barroco e maneirismo

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Barroco e Maneirismo Tendências estéticas dos séculos XVI, XVII e XVIII, que acompanham, a partir das artes plásticas, o movimento classicista, em diálogo, confronto ou até em mútua inserção, e cujos representantes mais significativos são Camões na poesia lírica, o Pe. António Vieira (Sermões e Cartas) e D. Francisco Manuel de Melo (na poesia lírica e no teatro, Auto do Fidalgo Aprendiz). Enquanto o maneirismo se manifesta numa ligação aos modelos literários clássicos que apura e refina as suas características, sublinhando os pormenores da composição e o seu carácter estático, seguindo um pendor melancólico, o barroco define-se pela exibição espectacular de conflitos e oposições semânticas e sintácticas, em torno da reflexão sobre o tempo e a mudança. Duas colectâneas integram um repositório assinalável de textos barrocos: Fénix Renascida e Postilhão de Apolo. Clássicos Designação genérica atribuída aos autores dos séculos XVI, XVII e XVIII, ou, de entre estes, aos que se demarcam relativamente dos princípios humanistas e renascentistas (ex. maneiristas e barrocos); pode também atribuir-se aos autores do século XIX, ou até a posteriores, para significar um reconhecimento consensual de qualidade e uma

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Barroco e Maneirismo

Tendências estéticas dos séculos XVI, XVII e XVIII, que acompanham, a partir

das artes plásticas, o movimento classicista, em diálogo, confronto ou até em

mútua inserção, e cujos representantes mais significativos são Camões na

poesia lírica, o Pe. António Vieira (Sermões e Cartas) e D. Francisco Manuel de

Melo (na poesia lírica e no teatro, Auto do Fidalgo Aprendiz).

Enquanto o maneirismo se manifesta numa ligação aos modelos literários

clássicos que apura e refina as suas características, sublinhando os

pormenores da composição e o seu carácter estático, seguindo um pendor

melancólico, o barroco define-se pela exibição espectacular de conflitos e

oposições semânticas e sintácticas, em torno da reflexão sobre o tempo e a

mudança.

Duas colectâneas integram um repositório assinalável de textos barrocos:

Fénix Renascida e Postilhão de Apolo.

Clássicos

Designação genérica atribuída aos autores dos séculos XVI, XVII e XVIII, ou,

de entre estes, aos que se demarcam relativamente dos princípios humanistas

e renascentistas (ex. maneiristas e barrocos); pode também atribuir-se aos

autores do século XIX, ou até a posteriores, para significar um reconhecimento

consensual de qualidade e uma integração nos cânones que uma certa época

aceita como fazendo parte da convenção literária estabelecido.

Ex. Camões é o grande clássico da literatura portuguesa, mas Fernando

Pessoa é também reconhecido como «um clássico da modernidade».

De uma maneira geral, a doutrina clássica dos séculos XVI a XVIII assenta no

princípio da imitação dos antigos, no tratamento dos valores humanos

universais e no equilíbrio e distinção das formas e dos géneros.

Existencialismo

Tal como o surrealismo, não determina pontualmente, de modo sensível, a

literatura portuguesa (a não ser na obra do seu introdutor romanesco e

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filosófico, Vergílio Ferreira, que o teoriza e pratica de modo apologético e

polémico, sobretudo contra a estética neo-realista, quer na sua narrativa quer

no seu ensaio), mas exerce uma influência decisiva e prolongada mesmo em

escritores que dos seus princípios estão aparentemente distanciados, como

José Cardoso Pires ou Urbano Tavares Rodrigues, centrando-os na temática

do absurdo e da necessidade da escolha activa como afirmação da liberdade e

da negação da morte.

Experimentalismo

Corresponde a um modo de intervenção estética, assumido como vanguarda,

de poetas aliás muitas vezes ligados a outros movimentos, nomeadamente ao

neo-realismo e ao surrealismo, e tem como expoentes principais, que se

mantém fiéis a esse modo desde há quatro décadas, E. M. de Melo e Castro e

Ana Hatherly (esta também autora de uma novela importante de tipo

surrealista, O Mestre).

 

«A Corrida em Círculos» - I

O círculo é a forma eleita:

É ovo, é zero

É ciclo, é ciência.

Nele se inclui todo o mistério

E toda a sapiência.

