4. meios audiovisuais, narrativas e inclusão subjetiva · entrevistas presenciais, principalmente...
TRANSCRIPT
4. Meios audiovisuais, narrativas e inclusão subjetiva
Neste capítulo, procuramos fechar (evidentemente sem a pretensão de
encerrar o tema) nosso percurso a partir dos processos de exclusão, em busca de
respostas para revertê-los por meio de processos comunicacionais. Motivados por
experiências compartilhadas e mediadas pelo cinema e suas possibilidades
transformadoras, realizamos um estudo de caso na Escola Livre de Cinema de
Nova Iguaçu (ELC), que adota uma proposta de ensino aliada à vivência dos
alunos, instigando descobertas que não se limitam ao uso de técnicas e à operação
de câmeras e softwares.
Buscamos teóricos, cineastas, pesquisadores que pensaram e pensam o
cinema e seu papel como narrador, como catalisador de sensações, como
expressão artística, como espaço de entretenimento e reflexão, como agente e
testemunha da História. Também como veículo para expressão de diversidade
cultural, de exercício de alteridade e produção de subjetividade.
No Rio de Janeiro do século XXI (como em outras latitudes), o cinema,
agora mais acessível graças à tecnologia digital, está cada vez mais presente em
práticas e projetos sociais. O cinema ganha uma concepção mais ampla, fazendo
parte do que hoje chamamos de audiovisual. O espectador experimenta o papel de
produtor, roteirista, diretor e, além de receptor, pode ser emissor, usando as
imagens em movimento para se expressar e se comunicar com o mundo.
Sobre a Escola Livre de Cinema, fazemos um histórico, sua origem na ONG
Reperiferia, sua primeira fase no Programa Bairro Escola, da Prefeitura de Nova
Iguaçu, suas incursões em atividades ligadas ao resgate de memória, identidade,
território. Numa nova etapa, a Escola, que é também Ponto de Cultura, ganha
novo patrocinador, a Petrobras, e estabelece parceria metodológica com a
Universidade Federal Fluminense (UFF).
Num relato pessoal, contamos como foram as visitas a Miguel Couto, bairro
de Nova Iguaçu onde está a Escola. Numa destas visitas, propusemos a realização
de entrevistas com alguns alunos, que foram feitas por meio de questionários
impressos. Estes questionários foram respondidos por alunos de diferentes cursos.
85
Foram também enviados questionários a alguns pais/responsáveis e suas respostas
vieram igualmente contribuir para nosso estudo.
As informações sobre a ELC que compõem este Capítulo foram colhidas em
entrevistas presenciais, principalmente com Anderson Barnabé, Coordenador da
ELC, além de contatos por telefone e por e-mails. São também fruto de consultas
ao blog, ao website e às redes sociais onde a Escola mantém perfil (Facebook),
além de nossas observações no local e durante participação em eventos onde a
Escola esteve presente, como o Apalpe e o seminário Redes de formação para o
audiovisual.
Fazemos breve análise de alguns filmes realizados pelos alunos e
comentamos algumas matérias veiculadas na mídia, sobre a Escola. Ao final deste
Capítulo, abordamos brevemente a questão das políticas públicas culturais, no
Brasil, em especial aquelas voltadas para a área do cinema/audiovisual.
4.1. Cinema: magia e técnica, razão e emoção
Olhado com alguma desconfiança em seus primórdios e mesmo relegado a
um papel de coadjuvante em feiras, o cinema não tardou a ser visto como um
invento com inúmeras possibilidades informativas, comunicacionais, educativas,
estéticas. Não apenas os aparelhos foram evoluindo, se aprimorando, mas também
novas elaborações estéticas e narrativas foram sendo reveladas. Como observa
Flávia Cesarino Costa, (2005), gradativamente os filmes foram perdendo aquela
característica de atração autônoma, ao estilo dos vaudevilles, onde havia de tudo
um pouco, sem conexão entre os atos/cenas.
O cinematógrafo dos irmãos Lumière, apresentado em 1895, surge como o
aperfeiçoamento de outras técnicas óticas então em uso, entre eles a lanterna
mágica, o stereorama, o cineorama, criados e patenteados num ambiente de
acirrada competição (Costa, 2005, pp.25-27). Ele, o cinematógrafo, inaugura uma
nova etapa nesse percurso do homem para captação, fruição e perpetuação de
imagens (e, depois, também sons).
86
Uma das aplicações dos recursos do cinema, em seus primeiros anos, além
de mostrar as atualidades, foi para registro de experiências científicas (Duarte &
Tavares, 2010, p.25). Mas, se o cinema deu seus primeiros passos apenas
registrando o que estava diante da câmera, logo os realizadores perceberam que
suas possibilidades iam muito além. As narrativas, timidamente esboçadas nos
trabalhos realizados com os primeiros aparelhos óticos, foram também evoluindo.
Na primeira década do século XX, o cinema vai se sofisticando e a narrativa já
aparece como forma dominante. Desde então, as inovações estéticas, tecnológicas
e de construção de narrativas não pararam, e cada vez mais se justifica o
reconhecimento do cinema como a “sétima arte” 76
.
Flávia Costa observa também que, sendo a única mídia capaz de reproduzir
a velocidade, proliferavam, nos primeiros tempos, as imagens de cinema tomadas
a partir de meios de transporte rápido, como trens, inaugurando assim uma nova
forma de percepção visual. Segundo a autora, pode-se dizer que o período do
primeiro cinema se encerra quando esta nova forma de percepção começa a se
generalizar (Costa, 2005, p.59).
John Grierson, responsável pela organização do movimento do filme
documentário, na Inglaterra, no final dos anos 1920, tinha um projeto de educação
pública através do cinema, crendo que a câmera seria capaz de registrar fielmente
a realidade e assim transmitir conhecimentos (Da-Rin, 2006, p.55). Mas, mesmo
ele, pretendia um “tratamento criativo da realidade”, um tipo de filme que se
distinguisse da actualité e do cinejornal, como relata Fernão Pessoa Ramos:
As ambições de Grierson, nesse sentido, assemelhavam-se às de outros cineastas e
teóricos da época do cinema mudo e princípios do sonoro. Estes lutavam contra o
preconceito de que o cinema serviria tão-somente para a reprodução mecânica e
submissa do que fosse posicionado em frente da câmera. Para eles o cinema tinha
condições de ser mais que um mero registro do fluxo da realidade, sendo capaz de
dar forma criativa a essa realidade. E, em virtude de sua dimensão artística,
merecia ser tomado mais a sério. (Ramos, 2005, p.70)
76
A expressão “sétima arte” foi proposta pelo italiano Riccioto Canuto, inicialmente em 1912,
aparecendo no Manifesto das Sete Artes, publicado em 1923. As outras seis são: Arquitetura,
escultura, Pintura, Música, Dança e Poesia. Posteriormente foram sendo incluídas outras, como:
Fotografia, Arte Sequencial (Quadrinhos), jogos de computador e vídeo e Arte Digital.
http://fgimello.free.fr/enseignements/metz/textes_theoriques/canudo.htm - acesso 11/01/12
87
Assim, entre defensores apaixonados e críticos que se recusavam a ver no
cinema qualquer valor artístico, considerando-o um invento sem futuro, a
novidade que projetava numa tela imagens com tal realidade que se confundiam
com a própria vida, chamou a atenção de filósofos, sociólogos e outros
pensadores. As teorias e conceitos formulados por eles apontam um caminho
instigante, ainda que movediço e nunca definitivo, e procuram decifrar o fascínio
gerado pelo cinema.
Para Jacques Aumont, “teorizar o cinema é buscar como ele é imagem,
como representa o mundo, veridicamente ou não; é preocupar-se com sua ação
social e com a maneira como modela os espíritos” (Aumont, 2004, p.135).
Atribuindo ao cinema efeitos sociais e ideológicos e a capacidade de não apenas
informar, mas também convencer, o autor afirma que “o cinema sidera ou seduz
seu espectador como nenhuma outra forma de arte”. (Aumont, 2004, p.9).
Tomando estas afirmações de Jacques Aumont, somos convidados a pensar:
Por que o cinema tem essa capacidade de fascinar? Como se opera essa relação do
espectador com o filme? De fato, numa sala de cinema há um mundo a descobrir,
seja pela razão ou pela emoção. São experiências que disparam sensações,
pensamentos, emoções que nos assaltam e retornam depois, nos apartam por
alguns instantes do momento presente: uma frase, um olhar, um movimento, uma
luz, um som, uma ambiência, uma música, uma imagem... Experiências que o
espectador carrega consigo, finda a sessão.
Marília Franco investiga essa capacidade de mobilização interior do cinema
e fala de uma “permanência emotiva que o filme proporciona e das consequências
formadoras dessa cultura assim experimentada” (Franco, 2010, p.9). Citando
pesquisas da neurociência, a autora ressalta a importância da “impregnação
afetivo/emocional proporcionada pela linguagem ou pela estética
cinematográfica” (Franco, 2010, p.11). Mesmo um cineasta consagrado, com uma
extensa e rica filmografia, como Jean-Luc Godard, considera um dever do diretor
de cinema permitir-se ficar fascinado ao ver um filme, ou, em suas palavras “um
filme que me derrube e me recoloque em causa...” (Godard, 2006, p.245).
88
Entre os cineastas que, além de realizadores, também teorizaram sobre o
cinema, o russo Dziga Vertov (1896-1954) criou um conceito (tirado da música)
que chamou de “intervalo” para significar mais uma conexão do que uma ruptura.
No “intervalo”, o espectador se insere como mais um realizador, formando uma
teia de significados a partir das imagens. Ele é em parte direcionado pela
montagem, mas também desfruta de uma liberdade interpretativa para reconstruir
em sua mente a obra, a partir de sua percepção. Como explica Miguel Pereira,
Vertov não está apenas interessado na relação de imagens próximas, mas também
das distantes que participam do mesmo movimento fílmico. Assim, a montagem
não é apenas a junção de imagens, mas a sua relação com todas as imagens que
estão no filme, depois de montado. (Pereira, 2006, p.130)
A montagem é geralmente associada a Sergei Eisenstein (1898-1948), que,
no entanto, a utilizava de modo diferente de seu contemporâneo Vertov. Se este a
usava de modo mais cerebral, Eisenstein apostava na emoção. Segundo Roland
Barthes, o cinema de Eisenstein encontra semelhanças com o teatro de Bertolt
Brecht, pois “toda carga significativa e divertida incide sobre cada cena” e “o
filme é uma contiguidade de episódios, cada um absolutamente significativo,
esteticamente perfeito” (Barthes, 1990, p.83).
Ainda entre os cineastas russos, Lev Kulechov (1899-1970) também se
destacou com suas experiências, que ficaram conhecidas como “Efeito
Kulechov”77
, e que consistiam em alternar um plano de um ator com expressão
neutra com outros planos, causando a sensação de que o ator estaria
experimentando diferentes sentimentos: prato de sopa associado à fome, criança
morta à tristeza, mulher seminua a desejo, etc., demonstrando como a associação
de imagens pode exercer influência sobre o espectador, fazendo-o “ver” além do
que está na tela.
O próprio cinema voltou suas câmeras sobre si e vários filmes, em
metalinguagem, pelo drama ou pelo humor, falaram da sétima arte e de como ela
pode mobilizar, transformar, fazer pensar, desestabilizar e recriar a própria vida:
Amarcord (F.Fellini), Cinema Paradiso (G.Tornatore), A noite americana
77
Encontramos no Youtube várias versões do Efeito Kulechov (ou Kuleshov), sendo esta a versão
apresentada como a original: http://www.youtube.com/watch?v=zUZCPPGeJ1c. Ver também:
http://classicosuniversais.com/2011/06/12/montagem-e-efeito-kuleshov/ - acesso 20/10/11
89
(F.Truffaut), A Rosa Púrpura do Cairo (Woody Allen), Saneamento Básico, o
filme (Jorge Furtado) são alguns exemplos. E o grande vencedor do Oscar em
2012 foi, curiosamente, um filme - O Artista (M.Hazanavicius) - que retorna aos
primeiros tempos do cinema, utilizando recursos da época retratada, ou seja, um
filme mudo, em preto e branco e projetado em tela quadrada.
Este poder do cinema explica a mobilização de diversos pensadores em
torno deste invento que verdadeiramente revolucionou o modo como o homem
enxerga e se relaciona com o mundo. Gilles Deleuze entende que o que diferencia
o cinema de outras artes é sua capacidade de “auto-movimento”. Segundo o
filósofo francês,
É somente quando o movimento se torna automático que a essência artística da
imagem se efetua: produzir um choque no pensamento, comunicar vibrações ao
córtex, tocar diretamente o sistema nervoso e cerebral. Porque a própria imagem
cinematográfica “faz” o movimento, porque ela faz o que as outras artes se
contentam em exigir (ou em dizer), ela recolhe o essencial das outras artes, herda o
essencial, é como o manual de uso das outras imagens, converte em potência o que
ainda só era possibilidade. (Deleuze, 2007, p.189)
Deleuze (2007; 2009), acreditando no cinema como ferramenta para
produzir o pensamento, desenvolveu os conceitos de “imagem-movimento” e
“imagem-tempo”. A “imagem-tempo” refere-se a um cinema mais lento,
reflexivo, que privilegia o tempo em vez da ação, e surge após a 2ª Guerra
Mundial, num mundo profundamente abalado e mesmo perplexo diante da
destruição e da barbárie. A “imagem-movimento”, que se caracteriza pelo
dinamismo, pela ação, prevalecia nos filmes anteriores àquela guerra.
Tais conceitos e teorias nos ajudam a conduzir as reflexões sobre como se
dá, pelo público, a recepção dos filmes, como as obras são marcadas por tensões
históricas e sociais, constituindo-se também como testemunhas de sua época. De
fato, o cinema, além de expressão artística, tem também servido a interesses
econômicos e políticos, seja como doutrinador ou espaço de resistência.
É sabido que o cinema se imbrica com a política, seja para doutrinamento,
difusão de ideologias, seja pelo viés da economia. É famosa a frase atribuída a um
presidente norte-americano que diz “onde vão nossos filmes, vão nossos
90
produtos”78
. Filmes podem ser instrumentos para tentar orientar o pensamento das
massas, como na Alemanha nazista, no socialismo soviético e no Estado Novo de
Vargas, no Brasil. Do mesmo modo, podem ser espaço de crítica e denúncia,
como atestam dezenas de obras produzidas em países que vivenciaram regimes
autoritários, como Brasil, Argentina, Chile, Cuba, entre tantos outros.
