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UNIVERSIDADE DE LISBOA - FACULDADE DE LETRAS E INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS BASES COMUNS DO VOLUNTARIADO NO BRASIL E PORTUGAL: ENTRE A TUTELA E A EMANCIPAÇÃO BRUNO BARCELOS MORAIS 2019

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Page 1: BASES COMUNS DO VOLUNTARIADO NO BRASIL E PORTUGAL: … · representantes do cenário do voluntariado de ambos os países tentou perceber, para além da procedência das ações altruístas

UNIVERSIDADE DE LISBOA - FACULDADE DE LETRAS E INSTITUTO

DE CIÊNCIAS SOCIAIS

BASES COMUNS DO VOLUNTARIADO NO

BRASIL E PORTUGAL: ENTRE A TUTELA E A

EMANCIPAÇÃO

BRUNO BARCELOS MORAIS

2019

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UNIVERSIDADE DE LISBOA - FACULDADE DE LETRAS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

BASES COMUNS DO VOLUNTARIADO NO BRASIL E

PORTUGAL: ENTRE A TUTELA E A EMANCIPAÇÃO

BRUNO BARCELOS MORAIS

Tese orientada pela Professora Doutora Simone Frangella e Coorientada pela

Professora Doutora Isabel Corrêa da Silva especialmente elaborada para a

obtenção do grau de Mestre em Estudos Brasileiros (Dissertação)

2019

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ii

Dedico esse trabalho aos meus pais que me deram a vida, à minha família que me deu

estrutura, ao meu irmão Flávio Barcelos Morais que em vida me deu inspiração para a ação, a

todos que me suportaram de perto ou à distância, e, principalmente, compreenderam meus

silêncios e me incentivaram.

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Agradecimentos

Agradeço, em especial, às Professoras Doutoras Simone e Isabel, por aceitaram esse desafio

comigo, e por me guiarem por essa passagem pelo universo acadêmico. Faço menção de

reconhecimento a todos os amigos e parceiros da área do voluntariado que foram

entrevistados e que trouxeram consigo sua alma e a sua história, e puderam fazer desse

trabalho um coletivo de experiências. Principalmente agradeço ao Hugo Terças por ter sido a

minha linha de frente, por colocar a minha cabeça em ordem, por revisar os textos e todo

suporte adicional dos meus queridos amigos.

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Resumo

A dissertação analisa a temática do voluntariado em perspectiva comparativa entre o Brasil e

Portugal, propondo que as suas bases institucionais são comuns, e observa em que medida as

iniciativas empreendidas diferem e em que momento se encontram. O termo voluntariado

como hoje é aplicado, nos seus diversos matizes, é um produto decorrente de um conjunto de

iniciativas historicamente empreendidas diante da pobreza. As respostas às dificuldades

sociais chegam ao Brasil por meio das confrarias e ordens religiosas Portuguesas, a fim de

desempenharem a sua missão e a caridade como estatuto. Essa pobreza no Brasil não era

conhecida até então pelos seus habitantes originários; o que se dizia da pobreza dos índios era

“o paradigma de uma pobreza que, além do material, era também – e, sobretudo – espiritual”

do ponto de vista dos colonizadores, Franco (2011, p. 52). A linha histórica da assistência aos

pobres modifica-se em consonância com as manifestações das políticas de Estado, ora menos

ou mais centralizadas. Perceber o fenômeno do voluntariado como forma de “reação” da

sociedade civil – individual ou institucional –, ou do Estado à pobreza, só é possível se

soubermos discernir sobre quais valores de caridade e solidariedade, concepções de

filantropia, abordagens da assistência determinada iniciativa voluntária se fundamenta, seja

nos seus porquês, discursos, práticas e, principalmente, como impactam e influenciam nos

resultados demonstrados. O voluntariado, junto aos outros termos analisados, é sempre a ação,

e os demais vocábulos constituem os seus atributos, e pôde ser estudado em cinco eixos

estruturantes: 1) Conceitos; 2) Elementos caracterizadores; 3) Formas e subdivisões; 4)

Amparo legal; e 5) Motivações e valores. A pesquisa empírica através de entrevistas com

representantes do cenário do voluntariado de ambos os países tentou perceber, para além da

procedência das ações altruístas – para fins caritativos ou para exercício da cidadania em seus

territórios –, em que me medida as práticas observadas eram mais ou menos tutelares ou

emancipatórias. E encontraram-se bases institucionais, do voluntariado formal, como pontos

em comum, e o exercício do voluntariado enquanto participação cidadã como as diferenças,

que se associam ao histórico da democracia em cada um dos países.

Palavras-chave: Voluntariado, caridade, solidariedade, filantropia, assistência, cidadania.

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Abstract

This thesis analyzes the subject of volunteering and establishes a comparative study between

Brazil and Portugal, suggesting that the institutional basis of the action in both countries is

essentially common. Moreover, it is described to what extent, and within which period, the

initiatives carried by each country differ. The modern concept of volunteering, in its various

declinations, concerns a set of initiatives adopted throughout the history in order to face

poverty. The Portuguese confraternities and religious orders bring responses to the social

difficulties in Brazil, and charity is mostly practiced as a guarantee of the status quo. Before

the establishment of the Portuguese confraternities, poverty was not known by the Brazilian

natives, and the native poverty was often referred by the colonizers to as “the paradigm of a

poverty that, besides material, was also – and especially – spiritual” Franco (2011, p. 52). The

history of the assistance of the poor therefore depends on the manifestation of the power

distribution by the State, being more or less centralized. Understanding the phenomenon of

volunteering as a reaction from the civil society (individual or institutional) towards poverty

is only possible if we can distinguish the roots of charity and philanthropy. In the present

work, volunteering is presented as the action, and can be studied through the following five

structural attributes: concepts, characterizing elements, forms and subdivisions, legal

protection, and motivations and values. The empirical research material obtained by

interviewing the representatives of the volunteering scene of both countries aims at

understanding (beyond the origin of altruistic actions, whether for charity or for the exercise

of citizenship) to what extent the practices are more or less tutelary or emancipatory. This

research suggests the institutional bases (formal volunteering) as a common point to the two

countries, and shows that the exercise of volunteering as a exercise of citizenship contains

differences that are associated with the history of democracy.

Keywords: Volunteering, charity, solidarity, philanthropy, assistance, citizenship.

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Índice

Agradecimentos .................................................................................................................................... iii

Resumo .................................................................................................................................................. iv

Abstract .................................................................................................................................................. v

Índice ..................................................................................................................................................... vi

Introdução .............................................................................................................................................. 1

Capítulo 1: As bases comuns da ação voluntária no Brasil e em Portugal ..................................... 7

1.1. A pobreza involuntária ................................................................................................................. 7

1.2. A institucionalização da ação religiosa ou secular ....................................................................... 9

1.3. As irmandades, o processo colonizador e o conceito de pobreza no Brasil ............................... 12

1.4. Público beneficiário e as ações realizadas: semelhanças e diferenças entre metrópole e colônia

........................................................................................................................................................... 15

1.5. Dois Estados independentes e a relação com a assistência ........................................................ 18

Capítulo 2. As estruturas do voluntariado em revisão bibliográfica. ............................................. 27

2.1. Genealogia conceitual do voluntariado ...................................................................................... 27

2.1.1. A Caridade........................................................................................................................... 27

2.1.2. A Filantropia ....................................................................................................................... 32

2.1.3. A Assistência ....................................................................................................................... 37

2.1.4. A solidariedade .................................................................................................................... 45

2.2. O voluntariado no centro da investigação .................................................................................. 52

2.2.1. O conceito do voluntariado pela academia e por entidades de referência ........................... 52

2.2.2. Elementos que caracterizam o voluntariado ........................................................................ 57

2.2.3. Como o voluntariado pode ser classificado ......................................................................... 58

2.2.4. Síntese dos aspectos legais do voluntariado no Brasil e Portugal ....................................... 64

2.2.5. Motivações para o trabalho voluntário ................................................................................ 69

Capítulo 3. Compreensões do voluntariado pela voz de representantes brasileiros e portugueses

............................................................................................................................................................... 77

3.1. A preparação do conteúdo das entrevistas ................................................................................. 78

3.2. A religião, a família e os grupos de jovens: os primeiros passos do trajeto no voluntariado. .... 80

3.3. Entre a tutela e a emancipação: relações de reciprocidade ......................................................... 84

3.4. Assistência: a relação com o Estado........................................................................................... 95

3.5. Voluntariado institucional: comparativos entre Brasil e Portugal ............................................ 103

Conclusão ........................................................................................................................................... 113

Bibliografia ........................................................................................................................................ 121

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Introdução

Essa tese surge de observações provenientes de treze anos imerso profissionalmente

no campo da assistência voluntária, integrando, ou gerindo, iniciativas empreendidas pelo

poder público, privado, sociedade civil ou mesmo por projetos de parcerias entre entes de

mais de um desses setores. Como profissional que promove oportunidades de voluntariado, e

sempre se dedicou a trabalhar e estudar o assunto, depois de tantos anos em campo,

naturalmente alguns questionamentos surgiram sobre as práticas vigentes. Mais

especificamente, sobre quais seriam as diferentes intenções por trás do engajamento ou da

captura de voluntários, por parte das instituições que realizam os ‘projetos de voluntariado’. E

sendo assim, quais resultados se poderia esperar para os públicos envolvidos, na medida em

que o foco dessas iniciativas varia, hora mais nos meios que nos fins? Assumir estudar isso,

com verdade, desde o primeiro instante significou reavaliar cruamente todas as práticas nas

quais o autor dessa investigação se vinculou até então.

Num segundo momento, ao perceber que parte da influência sobre a solidariedade

institucional do Brasil poderia estar em suas bases coloniais, e em decorrência nos tipos de

relações que o privado estabelecera com o Estado, foi decidido um traslado de campo do

Brasil para Portugal, para vivenciar por dois anos uma imersão do outro lado desse binômio, a

investigar como as relações de tutela ou emancipação se davam nas iniciativas de

voluntariado no outro país, e daí depreender as possíveis conexões e paralelos.

O Mestrado de Estudos Brasileiros da Universidade de Lisboa permitiu que esse

aprofundamento pudesse ser feito, de forma intencional e transversal, entre duas áreas

fundamentais: a história e a antropologia. Do ponto de vista da historiografia, por permitir

levantar linhas de narrativas de como a assistência se estabeleceu num cenário colonial,

deixando raízes muito profundas do ponto de vista dos valores morais e da dádiva, mas

também na forma de se fazer política de Estado. Da antropologia, a possibilidade de entrar na

realidade, da qual já fazia parte, mas com um novo olhar, de quem observa e acolhe das

experiências concretas, junto aos sujeitos que compões a realidade no Brasil e Portugal, as

evidências daquilo que se examinou nas pesquisas bibliográficas.

Esse trabalho se dá, portanto, estruturado em três seções fundamentais que se

complementam, a começar pela revisão histórica das bases da assistência que partem de um

lugar do movimento colonial e migratório português, em segundo, uma exploração

bibliográfica sobre o que já foi dito - e por quem - em relação ao voluntariado e aos principais

conceitos que o circunscrevem, e, por fim, uma pesquisa empírica com atores fundamentais

na promoção atual do voluntariado em ambos os países, com a finalidade de ajudar a pensar e

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compreender a percepção desses sujeitos contemporâneos do seu próprio processo como

promotores do voluntariado, ou seja, articulados com a teoria, o que eles dizem estar

fazendo? E o que depreendem e deixam transparecer do campo que participam?

A começar pelo mais básico, sendo o voluntariado o centro das análises, um

voluntário pode ser definido como "o jovem ou o adulto que, devido ao seu interesse pessoal e

ao seu espírito cívico, dedica parte do seu tempo, sem remuneração alguma, a diversas formas

de atividades, organizadas ou não, de bem-estar social ou outros campos", e esse é o conceito

das Nações Unidas1 para o assunto, dentre tantas outras possibilidades conceituais que estão

apresentadas nesse trabalho. E das formas disponíveis para se explicar o voluntariado, a

divisão entre ações promovidas informalmente por indivíduos no seu convívio comum, do

fomento por instituições que prescindem formalmente da mão-de-obra voluntária, para

comporem os seus projetos sociais, é o ponto de partida para um recorte no estudo de como

então as iniciativas formais – institucionais – ligaram a caridade e a assistência entre dois

continentes. E em termos de definições, portanto, para voluntariado institucional assumem-se

as iniciativas formais empreendidas por organizações, secundárias às famílias e aos ciclos de

relações mais próximos, e que mais adiante, durante as análises desse trabalho, será sinônimo

do denominado ‘voluntariado formal’, foco do referido recorte dessa pesquisa. E o

‘voluntariado informal’ será aqui tangido pelas iniciativas de entreajuda do universo das redes

primárias de um indivíduo e comunidades, sem que dependa de uma iniciativa empreendida

por um ente terceiro, pessoa jurídica, como as igrejas, organizações da sociedade civil ou

empresas.

O encontro entre os territórios americanos e europeu, propiciado pelas navegações

portuguesas, possibilita um estudo das relações do voluntariado institucional entre o Brasil e

Portugal. A comparação entre estes contextos, quais são as suas divergências e convergências,

compõe a grande pergunta desse trabalho. Seguir as origens e as características do

voluntariado formal no Brasil e Portugal torna possível acompanhar, historicamente, como

evoluiu a assistência como uma responsabilidade assumida por terceiros nesses países, bem

como esboçar as reais intenções muitas vezes travestidas de dádivas e altruísmo, fosse por

uma agenda evangelizadora, de perpetuação de valores, de dominação cultural, ou de

manutenção dos papéis numa sociedade de classes.

A revisão historiográfica permite identificar a chegada das ordens religiosas na terra

americana com a finalidade colonial, portando consigo os valores a serem implantados, com

ou sem consentimento das populações originais. Populações essas que de protagonistas do seu

1 Voluntários das Nações Unidas (UNV). Voluntariado. Disponível em https://www.unv.org/. Acesso em setembro de 2019.

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território, precisaram estabelecer novas relações sociais junto aos viajantes que

desembarcavam e se estabeleciam, e foram convidadas a se descobrirem em papéis sociais em

que passam a ser identificados como pessoas assistidas, analfabetas, com necessidade de

ensino e catequese, como escravas, e demais denominações sobre si que desconheciam, assim

também como perceberam que eram pobres, em moral e em cultura, sob o discurso dos que

invadiam. Não obstante, precisaram reorganizar-se, cada grupo ao seu modo, nas suas ações,

diante das vantagens e desvantagens do novo contexto que se formou em seus territórios.

E esse volume de chegadas, com um discurso civilizador, era tal que ao buscar fincar

no novo mundo uma réplica dos seus modelos de gestão monárquica, eclesiástica e comercial,

foi necessário também trazer consigo as irmandades que cuidariam dos efeitos colaterais da

sua própria ação: os modelos urbanos e sociais que implementavam à maneira da metrópole

portuguesa, carregavam de brinde a pobreza, doenças, a peste, e sistemas desiguais que

demandavam a assistência aos esmolares e doentes, o enterro dos defuntos, e demais

necessidades de obras executadas com ribalta especial pela “primeira-dama” da Coroa

Portuguesa, a Santa Casa de Misericórdia.

O crescimento das Santas Casas nas colônias, inclusa a América Portuguesa, foi tal

que em 1640, o número das congêneres era superior a trezentas (Abreu e Paiva cit. por

Franco, 2011, p. 66) e destas, pouco mais de uma dezena estavam em território americano, a

começar por Pernambuco (c.1539) e São Vicente (c 1543). Como as mais relevantes a

historiografia cita aquelas de Salvador e do Rio de Janeiro, ambas capitais, e isso não é uma

coincidência, uma vez que modelo de funcionamento das misericórdias prescindia de

presença aristocrática, que dialogasse com a Coroa e fosse ponte dos privilégios dos quais a

irmandade era canal. A partir daí, o modelo de assistência social varia conforme os padrões de

gestão do Estado, a começar pelas reformas pombalinas, e influenciado pelas variações na

relação do governo com a madre igreja católica.

Acontece que as práticas caritativas e assistencialistas implementadas com vistas ao

controle da pobreza norteavam os valores que os indivíduos carregavam no seu compromisso

social assistencial. Basicamente o aparato disponível tornava o doador um cidadão virtuoso

perante as instituições que integrava, e isso carregou o conceito de voluntariado com

características que até hoje vigoram. E se no Capítulo 1 está uma narrativa historiográfica da

assistência de Portugal para o Brasil, o foco está nessas bases fincadas até o século XIX,

contextualizando de forma mais tênue os caminhos independentes que cada território teria

feito a partir do século XX, ou mesmo as influências decorrentes dos processos migratórios

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para o Brasil nos séculos XIX e XX, permanecendo a pergunta do que será do movimento

inverso que acontece, nesse momento, de intenso fluxo migratório do Brasil para Portugal.

O Capítulo 2 trata da investigação de conceitos e valores basilares sobre os quais as

ações de voluntariado podem se erguer. A caridade é apresentada como um atributo

emocional e espiritual, a filantropia é a ação de particulares por razões humanistas e laicas, a

assistência é o termo genérico de amparo à pobreza mas que é quase sempre responsabilidade

do Estado, e a solidariedade como uma inteligência de capital social2, de saber aproximar

laços e vínculos de mútua cooperação. O voluntariado diante desses termos, e do ethos que

cada uma carrega, espelha em suas ações, e discursos, a abordagem da Instituição que o

promove.

A segunda parte do Capítulo 2 é inteiramente dedicada a explorar o fenômeno do

voluntariado e como é percebido pela bibliografia. Foi feita uma extensa busca de trabalhos

acadêmicos sobre o assunto no Brasil e em Portugal. E para conhecer o universo de pesquisas

sobre no Brasil, partiu-se de um trabalho abrangente que já havia sido realizado por

Cavalcante (2013, pp. 161 – 162), que buscou conhecer a amplitude de investigações nessa

temática por autores brasileiros, e as referências sobre o voluntariado destacam-se, desde ali,

por focarem, em sua maioria, na motivação para o exercício do voluntariado. Então, de forma

complementar, recorreu-se à pesquisa do vocábulo ‘voluntariado’ nos repositórios científicos

do Brasil e de Portugal. E a classificação dos conteúdos encontrados coincide

significativamente entre os dois países. A questão das motivações que levam os indivíduos a

se voluntariar, por exemplo, permanece consensual como dos assuntos mais abordados. É de

se compreender também, um volume de produção sobre a qualidade da gestão de

organizações sociais e de projetos de voluntariado no momento (a partir dos anos dois mil) em

que a qualificação dessas práticas torna-se tônica, e objeto de financiamento, mas que no

Brasil já sofrera estímulo desde a década de noventa.

O assunto é explorado por investigadores individualmente ou por grandes

organizações de defesa de causa, de forma que diferentes conceitos são publicados com a

finalidade de balizar a ação formal do trabalho gratuito. Das sistematizações possíveis desse

tipo de trabalho, estão as classificações de voluntariado por tempo de serviço, por mais ou

2 “Para a sociologia, o capital social possibilita a cooperação entre duas partes. O capital social implica a sociabilidade de um

grupo humano, com os aspetos que permitem a colaboração e o seu uso (...) Pierre Bourdieu (1980), em Le capital social:

notes provisoires, procurou arquitetar uma conceção de capital social no campo da Sociologia. Para o autor, o capital social

correspondia a um conjunto de recursos atuais e potenciais, ligados à posse de uma rede durável de relações, mais ou menos

institucionalizada, de inter conhecimento e inter reconhecimento. Contudo, a primeira análise sistémica contemporânea sobre

o capital social resultou dos trabalhos de Pierre Bourdieu (1980 e 1985), que se reportou ao capital social com «um agregado

de recursos efetivos ou potenciais ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de

conhecimento ou reconhecimento mútuo»”(Fialho, 2016, pp. 1 – 3).

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menos formalizado, pelo uso de competências profissionais ou pessoais, por ser realizado

individualmente ou coletivamente, por tarefas de execução ou de gestão de entidades sociais.

E as motivações para engajamento de indivíduos nessas diferentes frentes são amplamente

estudadas pela psicologia social que, ao investigar as motivações humanas e os níveis de

altruísmo, em geral subdividem os modelos de motivação voluntária entre unidimensionais e

multidimensionais3. Todo um grupo de pesquisadores empenhados em compreender o

altruísmo versus o egoísmo no ser humano que dedica parte do seu tempo às necessidades de

outro. O fato de essas pesquisas estarem maioritariamente no campo do comportamento

humano e nas ciências de gestão, reforçou ainda mais a escolha do presente trabalho em ser

uma alternativa de ligação entre a história e a prática, pela pesquisa empírico-antropológica,

na qual a apreciação e representação dos indivíduos inseridos nos contextos, pudesse ser

levada em consideração de forma crítica.

O capítulo 3, portanto, traz substância para as análises bibliográficas sendo uma

investigação de campo. Nele, os promotores do voluntariado melhor projetados dentro dos

dois países, mas que ao mesmo tempo compunham a rede e a trajetória do autor dessa tese,

foram entrevistados para partilhar, do ponto de vista de quem gere ou impulsiona o

voluntariado, um cenário comparativo no que tocam: os valores que movem o voluntariado

nos dois países, quais os pontos fortes e oportunidades de melhoria percebidos nos projetos, e

em que momentos, ou instâncias, o voluntariado nos dois países pode ser mais tutelar ou

emancipatório.

A amostra de entrevistados não foi uma escolha aleatória, ou muito menos buscou-se

cobrir geograficamente os territórios dos países. Optou-se por gestores do voluntariado

institucional, na medida em que os voluntários desses contextos, são tidos como as

‘ferramentas’ dos projetos, mais ou menos instrumentalizados, mas muitas vezes considerados

como um dos ‘públicos alvo’, juntamente ao público beneficiário das ações. Para os diálogos,

foram levantados os nomes mais projetados enquanto promotores e defensores da causa,

alguns são tomadores de decisão, e dos convites para participação na pesquisa, viabilizou-se o

recorte de entrevistados desse trabalho. Observa-se, entretanto, a pertinência de um estudo

complementar focado nas figuras dos voluntários, e das entidades e comunidades parceiras,

evoluindo em escopo o presente exercício acadêmico.

3 Dos cientistas mais evidentes nesses estudos exemplifica-se com Omoto e Snyder (1995), Cnaan e Goldberg-Glen (1991),

Penner (2002), Wilson (2000), Clary, Snyder e Ridge (1992), Bussell e Forbes (2002), Penner (2002), no exterior, e os de

Figueiredo (2005), Souza, Lima e Marques (2008), Sampaio (2006), Souza e Carvalho (2006), Piccoli (2009) e Vervloet

(2009), em contexto brasileiro (Cavalcante, 2016, p. 8). E em Portugal um destaque para Delicado (2002) e uma

completíssima publicação da Fundação Eugênio de Almeida (Serapioni et. al, 2013).

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Como fruto do meio, e inserido no contexto - que é o autor dessa tese - , ao fazer o

distanciamento etnográfico para a pesquisa de campo, enquanto ‘observador’, foi nas

entrelinhas das conversas que se viu reforçado o potencial heurístico dos relatos

contemporâneos, quando estes remontaram as bases históricas que foram desenvolvidas na

pesquisa histórico-bibliográfica desse trabalho, e suscitou, ao autor dessa dissertação,

investigar enquanto ‘analista’ e ‘interprete’4 o uso dos valores familiares, religiosos, e de

convivência social (pessoal e profissional) como aquilo que persiste sendo as bases comuns

do voluntariado, independente do território em que é desenvolvido, mas estreitado entre o

Brasil e Portugal pelo histórico da relação iniciada desde quando metrópole e colônia.

Assim, os resultados apontam muito em comum nas ações de tutela, mas as

similaridades tendem a ser dissipar nas iniciativas informais, bem como na evolução das

práticas de participação democrática. Quando a noção de eficácia foi confrontada, o

voluntariado foi tido como um tipo de iniciativa com tríplices benefícios, para quem promove,

se voluntaria e para quem recebe. Entretanto, a real entrega de resultados sociais é

questionada quando o volume de ações e movimentos atuais podem não representar,

necessariamente, transformação ou impacto direto para os públicos beneficiários. E observa-

se ainda a importância da ética na envolvência de públicos voluntários com os mais

vulneráveis, sob o risco de laços utilitaristas, em que a pobreza e as necessidades alheias

possam ser usadas para que um grupo voluntário altruísta se sinta bom, ou até mesmo

capacitado em competências a partir do contato com a miséria ou dificuldade do outro. Esses

e outros assuntos põem em questão a real natureza do sucesso nas ações de voluntariado, e o

presente trabalho se propõe a aproximar as práticas empreendidas no Brasil e em Portugal

através da estrutura analítica apresentada nessa introdução.

4 “Ao produzir os seus próprios arquivos o etnógrafo deve colocar a tónica na objetivação de si enquanto ‘testemunha’,

‘analista’ e ‘intérprete’, esclarecendo sobre as suas próprias categorias de perceção, de modo a que as observações produzidas

no presente etnográfico possam mais tarde ser usadas como fontes de conhecimento histórico-etnográfico”. (Almeida e

Cachado et al., 2016, p.34).

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Capítulo 1: As bases comuns da ação voluntária no Brasil e em Portugal

1.1. A pobreza involuntária

O termo voluntariado, como hoje é aplicado nas suas diversas matizes, é um produto

decorrente de um conjunto de iniciativas historicamente empreendidas diante da pobreza5

gerada pela atividade econômica e ambiental, por escassez de recursos naturais, e dinâmicas

sociais pautadas por desigualdades e subordinação. Institucionalmente, identifica-se mais o

seu fato gerador como uma pulsão de mitigação aos prejuízos sofridos por parcela da

população diante da situação de pobreza involuntária, do que originalmente6 como

antecipação e impedimento de que as dificuldades de sobrevivência digna para todos existam.

Não obstante, associa-se de maneira inicial essa mitigação ao utilitarismo estabelecido entre

as práticas de caridade e da dádiva, nas quais a miséria teria o seu valor de troca e remissão

segundo interpretações de moral católica.

Num olhar histórico dessa reação às adversidades, no que propõe o recorte Portugal -

Brasil, a obra de Russell-Wood (1981), Fidalgos e Filantropos, apresenta-nos as dificuldades

de sobrevivência encontradas pelo homem do campo, entre os séculos XI e XV em Portugal,

bem como o seu consequente esvaziamento (êxodo rural), que resultara num cenário da

pobreza urbana ao fazer crescer de forma insalubre a densidade demográfica das cidades. O

autor descreve uma composição de elementos dramáticos para a época na qual a praga, a fome

e a guerra teriam sido aqueles mais desafiantes.

O esboço da ‘reação’ a esses problemas em Portugal, o que o autor chama de

“filantropia social na sua forma mais primitiva7”, ter-se-ia originado ainda no século XI nas

5 Os conceitos iniciais de pobreza estão associados à ideia cristã da mesma a partir do período medieval. Enquadrava-se

naquilo que não era pobreza voluntária, e que, não sendo um propósito espiritual, deveria ser tratada. Entretanto, Viscardi

(2011, p.180) cita Bronislaw Geremek (1997, pp.1-13) e aponta para “as dificuldades existentes entre historiadores e demais

cientistas sociais na definição e, sobretudo, na mensuração da pobreza”. Trata-se de longo debate e que envolve

“discordâncias profundas”. Segundo o autor, “a incapacidade das ciências sociais de oferecer definição e delimitação claras

do objeto repercute nas esferas estatais no momento de proposição e implementação de políticas públicas de combate à

pobreza”. Cit. Por Viscardi (2011, p.180).

6 A referência (ou o uso) do voluntarismo social em intenção original de “reação”, após já uma situação de pobreza

estabelecida, pode ser parcialmente rebatida por aquelas iniciativas associativas de previdência, que nasceriam com o

objetivo de prevenir dificuldades futuras de um grupo. No entanto, Lopes (2013, p.2) bem desenvolve que “o socorro aos

pobres ou assistência não se confunde com previdência nem com regulamentação de condições laborais, modalidades de ação

social posteriores e que os governos portugueses oitocentistas sempre distinguiram com clareza”. E cita “A caridade assiste

ao pobre e desvalido depois da queda. Os montes pios, as sociedades de socorros mútuos e cooperativas, as sociedades do

trabalho impedem de cair nesse estado, criando as reservas”, escrevia o ministro Martins Ferrão em 1867. E continuava: “A

solução da questão [a indigência] abrange inevitavelmente a assistência e a previdência”, não sendo esta última atribuição

governamental. Repare-se que o legislador usou as palavras caridade e assistência como noutras passagens os vocábulos

beneficência e socorros e todas, ainda então, como sinônimos”.

7 No contexto Europeu, Castel (1998, p.61-73) e Roberts (1996, p.30) defendem que uma assistência racional, com alguma

“sistematização” já se manifestava na alta Idade Média, por meio da caridade cristã que estabeleceria critérios aos pobres

como domicílio fixo e algum cadastro de forma a possibilitar ou não o acesso dos mesmos aos benefícios. O objetivo dessa

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8

chamadas albergarias, que, situadas nas rotas dos peregrinos, encontravam utilidade num

período em que o transporte entre longas distâncias era precário e perigoso. A experiência

filantrópica-assistencial se dava ali, quando, em determinados casos, havia a disponibilidade

para hospedar pobres e doentes, uma característica que mais tarde deu ao termo “albergue”

um significado análogo ao dos hospitais. As iniciativas eram preponderantemente privadas8.

Também naquele contexto urbano que se estruturava, grupos de artesãos se

organizaram em confrarias com as finalidades de garantir a subsistência das suas famílias e

dos seus ofícios, e de se fortalecerem como classe profissional ou grupo de mútua ajuda. O

cooperativismo sob a característica de seguridade e assistência mútua abrangia as famílias dos

confrades, e desde a sua formação, deveriam possuir observância moral e religiosa. Por esse

motivo - o caráter cristão -, as atividades desse formato de cooperativismo ‘reagiam’ algumas

vezes estendendo sua assistência ao público externo mais pobre, que através de dotes, esmolas

e auxílios pontuais se enquadrava nos valores propostos pelo cristianismo.

O apoio aos “necessitados, moribundos e desvalidos” se fazia urgente em Lisboa

entre os anos de 1188 e 1479, como narrado por Russell-Wood (1981):

“Houve vinte e dois surtos de praga registrados em Portugal entre 1188 e

1496. Muitos outros surtos localizados provavelmente não foram

registrados [...] A “grande pestilência” de 1310 foi tão devastadora que o

enterro dos mortos se tornou um problema físico [...] Embora graves,

esses surtos locais foram insignificantes em comparação com a grande

tragédia da Idade Média: a Peste Negra. [...] a praga tomou conta de

Lisboa de 1477 a 1479. [...] a peste e a fome eram companheiras

constantes. Portugal viveu pelo menos cinco períodos de fome durante

seus primeiros quatro séculos de nação. [...] a essas vicissitudes naturais

devem-se acrescentar os efeitos devastadores da guerra, [...] A agricultura

caridade seletiva, que separava pobres entre bons e maus era tentar dar vazão organizada aos serviços assistenciais, dado que

o número de pobres no contexto urbano crescia muito. Cit. Por Viscardi (2011, p.180).

8 Por serem tênues as fronteiras entre o público e o privado, em meados do século XIII, tanto na Inglaterra como na França,

o socorro aos aflitos era responsabilidade partilhada por setor privado e poder público (na experiência Italiana, observou-se

imensa preponderância da assistência privada). Há que destacar, porém, o fato de que toda e qualquer ação em prol da

comunidade, a exemplo da manutenção de estradas, ruas e pontes, era considerada ação pia ou trabalho caritativo (Roberts,

1996, p.43). “Cabia às municipalidades vasto campo de tarefas, como o recolhimento das doações e seu gerenciamento, a

coleta de impostos que garantiam os orçamentos de algumas instituições, a fiscalização do uso dos recursos repassados, entre

outras. Contava o poder público com certa margem de autonomia, que lhe garantia o direito de, por exemplo, desviar tais

recursos para a defesa (...)” (Viscardi, 2011, p.183). Viscardi (2011) cita como marco divisório para uma assistência mais

organizada, a criação da Lei dos Pobres na Inglaterra, no ano de 1531, que previa cobrar uma taxa à população (poor rate)

destinada à ajuda aos pobres. Cabia ao Estado captar e gerir a aplicação dos recursos e administrar sua aplicação, sinal de seu

caráter laico e ‘racional’. Além dos recursos auferidos a partir desse imposto, o poder público então complementava com os

seus próprios, no que teria sido um amplo e simples ‘sistema de assistência à pobreza’.

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desmantelava-se e as vilas eram destruídas. [...]. Muitos recorreram ao

lixo e às raízes de plantas. Da fome à peste o caminho foi curto”.

(Russell - Wood, 1981, p.4).

Sobre a pobreza decorrente dessas situações, Sá (1997, pp. 25 - 34) faz uma

descrição dos diferentes tipos de pobres a quem, a partir do século XV, as iniciativas de

assistência tentariam dar respostas: os pobres envergonhados, os doentes pobres, os

peregrinos e mendigos, os enjeitados, os presos pobres e cativos, e as viúvas e donzelas

pobres. Por outro lado, Franco (2011, p. 12), na introdução ao seu trabalho, se dedica a uma

conceituação de pobreza sob a ótica etimológica. E Viscardi (2011, pp. 180 - 181) resgata

diversos olhares sobre a pobreza em seu caráter histórico em debate por diversos autores9. O

termo pobreza, portanto, engloba o conjunto de pessoas e situações que figuravam,

involuntariamente10, como receptores das ações assistenciais empreendidas de forma menos

ou mais organizada por famílias, albergues, confrarias, instituições religiosas e poder político.

E este último alargou paulatinamente as suas responsabilidades e a secularização da

assistência.

1.2. A institucionalização da ação religiosa ou secular

Abreu (2002, pp. 417 - 425) parte do consenso historiográfico de que o crescimento

demográfico sobre os centros urbanos abrira portas para as principais crises econômicas e

sociais registradas em Portugal. A partir disso, o autor descreve como o refreamento das

9 A autora recorre principalmente a Kidd (1999, p.3): condição daqueles que precisam trabalhar para viver; a Bronislaw

Geremek (1997, p.1-13) quando a autora cita as dificuldades entre historiadores e cientistas sociais diante da complexidade

do tema; Traz Robert Castel (1998, p.63-65) que narra que a pobreza ‘por opção’ na Idade Média era admitida como valor

católico de salvação, que também “propiciava ao pecador meios de aliviar sua culpa através da ajuda caridosa aos pobres.

Assim, a existência da pobreza viabilizava a salvação dos ricos”; Suzanne Roberts (1996, p.25-32) que apresenta no período

medieval a predominância de “duas interpretações cristãs acerca dos deveres dos fiéis em relação à pobreza” e que com seu

crescimento involuntário teria se “tornado predominantemente de oportunidade espiritual para problema social” o que eu

contexto ao observar como a assistência particular se articulou na relação entre fiéis – testamentos – misericórdias –

privilégios e patrocínios reais posteriormente; E Geremeck (1997, p.75) que atenta para a pobreza como uma preocupação

paulatina de atenção e política de Estado: a pobreza começa a ser entendida como responsabilidade pública. Cit. por Viscardi

(2011, pp. 180 - 181).

10 Em 1647, o Padre Antônio Vieira proferiu, na Igreja do hospital real de Lisboa, o “sermão das obras de misericórdia, à

irmandade do mesmo nome”. Neste sermão Vieira pregou a ajuda aos pobres como virtude cristã em oposição à ostentação

da religiosidade existente nas Igrejas ricamente adornadas. Ao descrever a pobreza citou Santo Agostinho para diferenciar a

pobreza voluntária, que é virtude, da pobreza forçada, que é miséria. Para a pobreza voluntária o reino dos céus estaria

garantido: Porém, a pobreza que é miséria, à qual nem se prometem os bens dos Céus, nem ela possui os da Terra, antes

padece a falta de todos, parece que não pode ser bem-aventurada. Mal-aventurada sim, porque para esta pobreza não há

ventura; mal-aventurada sim, porque todos a desprezam, e fogem dela: mal-aventurada sim, porque ainda para se conservar

na miséria, há de pedir e depender da vontade alheia, que é a sorte mais triste possibilitam a dádiva que obriga o deus cristão:

“A esmola livra de todo o pecado, ainda que fosse mortal, e não consente que a alma vá ao inferno” Antônio Vieira (1959, p.

73) deixa clara a ideia de que Deus está no rei e Cristo no pobre, por isso, os homens devem respeitar o rei e ajudar seus

filhos. (Tomaschewsky-2014, pp. 41 - 42).

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10

emergências pelo poder político acabou desencadeando, dentre outras medidas, a significativa

centralização dos hospitais - importante nesse contexto, e para o que aconteceria doravante.

“É hoje consensual que as transformações socioeconómicas registadas na

Europa desde meados do século XV, potenciadas por uma ameaçadora

pressão demográfica sobre os centros urbanos, foram determinantes para a

reestruturação das práticas e das políticas assistenciais que desde então

procuraram dar resposta à escalada do pauperismo, às cíclicas investidas

da(s) peste(s), e ao crescente número de pedintes e de vagabundos. A

tendência dominante do poder político, suportada pelos teóricos sociais que

começavam a debruçar-se sobre o assunto, foi no sentido de racionalizar,

modernizar e secularizar os mecanismos de apoio à pobreza e à doença, ao

mesmo tempo em que operacionalizavam os recursos existentes. Entre outras

medidas tomadas, iniciou-se a centralização hospitalar, criando-se os

chamados Hospitais Gerais”. (Abreu, 2002, p. 417).

Já antes das unificações ordenadas dos hospitais, os recursos para o apoio e

assistência dados pelas hospedarias, hospitais, leprosários, albergues e outras instituições

vinham de diversas fontes financiadoras (individuais e coletivas, eclesiásticas, leigas e

monárquicas) fazendo com que “no século XV existisse em Portugal não apenas uma

consciência social, mas também uma estrutura caritativa para satisfazer a esse sentimento. De

fato, existia tal profusão de leprosários, hospitais e irmandades de caridade que era inevitável

a superposição de atividades”, Russell-Wood (1981, p. 10).

O hospital, a misericórdia, o asylo das creanças, o albergue para os

inválidos, a associação que leva auxílio à casa desprovida de todos os

confortos, e tantos e tantos actos de religiosa piedade praticados com o

maior recolhimento, com a mais santificada consagração. A historia da

caridade é um grande livro, e Portugal tem n´essa historia um

monumento. (Costa, 1897, p.10).

Os movimentos políticos que Abreu (2002, pp. 398 - 414) resumiu como

secularização dos mecanismos de apoio à pobreza podem-se exemplificar por meio de

Russell-Wood (1981) pelo Código 1446 “Ordenações Affonsinas”, que naquela ocasião

estabeleceu que os processos sobre legados cedidos às irmandades transitassem nas cortes

civis e não nas religiosas. “Pelo fim do século XV, transpareciam duas atitudes em relação à

‘filantropia social’: primeiro, a necessidade de uma política oficial sobre a assistência social, e

segundo, o desejo de parte da Coroa de reduzir a jurisdição eclesiástica sobre as irmandades

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11

caritativas legais” Russell-Wood (1981, p. 10). Nota-se a aplicação dos termos caridade,

filantropia e assistência como conceitos de reação institucional contra a pobreza, nessa

ordem, do mais religioso para o mais secular.

Em Portugal, a reorganização dos hospitais se deu em 1479, em Lisboa, mediante

bula papal com a chancela do então príncipe D. João II, estendendo-se a todas as cidades no

ano de 1485, no seu governo já como rei. A maior instituição nesse sentido foi o Hospital de

Todos os Santos e, a este, tende-se a associar a história da Santa Casa de Misericórdia, cuja

fundação e notoriedade subsequente ao movimento de reorganização dos hospitais, se

apresenta livre de indícios concretos de que constitua outro aspecto da centralização oficial da

assistência social, Russell-Wood (1981, p.10). O fato da irmandade, mais tarde, desempenhar

esse papel resultou do seu imediato sucesso e patrocínio real.

Em termos formais, é possível diferenciar as misericórdias de outras

irmandades pelo fato de que elas prestavam auxílios a terceiros. A

maioria das irmandades organizadas no mundo luso tinha como fim

principal, ainda que pudessem exercer a caridade, prestar auxílio a seus

membros. Já as misericórdias eram confrarias organizadas especialmente

para exercer a caridade, ainda que também prestassem auxílio material e

espiritual aos irmãos. Além disso, estas irmandades eram de imediata

proteção régia, e, com relação aos compromissos, só necessitavam de

aprovação eclesiástica no que tocava a questões religiosas.

(Tomaschewsky-2014, p. 33).

São notáveis os privilégios que todas as Misericórdias ganharam perante a coroa e as

demais instituições do Reino, e como cresceram por Portugal, e, em seguida, diante do

movimento de expansão marítima, se espalharam facilmente pelas colônias, inicialmente à

imagem e semelhança dos modelos da Metrópole11, carregando com elas as concepções

políticas de assistência social, o exercício moral da caridade, e o doutrinamento ao

cristianismo.

11 “As Misericórdias foram fundadas em diferentes tempos e lugares, e, em que pesem as diferenças entre as instituições

fundadas com este nome, quase sempre há uma tentativa de identificação com a “matriz” lisboeta. Parece haver a tentativa,

por parte da historiografia, de estabelecer uma continuidade entre a irmandade fundada em Lisboa no século XV até mesmo

com aquelas fundadas no Império do Brasil no século XIX”. (Tomaschewsky-2014, p. 32).

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12

1.3. As irmandades, o processo colonizador e o conceito de pobreza no Brasil

As respostas às dificuldades sociais chegam ao Brasil por meio das confrarias e

ordens religiosas a fim de desempenharem a sua caridade como estatuto. A pobreza no Brasil

não era conhecida até então pelos seus habitantes originários. O que se dizia da pobreza dos

índios era “o paradigma de uma pobreza que, além do material, era também – e, sobretudo-

espiritual” do ponto de vista dos colonizadores, Franco (2011, p. 52). Por isso, nesses

primeiros movimentos das missões colonizadoras, os nativos americanos não estiveram nos

planos das Santas Casas de Misericórdia, mas sim da tarefa evangelizadora das ordens

religiosas, sobretudo, dos Jesuítas. Desde a chegada europeia ao Brasil foi registrada a

pretensão de caridade nas obras de doutrinamento cristão por parte das Companhias católicas,

tendo por seu maior expoente os Jesuítas exercendo caridade espiritual e professoral sobre os

índios bons, que seriam as criaturas puras, infantis, carentes da moral e da fé religiosa.

