e

como um processo de vivência, em escala infinitamente menor e ficcional, das

Page 26: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 26 -

angústias, aflições e temores experimentados por qualquer pessoa, sujeita à

invasão imprevista de um desses “aliens”, que alterarão suas vidas profundamente,

reconfigurando seus corpos, ressignificando suas histórias e conduzindo seus

destinos por caminhos imprevistos, difíceis e as mais das vezes, extremamente

solitários.

O ciberespaço, porém, imune aos contatos orgânicos de toda a espécie e às

doenças dos corpos humanos, acolhe as mentes perturbadas e isoladas e

proporciona-lhes uma via de intercâmbio, troca de experiências, desabafos, apoio

mútuo e relacionamento, que sem ele não seria possível. Quando os apresentadores

brasileiros da antologia de literatura eletrônica de Hayles comentam que os

projetos identificados como obras digitais trabalham pela “humanização” das

práticas computacionais, é preciso estender e dizer que, algumas vezes, eles

trabalham também pela “humanização” dos próprios seres humanos em suas

práticas cotidianas, mediadas pela realidade de seus corpos falíveis e mortais,

contribuindo para libertá-los do medo e do egoísmo que os impedem de exercitar a

solidariedade. Carrier: becoming symborg é um exemplo de veículo de uma

narrativa multiforme que acontece no espaço virtual, na qual cabem ficção e

realidade, jogo e realidade, trabalho estético e realidade – mas sempre uma

inegável e contundente realidade –, e que mostra como os “outros mundos” e os

“outros seres” que aprendemos a temer com os discursos territorialistas e

imperialistas de outras eras (e todas as fantasias criadas a partir deste imaginário)

estão cada vez mais perto, tornam-se cada vez mais íntimos, a ponto de se

confundirem conosco, como parte constituinte de nossos organismos, como as

palavras-valise de um novo texto escrito e inscrito em nossas próprias células;

obrigando-nos, a cada instante, a uma constante releitura de nós mesmos.

Page 27: Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional … · da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma ... um poema; Niemi usa o programa JavaScript

 

Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 27 -

Referências bibliográficas

CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2010.

ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de “Envelhecer e morrer”. Rio

de Janeiro: Zahar, 2001.

FRANK, Arthur W. The wounded storyteller. Body, illness and ethics. Chicago and

London: The University of Chicago Press, 1997.

HAYLES, Katherine. Eletronic literature. New horizons for the literary. Indiana:

University of Notre Dame, 2008.

_____. Literatura eletrônica. Novos horizontes para o literário. São Paulo: Global,

2009.

NOVAES, Adauto (org.). O homem-máquina. A ciência manipula o corpo. São Paulo:

Cia. das Letras, 2003.

SALINSKY, John. Medicine and literature. Oxford and San Francisco: Radcliffe

Medical Press, 2004.

SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2008.

RACKHAM, Melinda e EVERETT, Damien. Carrier (becoming symborg). In:

http://collection.eliterature.org

SONTAG, Susan. Doença como metáfora. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.