Neste contexto, é interessante trazer o conceito de “dispositivo” ainda que
não seja ele atributo específico do cinema. Michel Foucault (1996) faz referência
ao dispositivo, representado por uma rede que agrega elementos que atuam sobre
o indivíduo, como os sistemas de exclusão que ele analisa no livro A ordem do
discurso. Giorgio Agamben, analisando os dispositivos foucaultianos, considera
dispositivo “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar,
orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as
condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (Agamben, 2009, pp.40-
41). Ismail Xavier, em As aventuras do dispositivo (1978-2004), onde percorre o
pensamento de vários teóricos acerca do cinema, observa que Christian Metz
deixou claro que Dispositivo não é apenas o aparato técnico, mas toda a
engrenagem que envolve o filme, o público, a crítica; enfim todo o processo de
produção e circulação das imagens onde se atuam os códigos internalizados por
todos os parceiros do jogo. Deste modo, o Dispositivo se põe como uma
“instituição social da modernidade” que começa então a ser decifrada em suas
bases mais profundas. (Xavier, 2008, p.176).
Cabe destacar que os filmes podem ser políticos mesmo não explicitamente
engajados, como observam Duarte e Tavares (2010, p.33). Segundo os autores,
“ao longo da história, a sétima arte assumiu – para seus criadores e para o público
– distintas formas e dimensões políticas que vieram a desempenhar papéis
educativos diferenciados na sociedade” (Duarte & Tavares, 2010, p.36).
Jacques Rancière, por sua vez, propõe outra relação entre arte/estética e
política:
78
Consta que foi Franklin Roosevelt, mas não há registros que comprovem a origem desta
declaração.
91
A experiência estética deve realizar sua promessa suprimindo sua particularidade,
construindo as formas de uma vida comum indiferenciada, onde arte e política,
trabalho e lazer, vida pública e existência privada se confundam. Ela define
portanto uma metapolítica, isto é, o projeto de realizar realmente aquilo que a
política realiza apenas aparentemente: transformar as formas da vida concreta,
enquanto a política se limita a mudar as leis e as formas estatais.(Rancière, 2005,
p.4)
Para Rancière, a arte – e por consequência o cinema – é o meio pelo qual as
transformações que a política apenas sinaliza podem alcançar sua concretização.
Podemos concluir que uma lei, um decreto, uma ordem oficial, não terão o poder
de persuasão, de sensibilização, a capacidade de mobilizar e provocar reflexão que
uma experiência mediada por alguma manifestação artística possui.
4.1.1. O cinema como narrador
“As histórias conferem movimento à nossa vida interior, e isso tem importância
especial nos casos em que a vida interior está assustada, presa ou encurralada. As
histórias lubrificam as engrenagens, fazem correr a adrenalina”. (Clarice Pinkola
Estés)79
“Todas as mágoas são suportáveis se as colocamos em uma estória (story) ou
contamos uma estória sobre elas”. (Isak Dinesen)80
“Histórias. Nós as contamos uns para os outros. Sempre fizemos isso. Histórias
para consolar, surpreender, entreter. E sempre houve contadores de história,
sentados junto à lareira, viajando de cidade em cidade, falando, escrevendo,
encenando. Nossas histórias, nossos mitos e lendas populares definiram,
preservaram e renovaram culturas.” (Roger Silverstone)81
Segundo Flávia Costa, em 1913 já “está consolidado um cinema narrativo
cuja preocupação principal é contar uma história” (Costa, 2005, p.112). Como
relata a autora, a tarefa de ajudar o cinema a contar histórias vinha sendo
conduzida até então pela presença do comentador e pelo uso de intertítulos. Ela
observa também que a sensação “anárquica” dos primeiros filmes, onde imagens
apareciam e sumiam abruptamente, causava impressões contraditórias. Se, por um
lado sugeriam irreverência e energia, por outro, traziam uma sensação estranha de
79
Mulheres que correm com os lobos – mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de
Janeiro: Rocco, 1994, p. 36 80
Citação contida no livro A Condição Humana, de Hannah Arendt (p.219), sem referências à
origem. 81
Citação contida no texto de Adriana Hoffman Fernandes (2010). SILVERSTONE, Roger.
Poética. IN: Por que estudar a mídia? Edições Loyola: São Paulo, 2002, p.79.
92
morte. Esta sensação, segundo ela, vai desaparecendo à medida que os filmes vão
se tornando narrativos, possivelmente graças a “uma certa mágica pacificadora da
narrativa”. É interessante registrar também que, segundo a autora, os críticos do
primeiro cinema, atacavam exatamente suas formas não narrativas, que
estimulariam um “nervosismo insalubre” (Costa, 2005, p.33).
Como observam Rosália Duarte e Marcus Tavares, reportando-se a Georges
Méliès, as possibilidades artísticas daquela nova forma de expressão – o cinema –
dependiam também do domínio da técnica e “seria preciso ensinar os espectadores
a apreciá-lo como uma nova forma de arte” (Duarte & Tavares, 2010, p.27). Hoje,
vemos que as novas tecnologias mudaram a forma de exibição, permitem maior
difusão das obras, propiciam uma aproximação com as sensações do espectador,
facilitam a produção, mas o encantamento que o cinema provoca parece estar
ainda próximo àquele experimentado pelas primeiras plateias e continuarão
suscitando novas teorias e conceitos.
Para Cezar Migliorin, “o cinema não se difere em natureza em relação às
experiências possíveis nas outras artes, mas em intensidade” (Migliorin, 2010,
p.105). Sobre seu papel como veículo de comunicação, Fernão Pessoa Ramos
considera que o “cinema é antes de tudo uma ‘forma narrativa’ [...] que envolve
imagens em movimento” e que “pensar o cinema como forma de comunicação
midiática é empobrecer seu campo referencial” (Ramos, 2010, p.165). De fato, o
que iria conferir ao cinema a força que o mantém vibrante, sedutor, instigante
mais de um século depois da histórica projeção dos irmãos Lumière em 189582
é a
sua vocação de narrador e sua capacidade de mobilizar corações e mentes.
As narrativas mesclam as experiências vividas e igualmente as imaginadas,
e nem por isso menos reais. Narradores e narrativas são eles mesmos objeto de
obras cinematográficas, como Forrest Gump, o contador de histórias (Robert
Zemeckis), O Leitor (Stephen Daldry), Narradores de Javé (Eliane Caffé).
Através da oralidade ou da escrita, lendo ou buscando fatos na memória, são
transmitidos saberes, conceitos, práticas, crenças, que nos levam a conhecer e a
refletir sobre a realidade que nos cerca (Fernandes, 2010).
82
Os primeiros filmes dos irmãos Lumière estão disponíveis em:
http://www.youtube.com/watch?v=4nj0vEO4Q6s – acesso em 15/12/11
93
Se em seus primórdios, em fins do século XIX, o cinema era um mero
coadjuvante em feiras e eventos, logo revelou seu vigor e potencial como meio de
comunicação e expressão artística e a narrativa foi gradativamente se sobrepondo
à mera captação e projeção de imagens. Hoje, mais do que nunca, os meios
audiovisuais são contadores de histórias. Contudo, é preciso refletir sobre que
histórias o cinema e o audiovisual vêm contando, e para quem, e se estão sendo
ouvidas, vistas e apreendidas.
Como vimos abordando neste trabalho, os espaços de encontro foram se
transformando. Não apenas se ampliam os virtuais, em detrimento do contato
presencial, como deixam de ser – tanto os virtuais como os presenciais - arena de
debates. O volume de informação é gigantesco, o fluxo intenso, mas o
conhecimento parece crescer na proporção inversa, já que é frequente não haver
conexões entre os fatos e todo este conhecimento corre o risco de se esvair como
água pelos dedos das mãos.
Aquele “frenesi de comunicação” e a “gigantesca dificuldade comunicativa”
referidos por Rodrigues (2006, p.56), nos parecem um estágio contemporâneo de
uma situação descrita por Walter Benjamin. A dificuldade em expressar ideias,
sentimentos, opiniões, experiências, já era observada pelo autor alemão, décadas
atrás:
São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede
num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se
estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a
faculdade de intercambiar experiências. Uma das causas desse fenômeno é óbvia:
as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até
que seu valor desapareça de todo. (Benjamin, 1994, pp.197-198)
Em outro texto, Benjamin atribui, em parte, esta “baixa das ações da
experiência” aos traumas provocados pela guerra (no caso, a 1ª Guerra Mundial,
de 1914 a 1918). Como destaca o autor, os combatentes voltavam do campo de
batalha silenciosos, “mais pobres em experiências comunicáveis” (Benjamin,
1994, p.115) e a sociedade via-se imersa em outro tipo de experiências,
“radicalmente desmoralizadas”, como a fome, a inflação, a decadência moral dos
governantes. Posteriormente, segundo ele, outra forma de miséria teria surgido,
94
com o “monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem”
(Benjamin, 1994, p.115).
Olhando do século XXI, podemos avaliar que as reflexões de Benjamin,
ainda que pertinentes, carregam o peso de um pessimismo e um desencanto
decorrentes daquele momento histórico. Contudo, não podemos deixar de
observar que, ao lado de experiências inovadoras e promissoras, temos hoje o
permanente risco do esvaziamento dessas experiências, não pelo silêncio, mas
pelo excesso de “ruído”. Algo como a existência de um dispositivo, assim
definido por Ismail Xavier:
...a situação atual privilegia um senso de controle pela via da saturação e não pela
da ocultação das imagens. O ‘complexo exibicionário’, pelo qual os poderes sociais
ofereceram em espetáculo um mundo construído à sua imagem, é um dispositivo
eficiente de doação-administração de pontos de vista. (Xavier, 2008, p.180).
Voltando aos espaços de encontro, onde se pode “estar juntos”, nossa
proposta é refletir sobre experiências compartilhadas, entre elas o “contar
histórias”, as narrativas, as vivências, as memórias. O cinema e, num sentido
amplo, tudo que hoje, considerando as novas tecnologias, é conhecido como
audiovisual, constituem-se em suportes, meios, para contar histórias. Uma sessão
de cinema, numa sala convencional, num cineclube ou qualquer outro espaço,
como os que se multiplicam nos dias atuais, é capaz de agregar pessoas, de ser um
ponto de encontro para troca: receber / processar / discutir / internalizar. Por outro
lado, há também a possibilidade de se expressar criando filmes/vídeos, de narrar
por meio de imagens. Experiências neste campo chegaram inclusive às
comunidades indígenas, que vêm utilizando o audiovisual para registrar suas
atividades, suas tradições, suas práticas cotidianas, para se comunicar com outros
brasileiros e até com o mundo.83
A adoção de práticas artísticas (bem como desportivas) tem sido muito
difundida e debatida em projetos voltados para jovens em situação de
vulnerabilidade, de classes economicamente menos favorecidas, sem perspectivas
de um futuro produtivo e que os faça se sentirem realizados. Numa sociedade
marcada por profundas diferenças como a nossa, muitos são os grupos de
83
Ver o projeto Vídeo nas Aldeias - http://www.videonasaldeias.org.br/2009/ - acesso 10/02/12
95
indivíduos que, em maior ou menor escala, ficam excluídos, impossibilitados de
ter acesso a uma formação que explore seu potencial. Ficam à margem das
oportunidades, que passam ao longe, fora do alcance de suas mãos. Alain Bergala,
relatando sua experiência pessoal, afirma que para esses ”deserdados, distantes da
cultura [...] a única chance de existir é resistir a partir de uma paixão pessoal”
(Bergala, 2008, p.13).
Esta paixão que permite resistir às adversidades e persistir na busca de
realização pessoal é feita de concretude e sonho, de razão e sensibilidade. Estética
e estesia, do grego aisthesia, carregam o significado do sentimento do belo, ou
“aquilo que me toca”. Nossa herança cultural, ligada ao pensamento grego,
dissociou a emoção da razão, negando à percepção ligada aos sentidos o papel de
fonte confiável de conhecimento. Entretanto, muito do que aprendemos se dá não
pela razão, mas pelas sensações, tanto as subjetivas (como alegria ou tristeza),
como as sensoriais (como tato ou olfato), como afirma Machado (2011).
Analisando o impacto do cinema sobre o espectador, Deleuze trabalha com
o conceito de “imagem-afecção”, em que se entrelaçam pensamento e emoção.
Reportando-se a Eisenstein, Deleuze assinala que “’o cinema intelectual’ tem por
correlato ‘o pensamento sensorial’ ou a ‘inteligência emocional’, e se não for
assim não vale nada”. E acrescenta que “o mais alto da consciência na obra de arte
tem por correlato o mais profundo do subconsciente, conforme um ‘duplo
processo’ ou dois momentos coexistentes”. (Deleuze, 2007, p.192).
Entendemos que estas questões são fundamentais nesta fase de profundas
mudanças paradigmáticas em que vivemos. Torna-se necessário buscar novos
caminhos e “pensar realmente qual é o tipo de conhecimento que nos pode levar a
atravessar da melhor maneira esse processo de transição”, como propõe
Boaventura de Sousa Santos (2001). O teórico português nos fala da necessidade
de pensar, mas vai além, invocando o sentimento que ultrapassa a razão, porque,
segundo ele, “pensar não é tudo, porque além de agir nós temos que sentir, nós
temos que criar formas de pensamento que sejam mais acolhedoras às emoções,
ao corpo, aos afetos, aos sentimentos” (Santos, 2001). Boaventura Santos
reconhece que não fomos treinados para assumir tal postura, mas as ações
coletivas de transformação social, afirma ele, exigem envolvimento emocional.
96
No cenário contemporâneo, marcado por tantas incertezas, instabilidades,
descrenças, prazeres instantâneos e fugazes, Boaventura Santos nos convida a
refletir sobre o papel da arte, porque ela “é a pré-aparição das possibilidades
utópicas, a arte é o laboratório e a festa dessas possibilidades” e é hábil em
exprimir “as possibilidades contidas no real” (Santos, 2001). As palavras do autor
português podem ser traduzidas pela declaração do ator e dramaturgo Domingos
Oliveira que, com sua peculiar visão poética e carregada de imagens (afinal, ele é
também cineasta), define o que entende por arte: "A Arte, ela salta, melhor que o
gato. Por cima da aparência. E aquele que recebe a mensagem do Artista salta
também, por cima do muro sensorial e das limitações morais com que está
acostumado a perceber o mundo." (Oliveira, 2011).
De fato, a arte, e aqui focamos naquela representada pelo
cinema/audiovisual, é um poderoso instrumento nesse processo que leva o
indivíduo a se descobrir e a descobrir a paixão que o permitirá resistir, paixão
esta que pode ser pelo próprio cinema ou por outro objeto. Experimentar a arte
pode, tal como aconteceu com Bergala, “salvar” as crianças, jovens, e mesmo os
que já chegaram à maturidade, mas persistem na busca por conhecimento.
O cineasta Andrei Tarkovski considera que o objetivo da arte é “explicar ao
próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual é o significado
da sua existência. Explicar às pessoas a que se deve sua aparição neste planeta, ou,
se não for possível explicar, ao menos propor a questão” (2010, p.38).