É o que está feito,

Perfeito e determinado

É o que principia

No que está acabado.

Ana Hatherly

Iluminismo

Movimento de ideias que engloba o século XVIII, a partir da filosofia

inglesa e da agonia do regime político absolutista em França, sobretudo a partir

da publicação da Enciclopédia, de Diderot e D'Alembert, e que valoriza as

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noções de natureza, sociedade, espírito crítico e progresso, estando por isso

na base das «modernidades» dos séculos XIX e XX.

Em Portugal, manifesta-se na sensibilidade cultural dos

«estrangeirados», em prosadores como Luís António Verney (Verdadeiro

Método de Estudar) e Matias Aires (Reflexões sobre a Vaidade dos Homens), e

com os «árcades» (ex. «Arcádia Lusitana», academia de reflexão e debate),

ex. Correia Garção, Cruz e Silva. Poetas importantes, ligados ou não à Arcádia:

Nicolau Tolentino, Filinto Elísio, Abade de Jazente; e, mais ligados já ao

espírito emergente da sensibilidade romântica: Marquesa de Alorna, José

Anastácio da Cunha e Bocage.

 

Liberdade, onde estás? Quem te demora?

Quem faz que o teu influxo em nós não caia?

Porque (triste de mim!) porque não raia

Já na esfera de Lísia a tua aurora?

Da santa redenção é vinda a hora

A esta parte do mundo, que desmaia:

Oh! Venha... Oh, Venha, e trémulo descaia

Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao moral, que frio e mudo

Oculta o pátrio amor, torce a vontade,

E em fingir, por temor, empenha estudo;

Movam nossos grilhões tua piedade;

Nosso númen tu és e glória e tudo,

Mãe do génio e prazer, ó Liberdade!

Bocage, «Liberdade»

Modernidade

Não é uma corrente estética, mas uma noção, muito freqüente, com

a qual se qualifica muitas vezes, e em termos positivos, a qualidade de uma

obra. Desligada semanticamente do conceito de modernismo, evoca outros

momentos históricos de renovação estética e cultural (a modernidade do

humanismo renascentista, a modernidade do espírito iluminista, a modernidade

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da concepção do tempo e da arte em Baudelaire e, sobretudo, a partir da

Segunda Guerra Mundial, a libertação em relação às últimas peias da

convenção literária, artística e cultural que mesmo os mais recentes

movimentos programáticos, por sê-lo, ainda faziam sentir).

Em nosso entender, Pessoa é um grande poeta porque, através da

diversidade dos seus heterónimos, está mais ligado a uma noção de

modernidade do que ao conceito de modernismo, assim como Almada

Negreiros; António Boto e Irene Lisboa, presencistas imperfeitos, são-no na

medida em que elaboram também a sua quota-parte de modernidade.

A renovação do romance praticada na segunda metade deste século

(a partir de Agustina Bessa-Luís, em A Sibila, 1954, e a sua obra posterior,

assim como os romances de Vergílio Ferreira, e vários outros autores, ex. José

Cardoso Pires, Augusto Abelaira), assim como a obra de alguns poetas

(António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Herberto Helder), configuram uma

modernidade indistinta, diferenciada e recorrente no vocabulário crítico que, a

despeito de definir de facto um universo idêntico, provoca algumas confusões,

sobretudo na medida em que, em certos casos, se confunde com a noção

entretanto posta em voga de pós-modernismo.

Modernismo

Ambiência estética cosmopolita que define as artes e a cultura

européia e internacional na viragem do século, e, muito em especial, durante

as suas primeiras duas ou três décadas.

Em Portugal, está ligada às figuras de Fernando Pessoa, Mário de

Sá-Carneiro, Almada Negreiros e muitos outros, e polariza-se em tomo da

revista Orpheu (1.º número, 1915).

Estética por excelência da diversidade (patente em outras estéticas

adjacentes e movimentos de vanguarda - sensacionismo, paulismo,

interseccionismo, etc.), da questionação dos valores estabelecidos ética e

literariamente, da euforia face às invenções da técnica, da libertação da escrita

literária de todas as convenções e de todas as regras, o modernismo marcou o

século XX de um modo muito agudo, a tal ponto que com ele se articulam

constantemente as teorias e as polémicas em torno de outras duas noções

histórico-literárias e estéticas relativamente indeterminadas (modernidade e

pós-modernismo), que só a sua matriz pode ajudar a explicitar.