Em carta de 15 de julho de 1559, Manuel de Nóbrega escreveu pedindo socorro para

os pobres do Brasil que tanto padeciam de enfermidades. “Certamente, não se referia apenas à

carência material, mas a outro tipo de pobreza bem explorado nos relatos quinhentistas do

Brasil: a pobreza espiritual dos habitantes”, (Franco, 2011, p. 51). O termo “carência” se

problematiza nesse aspecto quando pode fortalecer um dualismo historiográfico de

favorecidos e desfavorecidos, combatido posteriormente na etnologia ameríndia de Viveiros

de Castro e outros. Para o autor, no sentido dessas “complexificações”, recorrendo a Lévi-

Strauss e Florestan Fernandes, 12 quando estes falam de uma malha inacabada de interpretação

da realidade ou das perspectivas de visões quando se coloca o colonizador ou o colonizado no

centro da leitura, adicionalmente, qualquer simplismo em dissolver os referidos dualismos

deve ser revisitado com a finalidade de evitar resoluções finais e conclusões sobre a matéria

etnográfica.

Entretanto, é factual que todo um conjunto de misérias oriundas dos meios urbanos

teriam desembarcado no momento em que a América foi vista por alguns cronistas como a

“solução” para os depauperados portugueses, e que “as soluções encontradas pelo modelo

assistencial passaram ao largo” a fim de maximizar “os usos de populações indesejadas no

reino, espalhando-as pelos territórios colonizados” (Franco, 2011, p. 51).

12 Florestan Fernandes trouxe consigo o desafio histórico de compreender a complexidade e a dinâmica de implantação do

sistema colonial nos séculos iniciais da invasão europeia, dentre esses fatores dinâmicos o conceito da destribalização

também é trabalhado por Gilberto Freyre. Nesse sentido (da complexidade), apenas os brancos colonizadores teriam exercido

influência? E se não, quais teriam sido os fatores dinâmicos a partir das instituições e organizações sociais indígenas?

(Viveiros De Castro, 1999 e 2002).

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13

Exaltando, por outro, lado as oportunidades do Novo Mundo, observa-se uma

literatura ufanista a respeito do Brasil em obras como a de Gândavo (1576) que tratava de

incentivar a migração para as terras novas, sobretudo de pessoas pobres da metrópole.

“Gândavo propunha uma espécie de simbiose de dois mundos, de um lado os pobres

poderiam encontrar riqueza e, do outro, a nova terra ganharia população fixa.” Até mesmo o

degredo de condenados em Portugal poderia, segundo Gândavo, ser uma oportunidade de

regeneração dos enviados à América, onde os cativos colonos teriam oportunidade de

reaprender valores morais e fazer “muitas obras pias” (Franco, 2011, p. 52). Um dos

indicativos do conjurado pendor para aquilo que se entendia por “caridade” na colônia estava,

adiante, na presença das Misericórdias. Ali, no território da colônia é interessante observar

como que o conceito da pobreza - não espiritual, mas de recursos - não se aplicava àquela

vivida pelos escravos (indígenas, africanos e miscigenados), mas pelo contrário, a existência e

posse de escravos indicaria a “riqueza” da terra e de quem os pertencia. Numa sociedade

escravocrata, a miséria de um povo é sinônimo de ostentação de outro.

A criação das irmandades no Brasil acompanhou o surgimento de vilas e arraiais,

com o objetivo de marcar presença institucional da coroa, sendo a Misericórdia uma das

principais confrarias imperiais e que nobilitava o território no qual estava estabelecida. Em

1640, o número de Santas Casas 13 em todo o império já era superior a 300 (Abreu e Paiva cit.

por Franco, 2011, p. 66) e destas, pouco mais de uma dezena estavam em território

americano. No Brasil, se instalaram primeiramente nas principais capitanias, como

Pernambuco (c.1539) e São Vicente (c 1543) seguindo por outras. Dentre elas, a de Salvador

era certamente o exemplo mais próximo das principais congêneres lusas.

Há ainda um embate fundacional para o título de Santa Casa mais antiga no Brasil,

entre as de Santos e Salvador, sendo que as misericórdias do território com maior volume de

estudo historiográfico são as de Salvador, Rio de Janeiro e Santos, por serem as mais antigas,

alocadas nos sítios urbanos de maior efervescência, volume e qualidade de documentação.

Outras delas, instaladas nas demais capitanias, são estudadas por exemplo pelo seu teor

peticional à Coroa e menor relevância assistencial (número de pessoas atendidas, ou volume

de ações). Observa-se peculiar curiosidade pela Misericórdia de Vila Rica, que ilustrou, em 13 “Se no período colonial o reconhecimento oficial das irmandades cabia à Mesa do Desembargo do Paço, em Portugal, já

no Império do Brasil a aprovação das irmandades da misericórdia variou de uma tentativa inicial de centralização, até a

regionalização necessária, tendo em conta o processo histórico que manteve um Império mesmo com tamanha disputa por

autonomia das províncias. É interessante notar que, em muitos casos, associações com denominações diversas foram

adquirindo o status de misericórdia durante o período colonial e imperial. Esta denominação garantia uma série de vantagens

e privilégios em relação a outras associações. Vantagens que, por certo, se mantiveram no período republicano, se

considerarmos que as entidades fundadas para prestação de caridade, especialmente as que fundavam hospitais, continuavam

adotando o nome Santa Casa de Misericórdia”. (Tomaschewsky-2014, pp. 45 - 46).

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14

certa medida, os movimentos políticos, sociais e econômicos do momento da história de

exploração do ouro e diamante em Minas Gerais.

Uma vez aprovada a irmandade, os principais de cada localidade inseriam-se

numa instituição de esfera Imperial. Nos domínios ultramarinos a igual

repercussão desses estabelecimentos nas comunidades locais não deixava

dúvidas quanto a uma pretensa homogeneidade das práticas de salvação e de

mobilização das elites, e ao mesmo tempo, reafirmava a forma modelar,

tipicamente portuguesa, de tratar os pobres, desvalidos, as crianças, os

doentes, entre outros. (Franco, 2011, pp. 39 - 40)

As reações às questões sociais, em estatuto, realizadas então pelas Santa Casas de

Misericórdia traziam consigo a abordagem de assistência com viés urbano, como o enterro

dos defuntos em excesso pelas ruas, tratamento dos doentes por pragas, lepra, e vítimas de

guerra, da arrecadação de esmolas, do direcionamento e tratamento de órfãos, e outras

dificuldades já conhecidas em Lisboa, e que se tornaram tônicas no Brasil. Sob a ótica da

institucionalização da ação social, estende-se à governança das colônias a metáfora secular do

corpo místico no qual todos os membros da hierarquia (cabeça, braços e pernas) deveriam

estar em condições mínimas para o bom funcionamento mecânico e orgânico do Estado. Isso

se valida em ações como a centralização e institucionalização dos hospitais com vistas a

maior “laicização”, como afirma Sá (1997, pp. 40 - 44).

A América portuguesa teria acompanhado de longe os avanços no pensamento sobre

as práticas mais efetivas de auxilio aos pobres, e na maior parte das vezes a colônia teria

apenas incorporando alguns discursos numa realidade em que a “distância do rei, a baixa

institucionalização do poder eclesiástico, a escravidão, e formas peculiares de legitimação

entre elites e o povo foram condicionantes para o florescimento de atitudes em relação aos

pobres” no território ultramar (Franco, 2011, p. 14). Aos “discursos reproduzidos” também

era somada a natureza religiosa, de dualidade entre ricos e pobres:

Ao rico, compaixão; ao pobre a humildade. Esses binômios tornavam-se

essenciais na composição de uma visão mais ampla da cristandade. A

pobreza apresentava, portanto, uma qualidade potencial: por meio dela, os

ricos justificavam-se mostrando virtudes publicamente e, por sua vez, os

pobres conseguiam seu sustento. (…). Nos domínios ultramarinos igual

repercussão nas comunidades locais não deixava dúvidas quanto a uma

pretensa homogeneidade das práticas de salvação e de mobilização das

elites, e ao mesmo tempo reafirma a forma modelar tipicamente portuguesa,

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de tratar os pobres, os desvalidos, as crianças, os doentes, entre outros.

(Franco, 2011, pp. 39 - 40).

1.4. Público beneficiário e as ações realizadas: semelhanças e diferenças entre metrópole

e colônia

Os beneficiários da assistência14 no Império Português eram pobres que sobre si não

possuíam capacidade de subsistência, e foram outrora muito bem especificados por Sá (1997,

pp. 25 - 34) como pobres envergonhados que eram indivíduos que desceram na escala social,

mas mantinham relações com a classe social original; os merceeiros/as que em geral idosos

sem amparo econômico; os Enjeitados Filhos ilegítimos em risco de infanticídio; além de

leprosos, presos e mulheres vulneráveis segundo sua condição matrimonial – a exemplo das

viúvas.

No Brasil, o perfil do público alvo era similar ao de Portugal, com o adendo de que

índios e escravos15, apesar de serem os mais pobres, não eram considerados público

beneficiário. Senhores pobres de escravos sim eram considerados público alvo, e nos casos

em que escravos fossem atendidos para fins de hospital ou funerário, os custos deveriam ser

arcados pelo seu proprietário. É o que Franco (2011, p. 232) denomina como Caridade

Seletiva. “Na América Portuguesa, escravos ocupavam o último lugar social [...] mulatos

eram associados a vadios e ociosos. Por sua vez, escravos permaneciam como

responsabilidade de seus senhores”. A esmola ainda, em especial de testamentos, levava em

conta aspectos morais dos beneficiários “em suma a ação caritativa frequentemente fazia

questão de selecionar os beneficiários a partir de aspectos morais”, com preferência para

viúvas, e pobres brancos honrados.

14 As misericórdias assumiram, a partir das unificações e privilégios cedidos pela Coroa, os beneficiários tais como os

exemplos institucionais citados por Sá (1997), tendo as esmolas individuais permanecido em menor grau e por vezes

proibidas. Em Lisboa os presos receberam assistência exclusiva das misericórdias quando receberam a incumbência de

prestar assistência no interior das prisões. Todos os atendimentos das Santas Casas eram realizados desde que estivessem

dentro, e sob o espectro, de seus sete compromissos espirituais e corporais. Espirituais: Ensinar os ignorantes, dar bom

conselho, punir os transgressores com compreensão, consolar os infelizes, perdoar as injúrias recebidas, suportar as

deficiências do próximo, orar a Deus pelos vivos e pelos mortos. Corporais: resgatar cativos e visitar prisioneiros, tratar dos

doentes, vestir os nus, alimentar os famintos, dar de beber aos sedentos, abrigar os viajantes e os pobres, sepultar os mortos.

Sá (1997, p. 105).

15 “Por certo, há uma aparente contradição entre a existência do sistema escravista e a prática da caridade. Considerando que

a primeira das 14 obras de misericórdia era “remir os cativos e visitar os presos (...) entre os mesários principais (provedor,

escrivão e tesoureiro) estavam alguns dos maiores proprietários de escravos da região, (...), mas eles eram muito caridosos e

doavam o trabalho dos seus escravos para a construção de um hospital para a “humanidade sofredora”, assim informa o

periódico “O Comércio” em 1863”. (Tomaschewsky-2014, p. 34).

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16

A mestiçagem se tornara, pois, no século XVII uma questão de Estado. E as medidas

diante do crescimento populacional dos mestiços16 ocorrida por motivo dos movimentos

expansionistas, do crescimento do traslado de escravos para a América (a fim de suplementar

e suportar a atividade econômica), e das políticas abolicionistas, foram em certa conta

medidas de privação de direitos, retirando desse público a possibilidade de participar da

política e da governança.

Era nesse sentido que poderiam ser compreendidas as diversas medidas

propostas ao longo do século: criação de juntas de execução sumária, de

forma a conter a violência; tentativas de impedir o recebimento de legados

de filhos mulatos e, ressalta-se, ilegítimos; leis que procuravam controlar o

uso das vestimentas, freando a ostentação... Várias das ações feitas ao longo

do século tinham um fundo moral, de delimitação dos papéis sociais,

tentando restabelecer lugares nem sempre claros diante da miríade de

hierarquias que se constituíra na colônia. (Franco, 2011, p. 301).

Em decorrência, a seguir no século XVIII, o sistema hierárquico nas colônias era

sustentado pela condição inferiorizante dos públicos mestiços, e nessa altura o “segmento dos

alforriados e seus descendentes foi uma espécie de depositário de todos os males vividos na

colônia”. (Franco, 2011, p. 300). Em ambos os territórios (colônia e metrópole), para fins de

satisfazer aos interesses do Estado, a gestão da assistência lidaria após a metade do século

XVIII com a tônica da vadiagem, ociosidade e vagabundagem, formando um arcabouço legal

de repressão ligado à nova “ética do trabalho” que se imporia através de instituições e ações

planejadas. Obviamente, como já dito, no Brasil, os ociosos, vagabundos e vadios eram

mestiços, e do ponto de vista da assistência, tanto Minas Gerais quanto Rio de Janeiro17,

através de retaliações pulverizadas, associadas à rejeição ao crescimento econômico dos

mestiços, observaram maior atuação com esse público.

16 O século XVIII assistiu, portanto, o grande arranque demográfico dos mestiços e libertos, combinado à antipatia inveterada

aos segmentos miscigenados e à influência cada vez maior das ideias que pregavam o controle dos povos como solução para

a monarquia portuguesa (Franco, 2011, p.300).

17 “A importação de africanos provocou um salto populacional significativo na recém-descoberta região mineradora: o

número de cativos, que estava em torno de 20 mil almas na metade da década de 1710, alcançou cerca de 100 mil e 1735. A

cidade do Rio de Janeiro também passou por uma considerável mudança, consagrando-se como a principal via de acesso às

Minas”. (Franco, 2011, p. 306).

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17

É possível verificar que a questão de financiamento18 das obras sociais foi tema

recorrente e gerador de crise ao redor das misericórdias, e posteriormente, do fim da atuação

de algumas instituições religiosas. Na medida em que o Estado se propôs regular e assumir

responsabilidades, as relações com as confrarias e irmandades, especialmente intervindo em

sua composição, função e recursos foram se alterando. Mais do que isso, se alternavam as

relações e a estruturação público – privadas.

No final do século XVIII, as políticas contra a pobreza apontavam para uma maior

racionalização, com mais regulação das esmolas, restrições às confrarias e às definições e os

critérios de públicos beneficiários. Deve-se ressaltar aqui o fato da ‘reação’ social, a partir da

movimentação Estatal em estruturar um “plano” de assistência, assumir o caráter do que mais

tarde seria chamado de política pública, que aparece quanto mais o protagonismo da igreja

católica nesse âmbito é diluído.

Identificadas como “as primeiras mudanças substanciais na forma de lidar com os

subalternos”, as Casas Pias fariam parte de uma política mais de repressão da ociosidade que

para sua prevenção, sendo a base de tais ações repressivas o trabalho forçado. Por algum

tempo o mote contra os vagabundos e ociosos permaneceu, associado à necessidade de mão

de obra.

A casa pia agrupou vários colégios de educação para órfãos de ambos os

sexos, além de vadios e mendigos do século masculino, válidos para o

trabalho, mulheres dissolutas e vadias. As casas pias, portanto, faziam parte

das orientações governamentais, de cunho caritativo e repressor, que

pregavam a disciplina e a ordem às populações pobres, vistas como uma

potencial ameaça que era necessário controlar. (Franco, 2011, p. 327).

Foi sob a gestão Pombalina que tais alterações na assistência se estabeleceram, em

um novo sistema de convicções que se apresentava, o progresso econômico se faria necessário

através do fortalecimento da gestão do Estado. E no que diz respeito à interferência desse

Estado, Abreu (2000, p. 412) aborda que, em geral, até o século XIX, as medidas tomadas

foram “pontuais, insuficientes e de reduzido alcance”. E isto porque até então “não tiveram

força de lei”.

18 De forma similar ao que aconteceu em Portugal, as Misericórdias se tornaram credoras de interesses públicos e privados, e

experimentaram diante desses financiamentos várias dificuldades em reaver os seus recursos. Frequentemente não

conseguiam entrar em posse de legados que lhes cabiam por direitos. Quando era necessário algum socorro, o mesmo era

solicitado em apelo à Coroa. Os empréstimos eram em geral pedidos pelos próprios irmãos, principalmente pelos mais

abastados, ao qual Sá (1997, pp. 84 - 86) chega a reclamar como “ambiente promíscuo”, já que diante de fraudes eleitorais,

nepotismo e outros casos registrados na época, os recursos eram solicitados com discurso de caridade, e depois de angariados

repassados a parentes e pessoas ligadas diretamente a alguns irmãos que constituíam o corpo diretivo.

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18

As reformas nesse sentido, ao considerar o amplo espectro de assistência que já

existia por parte das Misericórdias, foram norteadas por um racional de sequenciamento do

que já vinha sido feito19. Tomaschewsky (2014) remonta a Laurinda Abreu (2008):

Enquanto outros estados europeus reformavam profundamente seus sistemas

assistenciais, Portugal tentava reformá-lo superficialmente mantendo a

estrutura das misericórdias, cuja organização foi sim inovadora, mas no final

do século XVI. O Brasil, Estado nascente, seguiu de perto a política da

antiga Metrópole intervindo no funcionamento de algumas destas

irmandades que apresentavam problemas administrativos e incentivando a

organização de novas associações nas vilas e cidades que cresciam e/ou que

eram fundadas. Porém, diferentemente do que ocorreu nas repúblicas

vizinhas, as irmandades não foram dissolvidas. (Tomaschewsky-2014, p.

151).

1.5. Dois Estados independentes e a relação com a assistência

O que se observa a partir do século XIX, em ambos os territórios é, portanto, uma

gerência social cada vez maior por parte dos Estados, fazendo com que as iniciativas de

‘reação’ às questões sociais tomassem configurações diferentes na medida também em que os

cenários urbanos mudavam para densidades demográficas intensas e não planejadas, ocupados

pela crescente classe operária20 - que reclamavam direitos mas que ainda continuavam em

situação de pobreza – e, em complexidade, miscigenada pelos fluxos intensos de migrações.

As práticas assistenciais e associativas dessa sociedade civil, quando empreende suas

iniciativas organizadas, partem da caridade à filantropia e ao cooperativismo, requalificando,

assim, tais ações de forma que sua representatividade simbólica e factual ocupasse espaço de

ação e diálogo sobre ‘direitos e deveres’ junto ao Estado.

19 “Tem-se ignorado demasiado que em Portugal, tanto durante a dita “monarquia absoluta”, como no Liberalismo

monárquico, o Estado e as instituições formais desempenharam papel decisivo na assistência pública, que é uma das vertentes

do Estado-Providência, e que a rede institucional beneficente não só não era tutelada ou custeada pela Igreja Católica, como,

praticamente, não empregava membros do clero”. (Lopes, 2013, p. 2).

20 O tema da pobreza e direitos operários é predominante ao consultar a historiografia portuguesa. “Não podemos falar, como

dissemos, de estudos da pobreza em Portugal nos séculos XIX e XX, mas sim de trabalhos sobre certas categorias de gente

pobre ou passível de o ser. Dentro destas categorias o que tem gerado maior interesse por parte dos historiadores são os

operários com os seus temas de condições de vida, problemas laborais, movimentos associativos ou sindicais, surtos

grevistas, etc. Todos sabemos que os operários constituíam uma minoria escassa da população portuguesa no séc. XIX,

concentrando-se nos dois maiores centros populacionais, e foi só num século XX bem tardio que a população agrícola deixou

de ser maioritária em Portugal”. (Lopes e Roque, 2000, pp. 7 - 8)

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19

Na configuração dos Estados não existiam ainda direitos sociais como hoje os

compreendemos, mas sim, obrigação com alguns grupos em risco e que estavam destituídos

de tal forma que não podiam por si manter sua existência ou que ameaçavam a ordem e as

condições de saúde e higiene. Obrigações tais que permitiam uma cobrança da sociedade caso

essas demandas básicas não fossem atendidas. Todavia, obrigação difere muito de direito. A

partir do direito, mais social do que político, é estabelecida uma situação em que pode haver

uma ação direta de exigência de certas prerrogativas legais. No caso da ‘obrigação’ só é

colocada a oportunidade de ação no centro do poder, e o que as pessoas podem fazer é pedir,

implorar misericórdia, já que não tem direitos, a sua função é receber. (Tomaschewsky-2014,

p. 40).

Se até então, no Brasil e em Portugal, a Igreja era responsável pela interlocução entre

doadores e assistidos, nas políticas sociais estimuladas pelo Estado as reivindicações

poderiam ser mais diretas. E quanto mais forte o associativismo, mais força no alcance dos

direitos já legalmente concedidos, ou conquistados21. “No século XVI, a ajuda aos pobres

tinha como argumento central a religião. No século XIX a integração da sociedade ocupa um

lugar central e justifica o auxílio que deveria ser prestado” (Tomaschewsky-2014, p. 152) pela

ótica de igualdade dos direitos fundamentais. Assim sendo, as ações sociais exercidas por

particulares, que nesse momento ganham visibilidade sob a alcunha de filantropia, e

estimuladas pelo viés liberalista estatal, cobririam tanto a questão da previdência22 e dos

interesses de classe (muito em parceria com as mutualidades23 que são parentes próximas das

associações filantrópicas e das operárias) quanto assistenciais a partir das obras pias próprias,

21 “Normalmente afirma-se que a Igreja era responsável pela assistência aos pobres e que ao Estado não interessava tal

intervenção. Os marcos para a intervenção do Estado são normalmente a lei de acidentes de trabalho em 1919 e a lei Eloy

Chaves, que estabelece aposentadoria para ferroviários em 1923. O interesse dos historiadores e outros estudiosos sempre

esteve mais voltado para a formação da classe trabalhadora e a obtenção de direitos sociais a partir das lutas operárias (ou

concessões antecipadas). Na verdade, parece haver uma disputa de interpretação (que pode também se colocar como uma

disputa ideológica) entre aqueles que vêm os direitos sociais no Brasil como conquista ou como concessão”.

(Tomaschewsky-2014, p. 37).

22 “A assistência liberal oitocentista não incluía a previdência, já que esta devia ser fruto da iniciativa voluntária dos próprios

interessados, e por isso os governos de então procuraram incentivar o associativismo. À assistência não competia, como

afirmava um ministro português em 1867, “impedir a queda”, mas sim “assistir depois da queda”37. Na realidade, apenas a

queda de alguns. Depois, a acção social do Estado incluiu a previdência. Previdência social (também só para alguns

pauperizáveis) foi no seu ideal o objectivo da política social do Estado Novo. Os posteriores conceitos de segurança social e

de estado-providência englobam toda a população, atingem todos os níveis, o pleno social”. (Lopes 2013, página 9).

23 Ronaldo Pereira de Jesus (2016) apresenta assim o mutualismo: “Desde meados do século XIX, as práticas associativas

difundiram-se vertiginosamente criando ou recriando no mundo ocidental uma variedade significativa de sociedades

científicas, clubes literários, grêmios recreativos (dramáticos, musicais, desportivos), cooperativas, sindicatos e partidos

políticos. Nesse contexto, surgiram as associações de ajuda mútua, cujo objetivo era proteger os associados dos riscos que

comprometiam as condições de vida dos trabalhadores, disponibilizando ajuda pecuniária em casos de doença, acidente,

invalidez, velhice, prisão e morte. Frequentemente, a experiência mutualista ampliou-se para além dos objetivos básicos dos

socorros e passou a preconizar também a construção de bibliotecas, a comemoração de efemérides, a publicação de jornais e

livros, a instrução de jovens e crianças, a procura de emprego e o entretenimento educativo, eventualmente com fins

caritativos ou filantrópicos (Ver: Cedeño, 1983; Recalde, 1991; Linden, 1996; Rosendo, 1996; Munk, 1998; Ralle, 1999;

Dreyfus, 2001; Viscardi, Jesus, 2007)”. (Jesus, 2016, p. 1145).

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20

em forma de doações às causas dos menos favorecidos e desassistidos. Não competia à

assistência pública, como afirmava o ministro português Martins Ferrão em 1867, “impedir a

queda”, mas sim “assistir depois da queda”. Na realidade, apenas a queda de alguns (Lopes,

2013, p. 2). No Brasil, a ampliação da urbanização alterou a percepção sobre os pobres e

escravos. Esses, no racional escravocrata, até então eram mais atributo de riqueza do que

pobreza, e se tornariam “problema social”, alforriados, enquanto classe operária, associados

aos baixos níveis salariais, analfabetismo, ocupação de áreas urbanas insalubres e

desorganizadas.

A passagem das relações de colônia e metrópole para dois Estados soberanos

independentes faz com que as relações entre ambos, no que diz respeito à mútua influência na

matéria associativa, tivessem como principal interlocutor, a grande emigração Portuguesa, e

essa é a segunda grande convergência histórica, da ação social entre Brasil e Portugal desde as

instituições coloniais. Como diz Ferreira (2007, pag.1):

Até os anos 1930, o Brasil foi a destinação preferida de uma importante

emigração portuguesa. Mais de um milhão de portugueses partiram para o

Brasil entre 1889 e 1930. Longe de constituir um grupo homogêneo e

unido, a colônia portuguesa se caracterizou por numerosas divisões

econômicas, sociais e políticas. Um dos fatores dessa heterogeneidade é o

perfil estrutural da emigração portuguesa que conheceu uma evolução

importante no decurso do século XIX. Depois da Independência

brasileira, as primeiras gerações de emigrantes portugueses que chegaram

ao Brasil são majoritariamente bem acolhidas, muitas vezes por membros

da família ou por amigos já instalados em Recife, Salvador ou no Rio de

Janeiro e trabalharam sobretudo no setor comercial. No fim do século

XIX, a emigração portuguesa torna-se uma emigração mais maciça,

muito mais pobre, sem rede de acolhimento no Brasil. (Ferreira, 2007,

pag.3).

Os processos migratórios luso-brasileiros, junto com a manutenção de alguns fluxos

financeiros e comerciais, seriam os laços em comum, daqueles que suscitam ações

assistenciais desde o século XIX até os dias atuais, com alternância de fluxos maiores ora para

o Brasil, ora para Portugal, como se dá atualmente.

Com efeito, depois da Independência de 1822, se Portugal e Brasil

mantêm globalmente relações cordiais, justificadas essencialmente por

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interesses econômicos e demográficos1, as trajetórias políticas dos dois

países divergem, pouco a pouco, no decurso do século XIX. No plano

político e, em particular na política externa, Portugal e Brasil têm poucos

interesses comuns. A política exterior do Brasil é principalmente dirigida

para Buenos Aires, Londres e Washington, onde estavam concentrados os

seus interesses comerciais e geopolíticos2. A política estrangeira de

Portugal é essencialmente baseada em três pontos: a questão colonial, a

busca da neutralidade no contexto europeu e o estabelecimento de

relações políticas cordiais com a Espanha3. (Ferreira, 2007, pag.1).

O pleito por laços estreitos com o Brasil se intensifica depois da Proclamação da

República em Portugal, em 1910. Sob as mãos republicanas a tentativa foi de unificação das

culturas lusófonas, a partir de um discurso nacionalista, em que os ex-territórios coloniais

seriam herança da ação Portuguesa, de sua capacidade de expansão e colonização. O Brasil

serviria de exemplo para as demais colônias. “Assim, a valorização das relações com a sua

antiga colônia permite às autoridades portuguesas provarem a existência dessa esfera de

influência lusófona e afirmar a posição portuguesa na cena internacional como metrópole

cultural e colonizadora eficiente frente aos seus concorrentes europeus” (Ferreira, 2007, p. 2).

Como indicadores dos laços fluidos dentro dos territórios de cultura lusa, estava pois,

o fluxo de imigrantes24. E fatores vários explicam o intenso associativismo dos operários e

das elites portuguesas no Brasil, como a compensação da falta de apoio consular, apoio à

empregabilidade, à seguridade de familiares, e a assistência social básica como enterros e

traslados. Surgiram então associações fortes com diversos fins: religiosos, culturais,

educativos, sindicais, de beneficência e auxílio mútuo, compondo e fortalecendo um

movimento social que se tornaria cada vez mais ativo tanto por parte das associações de

imigrantes, quanto de famílias financeiramente estabelecidas25.

Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX, portanto,

destacaram-se na sociedade civil brasileira intelectuais, políticos, lideranças

religiosas ou leigas que, preocupados com a situação de uma crescente

multidão de desvalidos, mobilizavam seus recursos – materiais e imateriais –

24 “Mais de um milhão de portugueses partiram para o Brasil entre 1889 e 1930”. (Ferreira, 2007, p. 2).

25 “A elite portuguesa no Brasil veicula em particular a idéia de que o português não é um imigrante como os outros, que os

portugueses não são estrangeiros no Brasil, pois portugueses e brasileiros são ligados pela história, pela raça, pela língua e

pela fé religiosa. A contribuição da imigração portuguesa é valorizada como um elemento positivo para o Brasil e para o

povo brasileiro, que evitaria, assim, uma "desnacionalização" da sua cultura, ameaçada pela imigração de povos de raça, de

língua, de tradição ou de religião diferentes”. (Ferreira, 2007, p. 2).

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22

para amparar as vítimas do pauperismo. “Chamaremos esse grupo de

reformadores pois, além de terem atuado como filantropos, sugeriram

políticas públicas a adotar no combate à pobreza. (Viscardi, 2011, pp. 188)

e,

O Brasil, já se asseverou em outro lugar, é a terra produtiva e fertilizante da

filantropia e da caridade. ... O senso social do coletivismo, embora sob

fórmulas rudimentares, sempre teve entre nós um cultivo muito especial e

uma estima bastante cariciosa .... Por toda a parte espalham-se as casas de

beneficência, os asilos, os orfanatos, os estabelecimentos hospitalares, os

dispensários, as casas pias, as associações religiosas, os socorros mútuos, as

devoções, as ordens e as irmandades (Paiva, 1922, p.1, cit. por Viscardi,

2011, pp. 188).

O território brasileiro passa também a se formar como terra de elite filantropa26, na

medida em que essa descobre que é refinado e conferia status ser filantropo, e atuar de acordo

com as tendências que despontavam na Europa, como o caso da tendência e reputação dos

médicos filantropos higienistas. A consciência social se estabelece de forma mais concentrada

nas famílias, a filantropia particular familiar. E em continuidade no tempo, no que diz respeito

às relações, em Portugal e no Brasil, o que passou a ser praticado a partir do século XX foi um

sistema de assistência misto, sobre o que descreve Abreu (2014):

“em que o público e o privado se encontram, com uma forte componente

de voluntariado e muito dependente das dinâmicas locais. Uma realidade

que esteve longe de se circunscrever a esses dois países, como bem se

sabe. Só na aparência, contudo, é paradoxal a ambivalência de Estados

que defendem ser de sua responsabilidade a proteção da população ao

mesmo tempo que incentivam o aparecimento de sociedades

filantrópicas, conservando para si o poder regulador, disciplinar e

punitivo”. (Abreu, 2014, p. 12).

26 De modo geral, a elite carioca da virada do século, ou da Belle Époque, era formada por capital novo que buscava firmar

seus nomes na sociedade e recriar em torno de si um ambiente aristocrático. Na cidade do Rio de Janeiro, capital republicana,

conviviam lado a lado a antiga nobreza egressa do Império e um grupo de ‘novos ricos’, cujo enriquecimento datava da

virada do século. Recorriam, para tal, à aquisição de mobiliário aristocrático, à organização de coleções artísticas e

científicas, e aos hábitos típicos de uma elite salonière. Uma das características dessa elite era buscar sinais ‘aristocráticos’,

que podem ser traduzidos na arquitetura das residências, na sua decoração, bem como na maneira de se vestir dos seus

integrantes. Ao lado dessas ações, a participação em associações filantrópicas ganhava espaço, sobretudo a partir das

transformações do mundo do trabalho – a necessidade de socorro aos acidentes de trabalho, à formação de pecúlio para a

velhice, ao atendimento à maternidade –, que obrigava a repensar as relações entre patrões e empregados. (Sanglard, 2010,

p.130).

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23

Essas relações entre setores, ou parcerias intersetoriais, nortearam discussões a

respeito da qualificação de ações sociais voluntárias menos ou mais emancipatórias, a

depender da instituição, família ou filantropo proponente. E compuseram, a interação público-

privada, em ambos os países, os ‘setores sociais’ propositores e demandantes do serviço

voluntário dos civis, cidadãos comuns, no cenário de um voluntariado institucional, menos ou

mais formal, tema que é aprofundado no segundo capítulo dessa tese.

Definitivos para a maneira como a assistência aos pobres se organiza nos séculos

XIX e XX são os processos de maturação e adaptação do capitalismo, as crises que dele

decorrem, e as movimentações de territórios imperialistas com as respectivas grandes guerras.

Em termos sumários se observa a constituição e o fortalecimento do proletariado enquanto

classe, a burguesia operando como agente social conservador; e o peso específico das classes

e camadas intermediárias (Bastos, 2013, p. 367). A ação das classes trabalhadoras em

sindicatos e partidos, constituindo uma participação social com maior número de movimentos

e forças, acontece também no Brasil e em Portugal, e acabam por influenciar em muito as

ações de assistência e proteção social por parte do Estado, com o nome de políticas sociais.

“Aqui cabe destacar o processo de constituição da consciência de classe

para si, pelo proletariado, que é marcado pelo seu protagonismo nas lutas

por melhores condições de produção e reprodução da vida social,

concretizados através dos sindicatos e partidos políticos. Esse foi um

momento no qual ocorreram diversas crises capitalistas, que acarretaram,

em um primeiro momento, desemprego, redução de salários e postos de

trabalho, aumento da fome e da miséria. A luta dos trabalhadores, aliada à

busca dos capitalistas por instrumentos de controle dessa classe em

ebulição, geraram respostas estatais mais incisivas à “questão social”. A

forma encontrada para solidificar a intervenção sobre a “questão social”

foram as políticas sociais”. (Bastos, 2013, p. 368).

No caso brasileiro as políticas públicas sociais vão ocorrer a partir de 1930, no

governo de Getúlio Vargas. O desenvolvimento das políticas sociais não se dissocia da ação

do poder oligárquico, que continua a influenciar permanecendo sob as bases do poder. A

burguesia brasileira convergiu para o Estado, unificando-se com este no plano político

(Bastos, 2013), e a atuação contra as questões sociais no país são consequência da

centralização de capital pela ação imperialista, e amenizam as tensões a partir de políticas de

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regulamentação do trabalho, vindo daí medidas como a carteira de trabalho, aposentadoria e

pensões, e também os Ministérios da Saúde e da Educação, a Legião Brasileira da Assistência

(LBA), o Código de Menores e a criação do Serviço de Assistência ao Menor (SAM). Em

1930 no Brasil também surge o Serviço Social, que passa a atuar em defesa dos interesses da

classe trabalhadora, dos empregadores e do Estado, de partida suas bases ideológicas são a

doutrina social da Igreja, e desde essa constituição o seu caráter profissional ganha uma

conotação missionária e vocacional, contanto que se mantivesse o controle social dos

trabalhadores. O envolvimento social da igreja fora fundamental nas políticas sociais do

Brasil e em Portugal no século XX, agora, fosse com a sua associação junto as forças políticas

das classes trabalhadoras, ou em suporte moral dos movimentos autoritários nacionalistas.

Em Portugal por longos quarenta anos representa-se a figura socialista do fascismo, o

autoritarismo nascido entre guerras capaz de controlar as massas. A fim de garantir a ordem

pública e uma paz social compulsiva, os fascismos impuseram políticas sociais de tipo

assistencialista (Giorgi, 2014, pp. 93-108 cit. por Garrido, 2018, p. 199), e colocaram em

questão o associativismo e o mutualismo voluntário. O autoritarismo de Salazar e a

construção da estrutura do Estado-Providência português teve que confrontar o movimento de

socorro mútuo decorrente da associação de trabalhadores, o paternalismo patronal de origem

católica ou filantrópica, e o seguro obrigatório instituído na República em 1919 e depois

desconstruído.

“Essa tendência foi ainda mais forte nas ditaduras periféricas europeias,

nas quais o pensamento social católico impregnou as instituições

corporativistas e os aparelhos autoritários de “nacionalização do

trabalho”, em uma clara combinação de ideias fascistas e social-cristãs

(Pinto e Martinho, 2008: 40-42). De modo a enquadrar o trabalho e os

próprios lazeres — recorde-se o papel da Federação Nacional para a

Alegria no Trabalho, criada em Portugal, em 1935, decalcada da Opera

Nazionale Dopo Lavoro, do fascismo italiano, e da Kraft durche Freude,

nazi —, essas políticas sociais hostilizaram quer o seguro social

obrigatório, quer o mutualismo associativo, dados a inspiração socialista

do primeiro e o enraizamento popular e obreirista do segundo”. (Garrido,

2018, p. 199).

E a súmula do processo se dá em longos períodos de repressão da participação

política democrática, na supressão de direitos fundamentais sob pilares paternalistas -

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25

principalmente contra as mulheres -, e no enraizamento da ‘caridadezinha’ como forma de

controle mínimo da pobreza e silenciamento dos assalariados, pobres, até os anos 70. Depois

da revolução, as iniciativas de participação suprimidas puderam ser testadas, o que não

significou redução da pobreza e de consecutivas crises, até a última recessão nos anos dois

mil em que os movimentos voluntários foram essenciais, junto às aberturas do mercado e ao

vínculo político e financeiro à União Europeia27.

No Brasil após os governos populistas, o regime ditatorial a partir de 1964 tratou de

limar desde o serviço social às manifestações voluntárias, coibindo as propostas

emancipatórias e as resistências de um crescimento econômico que, teoricamente, seria

controlado pelo mercado só do qual decorreria o desenvolvimento social28. O

conservadorismo e a tutela como sistema de assistência, trataria de manter a ordem cívica de

trabalhadores silenciados e executores. As convulsões dos movimentos suprimidos, ligados às

pressões político-econômicas, culminaram com o fim da ditadura e têm na Constituição de

1988 o que seria o tratado do fim do regime autoritário. Essa que é nomeada de ´Constituição

Cidadã’ acompanharia o estímulo aos movimentos de garantia de direitos e de participação

solidárias em função também da pauta do combate à miséria, como a ‘Ação da Cidadania

contra a Fome, a Miséria e pela Vida’, por parte do Governo Federal em 1993. O voluntariado

se destaca nesse cenário como um convite ao envolvimento da sociedade civil com aquilo que

os indicadores sociais demonstravam, que era a pobreza reproduzida sistemicamente em razão

de todo o histórico político, econômico e social acompanhado até aquele momento, e que,

após anos de ação de um governo eleito pela classe trabalhadora, ainda que com amplas ações

de acesso à renda por parte das camadas mais populares, persistiram até os dias atuais, quando

o país presencia a governança da direita, neoliberal e conservadora, investindo novamente no

poder.

27 “Quase no seguimento da revolução política, Portugal apresenta a sua candidatura à Comunidade Econômica Europeia

(hoje União Europeia, EU), que é aceite, de princípio, em 1977, e se torna efetiva a partir de Janeiro de 1986. Começa então

o “segundo impulso” europeu da economia e da sociedade portuguesa, depois do primeiro, o da EFTA e da emigração dos

anos sessenta. Este novo estímulo é, todavia, mais radical. A UE representa hoje três quartos da balança comercial

portuguesa. As empresas nacionais estão muito estreitamente ligadas às multinacionais e aos grupos econômicos europeus. O

protecionismo econômico nacional praticamente desapareceu. Portugal é hoje uma das economias mais abertas da Europa,

fato esse medido pela proporção do seu comércio externo relativamente ao produto nacional (Barreto, 2002, p.6).

28 “Com o anunciado “milagre econômico”, a política social foi progressivamente vinculada ao sistema produtivo, com o

objetivo de corrigir distorções entre produção e consumo, e assim atingir maiores índices no crescimento econômico, pois se

afirmava que o desenvolvimento social seria consequência automática do crescimento econômico. Neste sentido, “a prestação

de serviços sociais (educação, saúde, habitação, assistência etc.) passa a contribuir para a reprodução e maior produtividade

da força de trabalho” (Silva, 2011: 51). A política social deste período foi marcada pela extrema centralização política

financeira no nível federal, pela fragmentação institucional na operacionalização da política, pela supressão da participação

popular nas decisões políticas, pelo uso clientelístico dos recursos, pela distribuição de benefícios, pelo autofinanciamento do

investimento social e pela privatização de setores rentáveis, como educação, saúde e habitação” (Assumpção e Severino,

2014, p.108).v

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O voluntariado, velho companheiro da assistência nessa trajetória descrita no

presente capítulo, atualmente pode ainda portar muito dos genes ancestralmente impressos nas

relações sociais. É possível prosseguir com as hipóteses de que os principais pontos de

convergência histórica entre Brasil e Portugal, e de gestação do que se manifesta hoje, sejam

justamente o movimento colonial revestido da moral religiosa e caritativa, que instituiu uma

postura institucional tutelar, e em um segundo momento, os grandes processos migratórios

para o Brasil, que tanto polinizaram uma cultura associativa e mutualista, como contribuiu

com as instâncias de participação política por parte da classe operária que se fortaleceu.

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Capítulo 2. As estruturas do voluntariado em revisão bibliográfica.

Como explorado no capítulo anterior, a linha histórica da assistência aos pobres

modifica-se em consonância com as políticas de Estado que se manifestam menos ou mais

centralizadas. E ao mesmo tempo em que o setor público passa atuar nesse campo

assistencial, também se estruturam as práticas de filantropia laicas, que não substituem

imediatamente a caridade religiosa que se praticava anteriormente, e exercendo, basicamente,

os mesmos tipos de ações.

Esses conceitos concomitantes, sem muito inovar, posicionam genericamente a

assistência mais no chapéu do Estado, a caridade em associação com a igreja, e a filantropia

na organização pela sociedade civil. Isso assim composto, num cenário em que convivem um

número maior de atores e sujeitos, e menor exclusividade da Igreja no comando das ações

sociais institucionais, talvez seja um bom ângulo para a fotografia que se consolida a partir do

século XIX.