Um exemplo significativo da crença no cinema como fonte de
conhecimento para a vida é o oferecido por David Gilmour, um ex-crítico de
cinema, no livro O Clube do Filme. Gilmour relata a inusitada e corajosa
experiência que viveu com seu filho adolescente após propor ao rapaz que
deixasse a escola, onde era extremamente infeliz e parecia fadado ao fracasso, em
troca de assistirem juntos, em casa, a três filmes por semana. As sessões caseiras
eram seguidas de conversas não apenas sobre o aspecto técnico ou artístico dos
filmes, mas também sobre o que eles buscavam transmitir, que sensações
passavam, que reflexões provocavam.
97
Gilmour aposta na perspectiva descrita por Aumont, acerca dos realizadores
de cinema: “ambição artística, ambição somente artesanal, pouco importa: o
cineasta é um homem que não pode evitar a consciência de sua arte, a reflexão
sobre seu ofício e suas finalidades, e, em suma, o pensamento” (Aumont, 2004,
p.7). Assistir a filmes nos leva a compartilhar esses pensamentos e,
eventualmente, acionar outros. Ao se colocar no lugar do realizador, aquele que
era apenas espectador pode experimentar esta linguagem, tal como ao escrever, o
leitor se transporta à condição de escritor. Em ambos os casos, se estabelece uma
relação entre o autor e sua subjetividade, o autor e o outro, o autor e o mundo que
o cerca, que ultrapassa o contato rotineiro, as relações cristalizadas pelo mero
convívio, desprovidas de um olhar mais atento e sensível.
4.2. A ELC – Uma proposta para além da inclusão social
Numa época de grande apelo visual em que as imagens estão por toda parte,
um dos meios que tem dado literalmente visibilidade à diversidade cultural, aos
discursos polifônicos (seguindo o conceito de Bahktin) é o audiovisual. As
oficinas e cursos se multiplicam, viabilizados por iniciativas privadas e por
políticas públicas da área cultural. A Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu
surge neste cenário, com sua proposta de inclusão não só social, mas subjetiva.
A Escola nasceu em 2006, de uma parceria da ONG Reperiferia84
, tendo à
frente Marcus Vinicius Faustini85
, com a Secretaria de Educação de Nova Iguaçu
e atuava no Projeto Bairro Escola do Município. Esta parceria foi desfeita em
2010, com a saída do Prefeito Lindberg Farias, eleito Senador. A iniciativa da
parceria havia sido tomada pelo Prefeito, ao conhecer o trabalho desenvolvido
pela ONG, especialmente com atores de teatro, em Santa Cruz. No começo desta
84
O website do Projeto Reperiferia (http://www.reperiferia.com.br/apresentacao.php) não vem
sendo atualizado. Acreditamos que as informações foram deslocadas para as páginas da ELC e da
Escola Livre da Palavra/Apalpe - (http://apalpe.wordpress.com/2011/06/01/escola-livre-da-
palavra/) – acesso em 15/12/11 85
Foi Secretário de Cultura de Nova Iguaçu e Assessor Especial de Cultura e Território da Sec.
Estado de Assistência Social e Direitos Humanos. Atualmente é Superintendente de Cultura e
Sociedade da Sec. Estadual de Cultura. http://www.cultura.rj.gov.br/equipe - acesso 21/01/12
98
história está também o documentário Carnaval, bexiga, funk e sombrinha,
realizado por Faustini em 2006, e que ajudou a tornar a ONG mais conhecida86
.
Mesmo sem contar com novos parceiros, a ELC manteve as atividades com
os alunos da rede municipal, que continuam frequentando a Escola, somando-se a
eles, hoje, alunos da rede estadual. No comando da Escola estão Cristiane Braz
(Diretora) e Anderson Barnabé (Coordenador). Desde fevereiro de 2011 a ELC
conta com patrocínio da Petrobras, por meio dos recursos da Lei Estadual de
Incentivo à Cultura (vinculada ao ICMS)87
e desde maio do mesmo ano, mantém
parceria metodológica com a Universidade Federal Fluminense (UFF). A Escola
tem selo do Ministério da Cultura (MinC) para captar recursos pela Lei Rouanet.
Tal situação (patrocínio, apoio, parcerias) permanecia inalterada até a data de
conclusão desta pesquisa, em janeiro de 2012.
Os textos publicados no blog da ELC nos permitem acompanhar a rotina da
Escola, sua linha de ação, os cursos, as atividades dos alunos (crianças, jovens e
adultos), enfim, sua proposta de inclusão subjetiva. No final de 2011, a Escola
passou a contar também com um website.
O bairro de Miguel Couto, onde se situa a ELC (na Rua Santos Filho, 87),
está dentro da Unidade Regional de Governo URG VIII, que engloba os bairros de
Miguel Couto, Boa Esperança, Parque Ambaí, Grama e Geneciano, com cerca de
50 mil habitantes88
. Está a cerca de 7 km do centro de Nova Iguaçu, numa área
que ainda tem muito de rural. Mas se há verde, há também os feios sinais do
crescimento desordenado, do abandono, da falta de políticas públicas, do descuido
dos moradores. Ruas e calçadas são sujas e esburacadas, há grande número de
camelôs e mesmo as lojas atravancam o passeio com mercadorias em exposição.
Há uma única agência bancária. Possui duas escolas municipais: Ana Maria
Ramalho (próxima à ELC) e Janir Clementino Pereira, no centro, além de um
CIEP e escolas particulares.
86
Sobre as turmas de bate-bola, ou clovis, do Carnaval de subúrbio. Ver
http://escolalivredecinema.blogspot.com/search?q=bexiga+funk – postagem de 28/01/11 – acesso
15/12/11 87
Após algumas obras, a ELC foi reinaugurada em 26/02/11, já com o patrocínio da Petrobras -
http://escolalivredecinema.blogspot.com/search?q=petrobr%C3%A1s – acesso 15/12/11 88
Portal da Prefeitura de Nova Iguaçu - http://www.novaiguacu.rj.gov.br/bairros.php - acesso em
10/12/11
99
Quando de nossas visitas ao local, fizemos registros fotográficos, alguns dos
quais inserimos aqui. Vê-se que a ELC, com sua fachada colorida e enfeitada com
aros de bicicleta, destoa do resto do bairro.
Figura 1 – Fachada e lateral da ELC
Figura 2 – Fachada da ELC
100
Os espaços internos são limpos e organizados, há convidativas almofadas
coloridas tanto na biblioteca, como na entrada.
Figura 3 – Espaço com almofadas, na entrada.
A biblioteca, que leva o nome do cineasta Cacá Diegues, é envidraçada e
mantém um acervo com obras variadas, sobre cinema, artes e da literatura
brasileira.
101
Figura 4 – Cantinho de leitura na biblioteca
Figura 5 – Biblioteca – visão geral
102
Em maio de 2011 a ELC ganhou um espaço físico na UFF, em Niterói,
chamado Kumã. Desde então, o local abriga aulas de capacitação para os
mediadores da Escola. No website da Universidade, o espaço é definido como um
“Laboratório de pesquisa e experimentação teórica e prática da imagem”, onde
atuam pesquisadores e pós-graduandos, professores do Departamento de Cinema e
alunos de graduação, tendo à frente o professor Cezar Migliorin89
. No blog da
ELC, a inauguração do Espaço Kumã ganhou destaque:
As capacitações dos nossos mediadores são realizadas todas as segundas, ora na
ELC e ora em salas da UFF, mas ontem, dia 23 de maio às 16h, chegou o momento
tão esperado por todos nós: A inauguração do cantinho da ELC na UFF, chamado
KUMÃ.
Além dos coordenadores da Escola Livre de Cinema, Cristiane Braz e Anderson
Barnabé e dos professores da UFF e coordenadores da parceria ELC x UFF, Cezar
Migliorin e Eliany Salvatierra, estiveram presentes na solenidade de inauguração
do Núcleo Kumã, alunos e ex-alunos das duas instituições, professores e
coordenadores da UFF, além de parceiros, simpatizantes e torcedores das nossas
causas.
O Núcleo Kumã tem agora pela frente a seguinte tarefa: criar um diálogo e
interação voltada para um pensamento de mundo mais crítico e interativo através
do audiovisual e possibilitar relações humanas através desta linguagem, entre
academia e periferia, prática e teoria, clássico e popular.90
A Universidade disponibiliza ainda equipamentos para alunos da Escola e
há atividades interativas com os graduandos de cinema da UFF. Esta experiência
de ter como parceira uma universidade pública não é a primeira na ELC. Em
2009, a Escola manteve uma parceria com a Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Para 2012, há a possibilidade de ser criada, na grade curricular do
curso de Cinema da UFF, uma disciplina eletiva, ligada à ELC.
A Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu é uma experiência que parte de
uma perspectiva não propriamente de formar cineastas, mas se vale do audiovisual
para trabalhar o encontro com o território, com o outro e consigo mesmo.
Ressaltamos que o termo “audiovisual” tem sido entendido como um conjunto de
meios de exibição, que engloba desde o cinema às novas mídias digitais, passando
89
Ver http://www.uff.br/ppgcom/?page_id=1030 – acesso 06/02/12 90
Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2011/05/kuma-um-espaco-de-
experimentacoes.html - postagem de 23/05/11 e
http://escolalivredecinema.blogspot.com/search?q=kum%C3%A3 – Postagem de 03/11/11 –
acesso 15/12/11
103
também pela televisão. E vários cursos nesta área têm surgido nos últimos anos,
não apenas no Rio de Janeiro. Entre eles, a ELC destaca-se por ensinar não apenas
técnicas, a operação de equipamentos, mas também levar os alunos a pensar,
ativar sua capacidade de observação do mundo, partindo de seu próprio universo.
Buscam tanto o domínio da técnica, valendo-se dos recursos multimídia, como a
criatividade, o domínio das diferentes linguagens e o apuro estético e, assim, a
ELC vem formando técnicos, narradores, artistas.
Em textos postados no blog da Escola, em 2009, assim é definida sua
proposta:
A Escola Livre de Cinema é a primeira escola de audiovisual da Baixada
Fluminense e funciona desde julho de 2006. Sua metodologia articula três
conceitos – o corpo, a palavra e o território como elementos de expressão da
imagem e do som através de ações artísticas dentro e fora da sala de aula. Seu
conteúdo pedagógico aponta para o domínio das técnicas e para o encorajamento
estético, no sentido de estimular a criação e a produção audiovisual.91
Tendo como eixo principal, a prática de experiências com técnicas
cinematográficas em oficinas direcionadas para jovens, adultos e idosos, a Escola
pretende despertar nos participantes através do uso da câmera a necessidade da
percepção do outro. A apropriação da linguagem documental, o uso da oralidade
diante da câmera e a provocação que esta mesma câmera pode expressar
identidades e subjetividades a partir do olhar sobre o outro e do seu território
pautam as nossas ações cotidianas.92
A ELC funciona também como Ponto de Cultura do Governo do Estado,
oferecendo, aos sábados, cursos variados para o público em geral. Já foram
realizados cursos tradicionais para a área de cinema e audiovisual, como roteiro,
fotografia, iluminação. Em 2011, a ELC ofereceu novos cursos: Dublagem,
Audiovisual para Educadores, Blognovela e Videoclip para Youtube, este em
parceria com o coletivo Fora do Eixo93
, que cedeu as músicas.
A primeira turma da ELC formou-se em 2007. A partir daí, os cursos foram
sendo continuamente reformulados, sempre com a perspectiva de não se limitarem
ao ensino de técnicas, como operar câmeras, mas trabalhar paralelamente outras
instâncias do conhecimento. No ano de 2011, a Escola manteve no Curso Diário
91
http://www.blogger.com/profile/08356076540874983495 - Perfil no blog - acesso em 30/08/11 92
http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009_04_01_archive.html - Postagem de 14/04/09 -
acesso em 05/07/11 93
Portal da rede Fora do Eixo: http://foradoeixo.org.br/ - acesso em 15/12/11
104
para Crianças (CDC), voltado para estudantes, um total de 160 alunos, entre oito e
14 anos. A divulgação deste curso é feita em visitas às escolas da região. Cartazes,
banners, matérias veiculadas pela mídia em geral também ajudam a divulgar as
atividades da ELC. Eles literalmente “vão à caça” dos alunos e, desde a criação da
Escola, já contabilizam cerca de quatro mil, entre crianças, jovens e adultos.
Na ELC, as sessões de cinema geralmente acontecem às sextas-feiras e os
filmes exibidos têm ligação com o trabalho que está sendo desenvolvido. Por
exemplo, para trabalhos de ficção-científica94
, os alunos assistiram a filmes como
De volta para o futuro III (Robert Zemeckis, 1990)95
. O depoimento do aluno
Alexsander Norato, na rede social Facebook, sobre uma sessão de cinema na
ELC, é revelador:
Hoje na ELC assistimos um grande clássico, O Pequeno Príncipe. Filme muito bom
recomendo. Hoje após o filme refleti bastante, fora o que disse os outros gostei
muito! Hoje com Marina Rosa, Marina Almeida Gomes, e Anderson Barnabé foi
muito bom. Fazer cinema não é apenas criar um filme e sim muito mais, é se
expressar nele, cinema é tudo pra mim.96
A ELC também participa de eventos como a Teia na Baixada (que agrega
vários movimentos, ONGs, coletivos)97
e realiza o Iguacine - Festival de Cinema
de Nova Iguaçu, um espaço para exibição de filmes tanto de profissionais
consagrados como de iniciantes, inclusive os feitos pelos alunos da Escola. O
Iguacine é o primeiro, e por enquanto único, festival de cinema da Baixada
Fluminense e já teve três edições: 2008, 2009 e 201098
. Em 2011, o Iguacine não
pôde ser realizado, pois não foi incluído no programa apresentado à Petrobras, por
conta da urgência com que os trabalhos para efetivação da parceria/patrocínio
foram elaborados. O festival é uma das ações mais importantes da ELC, segundo
os próprios diretores, pois permite aliar as experiências realizadas na Escola com
o desenvolvimento do território, além de contribuir para formação de plateias para
94
Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2011/07/o-super-computador-e-o-gigante-de.html -
postagem 06/07/11 - acesso 15/12/11 95
Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2011/08/o-grande-final.html - postagem de
19/08/11 - acesso 15/12/11 96
http://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=145609085534028&id=100002548118232
- postado no perfil do aluno em 09/09/11 97
Ver http://www.overmundo.com.br/overblog/teia-baixada-2010 - acesso 15/12/11 98
Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2010/04/iguacine-para-1200-criancas.html -
postagem de 20/04/10 - acesso 15/12/11 e http://escolalivredecinemani.com.br/v2/?page_id=6 –
acesso 30/01/12
105
o cinema/audiovisual. E outras atividades, como contação de histórias, oficinas,
acontecem paralelamente à exibição dos filmes e debates.
Em janeiro de 2011, a ELC participou do evento Apalpe – a palavra da
periferia99
, organizado pela Escola Livre da Palavra, juntamente com várias
outras instituições. A programação do Apalpe incluiu, além de debates e esquetes
de teatro, a exibição de oito vídeos criados pelos alunos da ELC a partir do livro
Guia Afetivo da Periferia, de Marcus Vinicius Faustini. Os autores revelaram suas
diferentes leituras sobre o território e como se relacionam com ele, explorando
suas memórias, e tiveram seus trabalhos avaliados por uma banca composta por
profissionais da área de cinema. O evento aconteceu na Lapa, centro do Rio de
Janeiro.
