beatriz miguez - ensaio piá 2014

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ENSAIO PIÁ - BIBLIOTECA MONTEIRO LOBATO BEATRIZ MIGUEZ Introdução...de mim mesma Desde o início percebi que o Piá era um espaço-tempo que exigia presença e experiência para compreendê-lo com maior apropriação. Nos depoimentos dos artistas educadores eu ouvi relatos preenchidos de paixão, entrega e comprometimento; eles falavam sobre algo que minha imaginação ansiava tocar e experimentar... ... Buscando dilatar minha percepção, aos pouco fui me permitindo “esponjar”... ... o medo fez visita no tempo do novo, do inusitado. As dúvidas o receberam bem, mas com instabilidade que lhes é corriqueira, logo trataram de dar vez a algo que lhes permitisse mais movimento. Elas, as dúvidas, cansaram-se rápido do estancar do medo, trocando-o em pouco tempo por coisinhas outras, como o ESPANTO! No susto, eram submetidas, as dúvidas, aos encantamentos de respostas incertas, efêmeras possibilidades de “olhares”. Lapsos de lucidez envoltos de aventuras curiosas sobre o que estava “entre”, a surgir, a brotar, a fluir e a criar. Silêncio, um manifesto peculiar de interação (pós cirurgia) A interação se dá em vários estados, se manifesta de diversas formas, ainda que discreta. O que é interação? O que eu espero da ideia de interação? Por muitas vezes me fiz estas perguntas dentre tantas outras que carreguei comigo durante este Tempo Piá que vivi no decorrer do ano de 2014; ano de quando eu me deparei com o avesso de certezas tão significativas para mim sobre o conceito de criança, de arte e de educação e, sobretudo, sobre a relação professor e aluno ou como agora prefiro dizer criança e artista- educador. A criança é espontânea, alegre, criativa, agitada, expansiva, inocente e quantos outros adjetivos eu poderia elencar para falar de criança. No entanto,

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Page 1: Beatriz Miguez - Ensaio Piá 2014

ENSAIO PIÁ - BIBLIOTECA MONTEIRO LOBATO

BEATRIZ MIGUEZ

Introdução...de mim mesma

Desde o início percebi que o Piá era um espaço-tempo que exigia presença e experiência para compreendê-lo com maior apropriação. Nos depoimentos dos artistas educadores eu ouvi relatos preenchidos de paixão, entrega e comprometimento; eles falavam sobre algo que minha imaginação ansiava tocar e experimentar...

... Buscando dilatar minha percepção, aos pouco fui me permitindo “esponjar”...

... o medo fez visita no tempo do novo, do inusitado. As dúvidas o receberam bem, mas com instabilidade que lhes é corriqueira, logo trataram de dar vez a algo que lhes permitisse mais movimento.

Elas, as dúvidas, cansaram-se rápido do estancar do medo, trocando-o em pouco tempo por coisinhas outras, como o ESPANTO!

No susto, eram submetidas, as dúvidas, aos encantamentos de respostas incertas, efêmeras possibilidades de “olhares”. Lapsos de lucidez envoltos de aventuras curiosas sobre o que estava “entre”, a surgir, a brotar, a fluir e a criar.

Silêncio, um manifesto peculiar de interação (pós cirurgia)

A interação se dá em vários estados, se manifesta de diversas formas, ainda que discreta.

O que é interação?

O que eu espero da ideia de interação?

Por muitas vezes me fiz estas perguntas dentre tantas outras que carreguei comigo durante este Tempo Piá que vivi no decorrer do ano de 2014; ano de quando eu me deparei com o avesso de certezas tão significativas para mim sobre o conceito de criança, de arte e de educação e, sobretudo, sobre a relação professor e aluno ou como agora prefiro dizer criança e artista-educador.

A criança é espontânea, alegre, criativa, agitada, expansiva, inocente e quantos outros adjetivos eu poderia elencar para falar de criança. No entanto,

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de que criança estamos falando? Deparei-me com uma diversidade enorme de crianças. Eram todas crianças! Mas, nem todas estampavam em si os rótulos habituais criados por adultos para definir quem são essas crianças. Então cabe a nós, como artistas educadores nos permitirmos “esponjar”, sentir, ver, perceber, ouvir e interagir com estas diferentes crianças com quem nos deparamos durante o ano.

É possível interagir com o silêncio?

Durante um encontro com umas das turmas de 5 a 7 anos, Juliana Rosa e eu, nos deparamos com o “não” declarado e calado de uma das meninas da turma...

...o toque se fez presente, corporificou-se pelo fio da fantasia que tornou a todos nós “massa”.

Massa para amassar, para preparar...

Massa de pele, carne e osso.

Massa de sentir.

O toque ela negou, virou-se de costas, cruzou os braços e sentou-se fora da roda onde estavam as outras crianças. O silêncio dela se fez presente tanto quanto os ruídos, sons e palavras eufóricas das outras crianças, que por vez brincavam de ser “massa”.