O conceito de voluntariado como explorado no decorrer da tese assenta-se sobre

esses e outros construtos que se demonstram basilares, e que por isso serão desenvolvidos na

primeira parte do segundo capítulo. A insistência nesses termos, que nessa dissertação julga-

se estruturantes, é justificada pela hipótese de que a forma como se concebe a participação

social, ainda hoje, especialmente por meio do voluntariado, é uma derivação ou

desenvolvimento dos mesmos. E sendo assim: de onde provém, as ações de voluntariado

buscam reproduzir ou reduzir as desigualdades sociais? O que significa uma iniciativa de

voluntariado para os atores envolvidos nessa atividade? Estão instaladas no campo

assistencial e filantrópico? Sob qual moral e valores? Esses e outros questionamentos poderão

ser examinados nos passos que se seguem.

2.1. Genealogia conceitual do voluntariado

2.1.1. A Caridade

A caridade, que vem do latim caritas e significa amor ao próximo, tem uma base do

seu exercício ocidental no cristianismo, e é uma parente ancestral das iniciativas de

voluntariado como conhecemos, praticada de forma institucional ou particular. Trata-se de

uma elaboração moral sobre o costume da partilha - que sempre foi comum e natural nas

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relações tribais e nas instâncias de sociabilidade primária29. Nesse contexto, a caridade se

desenvolve de forma verticalizada nas relações entre instituições e indivíduos, gerando

qualificações simbólicas para as bênçãos, estando ligada ao caráter nobilitante do indivíduo

que a pratica e ao desvalimento de quem a recebe. Sua incidência, conforme o recorte feito

para esse trabalho30, ganha força institucional na assistência por parte das irmandades

católicas da Europa, por volta do século XV, conforme melhor visto no Capítulo 1.

As motivações para as ações caritativas institucionais na Europa absolutista foram

definidas por Sá (1997, pp. 7 - 19) como uma obrigação dignificante do caráter das elites, e

deveriam começar pela figura dos reis. E os princípios de fidalguia compassiva estavam

imediatamente ligados aos valores cristãos da caridade. Ela era motivada nas mentes nobres,

eclesiásticas e também nas leigas (como no caso das confrarias) e com essa embalagem foi

levada à colônia - o futuro Brasil.

“A valorização dos padrões morais (...) incentivou o uso recorrente das

palavras caridade, compaixão, e mesmo pobreza e esmola como forma de

ação também no universo político. Se as virtudes essenciais de um bom

cristão passariam fundamentalmente por um temperamento compassivo e

liberal em contraposição ao espírito avaro e egoísta, o rei deveria

encarnar a figura máxima de uma visão benevolente com os mais fracos

[...] A caridade cristã aparecia como um grande investimento simbólico

para o monarca. A utilização do termo esmola também imputava a

obrigação moral de cumprir os preceitos caros à monarquia católica. A

imagem de um monarca compassivo permeou discursos políticos,

29 Diógenes (2012) nos faz compreender esses conceitos trazidos por Durkheim, mas cunhados por Alain Caillé:

Sociabilidade primária e a sociabilidade secundária. “O primeiro é considerado como sistemas de regras que ligam

diretamente os membros de um grupo a partir de seu pertencimento familiar, da vizinhança do trabalho e que tecem redes de

interdependência sem a mediação de instituições específicas” (Diógenes, 2005, p.48), quanto à sociabilidade secundária

“trata-se de sistemas relacionais deslocados em relação aos grupos de pertencimento familiar, de vizinhança, de trabalho

(2005, p. 58)”. (Diógenes, 2012, p.14).

E “Robert Castel vale-se dessas expressões para situar o social-assistencial. A sociabilidade primária acontece

quando os membros da comunidade são capazes de dar conta, a partir das relações parentesco e/ou comunais, dos indivíduos

que não podem se manter sozinhos. A sociabilidade secundária acontece quando são criadas instituições específicas para

cuidar das pessoas que, neste caso, podem ser cunhadas de “desfiliadas”. (Tomaschewsky, 2014, pp. 38 - 39).

Além disso: “Os principais campos da socialidade primária são o parentesco, a aliança, a vizinhança, a associação,

a amizade e a camaradagem. Por outro lado, pertencem à esfera da socialidade secundária os campos do teológico-político,

da guerra e do intercâmbio mercantil. Se nos reportarmos às quatro esferas distinguidas na primeira parte, as do Estado e do

mercado pertencem à socialidade secundária, a esfera doméstica, à socialidade primária, e a esfera da dádiva entre estranhos

pertence simultaneamente às socialidades primária e secundária” (Godbout e Caillé, 1999, p. 163).

30 Esse aparte é feito, pois, recortar temporalmente a caridade pode ser impossível, já que ela aparece em textos sagrados

milenares, tendo sua prática estimulada (ou criticada), como atributo do religioso, numa linha temporal de crenças e práticas

que antecede a lógica social e institucional que decido abordar aqui, ou seja, não se abriga nesse trabalho essa interpretação

em que a caridade é anterior e diluída no espaço - do oriente ao ocidente - e presente no campo espiritualista.

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29

tornando se atributo – o do rei “misericordioso” – disputado, por

exemplo, entre os reis de Portugal e Castella”. (Franco, 2011, p. 27).

Para o entendimento do simbolismo incutido nas relações de caridade, é necessário

conhecer os atores que o configuram em dois lados distintos: quem doa e quem recebe. Sobre

o receptor, como afirma Witter (2007, p.157), a caridade está direcionada ao passivo

desvalido, ou seja, os atos caridosos são concebidos para atender uma parcela da humanidade

que é desprotegida31 por paternidade, o que nos remete à qualidade de `relações paternalistas´.

Para manter uma lógica como essa, o juízo dos beneficiários por hipossuficiência é essencial,

pois ele é que garante a ação do doador. Como classifica Castel (1998, cit. por

Tomaschewsky, 2007, p. 14), as pessoas em situação de pobreza puderam ser público-alvo da

caridade institucional religiosa em dois casos: quando eram incapazes de produzir e quando se

tratavam dos “desfiliados” que poderiam trabalhar, mas não encontravam emprego, e esses

últimos eram facilmente enquadrados como vagabundos.

Entretanto, do outro lado, estão os doadores, para os quais pedir ou doar para fins de

caridade era virtuoso, uma vez que não pediam para si, e `desprovidos do egoísmo´, olhavam

também pelos desvalidos e por eles intercediam, portadores, que eram, dos estandartes da

caridade. Sob os olhos atuais, escrito dessa forma pode soar irônico, mas compunha a verdade

simbólica do ato de benevolência.

“Ao rico, compaixão, ao pobre a humildade. Esses binômios tornavam-se

essenciais na composição de uma visão mais ampla da cristandade. A

pobreza apresentava, portanto, uma qualidade potencial: por meio dela,

os ricos justificavam-se mostrando virtudes publicamente e, por sua vez,

os pobres conseguiam seu sustento”. (Franco, 2011, p.16).

E a figura utilitária do pobre para salvação dos ricos traz uma equação comum na

concepção de caridade. Nesse cenário, o voluntarioso doa diretamente ao ‘Cristo

transubstanciado em pobre´’, e essa passa ser a maior das oferendas, ultrapassando para Padre

Antonio Vieira no seu “Sermão das Obras de Misericórdia”, de 1647, até mesmo o

sacramento da Eucaristia. Nessa concepção moral, o homem virtuoso deve ao Rei

(representante de Deus) e respeita os pobres (cristo encarnado) que são concebidos como

31 Sobre o termo desfiliado, ou sem pai (...) “nota-se também a relação direta da palavra com a ausência de relações

paternalistas” - trecho de (Tomaschewsky, 2007, p. 14), no qual a mesma relaciona o paternalismo com as ações assistenciais

empreendidas pelas instituições de caridade, como por exemplo as Santas Casas de Misericórdia.

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30

objetos (meio) para a dádiva (fim) da caridade. Essa construção ainda hoje permeia o

voluntariado que se aloca sob as bases caritativa-religiosa.

A história da caridade no Império Português acompanha a da assistência

personificada nas Misericórdias e demais irmandades católicas, que eram essencialmente

caritativas. Quando a assistência é dissociada de sua exclusividade, somada a uma

responsabilização paulatina do Estado, foram-se apresentando cenários mais difusos de apoio

aos pobres, que englobam a filantropia privada ou a ação pública. O termo caridade,

entretanto, não deixa de ser utilizado, e permaneceu evocado em ambos os territórios. É

também retomado no período romântico, com o mesmo atributo nobilitante, mas nesse caso,

sob uma contextualização menos religiosa e mais filosófica e humanista. A título ilustrativo

há o exemplo da publicação do ano 1887 intitulada Caridade32, em que é possível captar, entre

pequenos textos e poemas, um olhar sobre o que se buscava simbolizar por caridade em

Portugal de 1887. Seu conteúdo exalta a caridade adjetivando-a como: “luz da redenção”, e

“maravilhosos matizes e influxos dessa luz”, “livres do egoísmo e da escravidão”, que se

repetem por todo o conjunto da obra relacionando-a ao ideal de fraternidade, como “virtude

por excelência”, conforme assina Castro Neves na mesma publicação. “O que é evidente, é

que, vivendo nós em sociedade, todos os atos que tentam a beneficiar nossos irmãos, a

minorar os seus sofrimentos, a enxugar as suas lágrimas, a esclarecer o seu espírito, constitui

uma espécie de virtude que não se confunde com nenhuma das outras”.

De forma mais crítica, Tomaschewsky (2007) apresenta um olhar para as relações

que a caridade dinamiza, pelo ponto de vista dos direitos e da justiça social:

“A caridade e a filantropia foram os principais meios (e, de certa, forma

fins) de distribuição da assistência aos pobres desde a Idade Média até

pelo menos as primeiras décadas do século XX no mundo ocidental.

Indivíduos, instituições e mesmo o Estado justificaram as atitudes

tomadas para prestar socorro (ou controlar) os pobres como atos de

benemerência”. (...) “sendo justificada desta forma a assistência não

poderia ser compreendida como um direito, e as ações dos indivíduos ou

instituições que prestavam assistência não poderiam ser pensadas como

atos de justiça social” (Tomaschewsky, 2007, pp. 15 – 16)

32 Vários Autores, Caridade, foi publicada no Porto com data de 21 de março de 1887 em volume único.

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31

A autora também recupera de José Pedro Barrán (1998) um constructo interessante,

que o autor uruguaio chama de potlatch católico “a prática dos peditórios e esmolas, que eram

realizadas em Montevidéu no período colonial, não apenas para caridade, mas para fins

diversos como construção de obras públicas”. Afinal, potlatch, segundo retoma

Tomaschewsky (2014), é um termo de tribos norte americanas que passou a ser um conceito

da antropologia a partir de Marcel Mauss, e que poderia ser traduzido como prestações totais

de tipo agonístico.

“O Potlach era um ritual de dons e contradons realizado pelos chefes

tribais, onde o objetivo era dar mais, aquele que desse mais mostrava que

tinha mais poder e rebaixava o outro, havia inclusive destruição de

riquezas. O princípio fundamental deste conceito é a disputa. Aqui

abordarei a questão das disputas em torno da prática da caridade. Como já

demonstrado, controlar uma instituição de caridade proporcionava muito

poder a quem estava no comando. Estas pessoas também lutavam para

que a sua instituição de caridade tivesse a maior visibilidade, recebesse

mais recursos do governo e mantivesse certo monopólio sobre

determinadas práticas. Normalmente as disputas ocorriam entre

misericórdias e outras irmandades, a Igreja, e instâncias do Estado.

(Tomaschewsky, 2014, pp. 166 - 167)

Disputa e caridade apresentam uma dicotomia, o mal e o bem, convivendo num

mesmo conceito. O cenário institucional da assistência no Império Português (metrópole e

colônia) até o século XIX, ou enquanto se observa a hegemonia das misericórdias, demonstra

especialmente nos estudos de Franco (2011), Sá (1997) e Russell Wood (1981) a disputa das

elites locais para ocuparem cargos dentro daquele que era “O Órgão” da Caridade do Império,

pelo prestígio social, e por toda uma sorte de privilégios, dentre eles a proximidade da Coroa

e seus recursos. “Desta forma, quando as pessoas doavam para as misericórdias, algumas

vezes pensando ajudar os pobres, na verdade doavam para que os ricos locais pudessem

praticar a caridade, e, com isso, fortalecer o seu poder”. (Tomaschewsky, 2014, p.44)

As articulações por parte dos corpos diretivo e político, ligados a essas entidades,

para serem os maiores executores das práticas assistenciais nos territórios da metrópole e das

colônias, acompanhados dos conflitos de interesses e de práticas contabilísticas duvidosas,

fizeram dessas disputas pela ribalta da caridade, em alguns casos, a verdadeira falência de

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algumas misericórdias. E desde então, já se ilustram os interesses oligárquicos intervindo

numa mecânica institucional tal, que traz perdas principalmente aos mais vulneráveis.

2.1.2. A Filantropia

O Termo vem das expressões gregas philos e anthropos que, conjugadas, traduzem-

se livremente como “amor” e “ser humano”. Logo, cabe a interpretação de que

significaria amor ao ser humano, ou à humanidade (Araújo, 2015), que aparece no dicionário

como 1) Enorme amor à humanidade e 2) Generosidade com os outros; e 3) Caridade

(Dicionário on-line Michaelis, 2019), e tem na sua prática equivalência em relação à caridade:

subsistem ainda os pobres e esses justificam a existência dos doadores. Como postula Dilene

Nascimento (2001, p. 1095), “a filantropia pode ser explicada, grosso modo, como a

laicização da caridade cristã, ocorrida a partir do século XVIII, e que teve nos filósofos das

luzes seus maiores propagandistas”. E sendo assim, segundo a autora, o "fazer o bem", a

assistência e o socorro aos necessitados, transporta-se de “virtude cristã” da caridade para

“virtude social” na filantropia, passando a generosidade a ser compreendida “como a virtude

do homem bem-nascido, que tem inclinação para doar largamente” (Nascimento, 2001, p.

1095). De fato, assim se identifica a forte incidência das grandes fortunas entre os principais

filantropos, aplicada ao ocidente de forma geral, de forma extensiva também ao Brasil

enquanto colônia e depois ex-colônia portuguesa, afirmando em si um discurso de ser mais

efetiva do que a anterior caridade33.

A sustentação da filantropia torna-se uma alternativa à manutenção do ato de doar

caridoso, pois se o contexto caminhava para a maior racionalização e laicização, os

indivíduos, em moral, se afastavam da dívida à religião e do temor ao Deus entronado no

absolutismo, para uma dinâmica em que os atores sociais burgueses requalificavam a noção

de nobreza e aristocracia, e as contribuições sociais prosseguiriam sob a mesma dádiva,

apenas ressignificada. Mauss (2001, cit. por Tomaschewsky, 2014, p.152) no “Ensaio Sobre a

33 “As doações no Brasil têm uma longa história, relacionadas de vários modos nos primeiros séculos à Igreja Católica.

Distinções desenvolvidas entre “caridade” e “filantropia” são importantes no Brasil e úteis também no contexto dos outros

países: “A caridade”, religiosa em sua origem e tradicional em seu método, era em resultado “melhorativa”; a filantropia,

desde o início da revolução industrial, prometia ser secular iluminada e inovadora, apoiando ações preventivas e curativas

para o bem-estar dos indivíduos. A caridade buscava aliviar os necessitados; a filantropia recompensava os promissores e

visava descobrir uma forma de melhorar a qualidade de vida de todos.” (Kisil, 2014, p.23).

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33

Dádiva”34 cita a “famosa Surata LXIV “decepção mútua” (último juízo), dada, em Mesa, a

Maomé”, na qual “se encoraja os fiéis a darem esmola em obediência a Deus que, por sua vez,

lhes retribuiria”. Ali, o autor, Mauss, sugere que “Alá” seja substituído por “sociedade” e que

a esmola seja trocada pela cooperação. Sob o simbólico da lei invisível do dar - retribuir (a

dádiva), a filantropia reproduziria esse padrão como se fosse uma releitura da mesma peça

teatral, mas com novos atores. Lins de Mello (2015), em “Economia da Esmola”, entendendo

ser a esmola um ato de caridade, e que essa pode ser realizada por agentes filantrópicos (à

Deus ou ao social), concorda com a opinião de Dilene Nascimento (2001, p. 1095):

“E no plano profano, na sociedade laica, como se traduz essa ação

sagrada? Ocorre que o sentido do sagrado permeia a própria sociedade, é

nela que o sagrado tem sua gênese. A esfera do profano se interconecta

com a esfera do sagrado e produz zonas de confluência onde elementos

do sagrado fazem às vezes de elementos do profano e vice-versa. Assim,

a esmola habita um lócus tanto sagrado quanto profano A ação de doar,

central nesse texto e contexto, possui um sentido de caridade que permeia

ambas as esferas (do sagrado e do profano), justamente em razão de que a

própria sociedade pode ser vista como um ente supremo por excelência,

aquele Ser que cria o sagrado e o profano em um mesmo universo. Logo,

a esmola pode ser compreendida como uma representação coletiva de

origem religiosa e que prossegue no mundo profano prenhe de

sacralidade, em função do sentimento de caridade e da expectativa de

salvação que motiva a ação social dos indivíduos, dos grupos e da

coletividade em linhas gerais”. (Lins de Mello -2015, p. 14).

“A filantropia como ação para com o próximo solidificou-se em tempos idos sob o

reinado do imperador romano Flavio Claudio Juliano, responsável por restaurar o paganismo

como a religião dos romanos e que a utilizou para equiparação ao termo “caridade”, uma das

virtudes da nova religião cristã” (Araujo, 2015). Não é de se admirar que tenha sido

recuperada pelos filósofos iluministas em caráter de laicização, valendo-se ainda “do conceito

histórico da compreensão que Aristóteles e os Estoicos tinham da amizade do homem para

com outro homem” (Araujo, 2015). Atualmente, ainda que aceita como atividade praticada

34 No Ensaio Sobre a Dádiva, Marcel Mauss apresenta um sistema de reciprocidade que existiria como leis nas relações

sociais. “Este sistema, que se expande ou se retrai a partir de uma tríplice obrigação coletiva de doação, de recebimento e

devolução de bens simbólicos e materiais, é conhecido como dom ou dádiva”. (Mauss, 2001, cit. por Martins, p. 53).

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34

por indivíduos (filantropos) ou por entidades filantrópicas - que são associações sem fins

lucrativos-, e assumindo que entidades religiosas desempenhem papel similar, como as

Pastorais no Brasil, não é comum a sua associação com as ações sociais desempenhadas pelas

religiões. Estas ficam mais no âmbito da caridade, como explicado, na sua postura “doutrinal

tradicional”, ou no âmbito da solidariedade sob uma doutrina social, que será detalhada a

seguir neste capítulo. Muito embora não seja de nada proibida a associação filantropia e

igreja.

Como o tempo acompanha transformações, a partir do século XX, especialmente da

década de 90, as ações ditas filantrópicas passam a incorporar racionais de gestão com

projetos sociais planejados e focados em resultados. Essas práticas são designadas por Lins

de Mello (2015) como esmola organizada:

“O que se dá é a ordenação social das esmolas em grandes sistemas

administrativos, econômicos e midiáticos. A esmola e a caridade são

agora um assunto de profissionais que atuam em organizações

filantrópicas ou não, religiosas ou não, privadas ou não, mas

necessariamente sob a supervisão e gerenciamento de expertises que

traçam metas, que planejam objetivos e os executam. A esmola se

organizou!” (Lins de Mello, 2015, p.17).

A filantropia também se torna reconhecida nos séculos XIX e XX no ocidente como

ação social exercida por empregadores, por famílias e particulares. Ela cresce como um

conjunto de obras sociais de relevância e estímulo à produção científica - especialmente na

área da saúde -, à partilha e a retribuição de riquezas gerando atendimento continuado, e à

disponibilização de patrimônio social e cultural por meio das fundações. As fundações, ainda

que remontem aos tempos romanos, estão ligadas à filantropia de uma maneira funcional

(Andrews, 1974, p. 56), passando a ganhar relevância pelas mãos dos ingleses pós-reforma

em substituição às iniciativas religiosas, são pessoas jurídicas ricas na diversidade de suas

propostas de ação. Juntamente com o desenvolvimento da filantropia, as fundações ganharam

regulação própria, e, em alguns países regimes tributários específicos, e papéis diferentes na

relação com o Estado, desde a sobreposição à complementaridade na execução de políticas

públicas.

Em alguns casos, as fundações em acordos públicos passaram a desempenhar em

parceria contratual e convênios a função estatal na área da assistência social, educação, saúde

e cultura. Essas relações buscavam, e ainda buscam, a manutenção das fundações como entes

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35

de apoio, num Estado mais centralizado ou descentralizado. E sobre o seu exercício em

relação ao Estado, na medida em que na Inglaterra do século XIX se fortalece a ideia do

Estado Social, e esse setor - ou “entidade” -, aparece como protetor e garantidor de direitos

sociais, o conceito do “interesse público” se fortalece também, e os filantropos passam a ser

entendidos como aqueles que direcionam fins privados para interesses públicos. E talvez seja

esse o tal “fim público”, a zona de intercessão da filantropia com a atividade do Estado. Os

filantropos empreendem recursos, na maioria das vezes valores em dinheiro arrecadado ou da

parte de seu patrimônio, para causas que deveriam ser mais ou menos atribuição do ente

Governo.

Isso significa que, na medida que a gestão pública oscila para vertentes mais

neoliberais, a filantropia privada se fortalece como alternativa de reação às necessidades

sociais, em forma de “terceirização” de tarefas anteriormente “responsabilidade do Estado”,

ou outro tipo reação, em forma de mitigação, com a retórica de uma sociedade civil que “faz o

que o Estado deveria fazer”. É uma temática frequente e não consensual sobre o melhor

modelo de responsabilizações das relações intersetoriais.

Viscardi (2011) defende que quando não existe um Estado que seja promotor do

bem-estar e seguridade sociais35, as associações filantrópicas e as mutualistas36 serviam para

preencher essa importante lacuna, “contribuindo para a implantação e a consolidação das

relações capitalistas que foram sendo paulatinamente implantadas” desde o fim da

escravatura. Nesse recorte em território brasileiro, acredita-se que tais associações “tenham

cumprido um papel fundamental na sociedade civil, no momento em que surgiram e

proliferaram”.

“pois além de proporcionar um amparo aos desvalidos dos mais diversos

matizes, garantiam, mesmo que parcialmente, a aposentadoria dos

trabalhadores, se constituíam como espaços de lazer e solidariedade,

contribuíam como reforço de identidades coletivas e chegavam até a

funcionar como instrumentos facilitadores do processo de construção de

cidadania” (Viscardi, 2011, p.100).

Nessa perspectiva da filantropia e a sua contribuição para a cultura de participação, a

autora também analisa que, a depender do patrimônio, tamanho e da influência da instituição

35 A autora faz uma apresentação das entidades filantrópicas e mutualistas no contexto brasileiro em meados de 1930.

36 “Entendemos como mutuais as associações criadas com o fim de prestar socorro aos seus próprios membros em momentos

de necessidade” (Viscardi, 2011, p. 100).

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filantrópica, o seu posicionamento na sociedade poderia variar entre a “súplica e submissão”

para conseguir viabilizar as suas obras até à de cobrança e influência sobre o Estado como

entidade formadora de opinião. “Havia, por parte das associações filantrópicas o

entendimento de que desempenhavam uma função que era devida ao Estado. Mas sua postura

em relação ao mesmo diferenciava-se em razão de seu status e papel na comunidade”, diz.

Em um estudo cujo título original é The Dilemma of Middle Class Philanthropy – A

Summary Report Focusing on the BRIC Countries de 2012, e traduzido para o português

como “O Dilema da Filantropia da Classe Média - Uma síntese focada nos países chamados

BRIC” pelo IDIS (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social) em 2014, Kisil

(2014) afirma que a filantropia nos países de língua portuguesa se defronta com duas

realidades:

“sua origem comum, e o desconhecimento que existe no mundo sobre o

que ela representa para as diferentes sociedades onde está inserida. Isto

acontece porque, embora a língua portuguesa seja a sexta mais falada no

globo, e a terceira no ocidente, ele é o idioma oficial em apenas 8 países,

e 80% das 244 milhões de pessoas que o dominam se concentram em um

único país, o Brasil. Como resultado, o português não tem um caráter de

idioma global, ao contrário do inglês, e documentos, estudos, teses, e

livros são produzidos, divulgados e consumidos por um público restrito,

levando a um distanciamento do conhecimento que é gerado e divulgado

em português daquele em inglês, tornando-o restrito e isolado”. (Kisil,

2014, p.7)

Se, como sabemos, a filantropia na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa

(CPLP) tem a mesma raiz – a colonização portuguesa – e contou com o mesmo modelo de

implementação, através das instituições de misericórdias, cujo padrão caritativo dependia da

manutenção do statu quo do beneficiado, segundo Kisil (2014, p.8) “esta influência foi tão

grande que a própria palavra filantropia passou a ter o significado de caridade”. “Em relação à

palavra ‘filantropia’, em português, ela é muito ligada à palavra ‘caridade’. No entanto, não se

trata apenas da palavra, mas do significado geral que é associado à assistência aos pobres de

uma forma paternalista”.

O Investimento Social Privado nasce como uma nomenclatura que desvencilha a

filantropia da sua semelhança ancestral com a caridade nos territórios colonizados por

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Portugal. Diferente de outras partes do mundo como no modelo americano37, este

entendimento – como a filantropia era vista nos países de colonização portuguesa – motivou a

adoção no Brasil desse novo conceito, o de ‘Investimento Social Privado’, que significa “o

repasse voluntário de recursos privados de forma planejada, monitorada e sistemática para

projetos sociais, ambientais e culturais de interesse público. Incluem-se neste universo as

ações sociais protagonizadas por empresas, fundações e institutos de origem empresarial ou

instituídos por famílias, comunidades ou indivíduos” (Kisil, 2014, p. 8) e se tornou muito

comum ouvir no ambiente do terceiro setor, por parte das entidades sociais um discurso como:

‘- não fazemos filantropia, mas investimento social privado’. Ainda que esse discurso se

encerre como específico do setor (“terceiro setor”) e não alargado à compreensão popular38.

E é nesse campo que parte das ações de voluntariado mais estruturadas se assentam

atualmente, a partir de projetos filantrópicos que em sua metodologia prescindem ou

conclamam a participação popular em trabalho gratuito.

2.1.3. A Assistência

O termo assistência é outro dos mais aplicados no contexto das intervenções e ajudas

sociais. Ele é o primeiro que aparece na historiografia em referência às ações das irmandades

católicas, associado à caridade, à filantropia e ao voluntariado. E é interessante observar como

a bibliografia multidisciplinar (entre a história e as ciências sociais) desenvolve esse conceito.

Na descrição desse assunto, a historiadora e especialista em Sociologia e Política,

Tomaschewsky (2014, p. 19) remete ao conceito de Robert Castel em que a assistência seria o

apoio em ‘situações de risco’ (um “evento que compromete a capacidade dos indivíduos de

assegurarem por si mesmos sua independência”). E assim, ela é compreendida como ajuda

37 “Em outras partes do mundo, especialmente com o surgimento da filantropia institucionalizada nos países de língua

inglesa, especialmente nos Estados Unidos e Inglaterra, ocorreu uma importante transformação no significado e na ação

filantrópica. O foco passou a ser a necessidade de enfrentar os problemas sócio/ambientais/culturais de maneira que

transformasse a qualidade de vida dos beneficiados. A filantropia passou a buscar mais intensivamente a mudança social para

que se tornasse justa e sustentável. E, assim, a filantropia passou a se aproximar das questões do desenvolvimento, buscando

gerar modelos de ação que estimulassem a adoção de políticas públicas que beneficiassem toda a sociedade”. (Kisil, 2014, p.

8). 38 “Muitas dessas distinções, senão a maioria, se esvaneceram e a caridade e a filantropia se tornaram mais parecidas do que

diferentes. Para os brasileiros, seus recursos continuam a apoiar as necessidades humanas básicas, complementando ou

substituindo o papel do governo em relação aos pobres. De modo que os analistas brasileiros, e aparentemente muitos outros

no Brasil, agora tendem a usar o termo mais recente “investimento social privado”. “É uma forma de dizer que os doadores

devem ser investidores, não em sentido econômico, mas social: a sociedade deve mudar e lucrar em termos de benefícios.

Como no caso de qualquer outro investimento, informações preliminares devem ser reunidas, oportunidades devem ser

identificadas, modelos alternativos de intervenção baseados em teorias de mudança devem ser descritos, decisões devem ser

feitas, metas devem ser estabelecidas, monitoramento e avaliação instalados...” (Kisil, 2014, p. 23).

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38

para permanecer vivo, e pode ser estudada em qualquer sociedade humana no tempo e no

espaço. (Tomaschewsky, 2014, p. 19).

E de acordo com Renato Santos (2013, pp. 25 – 29), “quando a prestação de

assistência é feita de modo sistematicamente contínuo e estendida ao campo da prestação de

serviços sociais, por particulares, é denominada apenas filantropia”. Para Laura Golbert

(2013, pp. 449 – 454) em outro verbete da mesma publicação - o “Dicionário Temático

Desenvolvimento e Questão Social” - filantropia e caridade foram substituídas39 pela

seguridade social, e isso se relaciona à intervenção pública na assistência:

“A intervenção do Estado na assistência aos setores mais vulneráveis da

população é uma ação de longa data. Ao longo dos anos, mudanças

ocorridas nas distintas esferas da vida política, econômica e social

levaram a que essas ações ou estratégias fossem assumindo formas

distintas. A caridade e a filantropia foram substituídas pela seguridade

social, o que permitiu estabelecer as bases dos Estados de Bem-estar, que

tiveram seu momento de expansão nas décadas imediatamente posteriores

à Segunda Guerra”. (Laura Golbert, 2013, pp. 449 – 454).

Afora o termo ser usado como qualificação de todos os tipos de ações sociais citados

até agora, como por exemplo: a ‘assistência aos pobres por parte das misericórdias e

instituições de caridade’, ou ‘doações e trabalho voluntário para fins de assistência aos

desvalidos’, no decorrer da história, é ligada às responsabilidades do Estado que a palavra

ganha estrutura conceitual quando associada aos direitos sociais dos cidadãos.

E sobre os direitos, em um sistema de assistência que se pretende utilitário, constitui

prática de dominação destituir o público-alvo desses seus direitos, quando para ser

beneficiário desta, faz-se necessário abrir mão de alguns aspectos da sua cidadania. Como por

exemplo, as “Poor Laws” ou “Leis dos Pobres”, políticas públicas disseminadas entre os

séculos XVII e XIX na Europa, e classificadas por Boschetti (2003, p.53) como legislações

que impunham um código coercitivo do trabalho, eram mais punitivas que protetoras, e,

segundo Castel (1998) alguns elementos comuns nortearam tais leis, dentre eles

“o estabelecimento do imperativo do trabalho para todos os que não têm

outros recursos para viver senão a força de seus braços; a obrigação do

39 E se factualmente substitui ou não, ou mesmo se deveria ou não substituir, são questões que não serão fechadas nessa

dissertação. Entretanto, ‘substituir’ na teoria, é diferente de garantir na prática, e garantir tem a conotação de cumprir como

um dever.

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39

pobre em aceitar o primeiro trabalho que lhe fosse oferecido (“quem já

trabalha, que permaneça em seu emprego – salvo se convier ao

empregador dispensá-lo - e quem está em busca de emprego que aceite a

primeira injunção que lhe for feita nos limites territoriais”); o bloqueio da

retribuição ao trabalho efetuado, que não poderia ser objeto de

negociações ou ajustes; a proibição da mendicância aos pobres válidos,

vedando a assistência aos indivíduos aptos para o trabalho, obrigando-os

a se submeterem aos trabalhos oferecidos” Castel (1998, p.98).

E de acordo com Couto, por essa lei

“(...) os pobres abdicaram de seus direitos civis e políticos em troca de

sua manutenção40 pela coletividade. Por meio de uma taxa, paga pelos

cidadãos, e com a preocupação de que os pobres representavam um

problema para a ordem pública e de higiene para a coletividade, o

tratamento deveria ser feito pelas paróquias, que tinham a tarefa de

controlá-los. Evitavam, assim, que as populações empobrecidas

prejudicassem o funcionamento da sociedade e, ao atendê-las dessa

forma, não criavam situações indesejáveis para a expansão do capitalismo

e para o necessário sentimento de competição que deveria pautar a

integração dos homens na vida social” (Couto, 2006, p.63).

A assistência assim exercida destitui o público assistido da condição de cidadão, de

pessoa capaz. Para Schons (1991, p. 45) “uma observação mais cuidadosa nas leituras sobre a

assistência nos últimos anos nos remete à concepção da assistência como um direito social e

uma ampliação para a cidadania41. Isto se pode afirmar das produções críticas seja das

ciências políticas e sociais, como também do Serviço Social”.

Do ponto de vista do Serviço Social, Yazbek (2006, pp. 50 - 51) conta que,

historicamente, a assistência tem sido uma das estratégias acionadas pelo Estado para

enfrentar a questão social estabelecida em relações que caracterizam uma sociedade dividida

40 Ou seja, em troca de serem mantidos (sustentados).

41 Entretanto a autora cita uma tendência, no seu campo de estudo “em permanecer em afirmações gerais e sem a devida

expressão do que significa cidadania”. Entre a bibliografia predominante - e isto quando se especifica sobre a cidadania e/ou

direitos sociais – “aparece em volume T. H. Marshall (1967); Wanderley G. dos Santos (1987); B. Lamounier (1981) (dentro

dessa F. Weffort); Eunice R. Durham (1984). Com raríssimas exceções citam Albert O. Hirschmann (1983); Dalmo Dalari

(1984) e Maria de L. Covre (1986). Nesse aspecto, Vicente de Paula Faleiros (1989) e Maria José G. C. C. de Oliveira (1987)

são exceções” (Schons, 1991, p. 44).

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40

em classes. No Brasil, a autora ressalta que ações de enfrentamento à pobreza têm

acompanhado três distorções limitantes: 1) a matriz do favor, do apadrinhamento, do

clientelismo e do mando; 2) a vinculação histórica ao trabalho filantrópico voluntário e

solidário que vem permitindo confundir ou identificar uma intervenção técnica com a ação

voluntária, e “muitas vezes permeada pelo favoritismo na distribuição das “benesses” do

Estado”; e 3) “Sua conformação burocratizada e inoperante, determinada pelo lugar que ocupa

o social na política pública e pela escassez de recursos para a área”. E assim a autora define a

assistência imersa nesse contexto:

“Área polêmica e complexa, a assistência social é em geral abordada a

partir de sua forma aparente; como uma ajuda pontual e personalizada a

grupos de maior vulnerabilidade social42. Associada a ações de

benevolência para com a pobreza, a assistência se apresenta como

modalidade paliativa e secundária no conjunto das políticas sociais

brasileiras” (Yazbek 2006, p. 51).

Quando se fala do lugar da assistência dentro das atribuições do Estado, é importante

entender como esse oscila sobre a concepção de um Estado de bem-estar. Pereira (2013, pp.

227 - 232) discursa sobre o Estado Social, e apresenta como suas ideias florescem no século

XIX:

“remontam às primeiras conquistas do movimento operário, relacionadas

ao direito de proteção pública, no âmbito do trabalho, e à democratização

do aparato estatal. Para tanto, contribuíram a Revolução Francesa, o

avanço da industrialização, a eclosão da democracia de massas, a

constituição dos Estados nacionais e o acirramento dos antagonismos de

classe” (Pereira, 2013, pp. 227 - 232).

42 “Com o exercício etimológico resgatamos que a conexão dos vocábulos em latim vulnerare, que significa ferir, lesar,

prejudicar, e ‘bĭlis – suscetível a – teria dado origem à palavra vulnerabilidade. Conformado na matriz discursiva da Bioética,

o conceito de vulnerabilidade como condição inerente ao ser humano, naturalmente necessitado de ajuda, diz do estado de

ser/estar em perigo ou exposto a potenciais danos em razão de uma fragilidade atrelada à existência individual, eivada de

contradições. O ser humano vulnerável, por outro lado, é aquele que, conforme conceito compartilhado pelas áreas da saúde e

assistência social, não necessariamente sofrerá danos, mas está a eles mais suscetível uma vez que possui desvantagens para a

mobilidade social, não alcançando patamares mais elevados de qualidade de vida em sociedade em função de sua cidadania

fragilizada. Assim, ao mesmo tempo, o ser humano vulnerável pode possuir ou ser apoiado para criar as capacidades

necessárias para a mudança de sua condição. É com base nessa última afirmação que concordamos que não se trata, a

vulnerabilidade, apenas de uma condição natural que não permite contestações. Isso porque percebemos que o estado de

vulnerabilidade associa situações e contextos individuais e, sobretudo, coletivos” (Carmo e Guizardi, 2018, p. 5).

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41

A noção de Estado Social é centralizadora e depositou nessa entidade o dever de

garantir ao máximo os direitos sociais.

“O Estado Social configurava uma promessa de proteção a todos, do

berço ao túmulo, sem distinção de status ou classe social, uma vez que

seu poder seria utilizado para controlar os efeitos perversos das forças do

mercado sobre a vida dos cidadãos. As origens históricas do Estado

Social” (Pereira, 2013, pp. 227 - 232).

Contestações ao modelo do Estado Social ganham força, principalmente, junto às

vozes do neoliberalismo43, de forma que os pobres passaram a ser responsabilizados pela sua

situação de acordo com a sua movimentação junto ao mercado. Entre os anos de 1970 e 1980,

o neoliberalismo se assumiu como ideologia dominante “na qual o Estado, embora exercendo

regulação social, deixou de ser o principal provedor e garantidor de direitos de cidadania

social” (Pereira, 2013, pp. 227 - 232).

A dança de avanços e retroações do mercado diminuíam ou aumentavam a ação

providencial do Estado. Seriam essas duas forças as únicas definidoras da forma como a ação

assistencial decorria na sociedade? Tendo em primeiro plano o jogo entre Mercado-Estado,

percebe-se a insuficiência intencional ou não desses agentes na resolução da pobreza e na

diminuição das desigualdades. Então na lógica tripartida de setores (primeiro, segundo e

terceiro setores), a sociedade civil organizada aparece como uma reação complementar, mais

ou menos organizada, para dar conta das necessidades básicas não assistidas, englobando

desde ações de cunho sistemático a ajudas humanitárias naqueles casos emergenciais.

Kraychete (2013, pp. 201 - 206) diz que “a posição atribuída às organizações não

governamentais compõe um quadro analítico que tem como pressuposto a centralidade do

mercado na articulação dos interesses socioeconômicos, em contraponto com o poder do

Estado”. E ocorre, a partir da década de 70, com um fortalecimento a partir da década de 90, a

formulação de que o papel do Estado precisa estar constantemente reajustado à sua

capacidade de resposta e tamanho, ele continua, nesses discursos, funcionando como um

agente fundamental, mas como aquele que essencialmente direciona os marcos regulatórios

apropriados aos mercados.

43 “Em 1944 o economista Friedrich Von Hayek, considerado “pai do neoliberalismo”, que o associou a um sistema de

servidão comparável ao socialismo totalitário ou ao nazismo. (...) e ao final dos anos 70 surgiu uma reação conservadora

contra a pobreza: os pobres passaram a ser responsabilizados pela sua própria situação, e, portanto, deveriam ser submetidos

à pratica do workfare (bem-estar em troca de trabalho)” (Pereira, 2013, p. 227).

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42

Então, “a sociedade civil deriva da vida associativa e se coloca ora como um

contraponto ao poder do Estado, ora como seu substituto na execução de algumas das funções

antes de responsabilidade Estatal” (Kraychete, 2013, pp. 201 - 206). Tanto no Brasil como em

Portugal, é defendido que as instituições civis, de iniciativas filantrópicas e voluntárias, mais

ou menos religiosas, ocuparam o seu espaço de assistência social naqueles vácuos de

responsabilização do Estado. “A assistência social por esses entes era executada nos marcos

da caridade e do assistencialismo, diante da miséria e das más condições de trabalho, moradia,

alimentação e higiene da maioria da população” (Iamamoto e Carvalho, 1998, cit. por

Cytrynowicz, 2005, p. 170).

Assoma em seguida a concepção de um agrupamento de esforços sob a perspectiva

dos chamados “arranjos corporatistas” – que seriam as parcerias entre Estado, o mercado e as

organizações da sociedade civil. Conforme apresentado anteriormente sob a ótica da

filantropia, o que ressalta é que, mesmo assim, diante de tantas parcerias, os modelos de

assistência não fecharam as contas até hoje no que diz respeito à sua eficiência no combate à

pobreza, tanto no Brasil quanto em Portugal. Sobre isso, diz Ivo (2013, 17 - 25):

“Ainda que os esforços solidários da sociedade civil sejam

complementares em países de democracia consolidada, em sociedades

onde as desigualdades sociais e econômicas atingem patamares elevados,

como o Brasil, a erradicação da pobreza supõe uma ação deliberada do

Estado no âmbito social. A pulverização das práticas solidárias por

iniciativa das entidades da sociedade civil, ainda que produzam

resultados particulares legítimos, escapam à determinação de prioridades

mais amplas pactuadas numa agenda pública redistributiva” (Ivo, 2013,

17 – 25).

Em Portugal, o tema da assistência amadureceu junto com o sistema da previdência

após a Constituição de 193344, aproveitando elementos e práticas anteriores. Ao Estado

caberia a assistência no sentido preventivo e recuperador. Aproveitando que os portugueses

44 “A nova constituição portuguesa de 1933, que já não incluiu o “direito” à assistência pública, afirmou, que cabia ao Estado

coordenar, impulsionar e dirigir todas as atividades sociais”, no sentido de defender a saúde pública, assegurar a defesa da

família, proteger a maternidade e o zelar pela melhoria das condições das classes sociais mais desfavorecidas, procurando

assegurar-lhes um nível compatível coma dignidade humana. Com uma tónica preferencialmente preventiva ou recuperadora,

em detrimento do carácter curativo, a assistência deveria ser prestada em coordenação com a previdência e com os

organismos corporativos, não favorecer a ‘preguiça’ ou a ‘pedinchice’ e ter em vista ‘o aperfeiçoamento da pessoa e da

família’” (Pimentel, 1999, p. 478).