Assim, os alunos da ELC e seus trabalhos vão cruzando as fronteiras de
Nova Iguaçu. Alguns ex-alunos da Escola ingressaram em cursos de cinema de
nível superior. Entre estes, está Leonardo Souza, cujo documentário Um minuto é
um milagre que não se repete100
foi selecionado para o Festival do Rio 2010. O
curta-metragem Mata-Sete, produzido pelas crianças do Programa Bairro Escola,
foi selecionado para o Programa Vídeo Fórum 2009, que integra o Festival do Rio
e exibe filmes realizados por crianças e jovens de até 18 anos, de vários países101
.
As atividades da ELC geram também um movimento para o fortalecimento
e criação de novos espaços para exibição, por parte de alunos e ex-alunos da
Escola. Eles vão aos poucos se juntando aos cineclubes pioneiros que já existem
na Baixada Fluminense, como Buraco do Getúlio (Nova Iguaçu) e Mate com
Angu (Duque de Caxias), Centro Cultural Donana (Berfold Roxo), entre outros.
Não são apenas novas telas para a exibição, mas também espaços para acolher e
difundir a diversidade cultural, inclusive de produções independentes. Além de
exibir filmes, promovem debates e outros eventos artísticos, com música, teatro,
performances e, junto com a ELC, ampliam a rede do audiovisual na periferia.
99
Ver http://apalpe.wordpress.com/ - acesso em 20/01/12 100
Portal Curta Doc: http://www.curtadoc.tv/curta/index.php?id=597 – Página do Cinema/Globo
Filmes: http://paginadocinema.com.br/festivais/index/73/6 - acesso em 12/12/11 101
Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009/09/video-forum.html - postagem de
19/09/09 - acesso 16/12/11
106
Atuando desde 2006 numa região praticamente desprovida de opções
culturais e de lazer, junto a uma população de baixa renda, mas não exatamente
carente ou em situação de risco, a proposta da ELC é de promover inclusão, não
apenas social, mas aquela “inclusão subjetiva” de que falamos no Capítulo
anterior. Pensando em Bergala, podemos dizer que a ELC existe para “salvar”
aqueles jovens, não da miséria material, mas do anonimato, de uma vida
anestesiada (em oposição à estesia), sem perspectiva criativa, de estreitos limites.
A inclusão subjetiva confere a possibilidade de resistir, na concepção de Bergala
(2008), e vai além: dá o direito de desejar, de sonhar. Não se trata apenas de
oferecer oportunidade de inserção de cidadãos na sociedade ou profissionais no
mercado de trabalho, mas de sujeitos criadores, nas diversas esferas da vida
pública e na vida pessoal. Enfim, de viabilizar que uma vida se expresse em todo
seu vigor, com todo seu potencial.
A proposta de inclusão subjetiva na ELC, tal como concebida pelo Projeto
Reperiferia, pretende dar oportunidade de elaborar narrativas, de se expressar pela
linguagem audiovisual, a quem já dispõe de algum equipamento (câmera,
computador, celular) ainda que da própria Escola. Anderson Barnabé, durante
uma de nossas entrevistas, explica que eles não buscam uma inclusão social, que
se destina a pessoas em estado de carência material. Sua proposta difere, por
exemplo, das ONGs Nós do Morro – voltada para formação de atores que buscam
se inserir no mercado - ou Afroreggae - que se dedica a jovens e adultos em
situação de risco/criminalidade.
Durante gravação de matéria para um telejornal, Cristiane Braz assim falou
sobre a missão “alfabetizadora” da ELC:
Nossa Escola além de ensinar audiovisual, também alfabetiza as crianças, não o
alfabetizar de B com A é BA, mas sim o alfabetizar de aprender a ler o mundo, a
sua rua, o seu bairro, o seu território... 102
Além dessa aproximação com o território, a integração dos familiares e o
apoio que estes oferecem são também marcas da ELC. Como veremos na análise
dos questionários, vários alunos vieram para a Escola incentivados por colegas e
102
Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009_06_01_archive.html - Postagem de
16/06/09 – acesso 15/08/11
107
não raro trazem outros parentes e amigos. Numa postagem de junho/2009, esta
aproximação fica evidenciada:
Vários visitantes acompanharam a rotina dos alunos nos últimos dias, entre eles
dois animaizinhos: um passarinho, “Cussusuna”, da aluna Micaele e um
cachorrinho, “Bion”, que carinhosamente recebeu o nome do professor. “Quero
que ele faça parte do filme”, diz Karina, dona do “Bion” e aluna da ELC. Também
tivemos a visita de estudantes da Escola de Pesquisas de Nova Iguaçu, que ficaram
dois dias acompanhando as aulas. Para finalizar, o aluno Pedro Paulo trouxe fora
do horário da sua aula, o seu padrasto. Pedro queria lhe mostrar sua pasta (cada
aluno da ELC tem uma pasta para guardar seus materiais produzidos em aula), os
dois ficaram dividindo opiniões durante um tempo. Seu padrasto deu-lhe umas
dicas de desenhos, da forma escrita e saiu da Escola bastante contente com o
resultado visto.103
Sendo uma proposta inovadora de ensino livre, e por estar num local onde
não são comuns atividades desse tipo, a ELC tem alcançado visibilidade na mídia,
procurando esquivar-se àquele tipo de abordagem, mencionado anteriormente:
uma escola para tirar jovens da pobreza ou da marginalidade. Suas atividades já
foram objeto de matérias tanto na mídia impressa, como na televisão, como estas:
- Jornal O Globo – edição de 04/10/2011
Usina de ideias em Nova Iguaçu – matéria de Martha Neiva Moreira,
publicada na Revista Razão Social no.127, encartada no jornal. A matéria focaliza
o aspecto educacional, destacando a procura de educadores pelos cursos
oferecidos na ELC, atraídos por sua metodologia, que privilegia a criatividade.
- TV Globo / RJTV - 30/08/11
Jovens que atuam como Parceiros do RJ, em Nova Iguaçu, estiveram na
ELC, onde entrevistaram o Coordenador Anderson Barnabé, mediadores e alguns
alunos, tanto do curso Diário para Crianças como do curso de Dublagem. A
reportagem, de pouco mais de 3 minutos, mostra as atividades de uma turma num
trabalho de produção de vídeos de animação e também uma aula de dublagem,
ministrada pela atriz e dubladora Fernanda Crispim.104
- TV Brasil – Revista do Cinema Brasileiro – 05/11/09
103
Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009_06_01_archive.html - postagem de
05/06/09 – acesso 15/08/11 104
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=nTtH8Fbf1M0 – acesso 12/12/11
108
O programa vai até Nova Iguaçu durante o II Iguacine (Festival de Cinema
de Nova Iguaçu), realizado em 2009. São entrevistados diretores e produtores,
como Luiz Carlos Barreto, que falam da importância de se levar o cinema a
plateias que não têm acesso fácil às produções. O programa destaca a variedade de
filmes exibidos e as atividades paralelas às sessões, como oficinas e debates que,
como comenta o produtor L.C.Barreto, revelam tudo que envolve a criação de um
produto audiovisual.105
- TV Globo – RJTV – Coluna Arte pra Vida – 24/06/09
O dançarino Carlinhos de Jesus, responsável pela Coluna Arte pra Vida
daquele telejornal, esteve na ELC para conhecer o trabalho desenvolvido pela
Escola e mostrar a capacidade de transformação da arte, principalmente em locais
de periferia. O programa foi gravado em meio a muita animação, com as crianças
participando ativamente.106
- TV Brasil – Repórter Brasil - Outro Olhar – 10/11/08
Este quadro é um espaço criado pela emissora para exibir vídeos enviados
pelo público. Em novembro de 2008, exibiram um vídeo produzido pela ELC
mostrando a atuação de grafiteiros que mudaram a aparência de muros naquela
cidade. Os próprios moradores oferecem os muros de suas casas para serem
grafitados, criando um cenário colorido. A Via Light, que corta o município de
Nova Iguaçu, exibe hoje vários desses muros, onde se pode ver desde a
reprodução de fachadas, simulando portas e janelas, a flores e rostos de anônimos
e líderes mundiais, como Gandhi. É a ELC, em parceria com os artistas locais, se
fazendo presente no cotidiano das pessoas que transitam pela cidade.107
105
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=flzkHzsxczE – acesso 12/02/12 106
Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009_06_01_archive.html - acesso 06/01/12 107
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=P5KElbmHw6w – acesso 12/12/11
109
4.2.1. Um relato pessoal
A primeira vez em que ouvi falar da Escola Livre de Cinema de Nova
Iguaçu (ELC) foi durante uma mesa de debates no Festival de Cinema de
Tiradentes (MG), em 2009. O então Secretário do Audiovisual (SAV/MinC),
Silvio Da-Rin, mencionou a existência da escola, ao falar sobre espaços para
formação de pessoal na área do audiovisual, no Brasil.
Surpresa (e feliz) com a existência de uma escola de cinema na Baixada
Fluminense, local historicamente associado à violência, pobreza e todo tipo de
carência, passei então a acompanhar as atividades da ELC por meio de seu blog.
Percebi então que tinha ali um interessante estudo de caso para o projeto de
Mestrado que eu vinha gestando e no qual pretendia abordar experiências
transformadoras, no âmbito pessoal e social, mediadas pelo cinema.
Minha primeira visita à Escola aconteceu em 06/09/10, acompanhada de um
ex-aluno, Vitor Clin, hoje estudante de Comunicação Social na PUC-Rio.
Conversei com Luana Pinheiro, produtora da Escola e também responsável pelo
cineclube Buraco do Getúlio. Na ocasião, a parceria da ELC com a Prefeitura de
Nova Iguaçu já estava sendo desfeita (depois da posse de Sheyla Gama, substituta
de Lindberg Farias, eleito Senador) e, portanto, a Escola deixava de atuar no
Programa Bairro Escola da Prefeitura daquele município108
.
Voltei a Miguel Couto em 18/11/10 quando a Escola atravessava um
momento de incertezas quanto à continuidade de seu trabalho naquela
comunidade, devido à falta de parcerias, de patrocínio. O Ponto de Cultura (do
Governo Estadual) estava consolidado, mas as atividades com os alunos da rede
pública estavam ameaçadas. Algum tempo depois, a Petrobras assumiu o papel de
patrocinadora da ELC, que pôde assim não apenas manter, mas mesmo ampliar
suas atividades. Veio também a parceria com a Universidade Federal Fluminense
(UFF) e foram criados um curso de extensão e um espaço físico na Universidade
dedicado à ELC (Espaço Kumã).
108
A Escola Livre de Música que também funcionava em Nova Iguaçu já havia fechado as portas,
por falta de patrocínio.
110
Numa terceira visita, em 30/08/11, apurei que a Escola já atendia não
apenas alunos da rede pública municipal, mas também da rede estadual e mesmo
de escolas particulares. Mantinha em pleno funcionamento os espaços abertos à
comunidade, como a biblioteca e os computadores (seis máquinas doadas pela
Prefeitura, quando ainda havia a parceria com o Programa Bairro Escola) com
acesso à internet. Os serviços do provedor são pagos pela ELC com os recursos
advindos de suas parcerias, já que todos os cursos são gratuitos. Durante esta
visita, por volta das 11 horas, um ruidoso grupo de cerca de 20 alunos da rede
municipal chegava à ELC, disputando espaço nas mesas dos computadores. A
funcionária Renata Xavier, equilibrando delicadeza e indispensável firmeza,
colocava ordem no grupo, garantindo que todos pudessem dispor de alguns
minutos (30, quando há pouco movimento, e 15 nas horas de rush) em frente
àquelas telinhas mágicas. As pesquisas para os deveres escolares são priorizadas,
mas o acesso às redes sociais, por exemplo, não é vedado. Apenas os jogos ficam
de fora. A prioridade do uso desses computadores é dos alunos da ELC, mas,
estando as máquinas ociosas, o acesso é liberado, gratuitamente.
Nesta visita, combinamos que eu enviaria algumas perguntas para serem
respondidas pelos alunos (crianças e adultos) de todos os cursos. Como nem todos
têm acesso constante à internet (o número de residências no bairro com acesso à
internet, especialmente banda larga, é pequeno), ficou combinado que os
questionários seriam disponibilizados em papel para serem respondidos
manualmente. Os questionários foram enviados duas semanas depois, e
retornaram em novembro de 2011. Dos 60 distribuídos, 45 foram respondidos.
Voltei ainda a Miguel Couto em 09/12/11 para a abertura do Seminário
Redes de Formação para o Audiovisual109
, ocasião em que foram entregues os
certificados de conclusão dos cursos para adultos. A sala estava cheia, alguns pais
de alunos estavam presentes, além de amigos e visitantes, que puderam assistir à
projeção dos vídeos feitos pelos alunos e a uma demonstração ao vivo do trabalho
de dublagem. A emoção dos formandos era visível e em seus trabalhos pôde-se
observar a diversidade das técnicas e abordagens utilizadas na ELC.
109
Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2011/12/rede.html - postagem de 06/12/11 -
acesso 10/12/11
111
Figura 6 - Alunos da turma de Dublagem com a diretora Cristiane Braz
4.2.2. A experiência estética e a práxis na ELC
Na ELC, os alunos experimentam atividades que, aparentemente, nada têm a
ver com o ensino de cinema, como recolher objetos em seu território, participar de
jogos, brincadeiras, criar desenhos, bonecos, criar e vestir parangolés110
, além da
leitura de obras clássicas e populares. São experiências que trabalham diferentes
instâncias da sensibilidade dos alunos, suas identidades, suas trajetórias
familiares, pessoais. Assim, eles trabalham roteiro, story-board, utilizam
programas de computador como Photoshop e After Effects, para contar, por
exemplo, as histórias criadas a partir de contos de Câmara Cascudo, ou para olhar
criticamente, com boas doses de humor, a “vizinha fofoqueira”, uma das
animações de maior sucesso da ELC, ou ainda as lendas de seu bairro, como a
110
Espécie de ampla capa para o corpo, criada pelo artista plástico Hélio Oiticica, que considerava
essas criações “anti-arte por excelência”. http://educacao.uol.com.br/biografias/helio-oiticica.jhtm
- acesso 20/01/12
112
“árvore grávida”, que foi inclusive assunto de matéria veiculada no Fantástico, da
TV Globo111
.
A Escola Livre de Cinema está trabalhando quatro Contos diferentes de Câmara
Cascudo, cada turma de 25 alunos ficou responsável na produção de um dos
Contos.