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Na literatura portuguesa, a revista Presença (de José Régio e João

Gaspar Simões) é por uns entendida como «a contra-revolução do

modernismo» (Eduardo Lourenço), e, por outros, como «um segundo

modernismo».

Neo-Realismo

Corrente literária de influência italiana que anexa algumas

componentes da literatura brasileira, nomeadamente a da denúncia das

injustiças sociais do romance nordestino. Quer na poesia, quer na prosa, o

neo-realismo assume uma dimensão de intervenção social, agudizada pelo

pós-guerra e pela sedução dos sistemas socialistas que o clima português de

ditadura mitifica.

A sua matriz poética concentra-se no grupo do Novo Cancioneiro,

colecção de poesia, com Sidónio Muralha, João José Cochofel, Carlos de

Oliveira, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, Fernando Namora e outros.

No romance, Soeiro Pereira Gomes, com Esteiros, e Alves Redol,

com Gaibéus, de 1940, inauguraram, na ficção, uma obra extensa e

representativa, que também muitos dos outros poetas mencionados (sobretudo

os quatro primeiros) contribuíram para enriquecer.

O romance neo-realista reactiva os mecanismos da representação

narrativa, inspirando-se das categorias marxistas de consciência de classe e de

luta de classes, fundando-se nos conflitos sociais que põem sobretudo em

cena camponeses, operários, patrões e senhores da terra, mas os melhores

dos seus textos analisam de forma acutilante as facetas diversas dessas

diversas entidades, o que se pode verificar, nomeadamente, em Uma Abelha

na Chuva, de Carlos de Oliveira, Seara de Vento, de Manuel da Fonseca, O

Dia Cinzento, de Mário Dionísio e Domingo à Tarde, de Fernando Namora.

Na confluência com o existencialismo e com certas componentes da

modernidade, são de salientar as obras mais tardias de José Cardoso Pires, O

Anjo Ancorado e O Hóspede de Job, de Urbano Tavares Rodrigues, Bastardos

do Sol, de Alexandre Pinheiro Torres, A Nau de Quixibá, ou de Orlando da

Costa, Podem Chamar-me Eurídice.

Pós-Modernismo

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Etiqueta polémica que se apõe a vária da produção literária

contemporânea, vulgarizada pelas controvérsias filosóficas

(Lyotard/Habermas), mas do ponto de vista literário seriamente encarada por

grupos e autores americanos e canonizada por inúmeros trabalhos científicos e

teses em universidades dos EUA e da Europa do Norte.

Em Portugal, o seu funcionamento na literatura é não só temido mas

ainda denegado e recalcado, o que se compreende em função da tardia

democratização da nossa sociedade e das longas lutas dos escritores pela

obtenção de condições que permitissem o exercício livre de uma modernidade

almejada.

De qualquer modo, a indiferenciação de modalidades narrativas, o

gosto da reescrita e da paródia, a sedução pela alteração e correcção dos

acontecimentos do passado, o gosto do fantástico, a recusa das axiologias e a

tendência para o aleatório podem entrever-se em textos tão diversos quanto

Finisterra, de Carlos de Oliveira, Alexandra Alpha, de José Cardoso Pires,

Paixão do Conde de Fróis, de Mário de Carvalho, História do Cerco de Lisboa,

de José Saramago, Contos do Mal Errante, de Maria Gabriela Llansol, Os

Guarda-Chuvas Cintilantes, de Teolinda Gersão ou Olhos Verdes, de Luísa

Costa Gomes.

Realismo

Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Antero de

Quental e Teófilo Braga foram alguns dos mais importantes vultos que

constituíram a chamada «Geração de 70», que, a partir da «Questão Coimbrã»

(polémica entre Castilho e Pinheiro Chagas), deu origem às «Conferências do

Casino», na qual se enunciaram os mais importantes preceitos de uma nova

cultura, que em grande parte se liga ao realismo de proveniência francesa e

europeia.

Os romances de Eça e a poesia de Antero ligam-se (no primeiro

integralmente; no segundo, apenas em parte) a essa nova estética, que é

também representada pelos romances de Júlio Dinis e pela poesia de Cesário

Verde (embora esta, como a de Gomes Leal e a de Guerra Junqueiro,

apresente já nexos com a poesia simbolista).