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43

tinham uma “tendência natural à piedade, religiosidade e espírito de sacrifício45” a ideia foi

protagonizar a iniciativa particular por meio do “espírito caridoso” e, em segunda linha,

estaria o Estado. Essa assistência, que deveria ser dedicada pelo Estado Novo, como relata

Pimentel (1999, p. 482) destinava-se a beneficiar, numa escala vigente, entre “maus e bons”

pobres, apenas os bons pobres, “a única categoria passível de ser apoiada e na qual se

incluíam muitas mulheres, nomeadamente as mães solteiras, as esposas e as crianças

abandonadas, “quando os chefes se deixam arrastar por paixões ou quando houve divórcio”

(Pimentel, 1999, p. 482), um modelo conservador, que não obstante, se assemelha à existência

de crivos e critérios adotados pelas misericórdias nos séculos anteriores, que classificavam o

que se tinha por ‘bom’ beneficiário.

Havia ali um discurso do não parasitismo, ou seja, de forma que as práticas de

assistência social não fossem excessivas para não retirar a autonomia e os esforços dos

assistidos, ainda que esses fossem os mais necessitados de recursos. Em uma articulação entre

a assistência e a previdência, “considerou-se que, enquanto a assistência social devia fazer

incidir a sua ação direta sobre os sectores ‘economicamente débeis’ da população, a

previdência social deveria apoiar os 'economicamente inseguros, afetados pelas vicissitudes

da vida ou por insuficiência dos recursos salariais face às suas necessidades e às da sua

família’” (Pimentel, 1999, p. 505). Contudo, o marco de 25 de Abril de 1974 estabelece o

início de uma nova era da segurança social universal e baseada nos direitos dos cidadãos,

tendo o processo de construção do Estado do bem-estar português sido tardio e diferente do

que moldou, noutros países europeus, o welfare state. (Pimentel, 1999, p. 477).

O termo ‘assistencialismo’ surge associado à assistência, qualificando uma

determinada prática das políticas sociais. E recorrendo ao significado do Dicionário Aurélio

(2019), desde ali o seu sentido traz parte da crítica que o acompanha, (com grifo do autor

deste trabalho).

“doutrina, sistema ou prática (individual, grupal, estatal, social) que

preconiza e/ou organiza e presta assistência a membros carentes ou

necessitados de uma comunidade, nacional ou mesmo internacional, em

detrimento de uma política que os tire da condição de carentes e

necessitados” (Dicionário Aurélio, versão online, 2019).

45 “Num folheto de propaganda sobre a assistência social em Portugal, editado pelo Secretariado de Propaganda Nacional

depois do final da Segunda Guerra Mundial, considerava-se que os Portugueses tinham uma ‘tendência natural à piedade,

religiosidade e espírito de sacrifício’. A assistência caberia, assim, em primeiro lugar, ao espírito caridoso dos Portugueses e

à iniciativa particular e só depois ao Estado” (Pimentel, 1999, p. 481).

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44

Santos (2013, pp. 25 – 29) enuncia que “o assistencialismo implica uma relação de

subordinação e tutela pessoal, pela qual quem oferta um bem ou serviço espera, em troca, a

gratidão em forma de dependência pessoal do receptor para com o doador” o que remete à

ideia da existência de um uso intencional de um desequilíbrio da tríade de trocas da dádiva. A

autora aponta a assistência, especialmente no Brasil, reforçando as práticas de clientelismo,

paternalismo e patrimonialismo.

“A prática e a ideologia do assistencialismo compreendem um misto

entre apadrinhamento (forma de amparo) e clientelismo (troca de

proteção por apoio político), tornando subalterno o sujeito da ação

assistencial. No Brasil o assistencialismo deixou raízes no período

colonial. Sérgio Buarque de Holanda em ‘Raízes do Brasil’ de 1936 ao

descrever o processo de formação da identidade do povo brasileiro,

propõe o termo síntese “homem cordial”: aquele que age motivado pelos

seus sentimentos de bondade, preferindo as relações pessoais ao

cumprimento da impessoalidade da lei. O personalismo nas relações

marca, desse modo, não apenas o advento do assistencialismo como

mediação, mas também como meio de coerção voltada à coesão e

manutenção do poder do património do doador.” (Santos, 2013, pp. 25 –

29).

E prossegue,

“Gilberto Freyre, em ‘Casa Grande e Senzala’, de 1933, analisa o

patriarcalismo como uma maneira de exercício do poder que ao agregar

todos sob os desígnios do patriarca (dono da Casa Grande) combina a

prática assistencialista com o uso consentido da violência. Raymundo

Faoro, em seu livro ‘Os donos do poder’, de 1958, descreve a origem da

corrupção e da burocracia no Brasil e evidencia, ainda que de modo

indireto, a presença do assistencialismo como prática política de

manutenção de pode dos coronéis O Assistencialismo se contrapõe à

construção de um ethos público, na medida em que se torna um dos

obstáculos para a edificação da esfera pública, por manter privadas e

individualizadas as relações sociais em seu conjunto. Os neoliberais se

utilizam do assistencialismo como uma prática de suporte do poder

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45

político, como uma exigência moral no campo da solidariedade, desde

que não seja sistemática e continuamente promovido. A ideia é que os

indivíduos busquem a satisfação de suas necessidades, pela via do

mercado. Desse modo o pensamento liberal não admite a provisão

assistencial como direito de cidadania e, portanto, como dever do estado.”

(Santos, 2013, pp. 25 – 29).

No prefácio da quinta edição do livro ‘Classes Subalternas e assistência social” de

Maria Carmelita Yazbek (2006) Adaíza Sposati diferencia assistência de assistencialismo.

Para ela, a assistência é tecnicamente uma forma de subsídio (seja financeiro, técnico ou

outros) num campo de transferências dinâmicas e multidimensionais “pois supõe de um lado a

necessidade e de outro a possibilidade”. Já o assistencialismo, é o “resultado da difusão de um

imaginário conservador” pois, na transferência de ações assistenciais, coloca na relação de

poder o necessitado de forma subalterna e em consequência, um devedor a quem doa ou

intermedia a assistência. E é de suma importância saber reconhecer a operação de um modelo

ou outro (assistencial ou assistencialista), sobretudo quando se é um cidadão que ocupa os

dois lados: como receptor da política global de assistência do Estado, e como doador de

assistência voluntária filantrópica ou caritativa.

2.1.4. A solidariedade

A solidariedade é um termo que identifica a consistência das relações sociais face aos

contextos externos, ora se aproximando do significado de solidez – sua derivação etimológica,

ora do princípio cosmológico de unidade. Sua ascendência está na elaboração Clássica das

vantagens do coletivo sobre o individualismo, mediante a sorte de argumentos que tangem até

o evolucionismo, no qual espécies com maior cooperação sobreviveriam mais e melhor. O

vocábulo ganhou expressão “mecânica” ou “orgânica” nas reflexões suscitadas em Durkheim

pós-revolução industrial, e é conclamado moralmente, ao ser registrado nas Cartas Magnas

como princípio do direito entre os homens. Ganhou força ao se alinhar ao combate às

desigualdades, e à Doutrina Social da Igreja na luta contra a pobreza, e no Brasil ganhou cara

de política pública com a feição de Ruth Cardoso. Sob a presente análise, é anterior às ações

de caridade, filantropia, assistenciais ou de voluntariado, e não substitui em ação nenhum

desses termos precedentes, mas sim soma-se a eles em adjetivação. Sob a perceção desse

estudo, a solidariedade está como um “sentir o grupo”, por empatia ou obrigação moral,

determinante ou não para a realização de ações sociais.

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46

O termo solidariedade, etimologicamente, significa “laço ou vínculo recíproco de

pessoas ou coisas independentes”, bem como “sentido moral que vincula o indivíduo à vida,

aos interesses e às responsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da própria

humanidade e a relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de

maneira que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o(s) outro(s)”

(Ferreira, 1996, p. 1607). No dicionário Michaelis (Michaelis, 2002, p. 734) o verbete

solidariedade aparece como: “condição grupal resultante da comunhão de atitudes e

sentimentos, de modo a constituir o grupo de unidade sólida, capaz de resistir às forças

exteriores e mesmo de tornar-se ainda mais firme em face da oposição vinda de fora”, e já

aqui é possível associar a solidariedade também como sendo um indicador de resiliência de

um grupo.

No âmbito jurídico, ela é usada para designar “uma situação que é estabelecida entre

os indivíduos (credores ou devedores) que se apresentam solidários em uma obrigação”

(Morais e Tenório, 2017, p.6). O jurista Avelino (2005) a conceitua adicionando a perspectiva

de facilitadora da vida em sociedade e precipitadora do respeito:

“Atuar humano, de origem no sentimento de semelhança, cuja finalidade

objetiva é possibilitar a vida em sociedade, mediante respeito aos

terceiros, tratando-os como se familiares o fossem; e cuja finalidade

subjetiva é se auto-realizar, por meio da ajuda ao próximo” (Avelino

2005, p. 228)

E Martinez (1995, p.78), voltado ao direito previdenciário, associa a solidariedade ao

instinto de preservação: “A solidariedade social é projeção do amor individual, exercitado

entre parentes e estendido ao grupo social. O instinto animal de preservação da espécie,

sofisticado e desenvolvido no seio da família, encontra na organização social ambas as

possibilidades de manifestação”.

Para Almeida (2007, pp. 67 - 71) as definições dos dicionários transparecem uma

ideia de “corporativismo social”, que seria diferente daquilo que o autor chama de

solidariedade cosmológica, tribal ou cultural. Ou seja, a “solidariedade cosmológica” seria

uma característica anterior e inerente a uma instância mais ancestral em que o humano

significa um, ou uma unidade. É como se o autor contrapusesse a ideia etimológica de

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47

“solidez que fortalece um grupo” 46 à de indissociação, em que existira solidariedade

naturalmente porque não há separação entre os homens. Esse mesmo aspecto Boff (2017)

chamou de solidariedade essencial,

“se bem repararmos, a natureza não criou um ser para si mesmo, mas

todos os seres uns para os outros. Estabeleceu entre eles laços de

mutualidade e redes de relações solidárias. A solidariedade originária nos

faz a todos os irmãos e irmãs dentro da mesma espécie”. (Boff-2017)

Do ponto de vista emocional, Morais e Tenório (2017, p. 6) ressaltam a solidariedade

significando um sentimento de compaixão pelo outro. “Para o senso comum a solidariedade

está fortemente ligada ao campo das emoções. Seria uma sensibilidade para com

os menos favorecidos que leva a uma atitude de caridade”, e é interessante que o termo

caridade reapareça aqui, numa esfera em que a solidariedade seria uma característica anterior

à mesma, como um sentimento, ou uma percepção social e moral impulsionadora da ação

social.

Em uma perspectiva histórica, a Antiguidade Clássica aponta as primeiras reflexões

sobre o valor da solidariedade que emerge, ali, na contraposição entre individualismo e o

generalismo. O primeiro, defendido por Protágoras em sua famosa frase em que “o homem é a

medida de todas as coisas, das que são o que são, e das que não são o que não são”, que

representa a vida em sociedade não como uma necessidade, mas uma opção do homem que –

ser pensante, basta por si. E o generalismo, um conjunto de argumentos contrários ao

individualismo, é encontrado nas lições de Platão (A República) e Aristóteles (A Política). Na

República, por exemplo, “Platão afirma sua predisposição para a generalidade, indicando a

solidariedade como forma de assegurar uma convivência social justa e harmoniosa”. (Oliveira

da Silva, 2006, p. 4)47.

A Idade Média teocentrista não teria permitido muita reflexão sobre os valores

individuais e a solidariedade. Apenas o esgotamento do modelo feudal proporcionou um

46

Como dito, considerando o sentido etimológico, solidariedade vem dos vocábulos latinos solidum e solidu, que

pressupõem a condição de sólido, inteiro e compacto. E “Semelhante compreensão tinha os romanos com o vocábulo in

solidum. Tal expressão, no Período Romano, era utilizada na atividade comercial com o sentido de comprometer, com

responsabilidade, cada um dos integrantes de cada uma das partes da transação comercial, credores e devedores, com o

negócio realizado. Estabelecia-se, dessa forma, um vínculo jurídico recíproco entre credores ou devedores de uma mesma

obrigação, de tal modo que esta decisão tornava sólido o que foi estabelecido no contrato comercial. Em outras palavras, a

transação comercial resultava sólida, porque não sofreria desistência ou inadimplência de um ou mais de seus participantes

envolvidos”. (Morais e Tenório, 2007, p. 6).

47 Cleber de Oliveira em seu artigo “O Princípio da Solidariedade” faz um interessante levantamento do entendimento da

solidariedade na filosofia clássica.

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48

reencontro do homem com os pensamentos filosóficos e com a ciência, revelando em

sequência o Renascimento e o Iluminismo (Silva, 2006, p. 7), trazendo de volta o

antropocentrismo protagórico, quando sob afirmações como aquela de Da Vinci em que “o

homem é o modelo do mundo”. E a solidariedade revela-se, também aí, em contraponto aos

valores individualistas48.

Como exercício de um princípio ético, a filosofia do iluminismo de “Jean-Jacques

Rousseau, por exemplo, via na solidariedade a capacidade de manter unida uma coletividade

composta de indivíduos isolados” (Selli e Garrafa, 2006, p. 242). E eis que adiante na linha do

tempo, o aparecimento do Estado liberal-capitalista gerou miséria e competição, e as

dinâmicas trabalhistas da Revolução Industrial provocaram injusta exploração da força de

trabalho. Pierre Leroux, em meio do Século XIX, quando despontaram as associações de

trabalhadores pioneiras, disse: “devemos entender a caridade cristã, hoje, como solidariedade

mútua entre os seres humanos” compreendendo a solidariedade como essa sim, evolução da

caridade. Ou seja, aqui iria-se da assimetria doador-donatário para a participação da

democracia, conforme Laville (2005, p. 1), que também afirma ser Leroux o responsável por

trazer a solidariedade para o vocabulário moderno.

Durkheim (1987, cit por Selli e Garrafa, 2006, pp. 242 - 243), pela ótica da sociologia

do século XIX, apresenta dois tipos de solidariedade: a mecânica e a orgânica. A mecânica diz

de quando “os indivíduos vivem em sistemas econômicos marcados pela ausência de

especialização, entre eles (divisão do trabalho), o que os mantém unidos é a solidariedade

mecânica, que, segundo o autor, caracteriza-se pelo compartilhamento de ideias comuns,

costumes, crenças, hábitos”. Ela se revela nos laços familiares, no ambiente religioso, dos

costumes e tradições. E a orgânica que “faz que os indivíduos, sendo interdependentes,

comportem-se como um organismo” - influenciado pela ciência biológica, em que os

organismos sociais “imitariam” a natureza - e se dá por meio da divisão social do trabalho.

Justamente na interdependência e no reconhecimento de que todos são importantes no sistema

é que está essa solidariedade. Durkheim, à semelhança de Platão e Aristóteles, também

pretendeu demonstrar que o “indivíduo há de se sacrificar, em certa parcela de sua

liberalidade, em nome do todo. E há de agir em prol do Estado, da sociedade, do todo, pois é

da sociedade que ele, homem, provém, e não o inverso” (Silva, 2006, P. 11).

48 “Na constante tensão indivíduo-sociedade responsável por alternar o pensamento humano entre dois pólos opostos: de um

lado, a crença na suprema relevância do individualismo como pressuposto da liberdade e consequente satisfação pessoal; de

outro, a convicção da necessidade da vida em sociedade por acreditar na sinergia decorrente da adesão da vontade individual

à vontade do grupo social.” (Silva, 2006, p. 32).

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49

Ainda no século XIX, nos princípios anarquistas, a solidariedade se alinhou às relações

de ajuda mútua e apoio. Peter Kropotkin, ao se voltar ao Anarquismo - comum na Rússia do

fim daquele século, procurou dar um fundamento natural à solidariedade, em que “o “estado

de natureza” em que se encontram os seres humanos na ausência do Estado seria como uma

“guerra de todos contra todos”. Nesse cenário, a ajuda mútua, ou solidariedade, representaria

um papel fundamental na evolução”.

“Se fizermos um teste indireto e perguntarmos à Natureza quem é mais

apto, se as espécies que vivem constantemente em guerra ou as que se

apoiam mutuamente, veremos de imediato que os animais que adquirem o

hábito da ajuda mútua são os mais aptos” (Kropotkin & Ridley, 2000, cit.

por Selli e Garrafa, 2006, pp. 242).

Kropotkin, em resposta ao Darwnismo Social busca dizer que o mutualismo (ou

ajuda mútua), ao contrário da competição, é a principal potência na garantia à sobrevivência

de um grupo ou o seu progresso. A nomenclatura “solidariedade” se tornou popular, a partir

da década de oitenta, pelo Sindicato Solidariedade (Solidarnosc) da Polônia. E no mesmo

período, em 1978, foi eleito papa na Igreja Católica um polonês, Karol Wojtyla (João Paulo

II.), cujas primeiras encíclicas (Sollicitudo Rei Socialis) trazem uma doutrina social que é

construída sobre as bases da solidariedade, ainda que o assunto não tivesse sua gênese naquele

papado49, antes disso, houve o surgimento do solidarismo cristão.

“Na busca de um contraponto ao individualismo liberal, alguns

pensadores católicos no final do século XIX, preocupados com o papel da

doutrina social da Igreja, desenvolveram uma corrente de pensamento

chamada ‘solidarismo’. O interesse era o de fazer acontecer um equilíbrio

entre o individualismo liberal e o coletivismo marxista (Wildmann,

1961). No bojo da questão, estava o interesse da Igreja Católica pelo

direito à igualdade de todos os seres humanos. Tanto a doutrina social da

Igreja quanto a teologia da libertação têm em sua gênese a solidariedade

com as vítimas do sistema liberal capitalista (Anjos, 2000). Na

49 “Entre 1962 e 1965, é constituído o Concílio Vaticano II, sob o papado de João XXIII. Esse Concílio abriu espaços para

discussões e orientações políticas da Igreja, no qual religiosos, não só católicos, começam a elaborar uma teologia vinculada

às lutas sociais. No Brasil, os padres Henrique Vaz e Almery Bezerra passam a publicar sobre temas ligados a uma ação

popular e engajada da Igreja. Nesse contexto, a politização à esquerda de parcelas da população e a abertura da Igreja

Católica para as políticas sociais, resultado do mencionado Concílio, propiciaram um clima político que resultará no

engajamento de diversos setores religiosos com políticas de esquerda” (Menezes Neto, 2007, p. 332).

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50

compreensão da teologia da libertação, a solidariedade autêntica é a

solidariedade entre desiguais”. (Selli e Garrafa, 2006, pp. 243).

A ‘solidariedade’ ‘solidarista’ passa então a compor esse discurso de luta por direitos

sociais, articulada pela igreja católica em sua parcela do cristianismo social, nas pastorais

operárias e outras frentes humanitárias, buscando situar o indivíduo de forma mais equilibrada

em relação ao Estado e o Mercado, no solidarismo a comunidade estava no centro desse

equilíbrio.

Em seguida, a Teologia da Libertação melhor frutificou na América Latina50, entre

as décadas de 1950 e 1960 os seus primeiros fundamentos e, na década de 70 a 80, atingiu a

sua maior expressão. No Brasil, a redemocratização dos anos 80 e as práticas vinculadas à

Teologia da Libertação tiveram forte influência nos movimentos sociais e de trabalhadores.

Nesse período, pode-se dizer ter havido uma reorganização popular sob o discurso da

igualdade social e da solidariedade na sociedade brasileira, bem como o aparecimento de

novos atores como o Partido dos Trabalhadores (PT), a Central Única dos Trabalhadores

(CUT), e os movimentos sociais que surgiram como as “associações de moradores, de

usuários de transporte coletivo, movimento ecológico, de mulheres, de negros, lutas pela terra,

contra a carestia e pelos direitos do consumidor, além de um grande número de outros

movimentos sociais” como lista Menezes Neto (2007, p. 334). Em Portugal o movimento

político-religioso também teve sua influência no processo de desestruturação do Estado Novo

e revolucionário da década de setenta.

Na década seguinte, um movimento social que leva o nome e o propósito da

solidariedade é organizado por parte do Governo brasileiro, o chamado Programa

Comunidade Solidária, que será melhor abordado posteriormente. Entretanto, como já visto, a

solidariedade não se esgota enquanto relação típica da sociedade civil. Ao contrário, também

pode possuir um elemento político que tem como referência o Estado. A capacidade de

entender essa dimensão política, que se concerne à cidadania e à possibilidade de intervir de

forma ativa na definição de políticas públicas, também caracteriza essa dimensão crítica, e a

dimensão política da solidariedade cruza com o conceito de cidadania, quando nos referimos à

50 Menezes Neto faz um breve resumo da manifestação da Teologia da Libertação, que inicialmente teve influência dos

humanistas franceses, como padre Lebret, Chardin, De Lubac, e outros. E no Brasil os padres Henrique Vaz e Almery

Bezerra passam a publicar sobre temas ligados a uma ação popular e engajada da Igreja. Em 1964, Gustavo Gutierrez

apresentou a proposta de uma teologia vinculada à prática social e ainda em 1964, na cidade de Montevidéu lançou as bases

teóricas mais elaboradas da Teologia da Libertação. Para essa compreensão, a referência filosófica seria buscada no

marxismo, que apresentava a possibilidade da crítica à economia política e aos conflitos de classe. Em seguida, Leonardo

Boff publica “Jesus Cristo Libertador” e além dele, Clodovis Boff, Frei Betto, João Batista Libânio e Carlos Mesters, D.

Hélder Câmara ganham destaque. Nesse ínterim, alguns intelectuais leigos ou ligados ao clero católico se aproximaram do

socialismo, reelaborando a teoria marxista, para que fosse aceita na perspectiva cristã.

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51

responsabilidade do indivíduo com o grupo, e então aqui se faz referência à solidariedade no

contexto dos direitos e deveres (Selli e Garrafa 2006, p. 242).

Remedio (2016, p. 256) nos traz a ideia de solidariedade, hoje, integrando “o valor

base dos direitos fundamentais de terceira dimensão51”. Entre os direitos de solidariedade

previstos no âmbito do Direito Internacional destacam-se a) o direito à paz; b) o direito ao

desenvolvimento; c) o direito ao patrimônio comum da humanidade; d) o direito à

comunicação; e) o direito à autodeterminação dos povos; e f) o direito ao meio ambiente. O

princípio da solidariedade também possui lugar de destaque no constitucionalismo

contemporâneo, sendo muitos os Estados que atualmente o contemplam em suas respectivas

Constituições. (Remedio, 2016, pp. 256 – 257).

Exemplificando, a Constituição da República Portuguesa 52 (aprovada em 2 de abril

de 1976) estatui em seu art. 1º que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade

da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre,

justa e solidária” e a Constituição Federal brasileira de 198853 também dispõe sobre o

princípio da solidariedade em seu preâmbulo. Quanto mais a solidariedade está ao cargo do

Estado, mais é considerada do tipo vertical, e quanto mais diz respeito à colaboração dos

cidadãos, de forma cooperativa, mais é horizontal54 (Nabais, 1999, p. 152-153).

O termo solidariedade, então, situa o voluntariado no indivíduo que exerce seus

direitos e deveres, em um contexto mecânico ou orgânico - a citar Durkheim - e sob uma

matriz teológica-social enlaça um propósito associacionista perante poderes institucionais

51 “Os direitos de solidariedade ou direitos de terceira dimensão desenvolveram-se inicialmente no âmbito internacional e,

apesar de não constarem expressamente da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, passaram a integrar as

Convenções, Declarações, Pactos e Tratados Internacionais proclamados nas últimas décadas, especialmente aqueles editados

com participação ou apoio da Organização das Nações Unidas – ONU”. (Ferreira Filho, 1999, cit. por Remedio, 2016, p.

256).

52 A “sociedade livre, justa e fraterna” contemplada no art. 1º da Constituição portuguesa, de acordo com José Joaquim

Gomes Canotilho e Vital Moreira (1993, p. 59), aspira a ser uma ordem garantidora da dignidade humana do homem livre,

com sua identidade e integridade espiritual e, ao mesmo tempo, uma ordem referenciada por meio de momentos de

solidariedade e de corresponsabilidade entre todos os membros da comunidade. (Remedio, 2016, 258).

53 O Preâmbulo da Lei Maior brasileira faz referência a uma “sociedade fraterna” que, de acordo com José Afonso da Silva

(2005, p. 24), corresponde à “sociedade solidária” mencionada no artigo 3º, inciso I, da Magna Carta de 1988, orientando-se

o sistema constitucional brasileiro, dessa forma, na direção do “solidarismo”. O art. 3º da Constituição Federal estatui que são

objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, entre outros, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária

(inciso I), a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III). A

“sociedade livre, justa e fraterna” contemplada no art. 1º da Constituição portuguesa, de acordo com José Joaquim Gomes

Canotilho e Vital Moreira (1993, p. 59), aspira a ser uma ordem garantidora da dignidade humana do homem livre, com sua

identidade e integridade espiritual e, ao mesmo tempo, uma ordem referenciada por meio de momentos de solidariedade e de

corresponsabilidade entre todos os membros da comunidade. (Remedio, 2016, 258).

54 a) solidariedade vertical, solidariedade pelos direitos ou solidariedade paterna: cada pessoa é responsável pela sorte

dos demais integrantes da comunidade; visa à realização dos direitos sociais a cargo especialmente do Estado Social, bem

como à efetivação dos direitos ecológicos e de solidariedade; b) solidariedade horizontal, solidariedade pelos deveres ou

solidariedade fraterna: relacionada com os deveres fundamentais que o Estado deve realizar legislativamente; também

atrelada aos deveres de solidariedade que cabem à comunidade social ou à sociedade civil em contraposição à sociedade

estadual ou política. (Nabais, 1999, p. 152-153).

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52

maiores, a saber o Estado e o Mercado, e, mutualista, quando carrega em si a proposta ou

sentido de conservação e subsistência do grupo. O voluntariado solidário é o que fortalece

laços.

2.2. O voluntariado no centro da investigação

As fundamentações e conceituações feitas até então constituem panoramas sobre os

quais os diversos tipos de atividades voluntárias se derivam ou se estruturam. Perceber

sistemicamente o fenômeno do voluntariado como atividade da sociedade civil (individual ou

institucional) ou do Estado, só é possível se soubermos discernir as raízes de caridade, se

conhecermos o enquadramento da filantropia, e as abordagens da assistência e solidariedade.

Em relação a esses, é que uma determinada iniciativa voluntária institucional se fundamenta,

consciente ou inconscientemente, em seus porquês, discursos, formas de mobilizar e,

possivelmente, nas suas práticas.

Nesse momento, já é admissível que o voluntariado é um meio, ou uma ferramenta

pela qual iniciativas caritativas, filantrópicas, assistenciais, e solidárias se viabilizam. E a

identificação dos atores envolvidos em determinada ação (seja a igreja, filantropos, o Estado e

pessoas comuns) pode prenunciar os valores que transmitirão o voluntariado que realizarem.

E para além das circunstâncias em que possa existir, e do lugar social que ocupa, o

voluntariado, enquanto prática, traz consigo um arcabouço de construções teóricas sobre si,

em estudos que buscam explicá-lo e enquadrar as suas diferentes formas de manifestação. Por

essa razão, na segunda parte do Capítulo 2, opta-se por uma exploração bibliográfica dos

aspectos do voluntariado no Brasil e em Portugal, na tentativa de perceber como o mesmo tem

sido abordado em pesquisas acadêmicas, como é compreendido, quais as principais

referências bibliográficas, quais as suas classificações possíveis, compondo enfim, um estado

da arte um pouco mais sistematizado. Assim, o que se sugere é uma análise exploratória em

cinco subáreas que permitam uma melhor organização da estrutura de investigação da

matéria, e que reflitam os assuntos mais encontrados durante a investigação do tema no

mundo acadêmico: 1. Conceitos; 2. Elementos caracterizadores do voluntariado; 3. Formas e

subdivisões do voluntariado; 4. Amparo legal; 5. Motivações para o voluntariado.

2.2.1. O conceito do voluntariado pela academia e por entidades de referência

As definições de voluntariado são amplamente descritas na literatura, na qual autores

diversos focam ora no que diferencia o voluntário do trabalhador assalariado, na sua natureza

espontânea para fins públicos contando, ou não, com benefícios pessoais, e ora no seu atributo

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53

de participação social. Encontrou-se a adoção de definições por autores das áreas da

Sociologia, História e Psicologia. Entretanto, os conceitos empregados mais frequentemente

são aqueles definidos e difundidos por órgãos promotores do voluntariado e de defesa de

causa (advocacy), como por exemplo os centros de voluntariado, os marcos legais e,

especialmente, aqueles definidos pelos organismos intergovernamentais internacionais como a

ONU (Organização das Nações Unidas) - e suas agências multilaterais como a UNV

(Voluntários das Nações Unidas) e a OIT (Organização do Trabalho) -, devido à sua isonomia

e à possibilidade de adotar as definições mais padronizadas de voluntariado.

Explorando primeiramente as pesquisas acadêmicas, Cunha (2001, p.828, cit. por

Serapioni et. al, 2013, p. 19) aponta que etimologicamente o termo voluntário, “que vem do

adjetivo ‘voluntarius’, e é derivado de ‘voluntas’ ou ‘voluntatis’, refere-se ‘à capacidade de

escolha ou decisão’ de um indivíduo, e “como adjetivo, foi encontrada sua primeira utilização

na língua portuguesa no século XV significando aquilo que é espontâneo”. Paré e Wavroch

(2002, p.11) definem-no como "um ato livre, gratuito, e desinteressado oferecido às pessoas,

às organizações, à comunidade ou à sociedade" (ambos os autores cit. por Serapioni et. al,

2013, p. 19) e Akintola (2011, p. 54), enfatiza que o ato de ser voluntário implica “tempo e

energia para desenvolver um serviço que beneficia alguém, a sociedade ou uma comunidade,

sem esperar uma recompensa financeira ou material”.

A autora Louis Penner (2002, p. 447) em seu artigo “Dispositional and

Organizational Influences on Sustained Volunteerism: An Interactionist Perspective” enfatiza

a vertente do planejamento na elaboração do que configura uma ação de voluntariado, e essa

linha converge com as ideias daquilo que floresceu no Brasil nos anos 90, promovido pelo

Conselho da Comunidade solidária55, a instituição que define o voluntário como “o cidadão

que, motivado pelos valores de participação e solidariedade, doa seu tempo, trabalho e talento,

de maneira espontânea e não remunerada, para causas de interesse social e comunitário”. Que

ficou popularmente conhecido no país nos últimos anos como o “Conceito dos 3 T´s (tempo,

trabalho e talento)56”, sempre em reforço da necessidade de especialização do trabalho que era

oferecido voluntariamente às organizações do país.

55 ‘Comunidade Solidária’ é um programa do governo federal brasileiro que foi criado em 1995 pelo então presidente

Fernando Henrique Cardoso, que assinou o Decreto n. 1.366, de 12 de janeiro de 1995. Foi encerrado em dezembro de 2002,

sendo substituído pelo Programa Fome Zero. O Programa Comunidade Solidária esteve vinculado diretamente à Casa Civil

da Presidência da República, e foi presidido pela então primeira-dama do país, Ruth Cardoso. Fazia parte da Rede de

Proteção Social, que consistiu na junção de diferentes programas de cunho social. (Menezes e Santos, 200, acesso em: 16 de

jun. 2019 e disponível em: https://www.educabrasil.com.br/comunidade-solidaria/).

56 Para os profissionais brasileiros que trabalham com o assunto, esse conceito é de grande familiaridade e amplamente

replicado, e por isso achei pertinente enquadrar sua origem nesse trabalho.

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54

Em conformidade com a revisão histórica levada a cabo neste trabalho, consta

também que o voluntariado não é um fenômeno recente, apesar de ter se adaptado com o

passar dos anos, acompanhando assim o dinamismo social (Leandro e Cardoso, 2005, p.46), e

principalmente colaborando, em abrangência internacional, como uma forma de reação da

sociedade civil às demandas sociais que se apresentam, sejam elas as concentradas nos países

com maiores desigualdades, sejam nas vizinhanças e comunidades locais. Para todas essas

silhuetas do voluntariado, a comunidade internacional formula definições mais legalistas ou

humanistas.

Independentemente da origem, o fato é que nas organizações sociais que não

dispõem de mão de obra, pouco teria sido construído ou operacionalizado sem o apoio do

trabalho voluntário (Cavalcante, 2013, pp. 161 – 162). E Gomes (2009, p.25), quando evoca

as perspectivas sociológicas do voluntariado, diz que o voluntariado influencia e se forma no

contexto social como uma ação que tem potencial para transformar realidades. Cavalcante et

al (2015, pp. 524-525) ressaltam a relevância da conceituação dada por Cnaan et al (1991),

(1994), (1996), (1998) após um extenso trabalho de revisão de duzentos conceitos, que

resume todo esse contingente num sistema de doação de algo por parte da pessoa predisposta

e em livre-arbítrio, não remunerada, entretanto apoiada, a estar próxima de sua causa em

iniciativas com certo nível de formalidade.

“Cnaan et al (Cnaan & Amrofell, 1994; Cnaan, Handy, & Wadsworth,

1996) revisaram cerca de 200 conceitos e por meio da análise de

conteúdo, criaram uma definição de voluntariado. A análise demonstrou

que todos os conceitos se baseiam na doação de algo – tempo, trabalho

e/ou competências –, em quatro eixos de discussão. O primeiro é o livre-

arbítrio (free will), que pode ser influenciado por motivações internas e

até pressões externas, como amigos ou família, pressões sociais ou

religiosas e até cobranças do mercado de trabalho. O segundo é a

disponibilidade e a natureza de remuneração que pode ser nenhuma ou ir

até incentivos fiscais de desconto no imposto de renda pessoal (Cnaan &

Amrofell, 1994; Cnaan et al., 1996) O terceiro eixo estuda se a

proximidade dos beneficiários pode influenciar na escolha em se

voluntariar, isto é, significa saber se estar próximo ao problema (como

viver na mesma comunidade) que se quer atenuar pode ter influencia na

escolha; e o quarto eixo trata do nível de institucionalização da tarefa.”.

(Cavalcante et al, 2015, p. 525).

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55

E além de pesquisas57 como essas que tendem a se estabelecer como referência, há

também, e são adotados mais amplamente, os conceitos de voluntariado apresentados por

alguns dos principais organismos internacionais e intergovernamentais. A Declaração

Universal do Voluntariado, por exemplo, compõe a estrutura de defesa de causa do IAVE58 e

teve a sua primeira versão publicada em 14 de setembro de 1990 durante a Conferência

Mundial de Paris. Depois de ser atualizada em janeiro de 2001, em Amsterdan, foi adotada

pela direção internacional do IAVE em razão do Ano Internacional dos Voluntários. Trata-se

de um documento inspirado na Declaração dos Direitos Humanos de 1948 e na Declaração

dos Direitos da Criança de 1989 partindo do princípio de que “todas as pessoas têm direito à

liberdade de reunião e associação pacífica”, e propondo um conceito inclusivo na ótica do

direito para todos, sem discriminação, terem pleno consentimento para se reunirem e se

associarem. O texto da Declaração59 descreve o voluntariado como: “uma decisão livre,

apoiada em motivações e opções pessoais; baseada na participação ativa do cidadão na vida

das comunidades que, por sua vez, contribui para a melhoria da qualidade de vida, realização

pessoal e uma maior solidariedade; capaz de dar resposta aos principais desafios da sociedade

- com vista a um mundo mais justo e pacífico -, proporcionando desenvolvimento econômico

e social mais equilibrado, e a criação de empregos e novas profissões; e enquadrado num

projeto, ou movimento organizado, no âmbito de uma associação”.

Um conceito mais amplamente utilizado é o estabelecido pela ONU e pela UNV60

devido à importância e zona de influência desses organismos na comunidade internacional.

57 Outra pesquisa trazida por Cavalcante et al. (2015) complementa a conceituação do voluntariado: “Handy, Cnaan,

Brudney, Ascoli, Meijs e Ranade (2000), por meio de um estudo entre cinco países (Itália, Índia, Canadá, Holanda e Estados

Unidos) com cerca de 2.700 respondentes, concluíram que a percepção de perdas e ganhos auferidos com a atividade

voluntária é uma importante variável na classificação de um indivíduo como voluntário. Assim, o indivíduo que tenha

maiores custos do que ganhos com a atividade pode ser considerado mais voluntário do que aquele que tenha mais benefícios

com a tarefa. Essa hipótese combinada com as características do que não é um trabalho voluntário (não é biologicamente

essencial, não é trabalho pago, não é trabalho forçado nem escravidão, não é trabalho de cuidador de parentes, nem ajuda

espontânea – em eventos como incêndio, por exemplo), além dos quatro eixos de análise, pode classificar uma tarefa como

voluntária ou não (Handy et al., 2000; Meijs et al., 2003)”. (Cavalcante et al, 2015, p. 525). 58 A Associação Internacional para o Esforço Voluntário (International Association for Volunteer Effort - IAVE) é uma

associação que se desenvolveu no âmbito de uma rede global de voluntários, organizações voluntárias, representantes

nacionais e centros de voluntariado. Trata-se de uma organização enquadrada juridicamente como entidade não lucrativa e

cujo objetivo é atuar na promoção, no fortalecimento e no desenvolvimento do voluntariado numa perspetiva global. (Página

na WEB: http://www.iave.org/content/about-iave e http://www.gcvcresearch.org/v1/).

59 A Declaração foi consultada no endereço eletrônico da Bolsa de Voluntariado de Portugal: bolsadovoluntariado.pt em

08/08/2019.

60 Voluntários das Nações Unidas (UNV), disponível em: https://www.unv.org/, segundo a Agência da ONU em sua página

de apresentação na internet, “o voluntariado fomenta a criação de ambientes seguros, estáveis e resilientes, propícios à

resolução pacífica de conflitos. O UNV fortalece parceiros nacionais, impulsionando o sentido de identificação local com os

processos de paz e de desenvolvimento e fortalecendo o reconhecimento do trabalho dos voluntários e sua participação

coesiva em favor da consolidação da paz”.

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56

Quem transita pelo setor e estimula o voluntariado em seus países provavelmente já encontrou

a definição de voluntário como "o jovem ou o adulto que, devido ao seu interesse pessoal e ao

seu espírito cívico, dedica parte do seu tempo, sem remuneração alguma, a diversas formas de

atividades, organizadas ou não, de bem-estar social ou outros campos", que é um conceito

inclusivo do ponto de vista das motivações, reforçador do atributo gratuito e extensivo às

ações mais ou menos formais para diversos campos sociais.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) 61 define voluntariado de forma a

diferenciar o trabalho gratuito para finalidades sociais de outras formas de trabalho,

contribuindo assim para que o direito do trabalho não seja ferido pelo trabalho gratuito

prestado por profissionais no campo social. Segundo a OIT, o voluntariado obedece às

seguintes dimensões: “envolve trabalho; não pode ser remunerado; não pode ser obrigatório;

pode ser realizado diretamente com os destinatários ou integrado numa organização; e não

integra atividades não remuneradas cujos destinatários sejam os próprios familiares; pode ser

realizado em diferentes tipos de organizações (nas quais se incluem organizações públicas,

organizações não governamentais e empresas); e, por último, traz a observância da

pluralidade de áreas de intervenção” (Serapioni et. al, 2013, p. 31).

A questão da dinamização voluntária perante uma legislação trabalhista preexistente

faz com que os marcos legais, tanto no Brasil quanto em Portugal, tragam essas vertentes

laborais em sua redação para recortar exatamente, em domínio regulatório, as questões

relacionadas com um trabalho prestado de forma voluntária e gratuita. Mais adiante nesse

capítulo, aprofundam-se as características da legislação do voluntariado nos dois países.

Ocorrem, ainda, diante da exploração conceitual do voluntariado, uma série de outros

termos62 relacionados como o ativismo, associativismo, mutualismo, participação e cidadania

61 Organização Internacional do Trabalho (OIT), Disponível em: https://nacoesunidas.org/agencia/oit/. Acessado em

Agosto/2019.

62

Das relações estabelecidas entre o voluntariado Wilson (2000, cit. por Serapioni et. al, 2013, p. 17) distingue voluntariado

de ativismo, em que no segundo caso, em regra, há uma atenção maior para uma causa, de maneira quase impessoal.

Entretanto há transito entre o voluntariado e ativismo, na medida em que as ações de ativismo tendem a ser voluntárias, ou

seja, espontâneas e participativas. Anheier e Salamon (1999) e Wilson (2000) fazem uma distinção entre voluntariado e

associativismo: “distinguem participação de presença utilizando o argumento de que não seria possível pagar a uma pessoa

para participar numa manifestação em lugar de outra, mas poder-se-ia pagar a alguém para organizar essa manifestação ou

à organização que organiza essa manifestação. Esta definição implica, pois, a exclusão da definição de voluntariado

“strictu sensu” um conjunto de atividades ligadas ao associativismo. Encontramos também esta distinção no trabalho de

Onyx e Leonard (2002), que reforçam a ideia que a pertença a uma associação é diferente do voluntariado nessa

associação” (Serapioni et. al, 2013, p. 17). Já o mutualismo, uma forma de associativismo, é conceituado por Pitacas (2009)

“uma doutrina económica e social, um conjunto sistematizado de ideias que reflecte atitudes e comportamentos e, também,

um movimento social, com ideias e organização. Essa organização é composta por mutualidades (também denominadas de

associações mutualistas e de associações de socorros mútuos). A mutualidade é a forma institucionalizada, o grupo de

pessoas e as suas relações, que defende, promove e pratica as ideias mutualistas. Constitui, assim, uma forma colectiva de

organização social para conseguir, em comum, objectivos (cobertura de riscos sociais, satisfação de necessidades sociais)

que não se conseguem alcançar individualmente, senão através do esforço e recursos de muitos, através dum processo

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que, por não constituírem o recorte central desta dissertação, não serão aprofundados.

Figurarão, contudo, na literatura e nos testemunhos dos entrevistados da pesquisa empírica ao

referir-se sobre as diversas formas de voluntariado e os cenários em que se aplicam.