- Aprendi aqui na Escola Livre de Cinema a mexer nas câmeras digitais, mas
minha maior dificuldade é fazer os planos e minha maior facilidade é fotografar e
fazer personagens quando as cenas são em forma de teatro. Diz a aluna Michele
Souza da Silva, 10 anos112
Esta mistura de técnicas e expressões artísticas mostra-se interessante pois,
de fato, as artes se interpenetram, completam-se e, por diferentes caminhos, vão
tocar a sensibilidade de cada um. Música, dança, pintura, escultura, teatro,
literatura se relacionam entre si, dando e pedindo emprestados sons, cores,
imagens, movimentos, formas, palavras. Elevado à condição de arte, o cinema traz
em si um conjunto de todas essas manifestações artísticas e, com elas, vem
mantendo um vibrante diálogo, como descreve José Carlos Avellar, ao analisar
adaptações literárias para as telas. Avellar enumera pintores (como Wassily
Kandinsky) e músicos (como Arnold Schönberg) que se dedicaram a ambas as
artes, para melhor pintar ou compor (Avellar, 2007, pp.34-35). E, observando a
pintura e pensando o cinema, o autor vê nas maçãs pintadas por Paul Cézanne
indícios da montagem cinematográfica:
A pintura fez cinema antes do cinema. Basta lembrar os planos rápidos e coloridos
que compõem as maçãs de Cézanne. [...] A pintura solucionou questões de
montagem antes do cinema abrir a discussão sobre os diferentes modos de colar
uma imagem ao lado da outra. (Avellar, 2007, p.15)
Flávia Cesarino Costa traz para o século XXI essa reflexão sobre o
intercâmbio entre as artes, observando que a interação do cinema com outras
expressões artísticas (e mesmo sua influência sobre elas) envolve também as
tecnologias atuais:
111
Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009/10/uma-arvore-gravida.html - postagem de
09/09/09 - acesso 13/12/11 112
Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009_06_01_archive.html - postagem de 17/06/09
- acesso 15/08/11
113
Seria leviano ignorar o fato de que o cinema possui uma gramática dominante.
Muitos a consideram como a sua linguagem, outros como uma linguagem possível.
Mas as outras linguagens audiovisuais não deixam de ser uma alternativa e uma
referência dialética a esta gramática dominante. E, de qualquer um destes pontos de
vista, não se pode deixar de reconhecer que a gramática do cinema transbordou os
limites do especificamente fílmico, tornou-se referência para todas as técnicas
audiovisuais e até para áreas não visuais, como a música e a literatura. Em sentido
inverso, outras práticas audiovisuais têm invadido o cinema em resposta a este
diálogo: a televisão, as imagens sintéticas, a holografia, os videogames, etc. (Costa,
2005, p.98).
A proposta da ELC para trabalhar com e pelo cinema lança mão de todas
essas possibilidades, permitindo a seus alunos transitarem de uma experiência
estética, sensorial, criativa, para outra, lendo e relendo seu universo, seu território.
Quando ainda atuavam no Programa Bairro Escola, os professores da ELC
criaram a atividade de “coletores de imagens”, na qual os alunos fotografam seu
bairro, sua vizinhança, num processo que estimula o resgate da história do local
onde vivem, o contato com os vizinhos, a preservação da memória, o
reconhecimento e valorização do território e da identidade.
Estas expressões do cotidiano e os filmes daí originados (alguns dos quais
comentamos no subitem 4.2.4) permitem que os jovens falem por si mesmos,
deixando de ser apenas objeto (vistos de fora) para serem autores. E é importante
destacar que os trabalhos que vêm sendo realizados não são apenas resultado de
uma tarefa que se dá aos jovens para mantê-los ocupados, como muitas vezes se
supõe ser o principal objetivo de entidades do terceiro setor, ou vinculadas a
empresas privadas ou mesmo públicas, cujo alvo são os jovens e crianças de baixa
renda e/ou em situação de vulnerabilidade social. Produções oriundas de escolas
como a ELC já ultrapassam um primeiro momento que busca definir identidade,
território (importantes, mas não o fim em si) e têm resultado em filmes criativos,
tanto do ponto de vista da narrativa como estético.
A expressividade e o significado de produções audiovisuais geradas fora dos
ambientes formais são o tema de artigo de Ivana Bentes, no qual a autora analisa
as produções da TV Morrinho113
, na favela do Pereirão (bairro de Laranjeiras).
Segundo Ivana Bentes, há uma “transmutação ou fusão da vida em linguagem” e
ela destaca como “a brincadeira dos meninos da favela, aquilo que era o não-
113
Ver http://www.morrinho.com/Morrinho/Projeto_Morrinho___Uma_Pequena_Revolucao.html
- acesso em 04/12/10
114
valor, [...] se tornou valor, estética, trabalho-vivo, mobilizando a vida de cada um
como um todo” (Bentes, 2010, p.2).
Igualmente, o cotidiano dos meninos e meninas de Miguel Couto – ainda
que não moradores de favelas - torna-se valor, desvelado pelo seu olhar atento,
mas livre do peso do “método mesquinho”, olhar de “quem vira e revira o seu
objeto, quem questiona e o apalpa.” como faz o ensaísta, na concepção de Adorno
(2003, pp.34-35). Ainda que guardando as devidas proporções entre a densidade
do texto do filósofo alemão e a espontaneidade dos alunos da ELC, podemos dizer
que estes olham o mundo de uma perspectiva peculiar, com “liberdade de
espírito”, com “a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha
de se entusiasmar com o que os outros já fizeram” (Adorno, 2003, p.16).
O advento de novas tecnologias foi (e é) um grande facilitador para quem
pretende trabalhar com e pelo cinema, inclusive para a prática proposta por
Bergala, que, anos antes, no Centro Educacional de Yerres, já sentia necessidade
de preparar o caminho para esse aprendizado. Bergala elaborou um método para
abordar a narrativa cinematográfica por meio de um jogo de slides e adotou
também práticas, como cursos e workshops, direcionados a públicos ecléticos,
especialmente aqueles não habituados ao cinema (2008, pp.17-18).
Bergala viu neste momento de mutação, de revolução tecnológica, o
“momento ideal para formular uma hipótese nova” (Bergala, 2008, p.23). Fugindo
a uma postura passiva diante da produção de culturas “jovens”, altamente
rentáveis e, por isso, fortalecidas e mantidas pela mídia, inclusive o cinema, e não
se entregando à crença de que o conflito de gerações impediria a transmissão de
“uma cultura comum entre pais e filhos” (Bergala, 2008, p.23), o pesquisador
francês formulou sua “hipótese-cinema” certo de que a técnica deveria ser posta
como aliada à educação para a vida, tanto pelo resgate de obras clássicas, como
pela possibilidade de se criar novas leituras do mundo.
Godard também enfatiza a práxis na abordagem do cinema junto aos alunos,
propondo um ensino menos teórico, pelo qual o aluno vivencie concretamente o
processo de criação de um filme (Godard, 2006, p.242). Este processo requer
115
alguma disciplina e a autoridade dos professores ou mediadores, como se
depreende da postagem no blog da ELC:
Os alunos criaram em conjunto uma história, depois passaram para as aulas de
técnicas de decupagem e agora o Roteiro já finalizado, parte para as aulas técnicas
de Produção. Hoje foi o dia da escolha do figurino e os últimos detalhes do que
será preciso para o Set de Filmagem. Vale ressaltar que o foco não está sendo o
produto final, (e talvez nem tenha um produto final) mas sim o domínio dos alunos
com a parte técnica.114
É relevante observar que o surgimento do digital, e com ele uma grande
variedade de aparatos, trouxe também uma discussão a respeito do valor artístico,
estético das obras. Ivana Bentes (2003) aborda esta tensão na relação entre
cineastas e videomakers, observando que, enquanto estes desqualificavam o
“cinematográfico” como signo de uma modernidade já em extinção, aqueles
identificavam o vídeo como mero suporte que, na verdade, trazia como novidade
experiências que o cinema já havia realizado, com maior radicalidade. A autora
entende que, atualmente, “a percepção da hibridação entre os meios é dominante,
assim como sua dupla potencialização” (Bentes, 2003). Segundo ela, o vídeo
aparece como potencializador do cinema e vice-versa.
É interessante, aqui, retomar o texto de Flávia Cesarino Costa, onde ela,
reportando-se a Arlindo Machado, observa uma identificação entre os primeiros
filmes e os vídeos de hoje. Características típicas do vídeo são encontradas no
primeiro cinema, como o ambiente onde são exibidos e o pouco controle da
mensagem, pelo autor, além da rápida sucessão de imagens (Costa, 2005, p.99).
Voltamos aqui a enfatizar que o aparato tecnológico é apenas o suporte e, na
relação com os objetos, o mais importante não é o objeto em si, mas a interação
do indivíduo com ele. As facilidades trazidas pelas novas tecnologias, do mesmo
modo que podem ampliar as possibilidades de comunicação, favorecer a
pluralidade das narrativas e a expressão artística, podem também banalizar a arte.
A internet, por exemplo, é um gigantesco palco virtual aberto à difusão de
qualquer criação e adequado à substituição frenética de produtos que hoje
constatamos. No cinema e em várias outras mídias, surgem trabalhos
pretensamente artísticos, que confundem arte com o mero uso dos recursos
114
Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009_10_01_archive.html - Postagem de
30/10/2009 - acesso 10/08/11
116
tecnológicos. Martín-Barbero aponta uma distorção acerca da interpretação do
famoso texto de Walter Benjamin115
sobre a morte da aura, afirmando que ele,
“reduzido a umas tantas afirmações sobre a relação entre arte e tecnologia, tem
sido convertido falsamente em um canto ao progresso tecnológico no âmbito da
comunicação ou tem-se transformado sua concepção da morte da aura na da morte
da arte.” (Martín-Barbero, 2009, p.81).
Aquele que está por trás da câmera é que fará um filme que poderá ou não
tocar, abalar, por em movimento, o espectador. Segundo Godard, “há dois níveis
de leitura num filme: o visível e o invisível. O que você põe diante da câmera é o
visível. E se só houver isso, o que você faz é um telefilme” (Godard, 2006, p.246).
Ou um videoclipe, talvez, ou um filme caseiro para registrar momentos da família
ou dos amigos, filmes que têm seu valor, no contexto em que foram realizados ou
quando inseridos em outros (no caso de novas obras produzidas com imagens de
arquivo), mas é pouco provável que sejam expressões verdadeiramente artísticas,
considerando cinema e arte com todo seu potencial transformador como são
abordados aqui.
Arlindo Machado, comentando a posição defendida por alguns
documentaristas de que é essencial não intervir no que é captado pela câmera,
afirma:
Se o cineasta se recusa a falar num filme, ou seja, intervir, interpretar, reconstituir,
quem vai falar em seu lugar não é o “mundo”, mas a Arriflex, a Sony, a Kodak,
enfim, o aparato técnico. Sabemos muito bem que o dispositivo
fotocinevideográfico não é nem de longe inocente. (Machado, 2003, p.67)
Assim, os alunos da ELC, entre a câmera que aprendem a operar e o objeto
filmado, se inserem, colocando sua percepção do mundo. Eles vão tomando
posição, assumindo seu lugar ao realizarem seus trabalhos, tornando-os “aquilo
que todo audiovisual é na sua essência: um discurso sensível sobre o mundo”
(Machado, 2003, p.68). E deste modo, ainda que não se deem conta, vão
construindo caminhos para reverter os processos de exclusão, não apenas para
suas próprias vidas, mas para a comunidade, a família, o contexto onde se
inserem. Com o resgate da memória trabalham contra o esquecimento e falta de
115
A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras Escolhidas. Vol.I
117
visão do mundo e da história como uma construção social; dando visibilidade às
expressões artísticas de setores da sociedade menos favorecidos economicamente,
enfrentam o alheamento, ganham visibilidade. Trabalhando em grupo e num
ambiente que é aberto à comunidade (computadores e biblioteca), se distanciam
do sentimento de individualismo; com valores éticos, fortalecimento da
autoestima e autoconhecimento podem se ver mais como cidadãos e menos como
meros consumidores. E no respeito ao outro vencem preconceitos e derrubam
estigmas.
Marcus Vinicius Faustini (2009), o idealizador da ELC, falando de novas
práticas para o ensino, lembra que a escola é o primeiro lugar onde as crianças
experimentam o mundo. Deste modo, a escola tem de abrigar a diversidade que
existe fora dela. Faustini vê o professor mais como um mediador, que deve se
apresentar com sua identidade e lançar mão de estratégias individuais no cotidiano
da sala de aula.
Fazendo o melhor uso das novas tecnologias, a ELC contribui para o resgate
de práticas culturais, como cineclubismo, debates, saraus, mediadas pelo cinema e
literatura. Oferece mecanismos para que o jovem possa se inserir criticamente na
dinâmica do mundo contemporâneo, convivendo com a realidade de seu tempo,
mas também questionando o consumo irresponsável, a degradação ambiental, a
“lógica” do mercado, a “sociedade do espetáculo”.
4.2.3. Conhecendo os alunos da ELC
No final de setembro de 2011, foram enviados para a ELC 80 questionários
iguais para os alunos de todas as turmas (crianças/adolescentes e adultos). Em
novembro, retornaram 45 questionários respondidos, total ou parcialmente. Foram
também enviados, naquela mesma ocasião, 20 questionários para
pais/responsáveis de alunos, dos quais dez nos foram devolvidos respondidos, em
dezembro de 2011.
118
Observou-se que, em alguns casos, houve alguma ou bastante dificuldade
em compreender o que estava sendo solicitado. As respostas são por vezes
confusas e há a ocorrência de vários erros de ortografia e concordância
(especialmente entre crianças e adolescentes), confirmando os dados que
mencionamos nos capítulos anteriores sobre as deficiências na educação formal.
Ao transcrevermos as respostas, fizemos as correções para melhor compreensão
do leitor e para não expor os alunos, já que nosso interesse é o conteúdo e não a
análise daquelas deficiências.
No Quadro 2 temos um perfil resumido dos alunos que participaram da
pesquisa:
TURMA ALUNOS IDADE / PROFISSÃO ESCOLARIDADE
Blognovela 3 16 – Estudante
19 – Aux. Administrativo
25 - Hoteleiro
Ensino Médio
Audiovisual para educadores
1 21 - Professora Ensino Médio
Extensão Cinema – parceria com UFF
5 22 – Designer freelancer
23 – Prof. Ed. Física
23 – Não informado
41 – Técnico Telecomun.
53 - Empresário
Superior (1)
Ensino Médio (4)
Dublagem 4 19 – Não informado
19 – Não informado
29 – Operador sistema de alarme
38 – Agente comunitário de saúde
Ensino Médio
Curso Diário para Crianças (CDC)
32 Entre 10 e 16 anos – Todos são estudantes
Ensino Fundamental (entre 3º e 9º anos)
Quadro 2: Perfil dos alunos.
119
A faixa de idade é ampla: de 10 a 53 anos. É também diversificada, no
caso dos adultos, a profissão. Quanto ao local onde moram, a maioria dos alunos
reside no município de Nova Iguaçu ou adjacências (Belford Roxo, Queimados),
mas há alunos provenientes de alguns bairros do Rio de Janeiro (Anchieta, Méier).