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O realismo procura retomar a objectividade na literatura (contra o

subjectivismo emocional romântico), a sua ligação crítica mas construtiva à

sociedade, e o rigor da escrita poética, assente num rigor reflexivo e numa

planificação composicional.

Romantismo

É oficialmente introduzido em Portugal com o poema Camões, de

Almeida Garrett, e as suas grandes figuras são este autor e ainda Alexandre

Herculano e Camilo Castelo Branco, pertencendo este a uma geração mais

tardia que confinará com o advento da escola realista.

A introdução do discurso da História como ciência (Herculano), a

renovação do teatro (Garrett) e a criação do romance histórico (com ambos

estes escritores, e toda uma linhagem de autores que se prolonga até inícios

do séc. XX) são contributo da escola romântica, que se caracteriza pela

valorização das manifestações individuais, sobretudo no plano da emoção e do

confessionalismo, e pela defesa dos valores da liberdade (desde o plano

político ao literário, nomeadamente versicular) e das origens (infância,

nacionalidade, tradição, e ainda a natureza humana contra a acção corruptora

da sociedade).

Saudosismo

É uma tendência da literatura portuguesa que radica na obra de

Teixeira de Pascoaes e no grupo da Renascença Portuguesa, e à qual

poderemos ainda considerar ligados Afonso Duarte (muito embora este autor

se articule com o psicologismo da geração da revista Presença e seja

reclamado como companheiro estético de alguns neo-realistas) e Tomás da

Fonseca (que, no entanto, como Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro, são

admitidos como antepassados dos neo-realistas) ou Irene Lisboa (susceptível

de ser enquadrada na Presença) que se mantêm relativamente à margem das

correntes estéticas suas contemporâneas.

O saudosismo apresenta alguns pontos de contacto com o

movimento do «Integralismo Lusitano» (ligado ao poeta António Sardinha), mas

o seu passadismo aponta muito mais para uma atitude lírica do que para a

acção política.

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Simbolismo

Embora Eugénio de Castro seja o introdutor do Simbolismo, com

Oaristos (1890), o poeta mais importante desta corrente, ligada ao clima de

inquietação e incompletude da atmosfera finissecular, que produz correntes de

pensamento de componente idealista (e em Portugal se agrava com os ecos do

«Ultimato Inglês»), é Camilo Pessanha.

Também Fialho de Almeida, na prosa, representa esta tendência

(embora o seu estilo impressionista se filie igualmente na escola naturalista),

assim como Venceslau de Morais (assumindo a temática da evasão, que

concretiza nas suas viagens ao Oriente e radicando-se no Japão) e, mais

ligados ao séc. XX, António Patrício, Carlos Malheiro Dias, Teixeira Gomes e

Raul Brandão.

Na poesia, António Nobre e Florbela Espanca articulam-se ainda

com a mentalidade elegíaca e de aspirações indecisas característica do

simbolismo, que na prosa produz sensíveis inovações na narrativa, insistindo

na materialidade da escrita e abalando os mecanismos tradicionais da

representação através do discurso.

Perdi os meus fantásticos castelos

Como névoa distante que se esfuma...

Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:

Quebrei as minhas lanças uma a uma!

Perdi minhas galeras entre os gelos

Que se afundaram sobre um mar de bruma...

- Tantos escolhos! Quem podia vê-los? -

Deitei-me ao mar não salvei nenhuma!

Perdi a minha taça, o meu anel,

A minha cota de aço, o meu corcel,

Perdi meu elmo de oiro e pedrarias...

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas...

Sobre o meu coração pesam montanhas...

Olho assombrada as minhas mãos vazias...

Florbela Espanca

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Surrealismo

Muito tardio, na literatura portuguesa, é representado por grandes

poetas (António Pedro, Manuel de Lima, Mário-Henrique Leiria, Mário Cesariny)

e tem grande impacto na configuração do discurso poético da modernidade, de

Herberto Helder ao grupo de escritores da publicação Poesia-61 (Gastão Cruz,

Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta), não

esquecendo Ruy Belo, Casimiro de Brito e João Rui de Sousa.

Favorece as associações vocabulares livres, as relações semânticas

insólitas, e estabelece o primado da imaginação.

 

A mosca Albertina, que ele domesticava.

Vem agora ao papel, como um insecto-insulto,

Mas fingindo que o poeta a esperava...