2.2.2. Elementos que caracterizam o voluntariado

No que diz respeito aos elementos que configuram um trabalho voluntário, Hardill e

Baines (2011)63 propõem três componentes condicionantes ao voluntariado: que ele seja livre,

não-remunerado e que ofereça alguma ajuda. Sampaio, Sônia (2012, p. 10) - cita Cnaan et al

(1996) que desenvolvem o voluntariado com as mesmas três diretrizes: ser unpaid (não

remunerado), undertaken through an act of free will (decorrente de um ato de livre vontade) e

of benefit to others (que traduz benefícios para os outros). Barbosa (2000, p. 197) também faz

uma divisão em elementos para caracterizar o voluntariado, adicionando a esses três as

componentes do comprometimento e da continuidade, e, portanto, para ele o voluntariado

deve ser: gratuito, espontâneo, contínuo e ainda exige disponibilidade.

Fernandes (2002, pp. 101 - 125) entende que o trabalho voluntário seja ‘não-

individualista’ e antropocêntrico, mas também solidário com o meio e com a natureza,

trazendo a perspectiva da relação do homem também com o ambiente, e condicionando o

voluntariado a um motivo válido para que ele exista, no qual o voluntariado só o é se beber de

razões altruísticas. Extrapolando as relações solidárias para além daquelas formais, Hill &

Rochester (2010, pp. 9 - 10) lembram que o voluntariado pode também ter uma expressão

individual, não prescindindo necessariamente de uma estrutura formal, ou seja, pode ser

exercido informalmente nas redes através das quais um indivíduo se relaciona ou se insere.

Em se tratando das instituições internacionais de defesa de causa do voluntariado e

afins, é natural que se delineie um construto mais detalhado e com maiores componentes

reguladoras, de forma a prevenir e/ou mitigar os riscos nos diversos tipos de serviços

prestados pelo mundo, embora preservando a retidão da proposta para o voluntariado Como

exemplo, o Centro Europeu do Voluntariado - CEV (2011, p.21) estabelece diretrizes mais

cooperativo de ajuda e benefício mútuo” (Pitacas, 2009, p. 20) e podem ser associações que desenvolvem atividades no

âmbito profissional com prestação de bens e serviços ou promotoras de atividades cívicas e culturais. Em Portugal o

mutualismo tem sua força na complementação da previdência social e de assistência à saúde, no Brasil, o movimento decorre

de associações sindicais (Viscardi, 2010, p.31). Em ambos os países as mutualidades estão associadas ao voluntariado em

seu discurso de entreajuda e solidariedade entre os seus membros e em seu papel social. Participação e a cidadania estão

presentes nos discursos de ampliação da democracia “que se expressa na criação de espaços públicos e na crescente

participação da sociedade civil nos processos de discussão e de tomada de decisão relacionados com as questões e políticas

públicas”(Teixeira, Dagnino e Silva, 2002, 21-76), e um aprofundamento desses dois últimos assim como feito com

caridade, filantropia, assistência e solidariedade, extrapolaria o foco dessa investigação.

63 As autoras podem ser encontradas citadas em (Serapioni et. al, 2013, p. 17).

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desenvolvidas sobre o exercício do voluntariado, que deve ser: (1) Livremente escolhido, não

coagido, baseado na motivação pessoal; (2) Altruísta, para o benefício de outros (localmente

ou a uma escala mais larga); (3) Fora da família, num contexto organizado ou informal; (4)

Não remunerado, ainda que com reembolsos de despesas associadas à atividade voluntária;

(5) Fora das diretivas do pessoal remunerado e sem sanções por quebra de contratos ou

obrigações acordadas; (6) Orientado por valores, baseado em valores como a construção da

paz, solidariedade, direitos humanos, desenvolvimento sustentável, democracia e prestação de

contas; (7) Aberto a todos: inclusivo. Já para a Organização do Trabalho (OIT), os princípios

do trabalho voluntário são assim descritos: (1) Deve envolver trabalho; (2) Não ser

remunerado; (3) Não ser obrigatório; (4) Poder ser realizado diretamente com os destinatários

ou integrado numa organização; (5) Não integrar atividades não remuneradas cujos

destinatários sejam os próprios familiares; (6) Poder ser realizado em diferentes tipos de

organizações (nas quais se incluem organizações públicas, organizações não governamentais e

empresas); (7) e, por último, a observância da pluralidade de áreas de intervenção64.

É de se reparar que o CEV inclua a expressão ‘não coagido’ por forma a prevenir

aqueles casos de programas que exercem pressão cultural para que o voluntariado seja feito. A

principal forma de identificar um caso de coação social, ou de nível hierárquico, é avaliando

se existem ou não represálias (sociais e profissionais, diretas e indiretas) caso se opte por

declinar uma determinada ação voluntária, e no caso do voluntariado promovido por

empresas, uma atenção maior deve pesar sobre esse aspecto. A OIT marca que deve haver

trabalho, ou seja, a prestação de um serviço por tempo determinado, em oposição, por

exemplo, a uma mera doação de um agasalho. Ambos, CEV e OIT, deslocam o foco de

benefício do serviço voluntário para fora das famílias daqueles que prestam o serviço,

distanciando-se da lógica das confrarias e outras formas de associativismo, como as

mutualidades. Para o CEV, a questão da não remuneração não impede que, no exercício das

tarefas voluntárias, o indivíduo seja ressarcido de despesas de deslocamento ou outras que por

ventura tenham ocorrido, e não estabelece sansões por descontinuidade da prestação do

serviço.

2.2.3. Como o voluntariado pode ser classificado

As classificações do voluntariado na literatura são subdivisões por iniciativas

empreendidas em âmbito institucional ou pessoal, por organizações privadas (com ou sem fins

64 Para encontrar os princípios do voluntariado tanto do CEV quanto da OIT sistematizados é possível recorrer a Serapioni et.

al (2013, pp. 30 - 31), o melhor e mais completo documento em elaboração conceitual do voluntariado que pôde ser

identificado durante essa pesquisa. E espera-se que o presente exercício acadêmico corrobore para a estruturação do assunto

junto às investigações existentes em língua portuguesa.

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lucrativos) ou públicas, as quais um indivíduo pode, ele próprio, conceber ou então se associar

a alguma já existente. Também é comum que se classifiquem as oportunidades de

voluntariado entre pontuais e contínuas, diferenciadas pela constância e regularidade de ação

em um projeto, e que se categorizem pelo uso das competências profissionais ou pessoais.

A distinção entre formal e informal é basilar para o desenvolvimento desta tese, que

propende para uma correlação do voluntariado institucional entre dois países. O voluntariado

formal é aquele planejado e oferecido por entidades (dentre elas empresas privadas) que

intermediam o papel entre quem doa o seu tempo e o beneficiário direto da ação. As

iniciativas formais compõem um amplo espectro de ações, e podem ser desde campanhas

pontuais a projetos continuados. As primeiras sendo desenvolvidas por um curto período do

ano - em geral sazonais e associadas a alguma data relevante do calendário -, convocam um

número mais volumoso de voluntários para um trabalho pontual (ex. uma campanha de natal

ou uma ação emergencial em decorrência de alguma catástrofe); as segundas, as ações

contínuas, podem caracterizar-se por ocupação de funções específicas, como ‘cargos’, na

prestação da assistência oferecida por alguma entidade (ex. uma associação que dá apoio

sistemático a pessoas com deficiência visual e cujo atendimento de acompanhamento

psicológico é resguardado pelo serviço voluntário de psicólogos durante algumas horas da

semana).

Além disso, as ações contínuas podem significar atividades diversas dentro de um

projeto social estruturado, no qual um voluntário pode participar do planejamento, da

execução de tarefas, de ações de capacitação, sensibilização e diálogo com a população - com

aulas, cursos e atividades extracurriculares com crianças -, no cuidado de idosos e doentes,

etc. Por isso, no voluntariado formal, o indivíduo pode prestar apoio às atividades base da

entidade promotora, mas também a serviços complementares. Ou seja, sempre que uma

organização identifica em si, ou em outra, ou mesmo numa comunidade, a necessidade ou a

oportunidade de desenvolvimento de ações voluntárias, e essa organização (ou empresa)65

planeja e promove a ação de voluntariado, garantindo que a estrutura mínima para tal

aconteça, trata-se de voluntariado formal ou o organizado. Nessa definição, a publicação da

Fundação Eugénio de Almeida (Serapioni et al, 2013) registra:

“uma outra distinção é entre voluntariado formal e informal, o primeiro

levado a cabo em grupos ou organizações e o segundo realizado numa

65 Por meio do chamado ´Voluntariado Empresarial´(mais empregado no Brasil) ou `Voluntariado Corporativo´(mais

empregado em Portugal) que são projetos de voluntariado empreendidos por empresas, em consonância com suas estratégias

de Responsabilidade Social Empresarial, que por sua vez é uma forma da empresa se relacionar de forma responsável com os

seus parceiros internos e externos.

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base interpessoal no contexto de relações de vizinhança e da dádiva de

tempo (Hardill e Baines, 2011). Encontramos também esta distinção em

Parboteeah, Cullenb e Lim (2004), onde o voluntariado informal inclui

comportamento como, por exemplo, ajudar os vizinhos ou idosos, e o

voluntariado formal se caracteriza por comportamentos semelhantes, mas

enquadrados no âmbito de uma organização. Ou seja, na definição destes

autores a formalidade e formalização do conceito de voluntariado está

também associado ao carácter institucional do mesmo”. (Serapioni, 2013,

p. 20).

Em termos numéricos, no que respeita o voluntariado formal no Brasil, a Pesquisa

Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua)66 revelou que a grande maioria dos

voluntários o é através de Organizações Não Governamentais (ONGs) ou empresas, e dessas

organizações, 79,9% são congregações religiosas, sindicatos, condomínios, partidos políticos,

escolas, hospitais ou asilos e cerca de 13% dos voluntários cumpriram atividades em

associação de moradores, associação esportiva, ou outra organização. Apenas uma pequena

minoria, 9,8%, realizava o trabalho de forma individual, porém essa parcela vinha

aumentando ano a ano, pois em 2016 era 8,4% e em 2017 subiu para 9%67.

Comparativamente, em Portugal, de acordo com o Inquérito ao Trabalho Voluntário do ano de

201868, a percentagem do voluntariado formal sobre o número total de voluntários é de cerca

de 82%, e de voluntariado informal o valor é de 20%, considerando que um mesmo cidadão

pode realizar ações dos dois formatos. A pesquisa define o voluntariado formal como:

“Trabalho Voluntário Formal ou Organizacional, que se entende como

todo o trabalho não remunerado e não obrigatório que tenha sido

realizado através de uma organização (ex. voluntariado como professor

ou tutor numa organização; participação em ações de um Banco

66 A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) é promovida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE) tem como objetivo produzir informações contínuas sobre a inserção da população no mercado de trabalho

e de características tais como idade, sexo e nível de instrução, bem como permitir o estudo do desenvolvimento

socioeconômico do País através da produção de dados anuais sobre outras formas de trabalho, trabalho infantil, migração,

entre outros temas. Tipo de operação estatística: Pesquisa domiciliar integrada, ou seja, constituída por todas as pessoas

moradoras em domicílios particulares permanentes da área de abrangência da pesquisa.

67 Agência de notícias IBGE, 2019. Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-

noticias/noticias/24268-pais-tem-7-2-milhoes-de-pessoas-que-fazem-trabalho-voluntario.

68 O ITV 2018 constituiu um módulo autónomo do Inquérito ao Emprego referente ao 3.º trimestre de 2018. Incidiu sobre

variáveis fundamentais para a caraterização do voluntariado, nomeadamente o número de voluntários, características

sociodemográficas, enquadramento institucional, tipo de tarefa e número de horas de trabalho dedicadas. E foi realizado pelo

INE – Instituto Nacional de Estatística.

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Alimentar, coletividades de cultura, desporto e recreio)” (Instituto

Nacional de Estatística, 2019, p. 14).

Em Serapioni et al (2013, p.21), encontra-se também endereçamento específico para

o fato de que dentro do voluntariado formal existe a classificação do voluntariado dirigente,

assim como em outros autores como Delicado (2002, p. 130) e Inglis e Cleave69 (2006, pp.

83- 101). A classificação dá-se com a finalidade de identificar aqueles voluntários que

exercem cargo de gestão, ou ocupam órgãos estatutários (dirigentes) ou de execução (não-

dirigente) de entidades sociais. No âmbito da execução, situam-se muitas outras funções com

estatutos muito próprios, como uma consultoria voluntária, os mentorados, os voluntários

formadores, cuidadores, os construtores e reparadores de estruturas e equipamentos físicos,

dentre outros, em relação aos quais o desempenho da função de gestão (dirigente) entraria

como uma atribuição de responsabilidades e importância diferenciadas. Ocorre, inclusive, a

sobreposição de muitas delas, em que um dirigente é quase sempre também um executor,

despertando sobre as pessoas que acumulam esse papel, um interesse que, mais tarde, se

tornou também critério para as entrevistas empíricas dessa tese, com o objetivo de observar,

no campo, a perspectiva de terreno na promoção do voluntariado do Brasil e Portugal.

Dentro das classificações do voluntariado, existem ainda aquelas que se distinguem

pela periodicidade, ou seja, daqueles voluntários que atuam de forma contínua, com certa

regularidade, e aqueles que atuam pontualmente durante um período de tempo. Sobre isso

Catarino (2004) traz:

“São frequentemente apontados como voluntários regulares os que

desempenham atividades de voluntariado pelo menos uma vez por mês

durante um período de pelo menos um ano. Os voluntários ocasionais

desenvolvem atividades de regularidade inferior a um mês durante esse

período. Os voluntários pontuais são os que desenvolveram uma

atividade de voluntariado episódica nos últimos 12 meses” (Catarino,

2004, cit por Serapioni et al p. 19).

Nos últimos tempos, as tecnologias têm possibilitado o voluntariado à distância,

complementar ao presencial, o que configura outra classificação de acordo com a presença ou

ausência física. O voluntariado tradicional é presencial - e os conservadores poderão defendê-

69 “The purpose of this study was to develop a framework for identifying the motivations of board members in nonprofit

organizations. Building on previous work of board member motivations (Searle, 1989; Inglis, 1994) and motivations of direct

service volunteers (Clary and others, 1998), the results of the current study support a framework consisting of six

components: Enhancement of Self‐Worth, Learning Through Community, Helping the Community, Developing Individual

Relationships, Unique Contributions to the Board, and Self‐Healing”. (Inglis e Cleave, 2006, p. 1).

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lo como a única maneira de ser voluntário -, por forma a reforçar os laços das relações

humanas e da pessoalidade. A argumentação sobre esse aspecto envolve uma discussão a

respeito das relações humanas na modernidade como um todo, sobre conectividade e

formação de redes. O fato é que a natureza cada vez mais tecnológica das relações também

tem sido promovida para fins solidários ou de voluntariado. Na verdade, segundo a presente

pesquisa, isso nem é assim tão recente.

“O Voluntariado Virtual não é um conceito novo. Vem sendo praticado

há mais de 30 anos, provavelmente desde que nasceu a internet. A

primeira ocorrência de voluntariado virtual organizado de que se tem

notícia é o Projeto Gutenberg (http://www. gutenberg.org, um esforço

voluntário que começou em 1971 para digitalizar, arquivar e distribuir

obras literárias e culturais publicadas que continuam a ser digitadas e

revisadas por voluntários on-line, hoje sob a coordenação de Distributed

Proofreaders (http://www.pgdp.net)”. (Galiano, 2014, p. 38)

Então o voluntariado digital surge a partir dos laços que pode gerar, uma vez que o

contato digital e o pessoal no lugar de serem linhas paralelas, podem ser caminhos que se

encontram. Como refere Galiano (2014, p. 38), “como estou a um clique de me conectar a

você, estou a um clique de te conhecer e de saber a razão do que você faz”. Portanto é

observado que esse tipo de voluntariado, também denominado de voluntariado à distância,

cyber-voluntariado, ou voluntariado online (dentre outras terminologias similares), vem

ganhando lugar na medida em que o mundo moderno com o seu excesso de exigências e suas

peculiaridades – ex. a mobilidade urbana nas cidades grandes - demanda outras formas de

interação entre as pessoas, de controle e gestão do tempo, e outras maneiras de resoluções de

problemas. As tecnologias permitem que os voluntários apoiem causas e instituições a partir

de atividades que possam ser realizadas pela internet, de casa ou remotamente de outra

localidade, de forma mais eficiente e num tempo mais curto. Contudo, o voluntariado digital

permite que ela faça algo de onde está, com relevância significativa, prestando suportes como

produção e conferências de planilhas de controle financeiro, traduções de textos,

planejamento e escrita de projetos para captação de recursos, atendimentos online através de

ferramentas de conversação por vídeo, gravação de áudios de tradução de obras literárias e

acadêmicas para pessoas com deficiência visual, dentre muitos outros. Um exemplo de

iniciativa bem-sucedida desse tipo é o programa de voluntariado on-line das Nações Unidas.

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“Os voluntários on-line podem ser profissionais, estudantes, donas de

casa, aposentados, pessoas com deficiência, expatriados. Eles podem

residir em qualquer lugar do mundo e oferecem o seu apoio on-line, mas

compartilham um forte compromisso de contribuir para o

desenvolvimento humano sustentável (…) as relações pessoais continuam

fortes, mas são em rede. Ainda existem os vizinhos, claro, mas ficou mais

fácil trocar ideias, obter um conselho ou apoio emocional a quilômetros

de distância.” (Galiano, 2014, p. 38)

Um termo denominado “microvoluntariado” também foi criado para dar vazão a

‘micro-tarefas’ que podem ser realizadas no dia-a-dia, em geral à distância, em favor de

causas e instituições sem o investimento de longos períodos de tempo. Trata-se de um

voluntariado de curta duração, sem compromisso de se repetir e com o mínimo possível de

formalidade. A organização holandesa Sparked70 define o microvoluntariado através de quatro

características: é conveniente pois encaixa-se na agenda, geralmente através do computador

ou smartphone; é “byte-size”, (um trocadilho com “bite-size”, que significa “do tamanho de

uma mordida”) e pode ser realizado num período entre tarefas. As tarefas são divididas em

pequenas partes, para que possam ser completadas em qualquer momento disponível; é

crowdsourcing, ou seja: em geral, as ONGs que precisam de ajuda pedem assistência a um

grupo de microvoluntários que têm tempo, interesse e as habilidades necessárias para fazer o

trabalho; é gerenciado em rede: os profissionais das ONGs ganham tempo delegando, por

exemplo, a análise de projetos para a sua rede de microvoluntários, explica Galiano (2014, p.

86).

E a respeito das possíveis áreas de ação dos voluntários, os âmbitos, conforme tem

sido mostrado, são muitos. Catarino (2004, p. 12) subdivide-as em ação social, saúde,

educação, ciência e cultura, comportamento cívico, ambiente, defesa do consumidor,

formação profissional, reinserção social, proteção civil, desenvolvimento da vida associativa,

economia social e solidariedade social como as principais áreas de atividade (cit. por

Serapioni et al, 2013, p. 20). A Lei do Voluntariado (Lei nº 9.608) do Brasil, estabelece que as

áreas de ação do voluntariado são aquelas que tenham “objetivos cívicos, culturais,

70 Skills for Change. The Microvolunteer Network. Disponível em: http://www.sparked.com/content/nonprofit. Acessado em

agosto de 2019.

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educacionais, científicos, recreativos ou de assistência à pessoa71” e já a legislação portuguesa

especifica:

“A atividade referida nos números anteriores tem de revestir interesse

social e comunitário e pode ser desenvolvida nos domínios cívico, da

ação social, da saúde, da educação, da ciência e cultura, da defesa do

património e do ambiente, da defesa do consumidor, da cooperação para

o desenvolvimento, do emprego e da formação profissional, da reinserção

social, da proteção civil, do desenvolvimento da vida associativa e da

economia social, da promoção do voluntariado e da solidariedade social,

ou em outros de natureza análoga”. (DR – Diário da República, 1998, p.

5694).

Utilizando os termos descritos por Fagundes (2006, p. 98), ao referenciar Yazbek

(1993, p. 50) e Martinelli (1989, p. 73) encontrou-se uma especificação pelo tipo de relações e

resultados que as ações de voluntariado podem oferecer: desde aquelas mais caritativas ou

assistencialistas, às mais emancipatórias e “empoderadoras” dos indivíduos beneficiários.

Essa abordagem de Fagundes (2006) será parte do roteiro para o Capítulo 3 desta tese, em que

se busca identificar esses elementos de forma comparativa entre o voluntariado no Brasil e em

Portugal através de entrevistas.

2.2.4. Síntese dos aspectos legais do voluntariado no Brasil e Portugal

O marco legal do voluntariado no Brasil foi promulgado no ano de 1998 sob o

governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso. A sua formulação teve gênese junto

ao movimento `Ação da cidadania contra a fome, a miséria e pela vida´, outrora criado (ano

1993) pelo Estado com a finalidade de estabelecer ações estruturais e emergenciais, no centro

de ações desse tipo estava o Programa Comunidade Solidária72, fundado por Ruth Cardoso73.

71 Alteração na Lei nº 13.297, em 16 de junho de 2016: O Ato em referência altera o artigo 1º da Lei 9.608, de 18/02/98,

para incluir a assistência à pessoa como objetivo de atividade não remunerada reconhecida como serviço voluntário.

72 O Programa Comunidade Solidária foi instituído pelo Decreto n. 1.366, de 12 de janeiro de 1995, para o enfrentamento da

fome e da miséria. Até dezembro de 2002, o Programa esteve vinculado diretamente à Casa Civil da Presidência da

República e foi presidido pela então primeira-dama do país. Sobreviveu ao fim do governo FHC (2002). Em janeiro de 2003

passou a ser vinculado ao Ministério da Segurança Alimentar e tinha José Baccarin como secretário-executivo. Em 23/03/03,

o jornal O Estado de S. Paulo (p. A4) noticiava: “Comunidade Solidária está na geladeira”, mostrando as cobranças dos

deputados do PSDB para a continuidade do Programa que se encontrava sem nenhuma atividade, situação que persistiu

durante o ano de 2003 quando foi, gradativamente, desarticulado no interior do Governo Federal. A partir de janeiro de 2004,

não se encontravam mais dados sobre o Programa nos endereços eletrônicos anteriormente conhecidos, e o Ministério (agora)

Extraordinário da Segurança Alimentar (MESA) passou a ter o “Fome Zero” como seu carro-chefe”. (Peres, 2005, p. 109).

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Nesse período foram estabelecidas ações como a criação da Secretaria de Assistência Social

do Ministério da Previdência e Assistência Social, o Programa Nacional de Publicização, e o

Programa Voluntários, que incentivou a constituição de Centros de Voluntariado74 por todo o

país, chegando naquela altura a uma rede de 60 centros, nas principais cidades do Brasil.

Nessa linha de qualificação das organizações do terceiro setor, dos esforços de assistência, e

de uma mobilização da sociedade civil para se envolver nessa rede, é que nasce a Lei n. 9.608,

de 18 de fevereiro de 1998, com o objetivo de enquadrar o voluntariado legalmente, e

proteger as entidades promotoras nessa relação de trabalho que passa a ser incentivada no

âmbito do exercício da cidadania. E que define o trabalho voluntário como:

“o cidadão que, motivado pelos valores de participação e solidariedade,

doa seu tempo, trabalho e talento, de maneira espontânea e não

remunerada, para causas de interesse social e comunitário” (Diário

Oficial da União, 1998, p. 28).

E também sugere que as relações entre entidades e voluntários seja regulada por um

Termo de Adesão ao Trabalho Voluntário, que contrate as características da prestação de

serviços gratuitos no âmbito do tempo, do tipo de trabalho, da frequência dentre outros. A Lei

9.608 até hoje sofreu uma alteração75.

Na tentativa de amplificar a visibilidade da causa e de ampliar a governança nacional

sobre o tema, em 2018 o governo federal criou o Programa Nacional de Voluntariado – Viva

Voluntário, com o objetivo de “reunir esforços do setor público, do terceiro setor e da

iniciativa privada para promover o engajamento das pessoas em ações transformadoras da

73 Antropóloga e ativista social, Ruth Cardoso inspirou projetos e programas de fortalecimento da sociedade civil e de

promoção do desenvolvimento social. Durante o mandato presidencial de seu marido, Fernando Henrique Cardoso, fundou

o Programa Comunidade Solidária e presidiu o seu Conselho (1995-2002). A iniciativa mobilizou parcerias entre

organizações não governamentais, universidades, empresas e governos para a construção e a difusão de programas sociais

inovadores. As ações desenvolvidas visaram a promoção da cidadania e do desenvolvimento local, por meio da capacitação

de pessoas e da organização da comunidade (…) Legado: sua trajetória de vida combinou ensino e pesquisa com liderança na

sociedade civil. Defendeu suas ideias e discutiu suas experiências em palestras, conferências, reuniões de trabalho, encontros,

no Brasil e no exterior. Trabalhou e dialogou com empresários, empreendedores, ativistas sociais, políticos, artistas, jovens,

homens e mulheres. Recebeu diversos prêmios e condecorações. Seus principais lemas foram: “Combater a pobreza não é

transformar pessoas e comunidades em beneficiários passivos de programas sociais. Toda pessoa tem habilidades e dons.

Toda comunidade tem recursos e ativos. Combater a pobreza é fortalecer capacidades e potencializar recursos.” (Fundação

Fernando Henrique Cardoso, pesquisa feita em 2019, link do sítio eletrônico: https://fundacaofhc.org.br/arquivo-ruth-

cardoso).

74 São organizações autônomas e independentes financeira e administrativamente, que buscam atender às necessidades da

região onde estão inseridas.

75 A lei que faz uma pequena alteração no âmbito do voluntariado é a Lei nº 13.297, de 16 de junho de 2016. O Ato em

referência altera o artigo 1º da Lei 9.608, de 18/02/98, para incluir a assistência à pessoa como objetivo de atividade não

remunerada reconhecida como serviço voluntário.

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sociedade”. O Decreto 9.149/2017 é que dá origem ao programa e sua principal ação é a

constituição de uma plataforma que ligue oportunidades de voluntariado e voluntários,

assim como muitas que já existem no país:

“Art. 1º Fica instituído o Programa Nacional de Voluntariado, com as

seguintes finalidades: I – promover o voluntariado de forma articulada

entre o Governo, as organizações da sociedade civil e o setor privado; e II

– incentivar o engajamento social e a participação cidadã em ações

transformadoras da sociedade, com enfoque no alcance dos Objetivos de

Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030”. (Diário Oficial da

União, 2017, p. 6).

Em 09 de julho de 2019 o Governo Federal altera o decreto anterior e assina o

Decreto Nº 9.906 que cria o programa “Pátria Voluntária” com o texto “Institui o Programa

Nacional de Incentivo ao Voluntariado, o Conselho do Programa Nacional de Incentivo ao

Voluntariado, o Prêmio Nacional de Incentivo ao Voluntariado e o Selo de Acreditação do

Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado”. A substituição do “Viva Voluntário” pelo

“Pátria Voluntária” tem como principal diferencial a governança. Na medida em que o

anterior dava chancela para que voluntários e organizações sociais que promovem o

voluntariado participassem por chamamento público dos processos decisórios, nesta última

versão é possível observar alguma perda dessa oportunidade na sociedade civil na medida em

que os representantes atuais são designados pelo Ministro de Estado e Cidadania. Além disso,

é repassado ao Ministério responsabilidades que estavam ao cargo do Conselho no programa

anterior. O mesmo Ministério no governo em vigência abriga as pastas da gestão e execução

das políticas de desenvolvimento social e combate à fome. E diante das movimentações

políticas pelas quais passam o Brasil no ano de 2019, fica difícil prever como será o

desenvolvimento dessa iniciativa.

O marco legal português, por sua vez, tende a ser mais detalhado - pelo bem e pelo

mal. A sua principal referência atual está na Lei de Bases 71/98 de 3 de Novembro de 1998,

que contempla o voluntariado formal desenvolvido nas organizações, detalhando a

operacionalização de um programa de voluntariado e exigindo, dentre outros, a existência de

cartões de identificação de voluntários e um seguro para todos os envolvidos. Segue um

resumo da legislação sobre o assunto em Portugal, de acordo com o ‘Guia do Voluntário’

realizado pela Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES, 2002, p.29).

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Legislação Nacional Do Voluntariado Em Portugal

Lei n.º 71/98, de 3 de Novembro - Bases do enquadramento jurídico do

voluntariado.

Decreto-Lei n.º 389/99, de 30 de Setembro - Regulamenta a Lei n.º

71/98, de 3 de Novembro, que estabeleceu as bases do enquadramento

jurídico do voluntariado.

Resolução do Conselho de Ministros n.º 50 (2.ª série), de 30 de Março

de 2000 (publicada no D.R., II série, n.º 94, de 20 de Abril) - Define a

composição e o funcionamento do Conselho Nacional para a

Promoção do Voluntariado.

Resolução da Assembleia da República n.º 7/99, de 19 de Fevereiro -

Aprova, para ratificação, o Tratado de Amesterdão, que altera o Tratado

da União Europeia, os Tratados que instituem as Comunidades

Europeias e alguns atos relativos a esses Tratados, incluindo o Anexo e

os Protocolos, bem como a Ata Final com as Declarações, entre as quais

a 38, relativa às atividades de voluntariado.

Decreto-Lei n.º 40/89, de 12 de Fevereiro - Institui o seguro social

voluntário, regime contributivo de carácter facultativo no âmbito da

Segurança Social, em que podem ser enquadrados os voluntários. O

seguro social voluntário foi objecto de adaptação ao voluntariado pelo

Decreto-Lei n.º 389/99, de 30 de Setembro.

(Legislação Nacional Do Voluntariado Em Portugal pela CASES, 2002,

p.29)

O CNPV – Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado, que fora criado ao

abrigo do Decreto-Lei 389/99 de 30 de setembro e que tinha por missão desenvolver e

qualificar o voluntariado, deixou de existir em 2017 pelo Decreto-Lei 39/2017 que deu à

CASES – Cooperativa António Sérgio para a Economia Social as atribuições para a

prossecução das políticas de voluntariado, na área não consultiva; o Decreto-Lei 48/2017

criou a Comissão de Políticas de Voluntariado, integrada no CNPSSS – Conselho Nacional

para as Políticas de Solidariedade e Segurança Social76, como descreve o Avasocial (2018) e

revogou expressamente o Decreto-Lei 389/99, restando assim, não regulamentada, a Lei

76 Órgão consultivo que tem por missão promover e assegurar a participação, dos parceiros sociais, do movimento

associativo e outras entidades da sociedade civil, em articulação com as entidades públicas legalmente competentes para a

definição e acompanhamento da execução das políticas de segurança social, políticas sociais e de família, bem como, da

inclusão das pessoas com deficiência e do voluntariado (Diário da República, 2017, pp. 2479 - 2485).

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71/98 – Bases do enquadramento legal do voluntariado. A Lei voltou a estar regulamentada

pelo disposto no Decreto-Lei 33/2018 – Disposições necessárias à execução do Orçamento do

Estado para 2018, que represtina77 “o regime previsto no Decreto-Lei 389/99, (…) com

exceção das normas relativas ao Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado” (DR -

Diário da República, 2018, pp. 2013-20164).

Na análise dos marcos legais, é possível observar que a legislação brasileira integra

as iniciativas informais na medida em que possui um teor expansivo quando redige “para

causas de interesse social e comunitário”, dando cobertura sob a lei para aquelas iniciativas

que são empreendidas no dia-a-dia até por organizações menores que não possuem grandes

possibilidades de criar e desenhar processos, fluxos burocráticos e outras ferramentas de

gestão básicas para a sua manutenção (e, portanto, menos ainda para a formalização de um

programa de voluntariado). Situação essa que é diferente em Portugal, que legisla apenas as

iniciativas formais, compondo na sua redação uma série de exigibilidades que ao mesmo

tempo que podem ser educativas, em forma de pré-requisito para uma entidade receber

voluntários, são também castrativas, naqueles casos em que os dirigentes não possuem

recursos financeiros ou de gestão para se enquadrarem nas exigências da lei, notadamente um

desenho e registro de um programa formal de gestão e capacitação de voluntários, a confecção

e entrega de certificados, ou até o pagamento de um seguro.

Sob este ponto de vista, é importante observar qual o valor simbólico que um apoio

legal dá ao cenário do voluntariado de um país, desde um sinal verde com delineação mínima

mas sem apoio estrutural, como o caso do Brasil, ou uma legislação que se pretende educativa

e que eleve o nível das práticas de gestão do voluntariado mas que empiricamente favoreça as

maiores organizações tradicionalmente amparadas, e dificulte o alavancamento das iniciativas

mais esparsas ou iniciantes, como no caso de Portugal.

77 Assim, são agora atribuições da CASES, nomeadamente, ações como “conhecimento e caracterização do universo dos

voluntários e das organizações promotoras de atividades de voluntariado;” (…) “emissão do cartão de identificação do

voluntário;” (…) dinamização de “ações de formação, bem como outros programas que contribuam para uma melhor

qualidade e eficácia do trabalho voluntário, a título individual ou em articulação com as organizações promotoras de

atividades de voluntariado;” (…) concessão de “apoio técnico às organizações promotoras de atividades de voluntariado,

mediante, nomeadamente, a disponibilização de informação com interesse para o exercício do voluntariado;” (…) a

promoção e a divulgação do “voluntariado como forma de participação social e de solidariedade entre os cidadãos, através

dos meios adequados, incluindo os meios de comunicação social” (Fonte: Sítio eletrónico

http://www.avasocial.org/noticias/3934/ja-nao-ha-conselho-nacional, acessado em junho de 2019).

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2.2.5. Motivações para o trabalho voluntário

O campo das motivações compõe um largo espectro das pesquisas acadêmicas sobre

o voluntariado. Elas passam essencialmente por teorias que discriminam quais aspectos se

associam ao altruísmo contraposto (ou não) ao egoísmo. E essas motivações podem ser

integradas numa única experiência de motivação, ou dissolvidas em múltiplos motivos. Que

de forma genérica, perpassam primeiramente por um diálogo do conteúdo interno do possível

voluntário (seus valores, estágio de vida, experiências prévias, etc.) com a experiência de

sociabilidade do mesmo (suas influências interpessoais: o contexto e normas sociais, a rede

social que compõe) em contato com a ação proposta pela organização (quem propõe a ação,

para quem elas são propostas, o objetivo da ação e seus valores), e com as circunstâncias

operacionais (tempo necessário, distância geográfica). Sendo que, além disso, o resultado e as

consequências geradas por esse grupo de fatores, é em si um último grupo dos pontos que

podem influenciar ou não a continuidade da ação de um voluntário segundo Omoto e Snyder

(1995, pp. 671 - 686)78.

O acervo bibliográfico sobre as motivações para o serviço voluntário tem sua maior

contribuição científica do campo da psicologia social e cognitiva, seguido de estudos da área

de gestão aplicada aos recursos humanos em entidades do chamado Terceiro Setor. Depois,

estão aquelas pesquisas relacionadas às áreas da saúde, da política e sociedade. Sobre a

natureza da motivação humana, de uma forma geral, Marques (2016) cita alguns autores ao

afirmar que se trata de uma experiência inerente ao universo interno da pessoa, um conjunto

de fatores implícitos, nem sempre consciente, e quem vem sendo explorado com curiosidade

pelo mundo científico nos últimos anos:

“A motivação é encarada como uma espécie de força interna que emerge,

regula e sustenta todas as nossas ações mais importantes. Contudo, é

evidente que motivação é uma experiência interna que não pode ser

estudada diretamente” (Vernon, 1973, citado por Todorov & Moreira,

2005, p. 11), ou seja “a motivação, ou o motivo, é aquilo que move uma

78 “De forma mais simples, Omoto e Snyder (1995) definem o processo de voluntariado em três estágios: O primeiro tem a

ver com os antecedentes da atividade voluntária e é composto por motivações pessoais que levam ao início da atividade

voluntária. O segundo estágio é a experiência do voluntariado, que pode promover ou impedir um envolvimento continuado,

dependendo de dois fatores. Um refere-se à satisfação pessoal no desempenho da atividade e o outro à integração

organizacional. O terceiro estágio é o das consequências para o voluntario e para a sociedade em geral, no qual as atividades

voluntárias podem influenciar as atitudes pessoais, medos, conhecimento e o próprio comportamento do voluntário”.

(Marques, 2016, p. 38).

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pessoa ou que a põe em ação ou a faz mudar de curso.” (Bzuneck, 2009,

p.9). De acordo com Latham e Pinder (2005, citado por Ferreira, et al.,

2008, p.45) “é um processo psicológico complexo que resulta de uma

interação entre o indivíduo e o ambiente que o rodeia (…), é um conjunto

de forças «energéticas» que fazem com que um indivíduo inicie um

comportamento relacionado com o trabalho e determine a sua forma,

direção, intensidade e duração (…) Portanto, estudar a motivação consiste

em analisar fatores que levam os indivíduos a escolherem ações dirigidas

num determinado sentido com o intuito de alcançar um objetivo (Oliveira

& Alves, 2005)”. (Marques, 2016, p. 31).

O assunto das motivações estende-se pelo serviço do voluntário, ou ao

voluntarismo79, pesquisando a natureza altruística do homem perante os sentimentos de

empatia e de reconhecimento do seu papel no social. A questão do altruísmo é trazida como

um pressuposto de que a ação não busca, consciente ou inconscientemente, um retorno

individual no sistema de trocas que se estabelece entre o voluntário e o beneficiário.

Naturalmente, é como se o ‘doador’ precisasse se afirmar com a expressão interna de ‘não

quero retorno’, e quanto mais assim se afirma, mais retorno indireto de virtude socialmente

estabelecida ele apreende, consciente ou inconscientemente, publicamente ou em seu universo

privado de motivações. Marques (2016, pp. 37 - 38) cita os importantes trabalhos de Delicado

(2002) e Cnaan e Goldberg-Glen (1991) quando esses qualificam a complexidade das

motivações altruístas do voluntarismo.

“Delicado (2002) afirma que avaliar as motivações para o voluntariado é

um processo complexo isto porque um voluntário tanto pode ter

motivações altruístas, como egoístas. O desejo altruísta do voluntário

fazer o bem faz com que em simultâneo traga benefícios egoístas. Cnaan

79 “Alguns autores se utilizam dos termos voluntarismo e voluntariado de forma indistinta como se fossem sinônimos. Para

distingui-los, o dicionário Houaiss define voluntarismo como sendo uma doutrina, uma teoria psicológica ou filosófica, ou

ainda, visto pela ética como um sistema filosófico, que estuda a vontade e o comportamento humano, enquanto que

voluntariado diz respeito às ações, à condição ou ao conjunto daquelas pessoas que participam de algum trabalho por vontade

própria. A definição de voluntarismo apresentada por Penner (2002, p. 448) consiste em “um comportamento voltado para o

social, de longo prazo, planejado, que beneficia pessoas desconhecidas e acontece em um ambiente organizacional”. A partir

desta definição o autor elege quatro atributos necessários para o voluntarismo: 1) Longevidade – embora o voluntariado

possa ser realizado por uma pessoa, por períodos curtos ou longos de tempo, para uma análise do tema mais segura e

resultados mais eficazes deve ser considerado o longo prazo; 2) Plano integral – consiste que num primeiro momento o

voluntariado seja pensado conscientemente, medindo prós e contras, e depois seja planejado adequadamente; 3) Ajuda não

obrigatória – trabalho espontâneo, livre de qualquer pressão, seja familiar, social ou organizacional; 4) Contexto

organizacional – compreende o voluntariado realizado dentro de uma organização de serviço social. Assim, enquanto o

voluntarismo é um termo mais genérico e abrangente, o voluntariado consiste no conjunto de ações práticas realizadas por

pessoas, normalmente através de organizações, em benefício de outras pessoas” (Piccoli e Godoi, 2012, p.2).

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71

e Goldberg-Glen (1991) concordam com esta afirmação e concluem que,

o voluntário ao ser altruísta contribui com aspetos pessoais e de

crescimento através das experiências vivenciadas, de forma ativa. É

altruísta e inconscientemente egoísta. Existe também um certo consenso

teórico no que diz respeito à existência de dois tipos de motivação para o

voluntariado, sendo elas as motivações altruístas e individuais”. (Marques

2016, p. 33).

De acordo com Cavalcante et al (2015, p. 526), “entender as motivações pode ajudar

a perceber o que esses indivíduos buscam com a atividade e pode ainda permitir, aos gestores

de organizações voluntárias, o suprimento de tais necessidades. Vários estudos buscaram

entender essas motivações, e eles variam de modelos unidimensionais a modelos com cinco

ou seis fatores”, e o autor traz por esse ângulo uma utilização gerencial das informações sobre

as motivações de voluntários, que é conhecer para saber melhor motivar e aproveitar a força

voluntária nos projetos promovidos, uma vez que o estímulo espontâneo e sem compromisso

pode ser também muito volátil80.

Cavalcante et al (2015, p. 526) acaba por dividir os modelos motivacionais apenas

entre uni e multidimensional. O número de autores citados nessa última vertente é muito

grande, mas de acordo com Cavalcante (2013, pp. 164 - 165) na sua pesquisa exploratória

sobre a literatura da motivação no serviço voluntário no Brasil, e conforme situado em seu

trabalho posterior do ano de 2016, as fontes bibliográficas mais citadas incluem-se as

informações:

“As motivações do trabalhador voluntário tem sido objeto de pesquisa em

diversos estudos na área do Terceiro setor, especialmente desde os anos

1980. Os trabalhos de Wilson (2000), Clary, Snyder e Ridge (1992),

Bussell e Forbes (2002), Canaan e Amrofell (1994), Cnaan, Handy e

Wadsorth (1996), Penner (2002), no exterior, e os de Figueiredo (2005),

Souza, Lima e Marques (2008), Sampaio (2006), Souza e Carvalho

(2006), Piccoli (2009) e Vervloet (2009), em contexto brasileiro, são

exemplos de esforços acadêmicos no sentido de entender os motivos que

conduzem indivíduos a investir tempo e empenho nessa atividade. Esse

período está relacionado ao crescimento de organizações solidárias e

80 “O conjunto das pesquisas quantitativas e qualitativas tem substancial conteúdo, tanto para entender os reais motivos da

motivação voluntária, como também prover subsídios para administradores de organizações de serviços humanos, no que

tange a recrutamento, seleção e retenção de voluntários”. (Piccoli e Godoi, 2012, p. 3).