A disponibilidade em se deslocar para Miguel Couto, aos sábados, para os que
moram mais distante, alguns deles após uma semana de trabalho, demonstra o
grande interesse que os cursos da ELC despertam e de como iniciativas
semelhantes teriam repercussão entre pessoas que moram em locais onde as
oportunidades são escassas.
Foi solicitado aos alunos que atribuíssem conceitos de 1 a 5 (sendo 1 o
menor e 5 o maior) a alguns itens relativos à Escola e sobre o que ela lhes
proporciona. Na média, considerando os alunos das turmas de adultos (13), os
conceitos atribuídos foram:
ITEM CONCEITO (MÉDIA)
Os professores/mediadores 4,76
Biblioteca/leitura 4,76
O convívio com os colegas 4,53
As atividades em geral 4,46
Aprender uma profissão 4,46
Ampliar sua cultura geral 4,38
Assistir a filmes* 3,83
Descobrir mais sobre si mesmo 3,83
Conhecer melhor seu bairro** 2,66
Quadro 3: Conceitos - alunos adultos
*A exibição de filmes não faz parte das atividades rotineiras dos alunos das
turmas de adultos.
**Esta pergunta se aplica às turmas de crianças/adolescentes que lidam com a
questão de território em suas atividades.
Havia ainda a opção de apontar um item que não estivesse na lista. Quatro
alunos responderam, mencionando (todos com conceito 5): incentivo à cultura,
oportunidade, organização, qualidade, gratuidade, comprometimento da equipe.
120
Considerando os alunos das turmas do Curso Diário para Crianças (32), os
conceitos médios atribuídos estão indicados no quadro a seguir. Alguns alunos
não responderam ou o fizeram parcialmente, outros apenas marcaram com “X”
alguns itens, sem atribuir conceito.
ITEM CONCEITO (MÉDIA)
Os professores/mediadores 4,88
Assistir a filmes 4,53
As atividades em geral 4,44
Aprender uma profissão 4,38
Ampliar sua cultura geral 4,11
Descobrir mais sobre si mesmo 4,00
O convívio com os colegas 3,71
Biblioteca/leitura 3,57
Conhecer melhor seu bairro 3,50
Quadro 4: Conceitos - alunos do curso para crianças.
Para o item aberto (outras coisas), houve nove respostas indicando: diversão
com os colegas, contato com os professores e o acesso a computadores/internet.
Observa-se que as crianças/adolescentes atribuíram maior conceito ao
contato com os professores/mediadores (4,88), seguido da exibição de filmes
(4,53). O conceito 3,71 para o item “convívio com colegas”, que entre os adultos
foi maior, possivelmente se justifica porque eles já desfrutam desse convívio na
escola formal (Ensino Fundamental). O conceito maior (4,53), entre os adultos,
para esse item, denota a importância que tem para eles o convívio, a proximidade,
o compartilhamento de experiências, ações que geralmente decrescem com o
amadurecimento/envelhecimento, quando se deixa de estudar ou trabalhar.
A motivação/interesse para procurar os cursos da ELC destacou
principalmente o desejo de realizar/participar de atividades ligadas às artes e a
preocupação em investir numa carreira/profissão. Algumas respostas revelam que
a pergunta não foi bem entendida, principalmente para os mais jovens.
Considerando as respostas mais objetivas, temos:
121
MOTIVAÇÃO/INTERESSE
OCORRÊNCIAS
Gosta de cinema/desenho/animação/teatro/cultura em geral
11
Investir numa profissão/atualizar currículo 9
Influência de colegas e/ou da família 5
Gratuidade / proximidade 3
Acesso a computador 1
Ocupar o tempo 1
Quadro 5 - Motivação
Interessante observar a associação que alguns alunos fazem entre as
atividades da ELC e uma profissão, não necessariamente ligada à realização de
filmes, à elaboração de roteiros ou animações. Em resposta a perguntas sobre a
motivação para entrar para a Escola ou quanto à importância do que aprendem de
um modo geral, foi citado:
“Eu acho (importante) porque primeiramente meu sonho é ser atriz de novela”
(JSV, 14 anos)
“Atuar, porque sempre foi meu sonho fazer teatro e ser atriz”. (JCS, 14 anos)
“Para eu aprender mais e me tornar um policial”. (NS, 12 anos)
Quanto às perguntas sobre o que a ELC proporciona ao aluno (criança,
adolescente ou adulto), além de um aprendizado específico, técnico, e como o que
aprende nas aulas pode refletir em sua vida pessoal, escolar, familiar e
profissional, as respostas vão além da preocupação em estar habilitado para o
mercado profissional e revelam interessantes e sensíveis visões e expectativas
diante da vida. Os alunos enfatizam o interesse em adquirir conhecimentos,
reforçar a autoconfiança e a autoestima, vencer a timidez, poder se expressar
melhor e sobre variados assuntos. Valorizam a troca de ideias, os debates, a
possibilidade de trabalhar em grupo. São recorrentes as referências ao convívio,
ao ambiente acolhedor, à oportunidade de conhecer novas expressões artísticas,
novas culturas. Alguns consideram importante também a valorização pessoal
dentro da família e, especialmente os mais velhos, destacam a importância de
iniciativas orientadas pela noção de responsabilidade social.
122
“Sim porque vou ter mais conversas; cooperar, me dar bem com os colegas e
ajudar um ao outro”. (I, 15 anos)
“Melhora o modo de se ver; ensina a transformar nossa realidade”. (LC., 19 anos)
“Me ajudou a me expressar melhor, com dicção e impostação de voz. Além da
prática e da técnica, há muitos debates com troca de idéias durante as aulas” (LS,
19 anos)
“Desenvolve a disciplina e um novo olhar para nós mesmos, nos mostrando que em
tudo temos capacidades, dependendo do modo como nos ensinam. Tudo de bom
reflete em atitudes.” (J. 38 anos)
“Posso mostrar pra minha família o que eu aprendi. Todo mundo inventa coisas
diferentes e todo mundo faz junto”. (K, 12 anos)
“Uma visão mais ampla do que é cinema. Aprender nunca é demais,
principalmente quando se estuda arte. Você muda seu jeito de pensar e observar.
(D,22, UFF)
Sobre o envolvimento e interesse da família, as respostas revelam que no
geral elas incentivam, que há satisfação com os resultados, curiosidade acerca do
que é realizado na Escola, o que também pode ser observado em postagens no
blog. A gratuidade é também um ponto importante. Vários alunos já trouxeram
familiares e/ou amigos para fazer cursos na ELC, criando assim um efeito
multiplicador. O mesmo se dá quando se referem aos amigos:
“Minha mãe adora. Ela diz que é uma boa oportunidade e minhas amigas ficam
loucas pra entrar.” (J, 14 anos)
“Comento com os amigos da universidade e todos acham muito interessantes as
práticas vivenciadas” (A, 23 anos)
“Ficam surpresos e curiosos, mas já fazem cursos também”. (L, 12 anos)
“Minha irmã despertou interesse em vir conhecer a escola e já tive amigos que
também vieram através de mim”. (A, 29 anos)
“Ah, minha mãe, irmã, tias, tios se interessam muito com a ELC e com meu
desempenho aqui. E ficam curiosos também”. (V, 13 anos)
Contudo, ainda que incentivem, no caso de adolescentes e jovens adultos, há
por parte família e/ou de amigos outras preocupações, como o futuro profissional
e o mercado de trabalho para a área:
“(Ficam) curiosos, eles querem fazer também, mas a mãe deles não deixa”. (A, 15
anos)
123
“As pessoas acham legal, mas a maioria acha a prática cinematográfica difícil de
ser realizada no Brasil” (D, 22 anos)
“Alguns incentivam, mas todos dizem que não é uma boa área para trabalhar e que
o mercado é sempre muito fechado”. (K, 23 anos)
Certamente esta é uma preocupação legítima e que não se restringe às
famílias pobres. No livro O Clube do Filme, David Gilmour tem de lidar com as
inquietações da ex-esposa quanto ao futuro do garoto que deixou a escola em
troca de assistir e conversar sobre filmes com o pai. Pelas respostas dos alunos da
ELC, fica clara também a percepção de que a área cultural não costuma ser um
caminho fácil e valorizado, em termos financeiros, para os artistas em geral (não
consideramos aí as “celebridades” instantâneas fabricadas pela mídia).
Cabe aqui lembrar que a ELC não tem por meta estritamente formar
cineastas ou pessoal técnico para a área do cinema/audiovisual. As experiências
vividas lá contribuem para um amadurecimento que pode se refletir no
posicionamento do jovem diante das necessidades ligadas à sua vida profissional,
como a capacidade de gerir seus projetos e de trabalhar em equipe.
Os 32 alunos do Curso Diário para Crianças foram indagados sobre seu
desempenho na escola formal (Ensino Fundamental) em relação às atividades na
ELC. A maioria respondeu que o desempenho melhorou:
DESEMPENHO DO ALUNO
RESPOSTAS
Melhorou 22
Mais ou menos 4
Não 5
Não respondeu 1
Quadro 6: Escola formal x ELC
124
Os alunos foram ainda solicitados a apontar o que mais gostariam de ter em
seu bairro/cidade como opção cultural e de lazer. As respostas, considerando
todas as turmas, indicaram as seguintes preferências/necessidades:
Teatro 13
Museu 10
Livraria/biblioteca 10
Cinema 9
Quadro 7: Opções culturais
Alguns alunos indicaram outras atividades/cursos como: dança, capoeira,
hip-hop, inglês e canto, deixando claro que há uma demanda por opções
diversificadas de lazer e cultura.
A relação dos alunos com o cinema é um ponto interessante. Foram
formuladas perguntas sobre o interesse em assistir a mais filmes e/ou a filmes
diferentes do que estavam acostumados, e se assistir a filmes os faz ver o mundo
de maneira diferente. A maioria considera os filmes importantes para a construção
do olhar que desenvolvem sobre o mundo, permitindo-lhes conhecer outras
culturas, outros conceitos, ampliar seus conhecimentos gerais, enriquecendo seu
repertório, seja no vocabulário, seja de temas a serem conversados. Passam
também a observar o aspecto técnico e a valorizar gêneros pelos quais não
costumavam se interessar, como documentários.
“Como preservar o meio ambiente, não julgar as pessoas pela aparência e sim
pelo que elas são”. (V, 13 anos)
“São bons para nos ficarmos falando coisas diferentes no nosso vocabulário. Minha
mãe fala que eu fiquei mais com pensamento da cultura, gosto muito dos séculos
antigos”. (LM, 12 anos)
“Me ensinam a entender a forma como as outras pessoas enxergam o mundo”. (K,
23 anos)
“O cinema te mostra pessoas e coisas que você não teve a oportunidade de
conhecer e coisas que você não vivenciou” – “Passei a assistir filmes de inúmeros
países, aprendendo muito mais sobre essas diferentes culturas” (D, 22 anos)
125
“Ajuda a pensar diferente” – “Me interessei pelos projetos culturais mais próximos,
mais nacionais” (L, 19 anos)
“Agora eu reparo nas técnicas mínimas de todos os filmes que eu vejo” (GL, 12
anos)
De um modo geral, depreende-se pelas respostas e comentários dos alunos
que o ambiente é acolhedor e estimula que cada um manifeste suas opiniões. O
empenho dos professores/mediadores e o trato gentil e paciente com os alunos
aparecem como determinantes para que estes procurem estender sua permanência
na ECL. Dez alunos (entre todos os entrevistados) estão na Escola há mais de um
ano, seja fazendo outros cursos ou novas edições do Curso Diário para Crianças.
Alguns alunos já estão na Escola desde o início das atividades, em 2006.
As informações fornecidas pelos pais ou responsáveis também trazem dados
interessantes. Dos dez questionários respondidos por eles, cinco são de pais cujos
filhos também participaram da pesquisa, respondendo ao questionário entregue
aos alunos. Na avaliação dos pais/responsáveis, tanto o desempenho escolar
quanto o comportamento das crianças, em geral, melhorou após o ingresso na
ELC. Há referências a um maior interesse pelos acontecimentos, mais facilidade
de comunicação, mais segurança e autoconfiança. Indicam também
desenvolvimento das habilidades em informática, na criatividade e na capacidade
de atenção.
“Ela conversa com as pessoas de todas as idades sem demonstrar diferenças.”
(sobre aluna LMS, 12 anos)
“A criança age com mais espontaneidade e interage melhor com o grupo com o
qual atua. (sobre aluna LAC, 11 anos)
“Melhorou bastante (em matemática). Gostava muito de soltar pipa e agora só
pensa em ir para a ELC”. (sobre aluno NES, 12 anos)
Algumas respostas nos surpreendem por abordar instâncias mais sutis do
comportamento e do relacionamento familiar, sugerindo o quanto o contato com a
arte, a oportunidade de realizar e compartilhar descobertas sobre o mundo e sobre
si mesmo, agem não apenas no intelecto, mas também no emocional, na
afetividade.
126
“Ela está muito mais carinhosa” (sobre aluna GCS, 12 anos)
“Ela ganhou um A+ em sua alegria, tendo um novo assunto para comentar.” (sobre
aluna LAC, 11 anos)
Perguntados sobre interesse em fazer cursos na ECL e/ou se usam os
computadores disponibilizados pela Escola, dois dos pais/responsáveis
entrevistados já o fazem. Os demais se mostram interessados, mas
impossibilitados, devido à falta de tempo.
“Eu nem sei ligar o computador, mas um dia que não vai demorar muito, eu
estarei junto a esta garotada maravilhosa”. (AS, mãe da aluna GCS, 12 anos)
Foi perguntado também aos pais/responsáveis sobre o que gostariam de ter
no bairro como opção de cursos profissionalizantes, de lazer e cultura, para si e
para os filhos. Uma praça ou parque, onde as crianças possam brincar, é a
reivindicação mais apontada, Alguns sugerem trabalhos com reciclagem e
atividades esportivas, como aulas de capoeira e jiu-jitsu. Foram também
mencionados um museu e um zoológico.
Percebe-se a carência de espaços e serviços básicos, facilmente encontrados
em bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro, por exemplo. Os moradores de Miguel
Couto não pedem muito. Desejam ter acesso a uma vida mais saudável física e
mentalmente, com possibilidades de desenvolver suas capacidades, de prosseguir
nos estudos, frequentemente interrompidos pela necessidade de trabalhar, de
cuidar dos filhos. Percebe-se também a preocupação com o exercício da
cidadania, quanto à responsabilidade no cuidado com o espaço que dividem.
“Uma praça com bastante novidade de brinquedos para as crianças e uma
biblioteca”.
“Uma praça com vários brinquedos, mas que os próprios moradores também
ajudem a cuidar”.
“Cinema, teatro e balé. Artesanato, aulas de violão, canto e exercícios físicos para
as crianças”.