Quase mulher e muito mosca,

Albertina quer o poeta para si,

Quer sem versos o poeta.

Por isso fica, mosca-mulher, por ali...

Alexandre O'Neill

 

A CABEÇA DE ARCAIFAZ

(SISMO)

Localização fonética:

a) A cabeça: onde cabe a eça. Popª.:

cabe a eça agora.

b) de Arcaifaz (sismo): o ar (que)

cai, faz (produz) sismo. Faz sismo:

o ar cai. Caindo o ar, fica o caifascismo,

o que dá cai, dá sismo, e retira o ar que

caiu. Por isso se diz que não há ar onde

há alguém que faz sismo., podendo no

entanto sufixismar-se o prefixo, o que

dará o CAIFAZCISMAÇÃO, sublimação da cisma de Caifaz.

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Mário Cesariny de Vasconcelos, Poesia, 1961

Visão Genérica da Literatura Portuguesa

 

A literatura é um conjunto de textos escritos (muitas vezes também

fixados na tradição oral), esteticamente elaborados a partir da linguagem

comum, que dão conta da especificidade cultural de uma comunidade.

A literatura portuguesa constituiu-se na base de um espaço

geográfico uno, o do território português,

«o Reino Lusitano,/ Onde a terra acaba e o mar começa»

Camões, Os Lusíadas - 1572

mas alargou-se a várias partes do mundo, através da aventura

marítima dos Descobrimentos Portugueses nos séculos XV e XVI, que se

concretizou numa riquíssima literatura de viagens e teve como consequência a

expansão da sua língua.

A história da literatura portuguesa acompanha a evolução estética da

cultura ocidental, emergindo de uma matriz medieval de base latina a partir da

qual se constitui e aperfeiçoa a língua literária, até aos séculos XVI e XVII,

sendo também permeável à penetração popular, nomeadamente nos inícios da

historiografia (com a figura determinante de Fernão Lopes e a sua capacidade

de descrição das movimentações das massas sociais) e no teatro (cujo vulto

mais notável é Gil Vicente, na comunicação da sabedoria tradicional da

espontaneidade do povo):

«Toda a glória de viver

das gentes é ter dinheiro,

e quem muito quiser ter

cumpre-lhe de ser primeiro

o mais ruim que puder»

Gil Vicente, Auto da Feira - 1527

 

A literatura portuguesa desenvolve, nas suas origens, um lirismo de

intenso fulgor, com a poesia trovadoresca , e muito particularmente com as

cantigas de amigo, que se prolonga na lírica camoniana e clássica de uma

maneira geral, renovando-se a partir do Romantismo, com personalidades

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destacadas: Garrett e o nacionalismo romântico de expressão amorosa;

Cesário Verde e o quotidiano urbano simultaneamente idealizado e banal;

Antero de Quental e a dilaceração do pensamento implicado na existência

concreta; Camilo Pessanha e o sonho da perfeição verbal na corrosão do

tempo humano - e um grande número de poetas contemporâneos.

«Povo! No pano cru rasgado das camisas

Uma bandeira penso que transluz!

Com ela sofres, bebes, agonizas:

Listrões de vinho lançam-lhe as divisas,

E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!»

Cesário Verde, Contrariedades - 1887

 

Luís de Camões (séc. XVI) e Fernando Pessoa (séc. XX) são, no

entanto, considerados os maiores escritores da literatura portuguesa; de facto,

o Modernismo encontra em Pessoa (fundador da revista Orpheu) uma

expressão complexa e personalizada, já que a galáxia dos seus heterónimos

(nomes de personalidades diferenciadas com as quais compôs a sua obra)

constitui um fenómeno marcante na sua composição literária e na experiência

humana correspondente, com resultados literários surpreendentes, que

configuram uma autêntica ficção da arte de escrever:

 

«O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

que chega a fingir que é dor

a dor que deveras sente»

Fernando Pessoa, Autopsicografia - 1932

 

Mas a ficção (especialmente o romance) conhece também particular

brilho na literatura portuguesa. Desde Bernardim Ribeiro (séc. XVI), mas

sobretudo a partir do Romantismo e do Realismo, aumenta a produção literária

deste género, com crescente interesse do público e da crítica, e acentuando os

aspectos diversos que a prosa narrativa tem incessantemente criado a partir da

relação indivíduo-sociedade que caracteriza centralmente o apogeu do

romance no século XIX: construção da intriga, acentuação da personagem,

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dominância social, problemática da existência, conflitos subjectivos, fluxo

temporal, exercício de escrita, hibridismo de géneros, reescritas paródicas e

descontrução do relato discursivo.