Nossos corpos/massa foram se transformando e aos poucos se preparando para ganhar forma... Entramos no forno quente.

Quando saímos do forno, ainda dentro da assadeira, estávamos encolhidos, redondos como rosquinhas.

Foi então que ela virou-se para nós, encolheu-se num movimento de recolhimento e rapidamente transformou-se também em uma rosquinha.

Era como se ela nos dissesse “eu estou com vocês”!

Depois do encontro, como era de costume, Juliana e eu saímos para almoçar... O almoço sempre esteve para além da ingestão pura e somente da comida; era também um momento de digerirmos os acontecimentos com as crianças pela manhã.

Falamos sobre o silêncio dela. Sobre o Não, sobre sua firmeza, sobre a clareza de sua decisão e sobre nós, artistas-educadoras diante dela. Falamos sobre a dificuldade em lidar com a negação da criança e das diversas maneiras que o “não” se presentifica nos encontros.

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Falamos sobre que tipo de presença buscamos nos encontros, sobre a verdade com que cada criança manifesta seu estado de presença, e a diversidade que existe entre as maneiras de interação, que tem haver com a diferença de ser entre elas.

Diante disso poderia dizer também... A criança é silêncio também.

Debaixo da escada e perto da porta de saída

Com licença, posso entrar?

Com sua licença, posso pegar a chave?

Com sua licença, posso usar o computador?

Com sua licença...

Posso dançar?

Posso cantar?

Posso?...

Tínhamos uma sala!

Era uma vez uma sala...Grande, com projetor, muitas cadeiras empilhadas que logo ganharam a companhia de mais uma grande família de novas cadeiras e mais duas grandes mesas quadradas.

Este era o nosso espaço... Em pouco tempo foi possível perceber que de nosso aquela sala não tinha nada...tudo estava sendo adaptado e preparado para receber um novo curso para adultos, oferecido em parceria com o Senac.

Por muitos motivos fomos transferidos da sala multiuso da Biblioteca Monteiro Lobato para uma sala pequena, escondida no andar de baixo quase embaixo da escada e “próximo à porta de saída” dos fundos da Biblioteca Monteiro Lobato.

A nova sala é pequena e no princípio ainda tivemos que dividir o espaço das atividades com o espaço dos materiais utilizados nos encontros, estes dispostos em duas estantes de metal que ficavam encostadas numa das paredes da sala e, que depois de muita insistência, foi transferido para uma pequena sala de depósito localizada também embaixo da escada (em frente a nossa).

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A recusa com relação à nova sala embaixo da escada foi quase geral, estendendo-se inclusive a insatisfação manifestada por alguns pais.

Nós sentimos muito a mudança com a sala também, sobretudo a dificuldade em trabalharmos exercícios corporais que exigiam um espaço mais amplo; mas havia algo diferente e instigante na nova sala.

Primeiro, que foi nomeada como nossa! Era uma sala ocupada somente pelo Piá, o que nos trouxe a liberdade de ação e transformação daquele espaço, de acordo com as necessidades expressadas pelas crianças durante os processos criativos.

A ocupação na íntegra daquela sala nos permitiu criar um novo espaço-tempo dentro da biblioteca, propício à transformação e a criação. O despertar da apropriação de um espaço que se tornou nosso para além de uma autorização que nos permitisse o uso deste com mais liberdade. Um espaço-tempo em movimento contínuo de transformação, dinâmico, capaz de fomentar a interação dos processos artísticos e criativos entre as crianças.

O compartilhamento dos processos entre as turmas parece ter dilatado a percepção das crianças com relação ao programa Piá dentro da Biblioteca Monteiro Lobato.

Estava implantada a experiência do caos criativo e nesta perspectiva, por vezes surgiu a dificuldade em lidar com este caos, que não era das crianças, mas sim nossa, das artistas-educadoras. Era impossível ignorar a presença dos rastros deixados pelas outras turmas do Piá. Reutilizamos materiais deixados por outras turmas, nos contaminamos por ideias, imagens e frases coladas nas paredes ou esquecidas no chão da sala. Nunca sabíamos ao certo como o espaço estaria. A disposição das coisas, dos trabalhos e dos materiais, se a sala estaria ensolarada ou recoberta de lonas e tecidos nas janelas, provocando um ambiente mais escuro.

Cenas e improvisos foram criados a partir de instalações de tecidos deixadas na sala por outras turmas. Processos foram vividos por TODAS as turmas por meio de uma contaminação criativa que motivou a todos nós a querer experimentar um pouco do que outras turmas estavam construindo. Avaliando por este ponto de vista construímos um espaço capaz de fomentar a criação e a interação dos processos entre as turmas.

Era um espaço do novo, de descobertas, de investigação, de adaptação, de intervenção e, sobretudo, de pesquisa, nossa e das crianças.

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