“A comunidade merece um espaço assim (como a ELC), principalmente nós
mulheres que, devido aos filhos, encontramos alguns obstáculos para dar sequência
a nossa vida profissional”.
127
Alguns fizeram comentários espontaneamente, ressaltando a importância de
seus filhos terem oportunidades como as oferecidas pela ELC, gratuitamente.
Sugerem novas atividades (como uma sala de pintura) e observam também que a
Escola precisa se fazer conhecer em algumas áreas mais afastadas.
“Espero que vocês a expandam mais... na periferia de Miguel Couto eles não
conhecem vocês”.
“Gostaria que crianças de 5 a 8 anos também pudessem participar. Elas são
inteligentes e precisam de incentivo”.
Percebe-se que a situação econômica da família é um entrave para que tanto
pais quanto filhos possam elevar a escolaridade e o nível cultural. Ou seja, há
interesse, o que falta é maior oferta de cursos gratuitos. Nesses nichos, onde o
poder público é, se não ausente, mas insuficiente, a presença de ONGs com
atividades diversificadas é fundamental.
“Não posso pagar um curso para minha filha, mas quando soube da ELC, a
matriculei e ela está encantada com as aulas, com os professores, que a tratam com
respeito e educação. Vocês fazem a diferença na vida de pessoas como a minha
filha”.
Analisando as respostas e comentários dos alunos e seus pais ou
responsáveis, fica evidenciada a valorização de diversos aspectos que cada um
considera importante, seja para seu futuro profissional, ou para sua vida como um
todo. Pode-se observar o quanto o papel da família e seu envolvimento nas tarefas
dos filhos são determinantes para que eles se sintam estimulados a investir seu
tempo e energia nos estudos.
Estas respostas e comentários fazem conexão com as questões que
levantamos em nossa pesquisa. Elas nos falam do convívio, das experiências
compartilhadas, das trocas, ou seja, do “estar juntos” de Arendt, dos novos
espaços de encontro de Martín-Barbero, da riqueza da heterogeneidade de Morin.
Deixam igualmente transparecer a importância da criação e do fortalecimento de
vínculos, como abordados por Sodré, Paiva e Ouriques, bem como do pensar e do
sentir, como proposto por Boaventura Santos. A gentileza e o respeito ao outro
são igualmente valorizados.
128
Conclui-se que as expectativas dos alunos quanto às atividades, ao que
poderiam aprender, às suas próprias potencialidades, são não apenas atendidas,
mas frequentemente superadas. Uma das respostas apresentada no espaço que
inserimos ao final do questionário, para que os alunos acrescentassem algum outro
comentário sobre a ELC, traduz o que a Escola significa na vida daquelas crianças
e jovens. Pode-se ler nesta declaração um misto de desejo de estar inserido na
sociedade pelo acesso aos bens de consumo, como proposto por Canclini, (tênis,
música, tecnologia), mas também de segurança, conhecimento e sonho (paz,
História e cultura).
“Uma fonte de cultura, paz, lugar próprio para esquecer (ilegível) e pensar só em
filmadora, All-Star, rock, séculos passado e cultura. I love ELC”. (LM, 12 anos)
São aspectos que denotam o processo de inclusão subjetiva, que ultrapassa a
oferta de oportunidade para o aprendizado de técnicas, a possibilidade de aprender
uma profissão, o acesso aos computadores. Há nessas respostas, e em seus
trabalhos, a marca explícita ou sugerida de fortalecimento de autoconfiança, busca
de autoconhecimento, a descoberta de possibilidades não imaginadas. Respostas
que deixam transparecer o quanto investir em atividades culturais diversificadas,
utilizando as tecnologias disponíveis e valorizando as práticas juvenis - como
acesso a redes sociais, youtube, blogs – pode ter resultados significativos em
termos de construção de caminhos para reverter processos de exclusão. À
pluralidade de suportes, de meios, de fontes, somam-se a diversidade de
linguagens, de expressões artísticas, visuais, sonoras, de texto e imagens, e
especialmente de olhares.
4.2.4. A ELC apresenta...
Analisamos aqui algumas produções dos alunos integrantes do Programa
Bairro Escola, realizadas em 2006, observando como traduzem nesses trabalhos
sua visão de mundo, como estabelecem um diálogo com seu ambiente, com seu
cotidiano. Utilizamos vídeos que retratam histórias fictícias e também
documentários. Os vídeos de animação utilizam técnicas variadas, como massinha
129
e stop-motion. Os documentários registram aspectos do bairro, do território dos
alunos, e foram realizados dentro daquela atividade de coletores de imagens.
Vídeos de animação
1 – Bonde da rã116
É apresentado como uma narrativa do cotidiano das crianças de Miguel
Couto. Num dia de muita chuva, as rãs proliferam e os garotos vão à caça. No
ritmo do funk, assistimos aos meninos em sua aventura em busca das rãs, para
preparar uma gostosa farofa. Incorporam à sua linguagem o termo “bonde”, em
associação aos “bondes” do tráfico, sugerindo uma relação de naturalidade com a
realidade de violência presente nas cidades e veiculada diariamente nas TVs. O
funk, também presente no seu cotidiano, é igualmente apropriado pelos autores,
compondo a trilha sonora.
2 – Casa do Sabão117
O que está à venda na Casa do Sabão? Salta neste vídeo a lógica própria
das crianças (cujo exemplar talvez mais emblemático – uma produção antiga e
precária que resiste às novidades tecnológicas do século XXI – seja o personagem
Chaves118
). As crianças misturam imagens de si próprias às animações para
mostrar que a Casa do Sabão na verdade é a casa de muitos outros objetos que ali
são vendidos. Objetos que fazem parte de seu dia a dia, como o material escolar.
3 – A Praça119
Nesta animação revela-se a preocupação com o ambiente, o cuidado com
seu lugar. A praça, o ponto central de seu bairro, onde chegam e de onde partem
os ônibus que os ligam a outras localidades, está quebrada e suja. Imaginam um
vigilante forte e enérgico (detalhe para o sotaque nordestino) que pudesse impedir
a sujeira nas ruas e o vandalismo. Mas, em seguida, os meninos questionam a
116
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=9ggCs3d1LX4 – acesso em 02/02/12 117
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=6ByokBJH1KU – acesso 02/02/12 118
Seriado mexicano, criado na década de 1970, cultuado por crianças, jovens e adultos. No Brasil,
é exibido desde 1984 pela emissora de TV aberta SBT e, desde novembro 2010, pelo canal a cabo
Cartoon Network. http://pt.wikipedia.org/wiki/El_Chavo_del_Ocho - acesso em 04/12/10. 119
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=wRwcGeLqNkY – acesso 19/01/12
130
necessidade desse vigilante (que encarna a força, o poder). Não haveria outra
solução? Deixam essa interrogação ao final, levantando uma reflexão sobre as
reais causas do comportamento anti-cidadão daqueles que frequentam ou passam
pela praça de Miguel Couto.
4 – A velha fofoqueira120
A fofoqueira é um dos hits da ELC. A primeira versão, em massinha,
ganhou posteriormente outra, mais elaborada tecnicamente. Contudo, esta ingênua
primeira versão das crianças já apresenta um humor refinado, com falas precisas
(“Não fala comigo assim não, eu te vi nascer”). Na versão posterior, de 2008, os
alunos adaptaram a história para o herói Iguaçu, um personagem que mistura
elementos de seu cotidiano (a velha geladeira abandonada no quintal, a
proximidade entre vizinhos que se observam) com as histórias de heróis e suas
engenhocas mirabolantes, que veem na TV.
Interessante observar que os meninos infligem à fofoqueira uma série de
castigos, mas não há um tom de maldade ou de vingança. Na verdade, eles criam
até uma solução para o ócio da vizinha faladeira (a Escola da Vovó), que, ocupada
com sua própria vida, deixa de vigiar a dos vizinhos. Podemos ver aí um paralelo
com eles próprios que ocupam seu tempo (o segundo-tempo após a escola) com
atividades que mesclam lazer e aprendizado.
Documentários
Nesta atividade, a câmera é usada para promover um olhar de descoberta
sobre o bairro Miguel Couto, seus moradores, comerciantes, as lojas e os
personagens que povoam o imaginário do local.
1 – Ida ao Banco
Uma incursão ao mundo dos adultos. O que acontece naquela “caixa”
envidraçada, com porta giratória, guardada por seguranças, onde entram e de onde
saem pessoas todos os dias? Impedidos de entrar, o garoto questiona a proibição:
120
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=t7LSu91OlxA (1ª. versão) e
http://www.youtube.com/watch?v=D44ooq-aRDU (2ª. versão) - acesso 06/02/12
131
“Ele falou que não, mas não disse por que”. Se seu comportamento denota
respeito – eles se queixam, mas não tomam nenhuma atitude agressiva -,
demonstra também um senso crítico, o questionamento diante de ordens
estabelecidas. Eles querem respostas.
2 – Quem conhece Marquinhos Paçoca?
Uns conhecem, outros não, uns dizem que é violento, outros que é como
uma criança. Seria apenas uma história inventada? Ou um personagem do bairro,
possivelmente um mendigo, um doente mental? Que papel tem esse personagem
no imaginário das crianças? Eles saem em busca de respostas e vão entrevistando
pessoas pelo bairro. A história de Marquinhos Paçoca remete às lendas, àquelas
narrativas que, ao mesmo tempo em que seduzem, provocam medo. Mistérios que
aguçam a curiosidade e que eles querem desvendar.
3 – Por que tanta pastelaria de chinês?
Mais uma vez a curiosidade, o desejo de entender o porquê dessa associação
entre chineses e pastel. Por que aquela família veio para o Brasil? Como é a terra
deles? Por que vender pastéis? Sem serem invasivos, mas com segurança e firmes
na intenção de obter respostas, os pequenos documentaristas indagam, observam.
E as respostas revelam uma gama de outros olhares, de outros desejos, de histórias
de vida. Para um dos imigrantes, viver aqui no Brasil ou na China é indiferente,
revela uma certa apatia, um conformismo. Já outro jovem chinês revela a
melancolia do exilado que não queria deixar seu país. Em incursões assim, os
meninos da ELC vão aguçando seu olhar sobre o mundo que os cerca, aprendendo
a enxergar o outro, a captar a diversidade de pontos de vista e, talvez mesmo sem
se dar conta, vão retratando um aspecto destes tempos de globalização.
Em 2007, os alunos produziram um vídeo – uma animação de massinha -
chamado Iguaçu e sua turma. Iguaçu é, ao mesmo tempo, um menino e um super-
heroi. Tal como o Super Homem tem sua cabine telefônica e o Batman sua
caverna, Iguaçu usa a velha geladeira abandonada no quintal para sua
transformação e, ao entrar nela, um espaço fantástico se abre. Os temas são do
cotidiano das crianças, como a preocupação das mães com sua alimentação.
132
Interessante observar que o heroi age em grupo, com “sua turma”. Os alunos
reproduzem nas ações do super-heroi sua rotina na escola, ou seja, o sentimento
de coletividade, de trocar e compartilhar experiências, de buscar soluções
conjuntas para os problemas. Nesse trabalho, também o funk está presente, numa
animada trilha sonora.121
Em setembro de 2010, uma das atividades dos alunos (crianças e
adolescentes) foi construir um autorretrato. O interessante na proposta colocada
pela ELC foi o fato de que não poderiam utilizar sua própria imagem. Cada aluno
teve de fazer um vídeo de um minuto que projetasse seu autorretrato, sem que ele
próprio aparecesse em cena alguma. Assim, os jovens tiveram de buscar em seu
território imagens que revelassem como enxergam seu lugar no mundo,
articulando esta pesquisa com artes e técnicas diversas, como cordel, literatura,
fotografia, artes-plásticas. Cerca de um mês depois, os vídeos foram exibidos para
os familiares e amigos numa sessão especialmente concorrida.122
Segundo
Anderson Barnabé, os pais se surpreenderam com o resultado, descobrindo
naqueles trabalhos não apenas as habilidades de seus filhos, mas também
particularidades de sua personalidade.
Outros vídeos interessantes mostram a diversidade de técnicas utilizadas, as
diferentes linguagens, sempre investindo na criatividade dos alunos e associando
aprendizagem técnica com expressões artísticas. Por exemplo, podem-se ver os
parangolés numa aula de capacitação para chroma-key, em 2011123
.
São trabalhos que materializam aquelas respostas ao questionário oferecido.
Denotam a disciplina, o interesse em aprender coisas novas, a mente e a emoção
sempre abertos a novas experiências, o espírito do “comum” no respeito, na
divisão de tarefas e responsabilidades, e a autoconfiança que vai se fortalecendo
continuamente.
121
Ver making-of em http://www.youtube.com/watch?v=TtXO0EtIWHI e vídeo pronto em
http://www.youtube.com/watch?v=BGX-9tOHXNc – acesso em 04/02/12 122
Ver blog da ELC - http://escolalivredecinema.blogspot.com/search?q=auto-retrato e
http://escolalivredecinema.blogspot.com/search?q=autorretrato - acesso 12/11/10 123
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=pCOJZLAdxDM – acesso 06/02/12
133
4.3. Políticas Públicas Culturais no Brasil
Fechando este Capítulo, fazemos um breve levantamento das políticas
públicas para área de cultura, de modo a contextualizar em nossa história cultural
o surgimento dos espaços voltados ao ensino e difusão de atividades artísticas, em
especial os cursos de cinema e vídeo, e evidenciar o avanço que tais espaços
representam na construção da cidadania e nos processos de inclusão subjetiva.
Como citado no Capítulo 2, a partir da segunda metade do século XX as
políticas públicas ganham força no embate entre sociedade e Estado, sendo
“transformadas em locus de exercício do poder social e político” (Sposati, 2006,
p.1). No caso das políticas públicas culturais, no Brasil, este protagonismo será
um tanto tardio, fazendo-se notar nos últimos oito anos, especialmente durante a
gestão de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura.
No Brasil não temos tradição de realização de estudos de políticas públicas, em
especial em áreas como a da cultura. Ao revisitarmos, mesmo que
superficialmente, as ações do Estado no âmbito da cultura, nessas últimas quatro
décadas, verificamos uma série de iniciativas na direção da elaboração de linhas de
atuação política que inúmeras vezes foram abandonadas e retomadas com pequenas
alterações por governos que se seguiram” (Calabre, 2010, p.20)
As palavras de Lia Calabre nos dão a dimensão do problema que enfrentam
aqueles que pretendem trabalhar na área cultural. Apesar dos parcos recursos
tradicionalmente destinados a esta área em nosso país, a importância do acesso
aos bens culturais vem se impondo cada vez mais como imprescindível para a
formação de uma sociedade produtiva, harmoniosa, sadia. Para esta mudança de
paradigma, onde a cultura e a educação deixem de ser temas de segunda categoria
e passem a ocupar o topo das pautas de discussão, há um extenso caminho a
percorrer. E que certamente não se encerrará, estará sempre evoluindo.