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sociais. Estudos em diversos países reforçam essa interpretação”.

(Cavalcante, 2016, p. 8)

E é mais fortemente a partir dos anos 90 que surgem os primeiros modelos de

sistematização da motivação voluntária. As pesquisas na vertente unidimensional defendem

uma experiência única de motivação, entretanto composta com base numa diversidade de

elementos e variáveis menos ou mais estimulantes. Sendo assim, o foco no modelo

unidimensional é de uma única motivação apenas: a experiência global positiva (gratificante)

do voluntário. Os autores mais citados na bibliografia estudada, e defensores da lógica

unidimensional são Cnann & Goldberg, e as suas pesquisas durante essa década. Cnaan e

Goldberg-Glen (1991, pp. 269 - 284) acabam por concluir após uma extensa pesquisa

empírica que os voluntários tem motivações tanto no altruísmo como no egoísmo, mas

conscientemente acabam por não os distinguir. De acordo com Cavalcante et al (2015, p. 526)

a unidimensionalidade está centrada no altruísmo, para tal, os autores se fundamentam em

Bussell e Forbes (2002) e Unger (1991), que são bem citados por parte da bibliografia que

aloca o altruísmo no centro da motivação voluntarista.

“Unidimensionalmente, os modelos baseiam-se fortemente no altruísmo.

Essa percepção está impregnada no próprio conceito do voluntariado. Os

conceitos citados anteriormente, neste referencial teórico, sugerem que o

altruísmo – autossacrifício sem aparente recompensa pessoal – é

elemento fundamental para que ele ocorra: a motivação para voluntariar

seria, portanto, a de doação”. Cavalcante et al (2015, p. 526).

Cnaan e Goldberg-Glen (1991, p.280), na pesquisa em que defendem um modelo

unidimensional, listam cerca de 28 motivos (ao que chamam de MTV) pelos quais as pessoas

podem se tornar voluntárias, sendo que os mais relevantes formam o que os autores

denominam de “fenômeno social unidimensional”.

“os motivos para voluntariar não são distintos ou oponentes, mas se

sobrepõem uns aos outros, pois os voluntários não sabem distingui-los

claramente. Os dez motivos considerados mais importantes pelos

voluntários foram: 1) oportunidade para fazer algo que vale a pena; 2)

sentir-se bem consigo mesmo; 3) criar uma sociedade melhor; 4)

oportunidade para devolver fortuna; 5) melhorar atitude na própria

situação de vida da pessoa; 6) oportunidade para relacionamentos; 7)

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adesão às metas da agência; 8) experiência educacional excelente; 9)

prover atividades desafiadoras; 10) oportunidade para trabalhar com

faixas etárias diferentes. Segundo os autores, os voluntários demonstram

motivos altruísticos e egoísticos de forma inseparável e indistinguível, e

essa combinação de motivos pode ser descrita como “uma experiência

recompensadora”. Quando uma pessoa voluntaria ela não está somente

dando algo de si a outra pessoa, mas estará recebendo igualmente alguma

recompensa em troca”. (Piccoli e Godoi, 2012, p. 3).

Já os modelos bidimensionais diferenciam os motivos de natureza altruísta daqueles

que são mais centrados na própria pessoa, relata Marques (2016, 38). Já Piccoli e Godoi

(2012) informam que

“o modelo de dois fatores defendido e testado empiricamente por Frisch e

Gerrard (1981 apud Okun; Barr; Herzog, 1998) e Latting (1990 apud

Okun, Barr; Herzog, 1998) postula que as pessoas são motivadas para

voluntariar por motivos altruísticos (preocupação com os outros) e

motivos egoísticos (preocupações consigo mesmo)” (Piccoli e Godoi,

2012, p. 1).

o que faz do modelo bidimensional aquele que coloca em dualidade as motivações por

altruísmo e egoísmo como se fossem antagônicas. Isso implica uma valoração do benefício ao

indivíduo como aquele que não pode estar associado, simultaneamente, a uma preocupação

genuína com o social. Marques (2016) ressalta que a abordagem da natureza das motivações

continua a ser objeto de estudo ao longo dos anos, e isto porque continua a existir o dilema

entre as intenções altruístas e egoístas. “Embora nem todo o ato de voluntariado seja altruísta,

também podemos afirmar que nem todo o ato altruísta é ser voluntário, no entanto existe uma

estreita e forte ligação entre ambos (Haski-Leventhal, 2009)” (Marques, 2016, 38).

Já os modelos multidimensionais existem em maior número e são os mais utilizados.

Um dos sistemas mais citados e aplicados em pesquisas que desejam medir as motivações de

um determinado grupo de voluntários é o de Clary e Snyder (1991). Neste trabalho

argumenta-se que um conjunto de fatores diferentes motivam as pessoas de forma distinta.

Clary et al. (1992) criaram o modelo de seis fatores da motivação

voluntária. As funções “carreira”, “social” e “proteção” foram avaliadas

pelos voluntários como as menos importantes. Por outro lado, as funções

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“estima”, “intelecto” e “valores” foram avaliadas como as mais

importantes. Mesmo assim, essa avaliação difere entre os grupos. Para os

mais jovens, a função “carreira” está entre as mais importantes, o que não

ocorre entre os mais velhos. (Cavalcante et al, 2016, p. 526).

Esse método em que Clary et al. (1998, pp. 1516 - 1530) apresentaram um

sofisticado modelo de mensuração de motivações é o conhecido Inventário de Funções do

Voluntariado (IVF) (Volunteer Functional Inventory), um instrumento composto por trinta

questões que identificam as razões pelas quais as pessoas decidem se voluntariar. Bussel e

Forbes (2002, p. 4) também são citados por um modelo multidimensional que identifica

motivações, a partir dos quatro ‘Ws’ do voluntariado: What, Who, Where e Why, a fim de

auxiliar os administradores a melhor identificaram e selecionarem seus voluntários. Batson

(2002, cit. por Cavalcante, 2013, p. 165) também lança um sistema de quatro motivos, o

egoísmo (que é o retorno para o indivíduo), altruísmo (um conjunto de retornos para a

sociedade como principal motivador), principialismo (a possibilidade de empreender algo) e o

coletivismo (os benefícios de se fazer algo em conjunto). De acordo com o autor, esses quatro

motivos e suas variações podem se combinar de diferentes formas, em situações distintas para

um mesmo indivíduo, em momentos e locais diferentes da sua vida. E ainda, Omoto e Snyder

(1990, pp. 152 – 165), no seu trabalho de pesquisa com voluntários que atuavam com a

temática de pessoas soropositivas para o vírus HIV, revelou que mesmo existindo motivos

comuns para serem voluntários, é um conjunto de motivações extremamente particular que

faz com que as pessoas se movam pela causa. Os investigadores avaliaram cinco motivações

primárias nesse caso: 1) envolvimento de valores pessoais – porque é uma obrigação

humanitária; 2) considerações sobre entender e aprender mais sobre a situação; 3)

preocupação comunitária, seja de uma comunidade afetada pelo vírus naquele caso; 4)

desenvolvimento e crescimento pessoal e 5) preenchimento de vazios ou déficits nas vidas das

pessoas.

O conjunto dos estudos acadêmicos analisados para a construção dessa seção do

segundo capítulo, como é possível depreender do conteúdo organizado, é em sua maioria

realizado sobre o universo do voluntariado formal, especialmente devido à maior

possibilidade de controle das variáveis, quando estão dentro de um ambiente formal e

organizado. E esse conjunto de iniciativas do voluntariado institucional, busca, por sua vez,

apreender e otimizar o recurso ‘pessoa-voluntária’, num cenário competitivo de

financiamentos e meios limitados, mas dificuldades ilimitadas. Assim, aqueles projetos

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capazes de compreender a natureza da motivação dos seus aspirantes a voluntários,

conseguem conquistá-los por maiores períodos, alcançando, assim, o máximo de mais-valias

em número de horas gratuitas vinculadas. Muitas vezes, os voluntários podem ser

apropriados, em sua boa vontade, para ajudar a fechar as contas de um sistema assistencial

que não se sustenta, e que deveria ser garantido pelos impostos pagos com essa finalidade ao

Estado (e o tamanho dessa finalidade, sim, é a referida discussão que não fecha, e que diz

respeito ao tamanho das responsabilidades de um Estado democrático de direito).

Assim, dos peditórios por donativos à busca por mobilização de voluntários, que se

vê no cotidiano contemporâneo, faz indicar que, mesmo havendo todo um conjunto de

entidades e setores envolvidos com as causas públicas mais diversas, um bem-estar e um

equilíbrio social não tem sido garantido aos mais vulneráveis. Dessa forma, a necessidade de

gestão qualificada da mão de obra voluntária cresce, em conformidade com a quantidade de

cidadãos que desejam se envolver com os problemas sociais que assistem. E com a atenção

para o fato de que, sem a acuidade de metodologias e organização gerencial, toda essa

“invasão” de cidadãos bem-intencionados dentro das comunidades, e entidades sociais, pode

ainda mais tumultuar do que ajudar. Essa tentativa de organização se retrata nos regimes

legais que incidem sobre a temática, bem como nas tentativas de sistematização dos tipos,

formatos, diretrizes e limites aos projetos de voluntariado que, como demonstrado pela

bibliografia recolhida para o presente capítulo, se esforçam por criar uma `ciência da

administração de voluntários´, a fim de que os intentos alcancem os objetivos almejados.

Mas ainda, nos arquivos acadêmicos consultados, a maior parte das áreas da ciência

que investigam o voluntariado como objeto, são da psicologia comportamental e social, e

conferem, principalmente no âmbito das motivações, um caráter instrumental da pessoa que

se voluntaria: compreender as suas razões e o seu altruísmo, para em seguida melhor saber

motivá-los, quando se está na função de um recrutador de voluntários. E já no estudo

bibliográfico das palavras subjacentes ao voluntariado (caridade, filantropia, assistência e

solidariedade) foi mais fácil encontrar a percepção social da ação, ou seja, como que os

autores percebem as responsabilidades e os diversos papéis nas relações sociais formais e

informais, e por consequência, qual a apreciação crítica que se tem do outro, e o que melhor

fazer para ou com esse outro, para fins de aferir benefícios - a melhoria de vida dos cidadãos

assistidos.

Pergunta-se, por outro lado, o que significa tantas pessoas envolvidas no universo do

voluntariado institucional do Brasil e Portugal, conforme apontam as pesquisas? No que

resulta essa moda, que faz as entidades públicas e privadas estamparem orgulhosas, em suas

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76

páginas e relatórios, o número de voluntários engajados em suas causas? Ou seja: o que está

no centro dessas atenções e desses espaços? São esses e outros aprofundamentos que serão

perseguidos no capítulo que se segue, no sentido de perceber, em que medida o voluntariado é

utilitário, e o que pode estar entre o esforço e o impacto social dessas ações.

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77

Capítulo 3. Compreensões do voluntariado pela voz de representantes brasileiros e

portugueses

Com a finalidade de compreender no campo empírico as convergências e

divergências no cenário do voluntariado institucional dos dois países, foram empreendidas

entrevistas abertas com representantes selecionados pelo seu papel relevante no ambiente do

voluntariado formal desses territórios. Sem entrar no conceito sociológico de representação,

as pessoas entrevistadas foram, ou ainda são, mobilizadoras sociais, participantes da

estruturação de iniciativas de voluntariado em contexto nacional ou local, e passíveis de

serem considerados influenciadores e formadores de opinião nesse cenário. Optar pelos

gestores e promotores do voluntariado, como material empírico das entrevistas, se fez

importante para investigar justamente as bases da promoção das iniciativas: de que valores e

lógicas elas surgem, como elas dialogam com o contexto social em que intervêm, como se

fazem representar por motivações e atos mais tutelares ou emancipatórios, e como as suas

crenças se concretizam ou não na execução final dos projetos que empreendem ou assistem.

Por outro lado, por recorte intencional de escopo, os voluntários que atuam junto ao sistema

de voluntariado formal não foram ouvidos, pois suscitam uma ótica de investigação

complementar, como ferramentas que eles são da intencionalidade das iniciativas propostas

pelas instituições fomentadoras.

Do Brasil, os dez profissionais entrevistados têm de trinta cinco a oitenta anos, dentre

eles, sete mulheres e três homens. Na lista, estão nomes recorrentes nas discussões e fóruns

sobre voluntariado no país, promotores de plataformas de voluntariado, pesquisadores,

consultores, atuais e ex-representantes de ONGs (Organizações Não Governamentais - sem

fins lucrativos) e entidades que promovem o voluntariado em parceria com agentes públicos e

financiadores, além de promotores do voluntariado institucional empreendido por empresas.

Já em Portugal, as entrevistas foram presenciais, contando com seis convidados do mesmo

perfil etário e profissional do Brasil, sendo três homens e três mulheres, representantes de

confederações e associações nacionais que existem com o propósito de estruturar e promover

o voluntariado no país, gestores de voluntariado empresarial, pesquisadores, dirigentes de

entidades e projetos sociais ligados ou não a instituições religiosas, assim como da política

nacional. Todas essas ocupações denunciam, assim como no Brasil, uma superposição de

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funções por parte dessas pessoas no setor, desempenhando em “múltiplos chapéus” os papéis

que as qualificam para essa pesquisa81.

É oportuno salientar que os entrevistados em sua sobreposição de funções, possuem

trajetórias profissionais mais generalistas ou especialistas. Como generalistas pretende-se

nomear aqueles que não são fruto ou provenientes do universo do voluntariado, mas da gestão

administrativa privada ou pública, e entraram em contato com a temática a posteriori, a fim

de exercer função dirigente ou consultiva. E são chamados especialistas, quando se quer

apontar aquelas pessoas que desde sempre fizeram parte do universo do voluntariado,

inicialmente como voluntários, mas que com o tempo perceberam que o seu vínculo com a

ação social se tornaria também a sua profissão. Essa diferença de perfil dos percursos

profissionais não influenciou o resultado das entrevistas, a não ser do ponto de vista de

algumas falas, como as das motivações para o seu agir voluntário: menos ou mais recente. O

continuum dentro do campo, entretanto, faz essas pessoas, em diferentes medidas,

reconhecerem as causas do voluntariado como as causas também de sua vida: o voluntariado

as identifica, e é recompensante dedicar-se profissionalmente àquilo que se acredita. Por fim,

a experiência de vida e profissional que acumulam, permite que suas biografias testemunhem

e deem substância as suas falas, que são também relatos de suas experiências de vida, para

além das análises críticas contextuais que são capazes de fazer, dos bastidores que são, e das

autoanálises acerca de seus papéis nesses contextos de ação voluntária.

Três entrevistas foram feitas por áudio de aplicativo de conversação, quatro foram

presenciais, e as 8 restantes por vídeo ou áudio conferência. Uma entrevista por questões

logísticas foi respondida por email. Para fins de análise dos resultados os mesmos serão

apresentados de forma anônima identificados apenas com o país de origem.

3.1. A preparação do conteúdo das entrevistas

As entrevistas foram organizadas por um guia básico de perguntas, com o objetivo de

perceber inicialmente, de forma aberta, os valores que movimentam as práticas de

voluntariado em direções mais assistencialistas ou emancipatórias do indivíduo beneficiário, e

por consequência, quais são as práticas consideradas mais tutelares ou transformadoras de

realidades sociais, e também de conhecer as estruturas de apoio institucional existentes para a

81 Das entidades que se fazem representadas estão, por exemplo, o Serviço Social da Indústria, a plataforma de voluntariado

V2V (Volunteers to volunteers), Fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Centro Mineiro de Alianças

Intersetoriais (CEMAIS), empresas de consultoria no Brasil, e Montepio Geral, Corpo Nacional de Escutas (CNE), Centro Europeu do

Voluntariado (CEV), Confederação Portuguesa do Voluntariado (CPV), Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES), Cáritas

Portuguesa, um ex-dirigente da Santa Casa e Universidade Católica Portuguesa.

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temática do voluntariado no Brasil e em Portugal, como por exemplo, os aspectos legais e as

redes de defesa de causa.

A ‘intencionalidade’ das iniciativas de voluntariado institucional, aliada aos tipos de

ações realizadas por seus voluntários, ilustram, sob a luz dos relatos dos entrevistados,

algumas respostas às perguntas prévias ao trabalho de campo, sobre as quais se esperava

identificar classificações (tipos) de voluntariado formal, pautados nos termos utilizados por

Fagundes (2006, p.98): conservadora, tutelar, progressista ou emancipatória. Em que a autora

faz referência a Yazbek (1993, pg. 50) ao explicar os dois primeiros termos como “facetas que

assumem diferentes direções ideológicas, na medida em que a conservadora vai procurar

manter o status quo, a tutelar irá reforçar a dependência dos indivíduos tornando-os

prisioneiros de relações de deferência e lealdade” e corelaciona esses dois ao ‘progressista’ e

‘emancipatório’ a partir da fala de Martinelli (1989 pg.73) em que o voluntariado romperia o

sistema de desigualdades sociais82.

A complexidade do conteúdo extraído das entrevistas, entretanto, foi obtida por

perguntas que não seguiram uma ordem direta, mas que, durante a fala semi-guiada dos

entrevistados, tornou possível abordar as seguintes questões:

- A trajetória do entrevistado no mundo do voluntariado (enquanto voluntário ou promotor de

iniciativas do gênero), o que muitas vezes desembocou na narrativa da história de vida da

pessoa tendo como eixo central o seu engajamento social.

- A percepção de valores mais assistencialistas ou emancipatórios a partir da exploração de

conceitos planos de fundo - assistência, caridade, filantropia e solidariedade - adicionando-se

o voluntariado como ferramenta de todos eles.

- A noção de efetividade no trabalho voluntário, tendo como referência o tipo de benefício ou

transformação que pode gerar aos públicos aos quais se destina, de forma contextualizada no

país do entrevistado.

82 “As críticas ao voluntariado casualmente passam por “demonstrar que estas ações reforçam a caridade, o clientelismo, e

que são ações descontínuas, fragmentadas, mostrando a necessidade de qualificarem-se cada vez mais as políticas na área da

assistência, para dar um caráter progressista e emancipatório, e que possibilite (...) uma prática social, política, histórica, com

uma teleologia bastante precisa que exige de cada um uma ação cotidiana direcionada para a construção de uma sociedade

efetivamente justa e democrática”. (Fagundes, 2006, p. 98).

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3.2. A religião, a família e os grupos de jovens: os primeiros passos do trajeto no

voluntariado.

As organizações religiosas, com supremacia da igreja católica, são reforçadas na

percepção dos entrevistados como os fundamentos do voluntariado institucional no mundo

ocidental e por consequência também no recorte territorial Brasil – Portugal. Historicamente,

a entidade católica é apontada pelos indivíduos como aquela que estimula e mesmo vive do

voluntariado de maneira mais antiga e ampla, não obstante outras religiões dentro e além do

mundo cristão também estimularem os valores comumente associados ao tema, que tangem o

censo de caridade, o estímulo às atitudes virtuosas e qualificadas por elevados padrões morais,

às bem-aventuranças, alteridade e o altruísmo. Essa identificação do voluntariado com o

catolicismo faz chamar atenção à preponderância dos valores de uma única religião ainda

hoje, num Terceiro Setor (ou o setor que abriga as iniciativas institucionais da sociedade

civil), atualmente tão heterogêneo, chamado por Melo (2017, p.221) de “plástico e mutável”,

e mais ainda em um país como o Brasil no qual a quantidade de religiões é grande83,

percebida a ênfase num significativo crescimento do protestantismo.

“Em Portugal, a perspectiva histórica mostra, há mais de cinco séculos,

sob proteção da Rainha D. Leonor, casada com D. João II e irmã de D.

Manuel I, o nascimento das Misericórdias, uma realidade que aparece

ligada a tarefas caritativas concretas, seja de apoio a quem cumpria pena

de prisão (e não tinha, por esse fato, «direito» a ser alimentado, vestido

ou sequer tratado, quando doente…), seja de encomenda da alma e

enterro, a quem sofrera pena de morte, seja de tratamento e

acompanhamento de enfermos, seja de ajuda a quem necessitasse de

alimentos, etc., para as quais era necessário, de um lado, angariar na

sociedade dinheiro para cumprir as tarefas e, de outro, pessoas que

pudessem dar resposta específica às solicitações, tudo sem qualquer

pagamento” (Entrevistado 6 – Portugal).

Mas mesmo assim, ainda que persista a identificação católica enquanto pilar,

conforme exposto na revisão historiográfica, por meio do traslado das missões e irmandades

para a américa colonial, a manutenção desse reconhecimento não exclui, na fala das

entrevistas, que no ambiente heterogêneo, no qual vive atualmente o voluntariado, conviva

83 De acordo com o Censo 2010, no Brasil da década de 70 havia 91,8% de brasileiros católicos, em 40 anos depois a

quantidade passou para 64,6%. O maior crescimento está na parcela dos evangélicos, que subiu de 5,2% da população para

22,2%. (IBGE, Censo demográfico 2010).

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paradoxalmente um discurso político que reforça novas instâncias de participação e

responsabilidade social84.

A relação institucional entre igreja e voluntariado aparece durante a pesquisa por

algumas óticas. A primeira delas é a própria mecânica de gestão e operação dos órgãos

eclesiásticos, que prescindem do trabalho voluntário para a sua difusão e funcionamento

(litúrgico e social), e essa característica é passível de extensão a todas as religiões, que são

operadas, em um grande número de tarefas, por voluntários85. A segunda ótica, é justamente o

estímulo de um ethos espiritual, que tem nos ensinamentos cristãos os princípios

indissociáveis do exercício do amor e oferta ao próximo. Na matéria da moral religiosa, há o

esboço de como o sistema de dádiva se estrutura nesse contexto:

“(…) praticamente todas as religiões que conheço fazem, pregam ou

incentivam muito a “ajudar o próximo”, usando esse termo até porque

vem muito do exercício do amor ao outro, e o voluntariado é uma

manifestação concreta desses motes. No caso da religião católica traz

também isso de “quanto mais bonzinho agora melhor eu vou me dar bem

depois”, ser recompensado no céu . . . Por generosidade ou medo” (…)”

(Entrevistado 1 – Brasil).

Sete dos dezesseis entrevistados, de ambos os países, sustentam essa fala da igreja

como sendo uma das primeiras instituições que os formaram no exercício do voluntariado,

“antes mesmo que soubessem que aquilo era voluntariado”, que em conjunto com outros dois

grupos, completam os alicerces e o princípio da prática do voluntário, e são eles: a família e

os grupos de jovens. A relação com essas três instâncias, na maioria dos casos, coincide com

aqueles entrevistados que, além de serem estimuladores do voluntariado, referem-se como

84 “A estrutura clerical no Brasil foi a chave de entrada para o voluntariado que conhecemos hoje no País em que irmandades,

ordens religiosas e confrarias dedicavam-se à abertura de hospitais, orfanatos e demais instituições beneficentes apoiadas

num veio de caridade cristã (Landim, 1993 a). No século XX, todavia, presencia-se uma diversificação das formas

associativas e, nomeadamente nas últimas décadas, pós-redemocratização, notam-se ingredientes adicionados às práticas

tradicionais como os debates sobre participação e responsabilidade, a conferir uma transformação da ação voluntária que

passava a se preocupar não apenas com os efeitos dos problemas sociais, mas igualmente, com suas causas (Lima, 2004, p.

12)”. (Melo, 2017, 222).

85 Apesar disso, não se pode dizer que a relação do voluntariado com as tarefas que se fazem dentro da igreja seja um

consenso, o que pode ser demonstrado por meio da fala de um representante de uma entidade que integra a igreja católica:

“(…) eu considero que ser catequista, ensinar a religião não é voluntariado, mas uma obrigação, entendo a religião como uma

comunidade da qual eu faço parte e a qual eu tenho que dar forçosamente algo para pertencer a essa comunidade. É como

dizer que um pai é voluntario por ajudar o filho com matemática, quando o filho não aprendeu na escola. E se faço leitura da

bíblia na igreja também não estou a ser voluntario, sou membro daquela comunidade, mas esse item é controverso (…) mas

gostaria que o que seja da religião seja no contexto da religião e não seja assumido como voluntariado (…)” (Entrevistado 4 –

Portugal)

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voluntários por toda sua trajetória de vida. E desses, todos respondem que são voluntários

desde crianças.

“Já nasci voluntaria, de origem simples, desde sempre a ajudar na igreja,

em forma de caridade, depois veio o grupo de jovens” (Entrevistado 3 –

Brasil).

“Desde criança participei de associações em que se promoviam

iniciativas de caráter benemérito com fins religiosos, a motivação inicial

era de enquadramento na religião católica. (Entrevistado 4 – Portugal).

Para algumas gerações, a atividade da igreja católica comunitária, a que chamam de

vida paroquial, centralizava em seus bairros a vida social, antes que as movimentações da

vida moderna oferecessem outros atrativos, desagregadores dessas relações. A igreja, nesse

sentido, se demonstrava como a única ou a primeira oportunidade de atividade social, através

da entreajuda, do espaço comum, e do estímulo da moral caritativa. Desse ponto de vista a

sociabilidade primária, assim como discorrido nos aprofundamentos da ‘caridade, filantropia,

assistência e solidariedade’, é a porta de entrada no mundo daquele que aprende a ser

voluntário. A partir desta narrativa existem algumas análises que são propostas por esse

estudo. Uma delas diz respeito às ligações de vizinhança em coletividades mais rurais ou de

pré-urbanização, em que supostamente o fator fraternidade estaria mais presente, ligado à

necessidade de subsistência86. Muito afim com a matéria das solidariedades mecânica e

orgânica tratadas por Durkheim87.

E das relações primárias, a família aparece nas evidências da pesquisa como aquela

que possibilita o ensino, o exemplo, e a pertença, como dos estímulos mais emocionalmente

vinculativos, e definitivos, para o exercício do voluntariado de curto a longo prazo.

86 “Quando, referindo-se às ligações de vizinhança em colectividades rurais, Max Weber afirmava constituírem elas um

factor de «fraternidade», para de imediato acrescentar ser indispensável atribuir a tal palavra, neste contexto, um sentido

inspirado por uma «ética económica», com a sua «ausência total de sentimentalidade», era, no essencial, para os fundamentos

económicos desta forma de sociabilidade que ele nos apontava. Identificando-os, contudo, basicamente, com motivações de

tipo utilitarista (a «ajuda benévola» em espécies ou em trabalho de que nos fala resulta, segundo ele, de um cálculo subjectivo

recíproco apoiado no pressuposto de que «cada um pode ficar em condições de necessitar da ajuda do vizinho»), ou, um

pouco mais lateralmente, reconduzindo aqueles fundamentos à escassez de recursos das comunidades domésticas” (Pinto

1981, p.200).

87 “Distinguir entre o tipo de sociabilidade das sociedades arcaicas (que persiste nas coletividades rurais) e o das sociedades

industriais o que leva Émile Durkheim a contrapor solidariedade mecânica e solidariedade orgânica. Correspondendo o

primeiro destes tipos sociais a um estádio primitivo da divisão social do trabalho e, simultaneamente, a uma forte presença da

«consciência coletiva» nas consciências individuais, caracteriza-o a tendência para a uniformização social, garantida, aliás,

por um direito de natureza essencialmente repressiva (por oposição a restituitiva, característica já das sociedades de

solidariedade orgânica). (Pinto, 1981, p.200)”.

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“da família, da mãe principalmente que sempre foi e ainda é voluntária,

somado à empatia pelo que o outro em sua proximidade poderia estar

vivendo, (a ela) impactava as realidades sociais que presenciava, como a

pobreza pelas ruas em que passava em sua cidade quando criança, e

fortalece o discurso do ‘fazer sem saber o conceito’ pois já fazia muita

coisa “antes mesmo de entender o que é o voluntariado” (Entrevistado 4 –

Brasil)”.

“(…) a família foi o primeiro agregado associativo, e sempre vi na

família, inclusivamente nas modestas, a partilha. A partilha era algo

comum e nasceu aí a predisposição, por isso que é um dom, não um dom

que nasce, mas é desperto e cultivado por quem esta à volta, pelo

primeiro agregado natural (…)”. (Entrevistado 4 – Portugal).

“(…) (voluntariado desde criança): mãe e pai voluntários, estudava em

escola católica em que saiam para ações de assistência fomentando o

voluntariado, e havia muito forte o exemplo da avó. Eu sabia que ela

fazia algo que era bom para ela e para os outros, desde pequena eu vi isso

e o exemplo foi fundamental (…)” (Entrevistado 6 – Brasil).

Então na sociabilidade primária, interação informal, a convivência comunitária como

pilar da entreajuda é trazida em uniformidade pelas entrevistas. Pinto (1981) sublinha o que

Ferdinand Tõnnies chama de “harmonização espontânea entre interesses individuais e

interesses de grupo, que, através de ligações de sangue, de amizade e de fé intensamente

vividas” (Pinto, 1981, p.202), que faria essencialmente diferenciar o que é uma comunidade88,

onde os moradores interagem com os seus vínculos de reciprocidade, das relações de uma

sociedade moderna, que seria a representação mais burocrática de um território. Dessa forma,

das questões suscitadas por essas análises, pergunta-se: seria possível o desenvolvimento de

voluntariado institucional (formal) em comunidade? E o contrário, o espírito do voluntariado

88 “A história das ciências sociais regista inúmeras tentativas —mais ingénuas umas, mais elaboradas e/ou formalizadas

outras— para dar conta da especificidade das relações de sociabilidade nas colectividades rurais. Foi assim que, associando-

as ao primeiro termo da célebre dicotomia comunidade (gemeinshaft) sociedade (gesellschaft), Ferdinand Tõnnies sublinhou

a harmonização espontânea entre interesses individuais e interesses de grupo” (Pinto, 1981, p.202) e Almeida (2011)

enriquece as pistas quando relaciona comunidade e bairro. “É na sociabilidade construída cotidianamente que os diversos

atores sociais vivem e convivem com seus iguais, participando de várias atividades em conjunto principalmente quando estas

atividades estão voltadas para o lazer; se reunindo para resolver os problemas mais corriqueiros: como a falta de energia

elétrica de algum morador ou socorrer algum vizinho que se encontra doente (neste caso, o vizinho se torna uma figura mais

do que importante no convívio social). O bairro, desse modo, não é apenas uma demarcação territorial que divide a cidade –

servindo para delimitar os espaços urbanos e o controle administrativo dos serviços públicos e municipais – mas, antes de

tudo, o bairro é a própria constituição de uma cidade, onde os moradores que nele habitam se identificam, se sociabilizam,

criam laços afetivos e sentimentos de pertencimento. No bairro se percebe rituais, práticas habituais, habitus e tradições. No

bairro se percebe dificuldades e problemas. Problemas com o crescimento populacional, com infraestrutura, com a violência,

com a falta de serviços, com a falta de emprego, com as favelas que começam a circundar, etc. (Almeida, 2011, p.2).

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informal pode ser direcionado para ações de voluntariado formal? Eles podem coexistir sem

que um desestruture a essência do outro?

E em mais um depoimento, para que essas e outras reflexões futuras sejam feitas, as

demandas modernas por sobrevivência, exigentes em atividades individualistas, aparecem

como "dificultadores" da vida comunitária, em que o excesso de trabalho, tarefas e

solicitações, e a consequente impossibilidade de priorização e disponibilização do tempo é a

sua consequência. Nesse sentido, as informações recolhidas nas pesquisas bibliográficas do

capítulo segundo dessa tese apontam novas propostas de conformação de comunidades, que

conectariam as pessoas para outras formas de voluntariado, como os trabalhos voluntários

realizados online - à distância -, e as redes que se estabelecem pelas vias digitais. A discussão

possível nesse aspecto tem a ver com todas as novas formas de conexões entre pessoas no

mundo contemporâneo, como explorado por Galiano (2014)89, a ver se essa alternativa

desponta verdadeiramente como solução para cultivo de laços comunitários, ou se esses são

fadados a se ressignificarem de forma definitiva para além do contato físico. Foi-se de vez a

era das conversas nas calçadas do bairro? E o que teria de perdas e ganhos nessas novas

dinâmicas? Denota certo pesar o depoimento abaixo:

"(…) na altura em que começou o voluntariado em Lisboa as paróquias

eram pujantes (pelos anos 60 - 70), era fácil encontrar qualquer gosto em

servir a comunidade, hoje em dia com muita pena pessoal há uma perda

muito grande dessas ações, pois na vida de paróquia a oferta de

possibilidades não era tanta como hoje. Naquela geração a paróquia era o

ponto de encontro, centralizava a vida social" (Entrevistado 1 – Portugal).

3.3. Entre a tutela e a emancipação: relações de reciprocidade

No início da contextualização histórica do voluntariado, antes mesmo de iniciar a

pesquisa de campo e de aceder aos seus resultados, todas as descrições daquilo que mais tarde

poderia ser denominado ‘assistência’, ‘caridade’, ‘filantropia’, ‘solidariedade’, ‘voluntariado’

ou outros termos, foram, por neutralidade, chamados de “reação”. O uso de um vocábulo

genérico, na altura, se deu porque a historiografia trazia o uso daqueles termos e havia o

interesse epistêmico em compreender como eles se relacionavam, já que, uma vez que são

ideias que margeiam o assunto do voluntariado, na compreensão das mesmas, e dos seus

89 Galiano, Monica Beatriz Voluntariado digital / Monica Beatriz Galiano. - São Paulo: Fundação Telefônica, 2014.

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estreitos contrastes, tentar-se-ia desenhar o caminho evolutivo do voluntário pelo viés dos

valores sociais.

No segundo capítulo é feita a imersão na bibliografia sobre cada uma dessas

palavras, com a percepção de que estabelece-se como plano de fundo, transversalmente, o

sistema de reciprocidades e dádivas, de Marcel Mauss90. Esses valores são absorvidos pelos

indivíduos conforme sua trajetória de sociabilidade, de tal forma que reproduzem em suas

relações o que apreendem de seu meio. E, se por um lado a existência de uma “lei invisível”

imputa uma obrigação de moral social abrangente sobre o indivíduo, cabe ressaltar que essa

perspectiva, que é mais ‘durkheimiana’, também é assimilada por Mauss na referida teoria da

dádiva. Esse último, porém, não nega também a experiência do indivíduo, que nestes

contextos poderia exercer a escolha de manter-se ou não no círculo das obrigações recíprocas,

no que pese a sua responsabilidade dessa quebra do ciclo.91. Interpretando Mauss, pode-se

perguntar se pesa a responsabilidade que o indivíduo pode ter ou não na manutenção das

assimetrias, quando é dirigente por exemplo, de um projeto filantrópico, ou de voluntariado.

Como afirma Martins (2005, p.45), a teoria da dádiva vem sendo resgatada “como

um modelo interpretativo de grande atualidade para se pensar os fundamentos da

solidariedade e da aliança nas sociedades contemporâneas”. E “para Mauss tudo é relevante

no surgimento de uma obrigação moral coletiva envolvendo o conjunto de membros da

sociedade”. Tendo ela sido um desdobramento do pensamento de Durkheim92, e concebida

dentro do sistema de obrigações coletivas, se aplica ao voluntariado, mas não exclusivamente,

90 Sabourin (2008, p 133) lembra a ideia de reciprocidade proposta por Mauss e os que o seguiram, na qual “evidencia que a

dádiva é o oposto da troca mercantil e, paradoxalmente, procura nela a origem da troca (ou do intercâmbio). De outro lado,

mostra a essência da reciprocidade com o caráter universal da tríplice obrigação de “dar, receber e retribuir”, mas não chega a

teorizar sobre tal reciprocidade, trabalho que deixou para seus seguidores, em particular Lévi-Strauss (1967 [1947], 1997

[1950]) e, mais recentemente, Temple e Chabal (1995), Temple (1998, 2003), Godbout (2000, 2007), entre outros”.

91 “No meu entender, a teoria da dádiva tem papel central nesta crítica na medida em que conecta duas perspetcivas

aparentemente inconciliáveis: de um lado, a ideia durkheimiana da existência de crenças coletivas que aparecem como uma

obrigação moral supra-individual, o que leva a se valorizar o todo mais que as partes; esta ideia está presente em Mauss no

momento em que ele sustenta a ideia de sociedade como um fato social total e a dádiva como uma regra moral que se impõe à

coletividade; de outro lado, ele escapa à tirania deste pensamento de totalidade ao observar que a experiência direta e inter-

individual reorganiza o sentido e a direção do bem circulante, refazendo as estruturas e funções estabelecidas. Nesse caso,

temos que admitir que as partes, isto é, os membros da sociedade possuem características peculiares que escapam à obrigação

moral coletiva. Ao definir a sociedade como um fato social total, Mauss compreendeu que a vida social é essencialmente um

sistema de prestações e contra-prestações que obriga a todos os membros da comunidade. Mas entendeu, também, que essa

obrigação não é absoluta na medida em que, na experiência concreta das práticas sociais, os membros da coletividade têm

certa liberdade para entrar ou sair do sistema de obrigações – mesmo que isto possa significar a passagem da paz para a

guerra. Uma leitura atenta do Ensaio sobre a dádiva demonstra isso: que há uma incerteza estrutural no sistema de circulação

de dádivas entre os homens, o que os leva a passarem permanentemente da paz para a guerra e vice-versa”. (Martins, 2005, p.

49).

92 “Mais precisamente com os últimos esforços de Durkheim de incluir o tema do indivíduo na sua teoria das representações

coletivas. Este esforço é demonstrado nas séries de lições sobre o pragmatismo que Durkheim ministrou na Sorbonne, entre

dezembro de 1913 e maio de 1914 (Durkheim, 2005), poucos anos antes de sua morte, ocorrida em 1917. Mauss, que teve

papel fundamental no resgate do curso mediante apelo feito aos alunos de Durkheim para que lhe passassem as notas

respectivas, classificou este momento como a “coroação da obra filosófica de Durkheim” (Martins, 2005, p. 48).

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posto que é bem anterior e ulterior ao início do seu exercício93, e se aplica às relações

equilibradas e desequilibradas.

No paralelo entre caridade e filantropia, por exemplo, estando o nome de Deus

“substituído” nesse último, as doações continuam ainda suportando uma superioridade

daquele que dá, conservando assim o “desequilíbrio” na dádiva que mantém os recebedores

das doações em estado de dívida, como observa Godbout e Caillé (1998 – cit. por Lins de

Mello, p. 16). “De fato, o dom unilateral é bastante fácil de compreender do ponto de vista do

doador. O verdadeiro problema está do lado do receptor. O dom instaura uma dívida, um

estado de dependência”, e nesse aspecto, haveria para Mauss uma diferença “entre a

solidariedade entre os irmãos e as ações em nome da caridade ou do “bem público”. Para o

autor “o renascimento do dom deveria acontecer entre os trabalhadores, sem a interferência

dos patrões” (Tomaschewsky, 2014, pp. 152 - 153). Para Mauss essas ações de generosidade

entre trabalhadores, acabariam por sustentar maior equilíbrio aos problemas trazidos pelo

capitalismo. E já a solidariedade entre uma instituição e um vulnerável, teria mais chances de

resultar em relações assimétricas e a manutenção da desigualdade social.

A escola francesa também é uma ponte para compreender o voluntariado, e os

demais termos aqui relacionados, inseridos num ambiente social que transcendem o mercado

e o Estado. Martins (2005, p. 49) afirma que uma crítica consistente ao pensamento utilitarista

e mercantilista pelas mãos de Durkheim e Mauss, em seu tempo, “constitui, certamente, uma

das principais fontes de inspiração teórica para se pensar, hoje, o surgimento de uma

sociedade civil mundial, regionalmente diferenciada, que se expande fora dos domínios

próprios do Estado e do mercado e valoriza novas perspectivas para compreensão da

sociedade a partir dos movimentos da base”. Essa sociedade civil sob o pensamento da dádiva

não estaria situada num setor (terceiro setor como é chamado) que complemente os outros

dois primeiros, mas no âmbito de uma transversalidade, e como “uma experiência histórica

particular” conforme Martins (2005), “regida por mecanismos de organização e de regulação

peculiares (que apenas se tornariam evidentes quando realçados os processos de

pertencimento e de reconhecimento interpessoais presentes nas instituições primárias da vida

social)” (Martins, 2005, p. 50).

Segundo o autor,

93 O conceito da dádiva, quando são feitos os paralelos entre caridade, solidariedade, assistência, filantropia e voluntariado,

possibilita a hipótese de que esses termos trazem, ambos, a continuidade de uma representação social em comum, apenas

revestidas de novos contextos socioeconômicos que se apresentaram historicamente. A dádiva é transversal a todos eles.

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“na verdade, caso fosse necessário reduzir a presente discussão a uma

classificação por “setores”, os teóricos anti-utilitaristas da escola francesa

sustentariam a hipótese de que o primeiro foi constituído, desde sempre,

pelas práticas associacionistas e comunitaristas inspiradas na dádiva

(Mauss, 2003), sendo os outros dois setores, o Estado e o Mercado, vistos

como secundários do ponto de vista histórico e social”94 (Martins, 2005,

p. 50).

Estando situada nesta esfera das referidas práticas associacionistas e comunitárias, o

voluntariado estaria - junto com as outras formas de participação cívica - operando nesse

chamado ‘primeiro setor’ dos anti-utilitaristas de maneira anterior ao Estado, estabelecendo

com esse, posteriormente, as tais relações complementares ou sobrepostas.

“A compreensão da dádiva como o sistema de trocas básico da vida

social permite romper com o modelo dicotômico típico da modernidade,

pelo qual a sociedade ou seria fruto de uma ação planificadora do Estado

ou do movimento fluente do mercado. O entendimento do sentido

sociológico da dádiva quebra esta dicotomia para introduzir a ideia da

ação social como «inter-ação», como movimento circular acionado pela

força do bem (simbólico ou material) dado, recebido e retribuído, o qual

interfere diretamente tanto na distribuição dos lugares dos membros do

grupo social como nas modalidades de reconhecimento, inclusão e

prestígio. Por ser a lógica arcaica constitutiva do vínculo social, a dádiva

integra potencialmente em si as possibilidades do mercado (retenção do

bem doado) e do Estado (possibilidades de redistribuição das riquezas

coletivas) e não o contrário”. (Martins, 2005, p. 53).