Escritores como Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Raul

Brandão, Aquilino Ribeiro e, mais recentemente, Vergílio Ferreira, Agustina

Bessa-Luís, José Cardoso Pires, José Saramago e António Lobo Antunes são

algumas das figuras mais emergentes neste capítulo, onde os contemporâneos

se destacam pelo seu número e qualidade.

 

«Ao escurecer, voltou de terra o comandante, e contemplou, com os

olhos embaciados de lágrimas, o desterrado, que contemplava as

primeiras estrelas, eminentes ao mirante.

- Procura-a no céu? - disse o nauta.

- Se a procuro no céu! - repetiu maquinalmente Simão.

- Sim!... No céu deve ela estar.

- Quem, senhor?

- Teresa.

- Teresa!... Morreu?!

- Morreu, além, no mirante, donde ela estava acenando.

Simão curvou-se sobre a amurada, e fitou os olhos na torrente. O

comandante lançou-lhe os braços, e disse:

- Coragem, grande desgraçado, coragem! Os homens do mar crêem em

Deus! Espere que o céu se abra para si pelas súplicas daquele anjo!

Mariana estava um passo atrás de Simão e tinha as mãos erguidas.

- Acabou-se tudo!... - murmurou Simão. - Eis-me livre... para a morte...»

Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição - 1862

 

«Há um mundo em cada pedra, as horas vão, com a sua torrente

humana, penetrar-se dum vazio funesto, dum vazio de tudo cuja intenção

se malogrou. Na inimizade, na desconfiança e desolação, correm os

passos, vivem-se os escritos de Deus; tudo escorrega para a eternidade,

num nevoeiro de impotência e frieza (...). Aqui decorrem os meus dias,

aqui morres e ressuscitas por mim. A história faz-se homem através das

tuas ruas, dessas persianas caídas, desses portais fechados e que só um

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sorriso mental pode desselar»

Agustina Bessa-Luís, A Muralha - 1957

De entre os contemporâneos, salientam-se figuras de obra numerosa

e repartida por diferentes géneros, especialmente a poesia, o romance e o

conto, mas, em certos casos, também o teatro, crítica, ensaio e escrita

autobiográfica e diarística. Estão neste caso escritores já desaparecidos, mas

que até há pouco tempo marcaram a cena intelectual portuguesa, com as suas

personalidades multímodas e com a força diversificada do seu talento, de uma

maneira geral empenhado em praticar uma aliança, porventura conflituosa,

entre o trabalho poético e a existência concreta, e em afirmar a capacidade

lúcida (isto é: inteligente e radiosa) da literatura para entender o real: Miguel

Torga, Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira e David Mourão-

Ferreira.

Também nesse sentido se afirmam os corifeus da poesia

contemporânea (cultores embora de outras formas de expressão literária), de

entre os quais se destacam António Ramos Rosa, Sophia de Mello Breyner

Andresen, Eugénio de Andrade e Herberto Helder.

«Leitor: volto

para ti. Um livro que vai morrer depressa.

Depres, o tempo. De uma onda maior que o nosso

tempo. O tempo leitor de um. Autor.

Ou um livro e um Deus com ondas de um mar

mais pacientes. -sa antes. Que a onda venha, a onda

alague: A noite caída em cima de teus dedos. (...)

Eterno

Ondas do que um leitor devagar».

Herberto Helder, Para um leitor ler de/vagar - 1962

 

Na prosa, dedicados a um tipo de ficção que reelabora a novelística

tradicional para a aproximar de outros géneros (crónica, poema em prosa, e

outros tipos de escrita estranhos à convenção literária), e praticando novas

modalidades de articulação no discurso narrativo, emergem figuras femininas

centrais: Maria Judite de Carvalho, Maria Velho da Costa e Maria Gabriela

Llansol.

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«Numa história, há (ou não há) um momento de desvendamento a que se

chama sublime. Normalmente breve. Como penso que um leitor treinado

já conhece todos os enredos, quase só esse momento interessa à

escrita»

Maria Gabriela Llansol, Um Beijo Dado Mais Tarde - 1990