Trata-se de um cenário desafiador, que exige a mobilização de todos os
segmentos que compõem a sociedade: Estado, instituições civis, ONGs, grupos
comunitários, educadores, pais. Cleise Campos (2010) destaca o quanto é
oportuna a participação da sociedade nos processos ligados às políticas culturais
comprometidas com a cidadania e inclusão social. Políticas que não podem ser
134
impostas pelo poder público, ignorando a diversidade, as especificidades de cada
região, as competências individuais e coletivas.
Não só a inadequação, mas também a descontinuidade das políticas culturais
se fizeram sentir ao longo da História do Brasil. As iniciativas adotadas com a
vinda da Corte Portuguesa no começo do século XIX não configuravam
propriamente uma política destinada à cultura, e nos períodos que se seguiram
este panorama não se modificou muito, havendo mesmo retração nos
investimentos para a área cultural. Cleise observa que:
As intervenções do Estado Brasileiro na cultura, nas décadas de 30, 40, 60 e 70 do
século passado, até chegar ao tratamento mais recente dado à área; na virada do
século, e as reflexões da relação de cultura com outras políticas públicas, e suas
interferências, em especial a educação, atestam que a história das políticas de
cultura em mais de 500 anos de Brasil, é bastante preocupante, quer pela própria
ausência de registros ou mesmo da ausência de política cultural no País. (Campos,
2010, p.2)
Um panorama mais promissor começou a se delinear nos últimos anos. O
PNC - Plano Nacional de Cultura (PL-6835/2006 Câmara e PLC-56/2010 Senado)
foi sancionado em 05/11/2010 e atualmente tramitam no Congresso vários
Projetos de Lei, como o que dá nova redação ao artigo 6º da Constituição Federal,
incluindo a cultura como direito social do cidadão (PEC 49/2007) e o que cria o
Fundo Social, destinando à cultura recursos advindos do Pré-Sal (PL-5940/2009
Câmara e PLC-07/2010 Senado).
A Medida Provisória Cinema Perto de Você (MP 491/2010) propõe a
ampliação, diversificação e descentralização do mercado de salas de exibição
cinematográfica. A ideia é fortalecer o segmento de exibição cinematográfica,
facilitar o acesso da população às obras audiovisuais por meio da abertura de salas
em cidades de porte médio e bairros populares das grandes cidades, adotando
políticas de redução de preços dos ingressos. Estariam também ajudando a
descentralizar o consumo, centrado no Sudeste. Dentro deste programa, em
setembro de 2010, foi inaugurado em Sulacap, Zona Oeste do Rio de Janeiro, um
complexo com seis salas de cinema124
. Segue também tramitando nas Casas
Legislativas o Projeto de Lei 6722/2010, conhecido como Procultura, que
124
Ver http://www.cultura.gov.br/site/2010/09/29/cinema-perto-de-voce-4/ - acesso 10/04/11
135
pretende substituir e aperfeiçoar a Lei Rouanet, atualmente em vigor, mantendo a
renúncia fiscal, mas associando a um estímulo direto125
.
Os Pontos de Cultura se multiplicaram pelo País, catalisando ações no
terreno da arte, em suas variadas expressões. Movimentos sociais, ONGs,
coletivos, ganharam o selo Ponto de Cultura e com ele uma identificação que lhes
confere valor, significado, além de apoio financeiro. A ELC, por exemplo, é
também um Ponto de Cultura. Alba Marinho, analisando o papel destes espaços
na construção de cidadania e fixação de territorialidades, afirma:
Na política cultural atual, os Pontos estão relacionados a mecanismos de
identificação e aceitação. Geograficamente estão inseridos em determinado lugar,
base da vivência afetiva do cotidiano, espaço onde a existência humana se realiza
em sua dinâmica de criação e recriação, construção e desconstrução. (Marinho,
2010, pp.2-3)
Fundamental nesta discussão é dar à cultura a posição que lhe é devida, ou
seja, entendê-la como direito da população. Evocando a filósofa alemã Hannah
Arendt, cuja obra é marcada pela questão dos direitos humanos, Cleise Campos vê
a cultura “como um dos mecanismos para materialização da condição cidadã, de
acesso e uso” e confere a ela um papel ainda mais abrangente no contexto social,
descrevendo-a como “um instrumento de realização para a própria cultura de
direitos, ainda desconhecida de muitos” (Campos, 2010, p.14).
Entre algumas políticas públicas implementadas nos últimos anos, o
Programa Cine Mais Cultura126
veio fortalecer a atividade cineclubista, facilitada
pela tecnologia digital. Desenvolvido pela Secretaria do Audiovisual (SAV/MinC)
e pela Cinemateca Brasileira, em parceria com a Sociedade Amigos da
Cinemateca (SAC), o Programa tem como objetivo a democratização do acesso a
obras audiovisuais, a formação de plateias, e a difusão, principalmente da
produção audiovisual brasileira, por meio da exibição não comercial dos
conteúdos. Muitos cineclubes foram viabilizados pelo Programa, que cede
equipamentos e dá capacitação para a operação, fornecendo ainda um acervo de
filmes. Os cineclubes são em muitos locais as únicas alternativas de acesso ao
cinema, já que são raras as salas fora da zona sul/centro. As salas das Zona Norte
125
Ver http://www.cultura.gov.br/site/2011/11/09/procultura-15/ - acesso 06/02/12 126
Ver http://www.cultura.gov.br/site/2012/01/27/cine-mais-cultura-28/ - acesso 06/02/12
136
e Oeste, e da Baixada, ficam em shopping-centers e geralmente têm programação
restrita a blockbusters do cinema norte-americano e/ou produções nacionais que
se caracterizam como um cinema de massa.
Segundo Matheus Topine, Diretor de Comunicação da ASCINE-RJ
(Associação de Cineclubes do Rio de Janeiro), a entidade reúne hoje cerca de 30
cineclubes no Estado. Em 2010, foram realizadas 205 sessões, com 493 filmes
exibidos (entre curtas e longas), somando um público de 9.532 espectadores.
Paradoxalmente, as estatísticas que contabilizam o público de cinema, têm
ignorado esse contingente cada vez maior de pessoas.
O cineasta Silvio Tendler defende a necessidade não só de se abrir mais
salas, como de levar em conta as atividades cineclubistas, quando se divulga
estatísticas de público de cinema. Em entrevista à revista Caros Amigos127
, o
cineasta questiona o sistema de contabilização de espectadores realizada pela
Ancine - Agência Nacional do Cinema128
, um sistema que não dá a verdadeira
dimensão do alcance dos filmes produzidos no Brasil. Tendler cita as sessões
realizadas em cineclubes e outros espaços alternativos, como as que acontecem
em salas de aula e as promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores sem Terra
(MST), onde seus filmes são exibidos para grandes plateias.
Outro cineasta veterano, Cacá Diegues, em entrevista ao programa Roda
Viva129
, também se posicionou a favor de uma maior participação do Estado na
área cultural e defendeu uma mudança no foco dos incentivos: do produtor para o
público, abrindo mais salas de cinema, já que há grande quantidade de filmes
prontos, engavetados, à espera de uma tela que os permita ir ao encontro do
público.
Bergala comenta esta má distribuição de salas (2008, p.20) também na
França. O Brasil já teve mais de 5 mil salas de cinema, que exibiam vários filmes
na mesma semana, inclusive os brasileiros. Hoje, além da redução das salas (em
127
Revista Caros Amigos, São Paulo, ano XIV, no.168/2011, p. 12-17, março 2011. 128
Ligada ao MinC, tem como atribuição regular e fiscalizar o mercado do cinema e do
audiovisual no Brasil. http://www.ancine.gov.br/ - acesso 22/12/11 129
Programa exibido em 15/11/10 - http://tvbrasil.org.br/rodaviva/sobre/ - acesso 06/02/12
137
torno de 2.190, para 5.564 municípios)130
, há uma cota de tela que estipula em 28
dias a obrigatoriedade de as salas, em todo o país, exibirem filmes nacionais131.
E
os ingressos custam caro. Mas, mesmo levando em conta o desenvolvimento de
novas mídias, do advento do videocassete, depois o DVD, além da internet, não se
pode esquecer que o cinema como experiência coletiva é momento de encontro,
estimula a vida social e a economia, sendo um gerador de empregos diretos e
indiretos.
A padronização do cardápio cinematográfico oferecido ao espectador é
outro problema, pois privilegia os efeitos especiais em detrimento da qualidade
artística, da narrativa, convertendo-se muitas vezes no uso da técnica pela técnica.
São filmes que não resistem muito tempo na memória, depois que o espectador
deixa a sala de cinema. E esta também é hoje um espaço a mais para um intenso
consumo de outros produtos, que não o filme.
Complica ainda mais esse cenário a opção (seja na França, como afirma
Bergala, seja no Brasil) dos produtores nacionais por filmes que possam concorrer
com o “inimigo”, copiando-o, de olho nas bilheterias. Não se trata de condenar o
cinema como indústria, e que como tal demanda retorno financeiro através de
filmes “que funcionam” (Bergala, 2008, p.21). Mas onde fica o espaço para os
filmes “menores”? Filmes que não são necessariamente obras de arte, autorais,
feitas para alguns iniciados. Há pequenos filmes, de orçamento modesto (para os
parâmetros de seus países de origem), que trazem frescor, que fogem a um estilo
hegemônico, que surpreendem os exibidores e conquistam plateias mesmo sem o
suporte de milionárias campanhas de marketing132
. Além destes, há dezenas de
curtas-metragens produzidos anualmente que não encontram telas para exibição.
Em ambos os casos, são pequenos (cada um em seu contexto) filmes que
não alcançam maiores plateias (e bilheteria) porque não têm chance de exibição,
não conseguem chegar ao grande público. Bergala comenta esta disparidade,
destacando que a desigualdade entre os filmes “ricos” (alto orçamento, verbas
130
Ver http://www.cultura.gov.br/site/2009/02/28/cine-mais-cultura-quer-levar-o-cinema-as-
populacoes-da-periferia-e-do-interior/ - acesso em 22/12/10 131
Ver http://www.ancine.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=65487&sid=83 –em 10/04/11 132
A longa permanência deste tipo de filme em cartaz (como A culpa é do Fidel, Pequena Miss
Sunshine, O pequeno Nicolau), contrariando as expectativas do mercado, foi tema de reportagem
de André Miranda. Jornal O Globo, edição de 01/07/11 - Segundo Caderno, pp.1 e 3.
138
milionárias de publicidade) e os demais sempre existiu, mas alcança hoje um nível
alarmante (Bergala, 2008, p.96). Uma superprodução norte-americana, por
exemplo, chega ao mercado externo com centenas de cópias, ocupa centenas de
salas ao mesmo tempo e vem a reboque de uma maciça campanha publicitária.133
Outras iniciativas do poder público para a área cultural que guardam alguma
relação com nossa pesquisa são aquelas relacionadas à preservação da memória,
como o programa Pontos de Memória, realizado em parceria com o Programa
Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), do Ministério da
Justiça. A proposta é “reconstruir a memória social e coletiva de comunidades, a
partir do cidadão, de suas origens, suas histórias e seus valores”134
. Em dezembro
de 2010 o Museu da Maré, no Rio de Janeiro, sediou a 3ª Teia da Memória, um
encontro para promover troca de experiências entre os Pontos de Memória135
.
Destacamos também o projeto de lei (PL-1176/2011) de assistência
financeira aos mestres do saber tradicional136
, apresentado pelo Deputado Federal
Edson Santos à Ministra da Cultura Ana de Hollanda, em abril/2011 e ainda em
tramitação. O projeto de lei prevê assistência financeira mensal aos mestres do
saber tradicional, entendidos como tal aqueles cuja vida ou obra foi dedicada ao
desenvolvimento da cultura tradicional e à transmissão desses saberes. É o caso de
sambistas, compositores, produtores culturais e artistas que, com frequência,
enfrentam dificuldades financeiras, especialmente na velhice. O MinC já tem
entre seus programas ligados à valorização do saber tradicional, a Ação Griô137
que, por meio de contratos, transfere recursos aos mestres que, em contrapartida,
fazem a transmissão do seu conhecimento à comunidade. Griô é o líder de um
povo a quem cabe preservar a memória e transmitir os ensinamentos.
133
O filme Amanhecer, da milionária franquia Crepúsculo, estreou no Brasil em novembro de
2011 ocupando 50% das salas existentes no país. Fonte: http://blogs.estadao.com.br/luiz-
zanin/amanhecer-ocupa-metade-do-circuito/ - acesso 15/12/11 134
http://www.cultura.gov.br/site/2009/02/03/cultura/ - acesso em 08/01/11 135
http://ocidadaonline.blogspot.com/2010/12/rio-sediara-iii-teia-da-memoria.html - acesso em
08/01/11 136
Ver http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=499716 -
acesso 16/01/12 137
Ver http://www.cultura.gov.br/culturaviva/category/cultura-e-cidadania/acao-grio/ - acesso
02/02/12
139
Concluindo este Capítulo, voltamos a Jacques Aumont e sua concepção
acerca do cinema e sua função social, como capaz de representar o mundo e
modelar os espíritos (2004, p.135). Crendo nisso e pensando na formação dos
sujeitos, seja dentro ou fora das escolas, não deveria causar estranheza a proposta
de deslocar o ensino, a fruição, o convívio com a arte, de compartimentos
isolados, estanques, para introduzi-lo no cotidiano não apenas das escolas formais,
mas de outros espaços de convivência. Ou seja, introduzir a arte “como algo
radicalmente outro” (Bergala, 2008, p.29) e fazendo-a permear todo o processo
educacional, no caso das escolas, sejam elas formais, livres, comunitárias. Sobre
cinema e escola, Cezar Migliorin entende que com ele “não ensina mais isso ou
aquilo, e sim o abandono, a potência de não ser mais isso ou aquilo” (2010,
p.106). Ou seja, descortinam-se novas possibilidades.
Entendemos também que práticas que envolvem artes, criatividade,
experimentos, lançando mão de nossa diversidade cultural, poderiam estar
presentes no cotidiano, já que em oposição à estesia (como sensibilidade),
anestesiados ficamos hoje diante da avalanche de informação, das imagens
fragmentadas, da rapidez com que tudo se sucede, sem tempo para ser “digerido”.
Embora a arte possa nos atravessar sem passar pela razão, cremos que os
indivíduos precisam estar expostos a ela e não simplesmente serem “atropelados”
por um fluxo contínuo de imagens, sons, luzes, como acontece com os produtos
da chamada cultura de massa.
Daí, mais importante do que formar técnicos ou futuros cineastas ou
videomakers, a ELC dá a seus alunos, crianças ou adultos, a oportunidade de usar
os meios audiovisuais, aliados a outros meios e suportes, para construção de
subjetividade. Oportunidade de aprender com e pelo cinema, pela razão e pela
emoção, pela reflexão e pelo arrepio, pelo prazer e pelo estranhamento. Vão assim
aprendendo sobre o mundo, sobre o outro e sobre si mesmos.