Assim sendo, percebendo que forças morais estariam, pelos fundos, influenciando as

concepções de reciprocidade e as relações de voluntariado, os termos assistência, caridade,

filantropia e solidariedade foram também perguntados aos entrevistados na intenção de

perceber como os atores influentes no universo do voluntariado situavam sociologicamente e

historicamente o voluntariado em seus territórios. E, na medida em que descreviam cada um

94 Esse é um dos cernes das reflexões de Mauss. “No Ensaio sobre a dádiva publicado inicialmente de 1924, Estado e

Mercado não são universais. Porém, em todas as sociedades já existentes na história humana – independentemente de nos

referirmos àquelas tradicionais ou modernas –, é possível observar a presença constante de um sistema de reciprocidades de

caráter interpessoal” (Martins, 2005, p. 53).

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desses termos, ofereciam sua visão do quê, indiretamente, entendiam por relações mais

tutelares ou emancipatórias dentre as trocas que o voluntariado propicia, desvelando quais as

suas crenças e valores sobre o assunto.

São tutelares quando o sistema de dádivas perpetua a dívida impagável do receptor

do voluntariado social, assim como diz Mello (2008, pp. 144):

“Essa prática procura manter, através de transações (trocas em diversos

níveis hierárquicos), as relações sociais em um estado de paz e de

perpétua interdependência (…). Essa interdependência está associada à

perpetuação da dívida, nunca havendo um equilíbrio, uma troca

equivalente (característica buscada pela economia de mercado, ao menos

nominalmente), o que colocaria em risco o sistema de retribuições – o

espírito da dádiva. (Mello, 2008, p 144)”.

E são emancipatórias quando não há captura do vulnerável para fins utilitários (ainda

que de boa fé), mas sim ações que se revertem em igualdade de direitos, em que o voluntário

perceba, compreenda ou busque que o assistido esteja no mesmo patamar, ou em menor

assimetria social95.

Ressalta-se que, de uma forma geral, não há diferenças de concepções entre os dois

países sobre os conceitos em questão. As distinções quando acontecem, se dão

fundamentalmente a partir do lugar de fala do sujeito entrevistado, o que significa que

dependem do seu histórico educacional, dos seus valores morais e religiosos, e do viés

profissional96. É possível entender que deles, a caridade e a solidariedade estão associadas,

95 O Observatório das desigualdades apresenta como um indicador de assimetria/desigualdade o coeficiente GINI: “indicador

sintético de desigualdade na distribuição do rendimento que assume valores entre 0 (quando todos os indivíduos têm igual

rendimento) e 100 (quando todo o rendimento se concentra num único indivíduo). O coeficiente pode também variar entre 0 e

1. A desigualdade / assimetria na distribuição dos rendimentos é tanto mais forte quanto maior for o valor assumido pelo

coeficiente. O coeficiente de Gini mede a extensão até à qual a distribuição de rendimentos (ou, em alguns casos as despesas

de consumo) entre indivíduos ou agregados familiares inseridos numa economia, se desvia de uma distribuição perfeitamente

igual. Este coeficiente mede a área entre a curva de Lorenz e a linha hipotética de igualdade absoluta, expressa na

percentagem da área máxima abaixo da linha”.(Fonte: Instituto Nacional de Estatística (INE), Glossário: http://smi.ine.pt/,

acesso em 19/10/2019). A desigualdade, entretanto, implica não apenas a econômica, mas outras como de gênero, racial e

regional.

96 “Caridade, filantropia, mecenato, atividade «pro bono», voluntariado, assistência, solidariedade… são realidades com

proximidades várias que se cruzam e interligam. Não é fácil destrinçá-las, até porque nasceram em épocas diferentes, em

ambientes diferentes, em culturas distintas, e pergunto-me mesmo se é vantajoso defini-las e, em consequência, separá-las,

pois entendo que são realidades que se alimentam mutuamente e, logo, se vão enriquecendo”. E complementa: “De modo

sintético diria que não há espartilhos para a liberdade, enquanto forma como a língua evolui… As definições interessam

fundamentalmente quando se quer clarificar ou situar os discursos: é um discurso religioso? É um discurso histórico? É um

discurso político? É um discurso jurídico? É um discurso filológico? É um discurso convivial, entre amigos? (…). Colocada a

questão nos termos em que a coloco, sempre que houver necessidade de falar de uma ou várias destas realidades, devemos

começar por situar os discursos. Como jurista, interessa-me o conceito de solidariedade constitucionalmente consagrado, o

conceito de mecenato juridicamente consagrado, o conceito de voluntariado, também juridicamente consagrado, e por

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várias vezes, a sentimentos que motivam o voluntariado, qualificando o perfil do sujeito que

se voluntaria. Por outro lado, a filantropia e a assistência, aparecem como formas de respostas

às questões socias, sendo que a primeira posiciona as iniciativas na sociedade civil e a

segunda é comumente responsabilizada pelo Estado tal e qual apontado no estudo

bibliográfico do segundo capítulo. O termo voluntariado, enfim, surge em ligação a essas duas

últimas como uma ferramenta de execução, ou uma estratégia de ação. Ou seja, pode-se dizer

que os entrevistados propõem um discurso no qual a caridade e a solidariedade são os

‘porquês’ e a assistência e a filantropia os ‘como’ e ‘onde’ do voluntariado.

A caridade nas entrevistas mostra-se com duas facetas: aquela que seria a sua real

essência e aquela que seria a sua máscara97. A primeira, estaria relacionada a um cuidado mais

universal cujas palavras “amor ao próximo” formam a expressão mais frequente. A segunda

faceta, ligada ao dom religioso, é trazida como a corrupção do conceito, com interesses que

ferem uma ética mais pura e universalista, mais facilmente associada aqui à ética do

cuidado98. O mundo cristão teria se apropriado da caridade, como dito por algumas falas.

“(…) voluntariado é essencialmente caridade quando interpretado como

aquela ação que é feita pelo coração” “ajudar alguém que precisa em uma

situação de intervenção com amor e compaixão (…)”. (Entrevistado 1-

Portugal)

“(…) caridade: uma das 3 virtudes cristas, é aquilo que a gente carrega

como uma semente e tem que exercitar, e ela remete a aquilo que é mais

diante… E é na definição legal dos conceitos legais, e na sua interpretação, que aproximo e afasto as realidades concretas”

(Entrevistado 6 – Portugal).

97 A título de interesse, assim explica o conceito de ‘máscara’ da caridade um entrevistado dirigente de uma entidade que é

inserida em uma rede católica: “(…) a caridade muitas vezes foi identificada com coisas que nada tem a ver com caridade ou

solidariedade, mas máscaras desses valores, o tal sentido que vivi na infância, de ver no outro um sujeito sem direitos,

totalmente inábil e que precisava forçosamente de outrem para poder ter o direito de viver. Confundiu-se caridade com

assistencialismo que ainda predomina em algumas áreas e setores (…) a caridade esta muito desvirtuada conceitualmente. A

caridade não no contexto religioso é um crescimento da solidariedade, num sentido de maior consciência de unidade e

comunidade, porque na solidariedade eu sou concidadão, e na caridade o outro faz parte comigo e eu do outro, caridade é

então voluntariado com exercício do amor, ou seja, a caridade na sua melhor vertente (…) a caridade foi apropriada de

inocente, talvez não tanto, pela igreja, e não precisamos da caridade para que o homem se sinta adequado a esse mundo (...)”.

(Entrevistado 4- Portugal).

98 Esse trabalho opta pela ética do cuidado aqui para identificar uma concepção mais profunda de comunidade. De acordo

com Perdigão (2003, p. 486) “a expressão “ética do cuidado” ou “ética do cuidar” encerra um sentido de responsabilidade e

dignidade fundamentais ao ser pessoa. A todo e a cada ser pessoa. Remete para um nível mais profundo do ser humano

relativamente ao qual as boas maneiras e as regras de etiqueta constituem um ténue reflexo daquilo em que consiste um

cuidar autêntico. Além disso, e embora o cumprimento do dever constitua um contributo decisivo para uma “boa” praxis do

cuidar, nem sempre é suficiente. Pretende-se que a presença de alguém (neste caso, a presença do interventor comunitário)

não se limite apenas a um estar, mas tenha de igual modo a densidade e a autenticidade do ser”.

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seminal do voluntariado, e que surge de dentro da igreja (…)”.

(Entrevistado 8- Brasil).

“(…) caridade como essência ela é mais livre e gratuita do que isso, é

livre para perceber a necessidade do outro seja qual for a situação, pode

ser uma palavra um recurso ou o que for (…). (Entrevistado 2- Brasil).

“(…) o conceito da caridadezinha em Portugal com muitas marcas ainda

da ditadura, pois etimologicamente tem um sentido mais puro, o de dar ao

outro (…)”. (Entrevistado 2- Portugal).

A palavra esmola só ressurge nas entrevistas, naquelas falas associadas à caridade,

novamente cristã, junta ou separadamente da palavra culpa, tal e qual as ações corporais das

Santas Casas de Misericórdia, levantadas na revisão histórica.

“(…) caridade: não acredito, é culpa, pagar culpa não consigo ver como

uma coisa positiva ou uma virtude: ‘- vou dar uma esmola porque acabei

de sair de um restaurante legal’, não acredito em altruísmo. Há sim um

jogo de interesses muito forte, não consigo ver isso no meio em que vivo,

há 30 anos trabalhando e vivendo no setor (…)”. (Entrevistado 7- Brasil).

" (…) caridade é ver o outro como necessidade, ‘eu sou bom para ganhar

o céu’ (…)”. (Entrevistado 3- Brasil).

E a ação de voluntariado no contexto da caridade, com a referida máscara, ou da

“caridadezinha” como várias vezes cunhada em Portugal, termina por ser sintonizada com as

ações conservadoras ou tutelares. Reforçam o paternalismo, com a percepção do sujeito

beneficiário, outrora tido por desvalido, como quem está em situação tal que não consegue se

reerguer. Em algumas interpretações, esse tipo de caridade cumpre aliviar as urgências, em

outras, mantém sistemicamente o assistido na sua condição desigual. O risco das ações de

voluntariado que se estruturam sob a lógica de uma caridade assistencialista, é a referida

possibilidade de uma relação utilitária com as pessoas que estão vulneráveis, fazendo dessas,

instrumentos de sustentação de um sistema institucional. É ético que se use de quem mais

precisa de apoio, se o principal motivo for manter burocraticamente uma entidade? Não há

nesse caso uma distorção entre os fins e os meios? E esse aspecto é tão recorrente nos

depoimentos do Brasil quanto de Portugal. Trata-se do mesmo sistema que Lins de Mello

(2015) sublinha como ‘Economia da Esmola”, para designar um nicho de mercado, que

sustenta interesses e remunera pessoas e organizações, como sendo mediadores entre a

necessidade de receber esmola de uns, e a necessidade de ser caridoso de outros.

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“(…) na caridade não é ‘dar ferramentas,’ mas ‘dar o peixe’ e vou

mantendo a pessoa no mesmo patamar e mantenho o objetivo do meu

trabalho voluntario dependente da minha ação (…)”. (Entrevistado 2-

Portugal).

(…) dependência como manutenção de um sistema. Seja a dependência

provocada ou natural, como no caso da dependência - de uma forma ou

de outra (…) manter a dependência permite que eu mantenha a minha

posição e o meu papel (…)”. (Entrevistado 2- Portugal).

“(…) Ele transforma pela cidadania, e não é caridade porque a caridade

nega isso: essa união e encontro entre iguais (…)” (Entrevistado 3-

Brasil).

Na percepção de alguns entrevistados, é necessário que a ação caritativa subsista

como estratégia paralela a um voluntariado contínuo, este sim, dedicado a uma mudança de

patamar econômico e social dos beneficiários. A primeira, teria como objetivo suprir, as

necessidades mais urgentes dos vulneráveis, e responder em momentos críticos como crises e

catástrofes.

“(…) seguramente são mais caritativas as ações num contexto de grande

aflição, pobreza ou urgência (necessidades básicas) para a resolução de

um problema imediato, mas o trabalho comunitário de partida se torna

inviável (…) mas as duas dimensões podem coexistir”. (Entrevistado 3-

Portugal).

“(…) Pergunta: - Dar o peixe e ensinar a pescar: é uma frase válida?

Resposta: - Não gosto muito dela, ela coloca também as pessoas em

patamares diferentes: ‘eu sei e vou te ensinar’, muitas vezes as pessoas

que recebem a ação social têm experiencias de vida muito maiores do que

quem esta ‘ajudando’ (…) ensinar é prepotência (…) para uma pessoa

que vive na rua você vai ensinar o que? (…)” (Entrevistado 2- Brasil).

A solidariedade não é concebida nas falas como uma opção de ferramenta, como por

exemplo, um sujeito não diz: ‘que vai fazer solidariedade’, em que soa vago, mas, vai ser

solidário em uma ação, e essa ação pode ser de voluntariado. Em sentido diferente da

caridade, o discurso sobre a solidariedade tende a ser laico, assim como proposto por Pierre

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Leroux99 no século XIX, e especifica o compromisso entre os integrantes de um grupo, o

fortalecimento de vínculos e os laços de coresponsabilidade.

“A solidariedade, por seu turno, na sequência da «fraternidade», uma das

bandeiras da revolução francesa («liberté, égalité, fraternité»), tem

conotações políticas claras, sendo, inclusivamente, usada como adjetivo

(solidária), a caracterização de uma sociedade melhor que se pretende

construir para futuro”. (Entrevistado 6- Portugal).

Solidariedade constitui um espectro mais amplo que o voluntariado, e teria como

pressuposto um envolvimento de cidadãos em um ambiente democrático e participativo.

Sendo assim, se em comunidade há várias formas possíveis de participação solidária, o

voluntariado está enquadrado como uma delas.

“(…) qualquer voluntario é solidário, mas nem todo solidário é

voluntário. A minha ação voluntária é sempre em ação de alguém, posso

ser solidário sem ser voluntário contribuindo para uma causa

financeiramente, por exemplo. O tempo entra como o diferenciador

nesses casos (…)” (Entrevistado 1- Portugal).

“(…) a coisa da solidariedade tende a ser mais emancipatória, como um

guarda chuva maior e o voluntariado é tudo isso em ação sempre para

fora (…)”. (Entrevistado 2- Brasil).

“(…) a solidariedade traz aspecto mais reflexivo do tipo: vou ajudar o

próximo sem capturá-lo. O próximo também tem liberdade. Lembra

muito a forma como o Betinho e a Zilda Arns trabalhavam. Traz uma

sensação de igualdade e não de poder (…)”. (Entrevistado 9- Brasil).

A noção de ‘não captura’ é trazida pelo ‘Entrevistado 9’ do Brasil como uma ação

que integra o outro, sem abrir janelas para o assistencialismo ou o clientelismo. Esse é um

consenso partilhado pelas falas de brasileiros e portugueses. Identificado com relações mais

horizontais (não hierarquizadas), o laço solidário se propõe mais inclusivo.

“(…) voluntariado esta ligado ao conceito de solidariedade e sobretudo

de cidadania interessada. Para que a comunidade onde estou progrida de

99 Laville (2005, p. 1) afirma ter sido Leroux, um filósofo e político francês, o responsável por trazer a solidariedade para o

vocabulário moderno. Leroux é mais amplamente conhecido como quem cunhou o termo ‘socialismo’ em 1831. O autor é

citado no capítulo 2, em descrição bibliográfica específica sobre a solidariedade.

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forma harmoniosa, estendendo à maior parte de oportunidades possíveis

(…) mas eu não ‘me sinto fora e sou rico, e doo para aquela creche’, pelo

contrário, preciso dela na minha comunidade e contribuo com algum

tempo, porque aquela creche faz sentido para mim, e no voluntariado

precisa haver sentido e compromisso e continuidade (…)” (Entrevistado

3- Portugal).

“(…) associada a cidadania ativa, a solidariedade é a transformação da

caridade numa prática comunitária. Não tem a coisa da manutenção da

dependência. Eu sou preocupado com as necessidades, quero intervir na

comunidade porque quero melhorar a comunidade. Olhar para

comunidade e perceber onde eu faço falta (…)” (Entrevistado 2-

Portugal).

Ligadas outras vezes ao termo empatia, em consonância com Morais e Tenório

(2017, p. 6) em que significa compaixão, e associadas no senso comum ao campo das

emoções, as falas sobre a solidariedade ilustram relações entre indivíduos concidadãos, e

menos como práticas institucionais e formais, o que suscita uma vinculação ao conceito de

sociabilidade primária. São lembradas nas entrevistas, entretanto, as experiências

empreendidas no Brasil pelo projeto Comunidade Solidária na década de 90, como marcos

institucionais relevantes.

“(…) se colocou no lugar do outro, a solidariedade é muito mais

empática, a diferença dela para a caridade é o porquê se faz (…)”.

(Entrevistado 1- Brasil).

“(…) solidariedade é motivo e é muito coração, solidariedade amplia um

pouco pois cabe a outras situações que não são necessariamente de uma

necessidade de ajuda, mas posso ser solidário a um amigo em

determinada dor ou momento a caridade dentro de solidariedade (…)”

(Entrevistado 2- Brasil).

A filantropia na ótica dos entrevistados se encontra com o voluntariado enquanto

financiadora, por vias menos ou mais estruturadas, de projetos sociais que usem do

voluntariado como estratégia. O termo foi levado ao trabalho de campo quando, durante o

estudo bibliográfico, deriva da caridade, das doações de esmolas, pelas irmandades católicas,

para doações por pessoas físicas e jurídicas da sociedade civil, sob um sistema de dádivas em

que a troca não se dava, necessariamente, sobre a moral religiosa. Para os entrevistados, há

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diferenças entre Brasil e Portugal especificamente pelo fortalecimento nos últimos dez anos,

no Brasil, do termo Investimento Social Privado100, que parece significar uma evolução em

termos de gestão. Em Portugal, a palavra filantropia permanece ligada a doação, ao repasse

financeiro de grandes quantias monetárias.

“(…) considero filantropia se a doação se der em um milhão de dólares,

ou um grande jantar de angariação de fundos, por exemplo. Nos EUA

tem uma tradição muito forte, como houve no passado - na Renascença -

os mecenas. O que se ganha (ou doa), (pela filantropia), está a serviço da

humanidade em forma de projetos sociais. Quero acreditar que há

sinceridade nessa tomada de atitude, que vai desde um projeto social até a

investigações. E não tem a ver com voluntariado, mas pode ajudar a

viabilizar projetos de voluntariado. (Entrevistado 1- Portugal).

O voluntariado não é sinônimo de filantropia, e, portanto, não é o mesmo que doação

de bens, mas sim de tempo e trabalho. Contudo, um projeto de voluntariado pode ser

estruturado por meio de um investimento filantrópico. Há, por fim, a compreensão em

Portugal de que o filantropo não se envolve no projeto, e em alguns casos, a ação filantrópica,

quando organizada em campanhas desarticuladas, pode mais atrapalhar que ajudar.

“(…) a filantropia a doar dinheiro para que os outros façam eu não me

envolvo no projeto, com condições e não participação, com menos

envolvimento de participação. A filantropia não tem ligação com o

voluntariado, pode promover projetos que tenham práticas de

voluntariado (…)” (Entrevistado 2- Portugal).

“(…) são campanhas, as vezes até sem esperar o momento certo, e as

vezes até atrapalham (…)”. (Entrevistado 4- Brasil).

“Os grandes filantropos acham que são Deuses, eles acham que sabem o

que o pobre quer (…) criando fundos a bolsas de estudos, por exemplo, e

todos com receita (do que fazer) clara a partir da sua instituição,

difundindo o seu modelo, mas estão distantes de uma participação pública

colaborativa (…) (Entrevistado 7- Brasil).

Os entrecruzamentos dos termos nas falas dos entrevistados, muitas vezes

reproduzem o que parece ser usual no setor, utilizar as expressões como se aprende no senso

100 “(…) O ISP (Investimento Social Privado) é uma espécie de filantropia, mas que é tratado como investimento, ou seja, o

retorno daquilo é mensurado, enquanto que o esforço da filantropia que pode ser doação de dinheiro, tempo, e recursos não é

necessariamente mensurado. O ISP é mensurado, e exige que se meça o retorno (…)”. (Entrevistado 5- Brasil).

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comum. Na solidariedade por exemplo, transparece muito ‘camaradismo’, mas em relação à

caridade, sugere melhor consciência do cidadão praticante. Alguns entrevistados

demonstraram interesse em se dissociar totalmente da concepção caritativa, como um

demérito em termos de técnica da intervenção social. A impressão é que a caridade – ou

caridadezinha em Portugal – é muito amadora, e os dirigentes e consultores entrevistados, em

sua qualificação profissional, optam por aqueles termos que inserem o voluntariado numa

vertente mais transformadora do indivíduo. A filantropia em relação à solidariedade parece

uma aproximação mais plausível, quando se fala do teor laico, ou mesmo etimológico, quando

são tomados como criações de fonte clássica. Entretanto, o lugar do servir no filantropo é o

doar, e no do solidário é o colaborar, que são dois lugares bem próximos, e o voluntariado se

acomoda nesse meio como aquele servir que doa, exceto quantias, mas sim tempo e trabalho,

e ao mesmo tempo colabora. O voluntariado é zona de intercessão muitas vezes, e achar o seu

lugar, ou os seus limites, parece diminuí-lo. De acordo com uma das falas do campo, a

palavra ação possivelmente é a peça coringa que melhor encaixa o voluntariado em todos

esses enquadramentos.

3.4. Assistência: a relação com o Estado

No contexto da assistência, o voluntariado se encontra (ou desencontra) em sua

relação com o Estado Social, quando o seu agente promotor elabora a sua compreensão

daquilo que é dever do governo diante das desigualdades sociais, e da garantia de direitos

básicos. Em geral, a assistência, é considerada consensualmente, entre os entrevistados dos

dois países, como de responsabilidade governamental, uma obrigação legal. E sendo assim,

dotada de especialidade profissional (a assistência social), a qual não se pode terceirizar ou

depender do voluntariado. Esse último inclusive, é um dos três desafios que Yazbek (2006,

pp. 50 - 51) aponta como ´distorções limitantes da assistência: “2) a vinculação histórica ao

trabalho filantrópico voluntário e solidário que vem permitindo confundir ou identificar uma

intervenção técnica com a ação voluntária, e “muitas vezes permeada pelo favoritismo na

distribuição das ‘benesses do Estado’”.

“(…) a assistência estruturada tem o papel de responsabilidade

governamental, a constituição define que todo mundo tem o direito à

assistência pública em todos os níveis. A assistência em si é uma

obrigação legal, e o voluntariado com a assistência de certa forma não é

bem visto, não vejo problemas nele, mas ela (a assistência) é tão

estruturada do ponto de vista de política pública que é tratada

profissionalmente e uma obrigação, então se as pessoas não estão

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completamente assistidas é por uma falha nesse serviço (…) em sua

essência está desligada do voluntariado, dele não depende, não pode

depender. O voluntariado não atrapalha, mas não a substitui! (…)”

(Entrevistado 2- Brasil).

A assistência quando exercida pelo voluntariado é entendida como aquele tipo de

ação que atua nas emergências, de forma muito similar à caridade. No Brasil, um entrevistado

a caracteriza como a política pública menos assistida101, e estigmatizada.

“(…) Assistência: é dentro do meio do voluntariado ações que vão

mitigar problemas mais urgentes. Como sopão e que alivia as

consequências e não vão na causa (…)”. (Entrevistado 8- Brasil).

“A assistência no Brasil atua em uma realidade, espaço, território com

pessoas passando necessidades e que não conseguem acessar a resolução

disso. Assistência chega para suprir aquele que tem fome, frio,

necessidade de direcionamento." Aí então chega a assistência para que a

pessoa tenha fôlego para acessar por conta própria”. (Entrevistado 9-

Brasil)

Sobre a questão dos atores responsáveis pela assistência, alguns depoimentos

indicam o voluntariado como alternativa paliativa para fazer aquilo que o governo não faz. A

ação articulada da sociedade civil, que diz agir diante de uma declarada ineficiência estatal, é

comum nos dois países pesquisados, assim como são nublados os limites de responsabilidades

entre os agentes102. Entretanto a questão de que os voluntários atuam nas lacunas do governo

não é um consenso, não só pelas gradações mais ou menos neoliberais dos entrevistados – em

que os neoliberais responsabilizam menos o Estado. Mas também, porque factualmente

existem áreas que acabam por não serem tão priorizados pelo voluntariado, simplesmente por

não serem atrativas, como por exemplo, nas situações da dependência química. Ou seja, nas

questões elementares da assistência, naquelas temáticas mais duras, o voluntariado tende a

agir com menor incidência.

101 “Associada a ações de benevolência para com a pobreza, a assistência se apresenta como modalidade paliativa e

secundária no conjunto das políticas sociais brasileiras” (Yazbek 2006, p. 51). 102 “O Brasil, embora colonizado por um país ‘europeu’, teve um outro destino histórico. Na tradição política portuguesa,

influenciada por uma extensa ocupação árabe, o Estado ocupava não só o espaço que lhe cabia na vida social, como também

o espaço do que hoje se chama sociedade civil. Com uma tradição política distinta da sociedade liberal cujo modelo é a

Inglaterra, tal forma de dominação política, transportada para o além-mar, estabeleceu as características principais das

relações entre Estado e sociedade civil neste país, que se mantêm até os dias de hoje. Dentre elas, sobressai o ‘Culto ao

Estado’, como agente capaz de não só estabelecer a paz social e a justiça, mas também de produzir riqueza, assistir os

desvalidos e, no limite, trazer a felicidade a todos os seus membros, ao menos no discurso”. (Selli e Garrafa, 2006, p. 245).

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Alguns entrevistados ressaltam a posição de que a assistência não seja

exclusivamente do Governo, em um cenário no qual as questões mais graves só se

resolveriam com o compromisso de todos os agentes da sociedade.

“(…) quem deveria fazer é o governo, mas e se começarmos a fazer o

governo não vai fazer? eu sou muito descrente do governo, não só da boa

fé, mas certeza da ineficiência do governo ainda que as intenções sejam

boas (…) é claro que o governo é ineficiente: tudo que passa por ali é

mais caro, mais moroso e geralmente com uma qualidade menor (…) por

isso é positivo a iniciativa privada se organizar (…) a população tem que

ter sua força de se autorregulamentar, se autossustentar, sem depender de

uma assistência formal, que tem que existir, mas no cenário em que a

gente está, não favorece ninguém ficar esperando. Se a gente se fortalece

dessa forma sem depender do governo a gente ganha forças perante o

governo até para pressionar para coisas que devam ser feitas por ele (…)”

(Entrevistado 1- Brasil).

“(…) ao governo cabe a responsabilidade de prover o Estado de Bem-

Estar, de garantir direitos e isso não há no Brasil, nesse sentido o

voluntariado atua no gap, inclusive provendo afeto nas relações e no

fomento de atividades como a cultura e a arte. Mas o voluntario acaba

fazendo papel do governo no Brasil quando entra por exemplo no campo

da defesa de direitos (…)” (Entrevistado 3- Brasil).

“Política pública de assistência social no Brasil é a menos assistida,

partindo mesmo do Governo Federal, a palavra traz um teor negativo,

relacionada a ‘dar ao pobre coitado’, a aquele que está a margem da

cidadania. (…) ela não tem uma definição de fato do porquê que ela

existe apesar de ter mil motivos para a existência dela (…) somos uma

ONG na qual fazemos assistência há muito tempo, e parece que temos

que continuar porque ninguém faz! Porque parece que ficou feio, que

ninguém quer fazer. (…) temos uma população excluída no Brasil que

precisa antes de tudo da assistência. (…) ela não tem lugar não consegue

se posicionar como política pública, nem no Conselho Nacional de

Assistência. Fala-se de garantia de direitos que a Constituição trouxe em

1988, mas o mundo mudou e ainda se pensa na obrigação do governo dar.

Quem trabalha com assistência de forma tradicional acha que o governo

tem que prover (…)”, (Entrevistado 7- Brasil).

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“do ponto de vista humano, a responsabilidade (da assistência) é de quem

se afeta. Ao falar de voluntariado entra o institucional, e grande parte da

responsabilidade deveria ser do poder público. Se o poder público não

pode oferecer, (a sociedade civil) tem que ofertar assistência. A empresa

também se afeta porque também é um ator da desigualdade. Não se pode

esquecer a autorresponsabilidade que perpassa uma ética: empresa que

doa cesta básica está assumindo papel de paternalismo e não está sendo

socialmente responsável. Basta mudança de olhar desde que haja espaço

para reflexão”. (Entrevistado 9- Brasil).

No caso de Portugal, há um dos depoimentos que sugere que o Estado assume a

postura assistencialista “porque sempre foi assim”, e pela possibilidade de ser uma forma de

controle. Ressalta-se aí uma necessidade de que as pessoas conheçam os seus direitos, para

que aquilo que é obrigação e dever não seja vendido como favor pelo Estado, ou pelas

entidades que busquem exercer ascendência sobre os grupos vulneráveis. O que é comum nos

testemunhos, é que no país, a questão da assistência retorna necessariamente à atuação das

misericórdias.

“(…) A assistência do estado português por questões históricas, tem no

seu substrato uma visão paternalista e assistencialista, e o mau é que o

Estado em si mesmo assume isso. Ficou tão embrenhado que o Estado em

vez de fazer a assistência inserida (ou contextualizada) nos direitos

humanos que as pessoas têm, assume-se como alguém (o Estado) que tem

o poder de dominar o outro por via de dar à outra uma coisa que na

verdade é um direito que ele tem (…) todos damos para que o Estado

cumpra o direito das pessoas (…) A forma como essa dádiva se posiciona

não é um favor, mas uma obrigação”. (Entrevistado 4- Portugal).

“(…) infelizmente não vejo como gostaria: das misericórdias em geral,

não nos libertamos do fantasma do assistencialismo, isso não significa

que isso seja sempre mal, mas já deveríamos ter virado essa página, já

deveríamos estar fazendo com as pessoas, ou seja, deixando que as

pessoas participem do seu desenvolvimento e não sermos nós a

dirigirmos a vida das pessoas. (…)”. (Entrevistado 3- Portugal).

No discurso da assistência, é recorrente que seja anunciada a necessidade de

valorização dos potenciais do beneficiário, como agente e não como passivo, aliás, o

pressuposto de considerá-lo sujeito da própria história, faz parte das concepções mais

emancipatórias de voluntariado em ambos os países. Em função disso, o voluntariado é

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99

proposto como uma ponte entre os entes assistenciais e comunitários, por meio do estímulo à

participação social.

“(…) pode-se dar assistência para que as pessoas não sofram tanto no dia

a dia, e isso pode ser minimizado a partir do voluntariado (…) a verdade

é que precisamos contribuir para que os motivos que geram o

assistencialismo deixem de acontecer. Se as pessoas conseguem

minimamente fazer algo por si, isso deve ser estimulado, para que elas

possam ser atores desse desenvolvimento e não apenas beneficiários.”

(Entrevistado 1- Portugal).

“(…) continua a haver grande percentagem na vertente assistencialista,

não conseguem ter capacidade pessoal de contribuir para a criação de

emancipação. Há um mundo de intervenções hoje em dia que vão

ganhando visibilidade, como por exemplo o mundo das capacitações: são

cada vez mais visíveis trabalhos de "empoderamento", de

desenvolvimento de capacitação digital, e de intervenção comunitária e

empoderamento das mesmas. Dos mais velhos sobretudo (…)”

(Entrevistado 8- Brasil).

“(…) (a assistência) sim, não é uma obrigação da instituição da sociedade

civil ou da empresa, mas naturalmente pode ocorrer, e entendo que

voluntariamente posso partilhar à minha volta o que eu tenho (…)

disponibilizar recursos privados para fins públicos, são relações de

proximidades que eu desejo partilhar. Acredito que por parte das

entidades privadas seja (um ganho por meio das ações de voluntariado) a

criação de laços comunitários (Entrevistado 5- Brasil).

“(…) qualquer forma de voluntariado tem essa dimensão, desde o

assistencial até o cooperativo, que está a emergir mais. Os patamares de

assistência e cooperação são cumulativos, tenho o poder de fazer pontes e

encaminhamentos, que muitas vezes partem para intervenções públicas e

sociais (…)”. (Entrevistado 4- Portugal).

Durante as entrevistas surgiu um fator que distinguiria o trajeto do voluntariado nos

dois países nos últimos anos, acerca dos movimentos de democratização após os anos de

governos autoritários. A informação que surge, é que, durante esse tipo de governo, os

movimentos sociais foram reprimidos como sendo resistência, e a participação social nas

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tomadas de decisões, na governança pública, foi sufocada no sentido de transformar os

públicos vulneráveis em tutelados. Dito isso, as ações voluntárias nesses períodos são

assistenciais em movimentos restritos às doações, da boa vontade, pela moral e dádiva mais

em comum com aquela apresentada pela caridade. De acordo com a pesquisa, Portugal teria

sofrido mais que o Brasil devido ao extenso período antidemocrático.

O que é sugerido pelo material coletado é que em Portugal e Brasil a democratização

é recente, mas que o Brasil, já nas décadas de 80 e 90 se articulava em ações estruturadas,

formativas do terceiro setor. Mas, Portugal, por sua vez, pela longa duração do Estado Novo,

mantém ainda ecos do período autoritário em sua cultura de solidariedade, como dito por um

dos entrevistados, os “filhos da ditadura ainda são pais e avós”, ainda que o período pós-

revolução, conforme descrito no Capítulo 1, represente avanços bastante significativos em um

processo de abertura de mercado e das formas de pensar o voluntariado. Esse movimento

avança até, ou principalmente, nos dias atuais.

Posto isso, em Portugal, o movimento institucional ainda caminha no sentindo de

estimular um trabalho em redes participativas nos territórios, devido às recentes partilhas com

outras realidades, de diferentes países, que têm oxigenado as formas dos atores do

voluntariado se colocarem e atuarem localmente. De acordo com os representantes

entrevistados, no período atual, a relação com a participação cidadã em Portugal tende a

adquirir um novo patamar de maturidade. Pergunta-se, nesse trabalho, se a proficuidade de

eventos para visibilidade de causa, grupos de advocacia pelo voluntariado, os movimentos

jovens, a exemplo do que foi estimulado em 2011- o Ano Europeu do Voluntariado, os

estudos de impacto do voluntariado, além das associações aos esforços das Nações Unidas -

como a adesão aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, estão organizados, de maneira

a direcionar para uma política estruturada de participação, ou mantém as mesmas práticas e

relações assimétricas, envoltas em um novo discurso.

“(…) o país tem uma especificidade, a questão da ditadura e uma

democracia recente. Num período de ditadura não são estimuladas

práticas de cidadania, e estamos atrasados, e se calhar os números que

temos de voluntariado refletem isso (…) se as últimas gerações de

pessoas não foram estimuladas para a participação cívica, pelo contrário:

as pequenas reuniões eram repreendidas, há (em consequência) uma

geração de filhos desses valores (…)” (Entrevistado 2- Portugal).

“(…)vejo com muita satisfação a diversificação do voluntariado

sobretudo após o 25 de abril, onde levou uma grande reviravolta(…) tem

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vindo a evoluir ao longo dos tempos, começou por ter uma base

predominantemente religiosa, hoje não é tanto assim, o que se demonstra

no último estudo do INE de 2019103, e mesmo o voluntariado com

motivação religiosa ainda esta por muito por estudar. (…) (tenho) “a

preocupação do estatal dominando as atividades que precisam ser

predominantemente de movimentos das classes. Preocupação do excesso

de protagonismo (do Estado) na organização do voluntariado. (…) as

medidas legais não podem ser beneficiadoras daquilo que não é

voluntariado”. (Entrevistado 4- Portugal).

“a ditadura como um fator diferenciador (do voluntariado em Portugal),

e o pós-ditadura da forma como o Estado assume de uma outra forma a

preponderância muito grande, mais uma vez o cidadão não teve espaço

para assumir o seu papel (…) o voluntariado é muito mais recente do que

por exemplo no norte da Europa, muito menos entendido como parte do

ADN da cidadania (…) (hoje) estamos numa fase de maior maturidade no

voluntariado em que as pessoas de fato percebem nele um território em

que de fato possam se manifestar, em que há mais estruturas para

organizar e promover essas iniciativas, e que também se atingiu um

estado de maturidade das próprias pessoas que permitem disponibilidade

para essa experiência (…)”. (Entrevistado 3- Portugal).

Se no Brasil as misericórdias também são citadas como marcos institucionais que

deram origem ao voluntariado formal, a concepção de voluntariado só é entendida a partir do

chamado da Constituição de 1988 à participação cidadã, com o seu direcionamento para

políticas participativas, estendidas aos cidadãos comuns e ao fortalecimento da sociedade

civil. Esse estímulo provocou um terceiro setor cada vez maior104, interativo, mas também

muito perdido, que obrigou a promulgação da Lei 13.019/2014, o Marco Regulatório das

Organizações da Sociedade Civil (MROSC), que entrou em vigor em 2016 com o objetivo de

tornar as relações entre essas organizações e o Estado mais viáveis e transparentes. O setor

103 Instituto Nacional de Estatística, Inquérito ao Trabalho Voluntário, 2019.

104 “Em 2016, havia 820 mil organizações da sociedade civil (OSCs) com Cadastros Nacionais de Pessoas Jurídicas (CNPJs)

ativos no país. As OSCs expandiram-se nos últimos anos, embora se observe contração em 2014. Os novos dados retratam

um setor amplo, com importância econômica no mercado de trabalho, além da conhecida relevância em ações de interesse

público. A distribuição das OSCs no território acompanha, em geral, a distribuição da população. A região Sudeste abriga

40% das organizações, seguida pelo Nordeste (25%), pelo Sul (19%), pelo Centro-Oeste (8%) e pelo Norte (8%). Vale

registrar que todos os municípios do país possuem pelo menos uma OSC. As organizações que tem como finalidade

desenvolvimento e defesa de direitos e interesses e as organizações com finalidade religiosas são os principais grupos de

OSCs do país e representam mais de seis em cada dez organizações em atividade. Na população de OSCs, 709 mil (86%) são

associações privadas, 99 mil (12%) são organizações religiosas e 12 mil (2%) são fundações privadas” (Lopez, 2018, p.22).

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voluntário sofre hoje com a dispersão de recursos, a falta de confiança por razões de relações

políticas e toda a descredibilidade ética pela qual passa o país. Que só será revertida com

movimentos de integridade, como por exemplo a ampliação das instâncias de transparência105.

“(…) (vejo a) história do voluntariado no Brasil como algo organizado,

(associo) ao conceito da assistência organizada, por isso as misericórdias

foram esse marco (…) mas passa (o surgimento do voluntariado como

conhecemos) pela etapa de intervenção social e política dos direitos, que

estabelecem o papel do cidadão - do seu direito como um cidadão

cuidado e protegido, e nisso é o grande marco é a Constituição de 1988

(…) A Constituição de 88 determina as pessoas como cheias de direitos,

mas que tem compromissos. Citando como exemplo as primeiras palavras

do ECA106, que nos colocam corresponsáveis por todas as crianças do

Brasil, isso é um momento emblemático (…) (o entendimento) do

cidadão como uma pessoa com deveres e compromissos na sociedade em

que vive (…)” (Entrevistado 6- Brasil).

A noção de democracia, de exercício de deveres e acesso aos direitos, afeta a ideia do

voluntariado na medida em que se entrecruza com aquilo que passa a ser a noção de

responsabilidade de um cidadão. Quando esse cidadão ultrapassa o senso comum, ou o que a

maior parte dos concidadãos faz – ou deixa de fazer – diante de um Estado mais ou menos

tutelar, o seu destaque em participação muitas vezes é tido como voluntariado. Nas falas dos

entrevistados, que em maioria assumem para si essa postura, é esse ‘algo a mais’ o ‘dever

extra’ que reside nos domínios da solidariedade, e passa a ser a curva de referência: um

cidadão imbuído de impulso solidário deve ultrapassar aqueles limites tácitos de

responsabilidade social e ir além, tomando para si o encargo de prevenção ou mitigação das

situações desagradáveis da sua comunidade.

Entra aí também a noção de governança pública, pois na relação com o Estado,

basicamente a pessoa poderia assumir-se em alguns momentos mais como um cliente deste,

ou em outros assumir-se mais o acionista, ou seja, como quem faz parte das tomadas de

decisões, regulações e monitoramentos. É uma régua complexa de ser estabelecida, em

105 “Apesar de o movimento por dados abertos e transparência governamental, governo aberto ou governo digital estar em

franco avanço, as informações que os portais orçamentários estaduais e municipais disponibilizam sobre as transferências de

recursos para a execução de políticas em parceria com OSCs ainda é insuficiente, e, em geral, carece de detalhamento para

identificar cada parceria e suas características. Somente um esforço coletivo poderá integrar as informações disponíveis em

um banco de dados unificado” (Lopez, 2018, p.22).

106 Estatuto da Criança e do Adolescente: “Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder

público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao

esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e

comunitária”.(Planalto da República, Lei Nº 8.069, De 13 De Julho De 1990).

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territórios diferentes, com noções de autonomia diferentes, e em momentos políticos

diferentes. Quando, por exemplo, nos casos dos governos autoritários, a exemplo dos citados

no Brasil e em Portugal, a função como cliente aumenta, e como gestor público diminui.

O ponto comum é que o voluntário sempre está indo além do que é estipulado, por

ser muitas vezes essa a forma como os entrevistados se colocam, também muitas vezes é

como concebem o voluntariado na sua relação com a pobreza, com o outro, e com o Estado ou

qualquer ente.

3.5. Voluntariado institucional: comparativos entre Brasil e Portugal

No que diz respeito ao conceito de voluntariado, tanto no Brasil quanto em Portugal,

alguns entrevistados utilizam aspectos emocionais, outros, os princípios que estão nas leis, e

principalmente as conceituações oferecidas pelos grandes organismos nacionais e

internacionais. Nenhum entrevistado se remete a um conceito proposto por pesquisa

acadêmica específica. Quanto às motivações, o trabalho voluntário diz respeito a uma “fala

externa” que conversa com os valores internos da pessoa que se sente impelida, por

espontaneidade e identificação, a participar de ações de voluntariado em causas diversas. Às

vezes, essa ‘conversa externa’ é uma necessidade premente, como uma dificuldade que bate à

porta, a pobreza que se vê nas ruas, uma causa que emociona por ter algum conhecido naquela

condição, ou que se viu em uma campanha de sensibilização. O que a pesquisa sugere é que

quanto mais altruísta a motivação mais legitimada ela pode ser considerada. Do lado oposto

estão as causas egoístas.

“(…) há uma imensidão de necessidades e chamamentos (uns mais

corretos que outros)” (Entrevistado 1- Portugal).

A questão utilitária do voluntariado é colocada como uma atitude que foge à ética, e

no lugar de estender benefícios acaba por prejudicar. Há necessariamente, no conceito do

voluntariado para esse entrevistado do Brasil, que haver um salto, um benefício e uma

transformação para o beneficiário que recebe o voluntariado, em concepção tal que ele não

exista se não tiver esse foco.

"Independente dos conceitos tradicionais: (voluntariado é) vontade de

participar, de assumir responsabilidades para a construção de uma nova

condição do beneficiário (…) Muito cuidado para ter uma atenção ética:

onde não se aproveita de uma demanda ou de uma necessidade de alguém

que está precisando de ajuda para promover pessoas ou empresas (…) o

voluntariado que não coloca o beneficiário em um novo patamar ou

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condição, é uma atitude muito danosa, que é: aproveitar de uma condição

de inferioridade para construir alguma coisa acima disso (…) Se não

existir a real intenção de fazer a diferença ele não deve ser feito

(Entrevistado 10- Brasil).

A gratuidade total (financeira ou de favores), que é uma diretriz de um serviço

voluntário, reforça a primícia de que o beneficiário (seja ele uma entidade ou uma pessoa),

não deve nunca para o promotor do voluntariado. A exigência de pagamentos, ou geração de

dívida - ainda que imaterial -, em troca do trabalho voluntário oferecido, desqualifica um pilar

essencial da atividade. Dito isso, um voluntário não poderia ser movido por expectativas de

retribuição, mas apenas por compaixão. E nesse caso, só o altruísmo seria válido:

“(…) partindo da primícia de que voluntariado é quando eu doo o meu

tempo e minhas habilidades para ajudar outra pessoa sem pedir nenhum

tipo de remuneração, ou pagamento financeiro ou não financeiro, e que

não exige nenhum pagamento em troca, ele se manifesta de maneira

muito movida à compaixão. Por exemplo, se alguém fala da causa eu fico

consciente, mas se eu vejo a situação acontecendo, aquilo me mobiliza

imediatamente, e gera um senso de empatia (…) (Entrevistado 1- Brasil).

O conceito é trazido mais de uma vez como uma disponibilidade interna para agir.

“O voluntariado é ação” diante do olhar empático para o outro.

“(…) Conceito de voluntariado: são os três ‘Ts’ (doação de tempo,

trabalho e talento), e basicamente precisa haver vontade, o ‘olhar para o

outro e poder se dedicar’, e ter disponibilidade para isso. O voluntariado é

ação diante do outro, mesmo quando muito espontâneas as vezes você vai

lá e faz. Tem a ver com olhar para o outro, olhar e perceber o outro, sentir

o outro, sentir compaixão”. (Entrevistado 4 - Brasil).

“(…) o voluntariado é atitude, é a coragem que a pessoa tem de arregaçar

as mangas e fazer alguma coisa de concreta e de continuada ou

estruturada (…)” (Entrevistado 2- Brasil).

No qual uma coragem de atuar se liga a uma periodicidade continuada e não

espasmódica. E que, por outro lado, conecta a pessoa voluntária com a outra pessoa para que,

assim, o voluntário e o beneficiário (pessoa, comunidade ou instituição), juntos, modifiquem

suas realidades. E isso é apontado como inversamente proporcional à caridade.

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105

“(…) fora os três Ts (tempo, trabalho e talento) é uma forma de conectar

com o outro e juntos transformarem as realidades pela união, ou seja,

uma grande troca. Ele transforma pela cidadania, e não é caridade porque

a caridade nega isso: essa união e encontro entre iguais (Entrevistado 3-

Brasil).

E assim, com base na experiência de terreno, e no envolvimento comunitário em

projetos desenvolvidos com a comunidade, aparecem conceitos para o voluntariado tais como:

“(…) Ferramenta essencial porque envolve a comunidade no processo de

intervenção, eu não acredito em projetos sociais de gabinetes, mas no

exercício cívico de uma forma organizada, que é um passo acima em

termos da cidadania e da responsabilidade. Pelo bem coletivo todos nós

podemos estar preocupados com problemas que nos rodeiam, mas essa

preocupação pode não se traduzir em nada de concreto. O voluntariado

permite focar, avaliar e organizar aquilo que nós valorizamos enquanto

cidadãos (…) voluntários são engajadores cívicos ao mesmo tempo.

(Voluntariado é) participação cidadã mais ativa e engajamento cívico (…)

tenho uma concepção de voluntariado mais ligada à ação em qualquer

espaço, voluntariado é exercício ativo da cidadania (…)”. (Entrevistado

3- Portugal).

Traçando limites entre o voluntariado informal e o formal (institucional), o

voluntariado informal aparece, reforçado de forma inerente, como a manifestação mais direta

e natural entre os membros de uma comunidade. Na instituição ficaria aquilo que é

burocrático, técnico, e se afasta do que é natural. E se a entreajuda é natural do ser humano, e

parte de um sentir a necessidade do outro, o voluntariado informal estaria dentro do que é

humano, e o formal, o lado de fora, das relações menos pertencentes.

“As instituições são o `fora´, onde se está para toda sorte de finalidades,

onde se trabalha, se faz negócios, se exerce influência, se faz

empreendimentos, negócios, onde se organiza, administra e exerce uma

função. (…) Os sentimentos são o "dentro," onde se vive e se descansa das

instituições. Aí o espectro das emoções vibra diante do olhar interessado; aí

o homem usufrui sua ternura, seu ódio, seu prazer e sua dor, quando esta

não é muito violenta. Aí cada um se sente em casa, se estira na cadeira de

balanço”. (Buber, 1960, p. 44-45 cit. por Rodrigues, 2013, p. 108).

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106

Ao mesmo tempo, em ambos os países, o voluntariado institucional se assunta mais

da forma técnica de se fazer o voluntariado, ou seja, em oferecer uma estrutura de gestão e de

participação de terceiros: que não substitua horas de trabalho profissional, que desenvolva

competências, que seja desinteressado e complementar a algum esforço já empreendido, de

forma que é nesse âmbito institucional que aparecem as diretrizes, os deveres e os direitos

daqueles que querem ajudar, conforme os conceitos e os enunciados trazidos pelas entidades

de defesa de causa, como a UNV e o CEV, ambos explícitos no capítulo 2 desse documento.

“(…) enviesada pela lei, é um trabalho que doa tempo ou atenção ou

competência de forma desinteressada e descomprometida, de forma

complementar ao que é oferecido pelas organizações. Alguns princípios

precisam ser observados e a complementaridade é um deles: não pode

substituir postos de trabalho (…) precisa ter compromisso pois ele gera

expectativas (…) precisa acontecer de forma desinteressada, mas é óbvio

que sempre traz retornos, como o desenvolvimento de competências do

voluntário, mas que não seja esse o motivo principal, mas sim o de

oferecer algo (…)”. (Entrevistado 2- Portugal).

As descrições das iniciativas formais ilustram-nas como as mais eficazes, quando

utilizam de processos, recursos, e ferramentas de gestão fundamentais para contextualizar e

oferecer soluções ao problema a ser trabalhado. Buscariam, em tese, soluções tecnicamente

viáveis, efetivas e sustentáveis, para que atividades assertivas sejam executadas por

voluntários, desde que os mesmos sejam devidamente capacitados para tal. E, por fim, as

melhores iniciativas institucionais de voluntariado têm os resultados monitorados107.

Ultimamente está na moda tentar medir o impacto que essas iniciativas propiciam. Ou seja, o

voluntariado formal é tido como mais especializado, e o que oferece recursos que muitas

vezes o informal não dispõe. Um voluntário que pratica a sua ação formalizada através de

uma entidade ou empresa, se sente ainda parte de algo maior que já é estruturado. Desde que

107 “(…) Exige diagnóstico e capacitação. Existe um antes e um depois. E exige sustentabilidade do resultado obtido. Quanto

maior o impacto mais envolvimento e tempo vai exigir dos voluntários (…) as que geram transformação, para que isso

aconteça ela precisa de um envolvimento muito maior dos voluntários, e precisa ser estruturada primeiro. O primeiro passo é

entender a real necessidade da comunidade, se não tiver uma necessidade real você não esta mudando nada. Por exemplo em

abril todo mundo doa ovo de pascoa, sendo que nessa época as entidades já recebem muito isso. As que geram mais impacto

tem um antes e um depois. (Entrevistado 1- Brasil). E “(…) se não fez bem para quem faz (voluntariado) e para quem

recebe é muito desapontante, e para isso é preciso ter instrumentos que meçam, se for considerar uma transformação, eu

acredito que é necessário haver panejamento, gestão e organização (…)”. (Entrevistado 6- Brasil).

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107

as instituições não fiquem ‘entre’ o voluntário e a causa, mas que operem como facilitadores

da melhor ação dos mesmos no campo prático, e que bem valorize o trabalho oferecido108.

“(…) e por outro lado as entidades não podem ser intermediárias entre o

voluntário e os utentes, mas facilitadoras, se são intermediários tem a

tendência da fala de que ‘tudo é nosso: voluntários e utentes’ (…) o

voluntário faz voluntariado pela causa, apoiando no contexto da

instituição, alguma instituição que já o faz, o que acontece em alguns

casos é que entidades com causas comuns são autofágicas: absorvem os

voluntários e não os compreendem como uma parte interessada que tem

um estatuto muito próprio, e que não são utentes nem colaboradores.

Voluntários não são extensão dos recursos humanos (…)” (Entrevistado

3- Portugal).

Essa questão, faz emergir a noção da própria efetividade das iniciativas de

voluntariado que estão hoje disponíveis. As entrevistas deixam muito claro que a

emancipação do beneficiário deve ser o grande gol. E a emancipação, quando objetivo das

entidades que promovem o voluntariado, na interpretação dessa tese, está bem próxima

daquilo que Selli e Garrafa (2006) chamaram de ‘solidariedade crítica’109. Isso significa a

possibilidade dos indivíduos dotados de suas motivações egoísticas e altruístas, participarem

do processo de planejamento e entendimento da realidade social em que vão se envolver, e

dar a chance de que os beneficiários dentro de suas capacidades possam fazer o mesmo, de

forma democrática, assim numa ação de voluntariado como na política como um todo.

E, é na correlação do segmento voluntário com a política, que Selli e Garrafa (2006)

apresentam o termo voluntariado orgânico.

108 E é pertinente retomar aqui a dádiva no sentido do trabalho voluntário. “A performance no sentido de intenção e

representação do ato é aquilo que distingue o ato de fazer e o ato de produzir, isto é, da dádiva e do trabalho,

respectivamente. Reconciliando essas importantes nuances de inspiração maussiana e marxista (respectivamente), Lambek

defende que a dádiva e o trabalho são valores inextricáveis entre si, oscilando a ação voluntária entre aqueles dois polos.

Esses postulados reforçam o que se tem vindo a defender sobre o complexo processo que é o voluntariado, pois ele encerra

um valor de trabalho (utilitarista e comodificável) e um valor simbólico e performático (dádiva, não comodificável)”. (Lima e

Oliveira, 2015, p.323)

109 “O interesse pela proposta da solidariedade crítica como valor a orientar o serviço voluntário orgânico tem, entre outras

justificativas, motivações provenientes da realidade social e outras alicerçadas em vivências pessoais. A adjetivação crítica,

no contexto deste trabalho, diz respeito à capacidade do agente de discernir, ou seja, de possuir critérios capazes de ajudá-lo a

discriminar as dimensões social e política que estão indissociavelmente presentes na relação solidária”. (Selli e Garrafa,

2006, p. 240).

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108

Assim, a solidariedade não se esgota enquanto relação típica da sociedade

civil. Ao contrário, possui um elemento político que tem como referência

o Estado. A capacidade de entender essa dimensão política, que se refere

à cidadania e à possibilidade de intervir de forma ativa na definição de

políticas públicas, também caracteriza essa dimensão crítica. O conceito

de voluntariado orgânico, por sua vez, foi construído por analogia ao

conceito de intelectual orgânico desenvolvido por Gramsci (1979) e é

entendido como uma participação ativa e beneficente das pessoas que

desenvolvem a atividade voluntária na construção das condições

necessárias à democratização efetiva do Estado, em todas as suas

dimensões (Selli e Garrafa, 2006, p. 240).

Para as autoras, a participação social através de um voluntariado engajado

politicamente pode ser a expressão da emancipação naquelas iniciativas empreendidas por

instituições, que, por sua vez, precisam evitar portar em si um viés ideológico, ou parcial, que

capture o tempo do cidadão voluntário, para prioridades e fins diversos, que fujam, até

mesmo, da centralidade que devem ser as necessidades dos beneficiários. Necessidades essas

que, em termos práticos, estão longe de serem sanadas, ainda que as pesquisas, como os

censos do PNAD no Brasil110 e do INE111 em Portugal, tentem mensurar o volume da

mobilização voluntária com foco social.

Considerando os referenciais teóricos do primeiro e do segundo capítulo, e toda a

sorte de compreensões trazidas pelos entrevistados na pesquisa empírica, o que Selli e Garrafa

(2006, p.243) definem como as ‘características de solidariedade crítica’, podem, sob a

autoria dessa dissertação, serem transpostas também como características do que se pretende

chamar de voluntariado emancipatório (ou transformador) nessa pesquisa. Tais características

estão abaixo dispostas em seis grupos, e assim qualificam um voluntariado com potencial de

melhorar realidades:

1) Está além dos aspectos morais do grupo promotor

110 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) é promovida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE).

111 Instituto Nacional de Estatística, Inquérito ao Trabalho Voluntário, 2019.

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109

O voluntariado emancipatório tem o ser humano no centro, e por isso guia-se por

uma ética112, mais global, independente das questões morais que portam os seus distintos

promotores, e que por vezes tentam vinculá-lo. Isso significa um voluntariado que tem no

centro a tolerância e o pluralismo, desde que centrado no bem comum.

“É um valor próprio da pessoa humana, que tem origem em sua

dignidade; independe de determinações, prescrições e crenças religiosas,

que criam comunidades morais distintas e, na maioria das vezes,

antagônicas. É, tal como os direitos civis (vida, liberdade, direito de

expressão etc.), um valor universal, é exercida pela pessoa, na sociedade

civil, e exercê-la independe, portanto, do papel de cidadão, de crente etc.”

(Selli e Garrafa, 2006, p.243).

2) É igualitária nos seus fins e meios

E isso significa que a prática do voluntariado emancipatório, tal e qual se propõe, não

comporta desigualdades de direitos ou distinções de raça ou de outros gêneros. Além disso, é

uma prática dissonante daquela que hierarquiza o doador como superior, e o receptor como

inválido, princípio da prática institucional histórica, geradora da assistência no Brasil e em

Portugal. Ao mesmo tempo, situando o beneficiário no mesmo patamar, convida-o e

reconhece-o como um potencial cidadão, latente em seu crescimento pessoal e no acesso e

exercício dos direitos e deveres.

“É praticado113 entre pessoas que comungam tanto idênticas quanto

diferentes moralidades; sua prática deve estabelecer uma relação

horizontal (unívoca)” (…) e “caracteriza-se por ser uma busca pela

112 Ainda que o termo já tenha sido utilizado em outros momentos desse trabalho cabe aqui um desenvolvimento do assunto.

Sob uma concepção filosófica, e prática, a ética é um estudo, uma ampliação de conceitos racionalizados sobre a moral, e

essa segunda é replicada dentro de uma comunidade em forma de costumes temporais e geograficamente localizados. O

voluntário que se guia pela moral, segue a cartilha de valores específicos de um grupo, da sua forma de estar no mundo, e de

conceber a solidariedade. Já a ética, estende-se de forma inclusiva, como um conjunto de várias morais que podem subsistir

numa mesma comunidade, e propõe que um bem comum, mais ampliado, seja alcançado. De acordo com Figueiredo (2008,

p.4) A ética no sentido mais antigo da palavra, significa “morada”, “abrigo” e “lugar onde se habita”. Usa-se a palavra moral

mais frequentemente para designarem-se os códigos, as condutas e os costumes de indivíduos ou de grupos, como acontece

quando se fala da moral de uma pessoa ou de um povo. Segundo o autor, reserva-se à ética o “estudo da moralidade do agir

humano (bondade ou maldade dos atos humanos): sua retidão frente à ordem moral”. A ética é a disciplina filosófica que

investiga os diversos sistemas de morais elaborados pelos homens, buscando compreender a fundamentação das normas e

proibições próprias a cada uma e explicar seus pressupostos, ou seja, as concepções sobre o ser humano e a existência que os

sustenta. Figueiredo, A. (2008, p. 4).

113 Com o termo “praticada” as autoras se referem aqui ao termo ‘solidariedade crítica’, que é transposto nesse momento do

trabalho para o conceito de ‘voluntariado transformador’ ou emancipatório.

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110

justiça dos destinatários da conduta voluntária livre de paternalismo

ou de qualquer outra forma de autoritarismo e deve partir de uma

postura democrática radical, que vê no outro um igual tanto em

dignidade quanto em autonomia para buscar seus fins”. (Selli e

Garrafa, 2006, p. 244)

3) Busca a reciprocidade, alteridade e todos aprendem com as diferenças

“Situa-se entre a ideia de imparcialidade – ser movido pelo bem geral do outro – e a

ideia de benefício mútuo – reciprocidade” (Selli e Garrafa, 2006, p. 244), numa concepção em

que todos ganham com a prática do voluntariado. Nessa dinâmica de reciprocidades, uma

mera interação com um sujeito proveniente de um lugar social diferente do voluntário, já traz

para ambos uma ampliação da visão de mundo, de entendimentos e trocas de experiências de

vida. E em tal concepção onde não existe um cidadão “coitado”, a noção do ‘altruísmo

abnegado’ acaba por perder a força, ou lugar. A partilha horizontal faz com que de uma

interação, em diversidade, os sujeitos não saiam os mesmos. E por isso, “é uma busca da

reciprocidade e da alteridade; uma abertura ao outro e ao fato de participar de um mesmo

universo existencial”, afirma (Selli e Garrafa, 2006, p. 249).

4) Não busca obter vantagens políticas

“É exercida na sociedade civil, não tendo como finalidade o poder político, direta ou

indiretamente, nem qualquer outra forma dele; é na condição de pessoa que o agente dirige-se

aos demais membros da coletividade e a seus potenciais beneficiários” (Selli e Garrafa, 2006,

p.248) trazendo a atenção, nesse caso, para a não obtenção de vantagens no campo político, e

em outras esferas de influências. Como exemplo, foi mencionada, por um dos entrevistados

dessa pesquisa, a questão das movimentações políticas no voluntariado dirigente em Portugal.

E no caso do Brasil, foi trazido à tona a associação da prática do assistencialismo e do

clientelismo tendo como máscara a ação social.

5) Não captura pessoas de forma utilitária

“É um compromisso unilateral e personalíssimo, que não se liga a nenhuma forma de

ativismo (político, social, religioso) que busque no voluntariado uma função instrumental para

seus desígnios” (Selli e Garrafa, 2006, p. 248), fortalecendo o pressuposto anterior que propõe

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111

a atuação ética com fins públicos e universais, contra a ativação de interesses de um grupo

específico, com moral específica. Logo, “não possui, ao menos conscientemente, um

conteúdo utilitário; não vê em sua prática a criação de uma moeda de troca ou uma forma de

barganha psicológica ou religiosa” (Selli e Garrafa, 2006, p. 248). Esse item traz à tona o

conceito de ‘captura’, por parte daqueles que promovem o voluntariado. O que implica que as

relações pautadas por uma troca horizontal, não submetem moralmente ou psicologicamente o

beneficiário. Muito menos usam de uma situação de fragilidade em função de um projeto

utilitarista, travestido de ajuda.

6) Não se aquieta enquanto não atinge resultados concretos

“Denota um inconformismo individual para com o status quo que leva a uma ação

positiva em favor de mudanças sociais concretas” (Selli e Garrafa, 2006, p.249). E pressupõe

que o voluntariado que está assentado sob a lógica da solidariedade crítica faz uma leitura de

contexto e planeja como melhor gerar emancipação114. Esse critério de ações concretas,

geridas e traduzidas em resultados medidos está muito bem suportado pelas melhores práticas

do voluntariado formal nos dois países estudados. E isso se demonstra ilustrado por algumas

falas da presente pesquisa:

“(…) de um modo geral os brasileiros são solidários, quando são

convocados tem uma verdadeira intenção de ajudar. A diferença é que o

voluntariado informal não busca resultados, não avalia, ele simplesmente

faz o trabalho e espera que aquilo faça algum resultado: por exemplo,

sopas de rua no inverno, é uma ação solidária e necessária, mas não tira a

pessoa dessa condição e nem resolve esse problema: no dia seguinte ele

está de novo na rua com frio e com fome. (…) O voluntariado

institucional busca alcançar resultados traçados, o Brasil tem projetos em

114 O conceito de solidariedade crítica apresentado por Selli e Garrafa (2006) ilustra com muita propriedade aquilo que os

entrevistados traduziram, a partir de sua experiência, como voluntariado emancipatório ou transformador. “(…) solidariedade

comprometida, interventiva – que visa à transformação social na busca de políticas públicas democráticas e equitativas – e

produz mudanças em nível individual e coletivo. As mudanças entendidas como beneficentes para o indivíduo compreendem

a busca da justiça. O sujeito da solidariedade, pela prática solidária crítica, estabelece, com os destinatários da atividade

voluntária orgânica, relações que lhes possibilitam descobrirem-se como sujeitos capazes de exercerem seus direitos políticos

e civis, de liberdade e igualdade (…) na medida em que o indivíduo se reconhece como sujeito que possui direitos e deveres,

tanto no plano social quanto no político, terá as condições necessárias para fazer suas escolhas e responder pelas

consequências de suas decisões. Assim, em nível individual, a solidariedade crítica tem o papel de tornar o destinatário da

ação solidária consciente de si mesmo, de seus direitos e deveres, como pessoa integrada na sociedade e como cidadão

integrado na vida política. O comprometimento com o outro na vida em coletividade supõe abertura total às múltiplas

dimensões da realidade, tanto do indivíduo como sujeito, quanto da realidade sociopolítica na qual ele está inserido e exerce

seus papéis de pessoa e de cidadão” (Selli e Garrafa, 2006, p. 249).

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112

vários estágios, e há empresas e organizações que ainda utilizam o

voluntariado com práticas sem muita intenção de impacto verdadeiro para

os beneficiários, se eu não pensar no beneficiário final e não estabelecer

onde eu quero chegar, estou no estágio anterior (o informal)”.

(Entrevistado 10- Brasil).

“(…) o voluntariado exige diagnóstico e capacitação. Existe um antes e

um depois. E exige sustentabilidade do resultado obtido. Quanto maior o

impacto mais envolvimento e tempo vai exigir dos voluntários (…) as

que geram transformação, para que isso aconteça ela precisa de um

envolvimento muito maior dos voluntários, e precisa ser estruturada

primeiro. O primeiro passo é entender a real necessidade da comunidade,

se não tiver uma necessidade real você não está mudando nada. (…) as

que geram mais impacto tem um antes e um depois”. (Entrevistado 1-

Brasil).

Desta forma, no voluntariado formal, a dedicação de tempo para um projeto pré-

existente, em todos os territórios, depende que esse projeto de intervenção seja consistente, e é

interessante que na qualidade de promotores, os entrevistados tenham falado do seu lugar,

enquanto sendo eles as pessoas responsáveis por estruturar ou apoiar esse tipo de ações.

Nessas iniciativas organizadas por instituições, o sujeito voluntário, em si, é sim um

instrumento, mas um instrumento crítico formado e alocado numa função muito bem pensada

para eles. O seu papel não é deliberado apenas pelo seu desejo de ajudar, mas pelo

cruzamento das suas motivações com o bom encaminhamento do gestor de voluntariado, que

nesse caso ocupa um papel muito sensível e relevante como intermediador. Esse dirigente, é o

responsável por garantir a satisfação dos voluntários, da entidade promotora, e dos

beneficiários, no equilíbrio de um tríplice encontro de objetivos e vantagens.

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113

Conclusão

A pesquisa comparativa entre o universo do voluntariado do Brasil e de Portugal fez

descortinar mais similaridades do que diferenças. Entre as investigações bibliográficas e a

experiência empírica de diálogo com promotores do voluntariado nos dois territórios, as

narrativas e os testemunhos trazem à tona uma origem institucional em comum, seja nos

microcosmos familiares ou nos macrocosmos da ação assistencial formal, pautada por valores

morais de solidariedade e de caridade, onde a matriz religiosa – católica – estabeleceu raízes

muito profundas (talvez por ter feito da assistência uma das suas plataformas de expansão

pelo Império Português e, transversalmente, em outros domínios geográficos).

Qualquer que seja a via de princípios e motivações pela qual o voluntariado se insere,

este emerge historicamente como uma atividade disseminadora de valores e do exercício dos

dons nas sociedades. Nas palavras de Lima e Oliveira (2015), esses valores podem ser

econômico, simbólico e moral.

“a ação social é informada por valores, mas, simultaneamente, ao

constituir-se também cria valor: valor econômico, ao superar as carências

de quem necessita (seja de bens materiais ou imateriais centrais à sua

existência quotidiana); valor simbólico, ao praticar o bem; e valor moral,

ao tornar-se melhor pessoa através da dádiva desinteressada”. (Lima e

Oliveira, 2015, 321).

A finalidade altruística aliada à atividade laboral – muitas vezes substituindo o

trabalho remunerado – gera ciclos de reciprocidade e circulação desses valores numa

especificidade de atitude, assistencial, que é indicativo da situação econômica e das relações

que uma comunidade estabelece. Ora, numa sociedade em que a desigualdade social

predomina sem que se possa esperar ações niveladoras do Estado, por exemplo, não raras

vezes o voluntariado estará agindo com o discurso de quem cobre uma lacuna deficitária de

assistência pública.

Em ambos os países, corroborando os modelos internacionais de medição de

motivação para o trabalho voluntário, manifesta-se a intercessão entre o altruísmo e o

trabalho, o primeiro motivando e o outro realizando gratuitamente as ações assistenciais,

perdurando, assim, um sistema de intercâmbio de valores morais e éticos. E ainda alimentam

um fluxo de sociabilidade primária115 em que a colaboração se faz prática cotidiana de

115 Em referência aos conceitos trazidos nos capítulos anteriores (vide nota nº 29), a sociabilidade primária e a sociabilidade

secundária são expressões relacionadas ao trabalho de Durkheim, mas cunhados por Alain Caillé, em que a primeira está no

sistemas de regras que ligam diretamente os membros de um grupo a partir de seu pertencimento familiar, da vizinhança do

trabalho e que tecem redes de interdependência sem a mediação de instituições específicas” (Diógenes, 2005, p.48) e a

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114

subsistência e apoio mútuo em um grupo ao qual se pertence. E assim, nas ocasiões de

entreajuda acontecem também os encontros comunitários e familiares, como, por exemplo,

nos casos daquela integração viabilizada pelos grupos de jovens, como foi mostrado nas

entrevistas. E no que diz respeito a esses espaços de sociabilidade, ali é possível que o

indivíduo afirme sua integração e pertença, demonstrando que partilha do conjunto de valores

que ele adota, dentre os quais, a solidariedade. Desse ponto de vista, da replicação de uma

moral, acontece de forma similar quando a prática do voluntariado simboliza o exercício de

valores tradicionais de uma família, ou de um grupo religioso.

E é justamente essa tríade de pertença: família, igreja e amigos (ou rede de

proximidade), que acaba por se demonstrar o grande ponto em comum das bases do

voluntariado no Brasil e em Portugal. Não é exclusivo, mas maioritário, o fato de serem essas

as instâncias que mais vezes apresentam a compreensão do outro dentro da sociedade e a

empatia para com as suas dificuldades116. Esses três primeiros pontos de contato dos

brasileiros e portugueses com o voluntariado, representados pelas falas dos entrevistados,

encadeia a reflexão de que o voluntariado formal não é o mais praticado em quantidade e

frequência, mas sim, são as ações informais no modelo das dádivas cotidianas dentro de um

grupo ou comunidade, conforme afirmam dados demonstrados pelo relatório da ONU117,

focado em voluntariado e comunidades resilientes. E este é um universo potencial de

participação e transformação social pouco assumido por entidades promotoras, ainda mais em

Portugal em que a legislação exclui essa modalidade oficialmente.

O voluntariado formal, entretanto, associado neste trabalho à sociabilidade

secundária118, firmou-se como o modelo mais estruturado de ações, o qual, no entanto, não

vincula sequer metade da população. Por que razão isso acontece? E por quê, sendo

seguramente o conjunto de ações tecnicamente mais qualificadas, segundo os padrões de

gestão de projetos sociais, peca ao recrutar sua principal ferramenta, que é a mão de obra

segunda “trata-se de sistemas relacionais deslocados em relação aos grupos de pertencimento familiar, de vizinhança, de

trabalho (2005, p. 58)”. (Diógenes, 2012, p.14). “Robert Castel vale-se dessas expressões para situar o social-assistencial”

(Tomaschewsky, 2014, pp. 38 - 39).

116 E essa compreensão é alargada pelo que diz Lima e Oliveira (2015): pensar que essa ideia do amor ao outro não é

generosidade pura torna a questão que analisamos mais complexa e interessante. Todo o voluntariado apresenta

características muito semelhantes com ideais religiosos, e no contexto português esse é um aspecto que não pode ser

descurado, pois a ideia da caridade é aqui um forte referente cultural. Esse processo tem uma faceta de generosidade, de

compreensão pelos problemas e dificuldades alheias, mas tem a tal recompensa moral para o sujeito que, de certo modo, se

salva a si próprio (Lima e Oliveira, 2015, 318).

117 “Informe sobre el estado del voluntariado en el mundo 2018”- Programa de voluntariado da ONU. 118 E portanto às instituições secundárias, e conforme esclarecido na introdução é chamado ‘voluntariado institucional’ nesse

trabalho quando depende, e é viabilizado, ou organizado, por uma entidade externa, parceira, com a qual a pessoa voluntária

participa como integrante.

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115

voluntária motivada? São perguntas a serem exploradas posteriormente, inclusive para

nortearem possíveis adequações da legislação ao cenário real, de reavaliação das instâncias de

suporte e qualificação (como os programas nacionais, políticas públicas, confederações de

defesa de causa, etc.), que possam estimular o fortalecimento das redes locais de ajuda mútua,

emancipadas ao ponto de agirem pelos seus interesses, com ou sem a presença e condução

institucional (formal). Isso é especialmente eficaz para a realidade daqueles territórios em que

a condução formal se faz por um poder público moroso, assistencialista, centralizador e

burocrata – válido para o Brasil e Portugal – e também pode funcionar naqueles espaços

urbanos e rurais onde sequer o Estado existe ou alcança – e, talvez, esse caso seja mais

amplamente aplicado ao cenário brasileiro.

As semelhanças entre os países continuam constatadas nessa pesquisa, dessa vez pela

persistência da ótica caritativa-tutelar coexistindo com um discurso de solidariedade. A ação

desse voluntariado tutelar, assistencial, é tido que, desde que venha com a premissa de não

gerar diminuição moral e enfraquecimento estrutural do “beneficiário”, seja defendido pela

sua importância emergencial, necessário enquanto existirem indivíduos que demandem

urgência de assistência, para só então, minimamente reerguidos, figurarem em práticas

voluntárias ditas como mais emancipatórias. Durante essa pesquisa, as falas da empatia,

representadas pelo “sentir da dor do outro”, são um mote ligado ao conceito da caridade, e as

falas de participação civil, ou seja, da percepção da responsabilidade social individual, se

enquadram mais no termo solidariedade. No entanto, o percurso dessa pesquisa demonstrou

que o lugar de fala do promotor da ação social define o ethos que a sustenta, ainda que em

algumas falas as ações ou solidárias ou caritativas se cruzam quando são ações similares,

interpretadas por sujeitos sob grupos de valores distintos. E sobre esse caso, do lugar de quem

fala, a solidariedade é um bom exemplo: sob um ethos religioso a solidariedade serve a um

irmão, sob o discurso da cidadania ela se presta a um concidadão.

Uma problematização em torno do termo caridade se torna muito comum em falas de

brasileiros e portugueses. Isso se dá perante o passivo da sua associação histórica à prática do

assistencialismo, que toma o beneficiário como ‘coitadinho’, hipossuficiente, a ponto de

perpetuar um circulo vicioso que o mantém incapaz, sem jamais alcançar o seu patamar de

cidadão ativo. Dito isso, durante as entrevistas de campo, a concepção da caridade tida como

um retrocesso a um projeto assistencial emancipatório, só não é unânime, quando alguns dos

entrevistados a vinculam à nobreza pela qual concebem o altruísmo, apresentado, nesses

casos, como uma demonstração de elevação do comportamento ético, representado por uma

substituição da moral para uma ética do cuidado. E sendo assim, o discurso positivo sobre o

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116

‘voluntariado caritativo’ assume que este carrega um sentir legítimo em relação à dor do

outro, e, por esse motivo, ultrapassa um simples utilitarismo relacional, de convivência.

Então a solidariedade aparece contraposta à caridade enquanto um atributo

ecumênico de participação. ‘Voluntariado solidário’, no resultado da pesquisa, é toda ação

imbuída de civilidade, geralmente laica, que denota participação cidadã e fortalecimento dos

laços comunitários. Nessa abordagem, o voluntário se envolveria ativamente com o problema,

a fim de buscar uma solução transformadora. E já o mesmo não acontece com a assistência e a

filantropia. Na primeira, é comum a associação com o assistencialismo, ainda que sejam

conceitos distintos. A assistência aparece nas entrevistas, em termos de voluntariado,

incompreendida, não explorada e pouco atraente, pois pode implicar o contato do grupo de

voluntários com as camadas mais invisíveis e vulneráveis da sociedade. E o termo ainda traz

uma correlação direta com o que é a competência do Estado. Em Portugal, as entrevistas

indicam um Estado mais assistencial que beira o tutelar, e no Brasil, os discursos denunciam

ineficiência, contra a qual o voluntariado e outras iniciativas da sociedade civil viriam para

cobrir lacunas. A filantropia aparece nas entrevistas do Brasil com a alcunha do Investimento

Social Privado, que denota a prática de ações planejadas e monitoradas, e em Portugal o termo

permanece mesmo como filantropia, para denominar aquele repasse de recursos por grandes

entes financiadores. É de se frisar que a doação filantrópica em ambos os países não está

associada a pequenas quantias.

Já o voluntariado enquanto conceito é compreendido de forma padrão no Brasil e em

Portugal, e percebe-se em todos os entrevistados uma clara separação do que se faz no

voluntariado informal do formal. Sempre que ligado ao atributo informal, ele é relacionado à

espontaneidade desonerada de vínculos oficiais, donde algumas pessoas sequer se declaram

ou se percebem ‘voluntárias’ (ao pé da letra), e para o segundo, é condicionante um

compromisso com os resultados medidos, demonstrando esse formato um vínculo tal, como se

os voluntários estivessem fazendo algo que não tem elo imediato com a sua própria realidade,

feito para os outros e com os recursos de outrem, em um grau de responsabilidade muito

maior do que aquilo que já se faz natural e informalmente. Esse peso institucional no conceito

do voluntariado aparece como cobrança e compromisso que as pessoas nem sempre estão

aptas para assumir. A organicidade do voluntariado informal é melhor elaborada dentro das

entrevistas no Brasil, que exploram mais um apoio às pessoas na sua ação livre, sem as

capturar para executar uma estratégia institucional pronta. E sobre essa questão ficam duas

perguntas para posterior investigação que são: os voluntários se percebem capturados ao

serem convidados para uma causa, e isso interfere em sua motivação? E o quanto as

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117

instituições promotoras de voluntariado se apropriam das motivações dos voluntários sem

fazer dos mesmos sujeitos copromotores, mas executores em uma relação utilitária?

Nesse cenário, outra pergunta dessa conclusão é qual o interesse real em reduzir as

desigualdades, por parte de todo um sistema que subsiste das desigualdades. Tomaschewsky

(2014, p.30) ao citar Castel (1998) ressalta “Os poderosos e os estáveis não estão colocados

num Olimpo de onde possam contemplar impavidamente a miséria do mundo (…) As

condições de constituição e de manutenção dessa unidade problemática é que devem ser

interrogadas. (Castel As metamorfoses, 1998, p. 26 cit. por Tomaschewsky, 2014, p. 30). Ou

seja, como pode o voluntariado formal, e toda a teia de parcerias que fomenta, agir no cerne

de um sistema que reproduz pessoas vulneráveis, empurra e mantém cada vez mais pessoas

para as margens sociais e culturais, concentrando assim os seus esforços nas causas e não nos

sintomas?

Em termos diferenciadores do Brasil e Portugal é possível concluir que os países

passam por momentos distintos no que diz respeito à participação, e à compreensão de

responsabilidades do Estado no campo assistencial. Em Portugal, assim como em outros

países europeus que passaram por momentos de crise econômica muito recentes, há toda uma

política de austeridade e de privações que fez com que a população despertasse, ou mesmo

apelasse, para as redes de proximidade e de colaboração social119. No país, o voluntariado

formal está inserido no contexto do desafio das entidades sociais em se autossustentarem sem

se canibalizarem, de amplificarem suas competências de gestão, e, ainda, como dito por um

dos entrevistados, “terem que receber voluntários como um item ‘a mais’ a administrar e não

propriamente um recurso ao seu favor”, pois a promoção de um projeto de voluntariado

demanda organização e planejamento, numa rotina que quase sempre já está sufocada pela

assistência primária que essas entidades se propõem a prestar, seguindo os seus estatutos. Em

matéria legal, reclamam uma legislação que seja mais aderente à realidade, e que engesse

menos, do ponto de vista formal, de forma a proporcionar o envolvimento mais livre de

pessoas que desejam contribuir.

Alargando a fronteira do que os entrevistados de Portugal consideram uma real

essência do voluntariado, modelos de bolsas de horas, por exemplo, são testadas no afã de

119 Como descreve Lima e Oliveira, (2015): “Com a crise aumentou a percentagem de pessoas incapazes de fazer face aos

seus compromissos financeiros e assegurar o seu dia a dia. A par dos trabalhadores pobres e dos desempregados de longa

duração, há cada vez mais recém-desempregados. Nesses casos, recorrer à solidariedade familiar ou institucional e à partilha

de recursos tornou-se a primeira, e principal, estratégia para assegurar a sobrevivência. À medida que se esgotam as

possibilidades de apoio garantido pelas redes interpessoais, a promoção de estratégias alternativas, como o apoio dado pelas

redes interpessoais ou por organizações não governamentais de solidariedade social, é uma realidade cada vez mais presente

num país onde até há bem pouco tempo era pouco expressiva”. (Lima e oliveira, 2015, p. 303).

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118

posicionarem o voluntariado como um tipo de experiência laboral que desenvolva

competências pessoais e profissionais. Competências essas, que, se devidamente catalogadas,

podem ser reutilizadas em outros sistemas, como no caso do aproveitamento de créditos

acadêmicos, fazendo cruzar novamente a dádiva e o mundo do trabalho. A atenção que se

levanta nesses casos, é o risco de que o objetivo final deixe de ser a causa social per se,

focando excessivamente nos benefícios do processo de se voluntariar. E o recado por parte de

um dos convidados, aqui, é claro: que o egoísmo não sobressaia ao altruísmo.

Outros temas que surgiram são: o uso das tecnologias, que nas entrevistas arriscam

contrapor-se à “uma necessidade de humanização do voluntariado”120, e a inevitabilidade de

abertura assistencial para refugiados e emigrantes em geral, um assunto que está na pauta das

entidades sociais, mas que pode se fortalecer do ponto de vista da real inclusão social,

econômica e cultural. Além disso, a urgência da temática ambiental, que anuncia um futuro

árido, bem como o desenvolvimento futuro de novas dinâmicas trabalhistas, são esboços do

cenário em Portugal, no que toca à contemporaneidade do serviço voluntário.

Para o Brasil as interrogações passam muito pelo cenário dos rumos da democracia,

o que ela de fato conseguiu construir até então, e o que de fato está se tornando, em um

momento que os entrevistados consideram duvidoso e que pouco se consegue concluir.

Surgem os temas da dita polarização entre esquerda e direita, do cenário de corrupção

sistêmica, de uma crise de valores, e até alguns dos entrevistados que diagnosticam o país em

um estágio de transição, no qual posturas autoritárias do Estado poderiam interferir na forma

como a sociedade participa das decisões e das políticas públicas. Como consequência disso,

foi ressaltada a possibilidade do retorno para as práticas de um voluntariado caritativo, por

exemplo, menos polêmico e menos ativo politicamente, com ações que ofereçam apoio pela

ótica da compaixão, em detrimento de um foco de organização voluntária em movimentos

sociais.

Movimentos esses, favoráveis às classes populares, populações excluídas, e de

trabalhadores, que são retratados como por passarem por um momento de descrédito,

manchados pela reputação negativa que os governos de esquerda teriam deixado no país, e

tudo poderia inibir, segundo a pesquisa, que as pessoas se reorganizem. Não é um consenso.

Se isso se confirma ou não, permanecerá como mais uma indagação dessa conclusão. É

oportuno destacar, também, uma fala que denota o atual momento no Brasil como uma grande

peneira, que poderá evidenciar as fraquezas de um terceiro setor pouco organizado, por vezes

“autofágico”, utilitarista, onde se enquadrariam as iniciativas de voluntariado formal. E a

120 (Entrevistado nº 5 – Portugal).

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119

observação de que movimentos antes adormecido, de resistência e garantia de direitos,

estariam despertando com muita seriedade, diante de ameaças e os ditos retrocessos nos

direitos adquiridos.

Nesse trabalho de relação entre Brasil e Portugal, portanto, foram identificados

pontos de intercessão justificados pelo passado colonial que ainda refletem na forma de

relação entre o Estado e o privado, bem como as instituições do campo assistencial se

relacionam, no assistencialismo sob o discurso paternalista e caritativo, e em quais são os

valores morais predominantes. Valores esses que permanecem transladando com o fluxo

histórico de pessoas e de informação entre continentes, com periodicidade e volumes cada vez

maiores.

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