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13 Vozes da loucura, ecos na literatura Gislene Barral Mestre em Literatura Brasileira / UnB Não nos surpreendamos ao reencontrá-la tantas vezes nas ficções do romance e do teatro. Não nos surpreendamos ao vê-la andar de fato pelas ruas (...) a loucura desenha uma silhueta bem familiar na paisagem social. MICHEL FOUCAULT A atividade de criação literária nutre-se essencialmente da imaginação. Através dela, são construídos, de forma arbitrária, seres irreais e, pelo encadeamento de situações fantasiosas, mundos ilusórios. No gesto de criação, o escritor coloca-se por inteiro, nele investindo a inteligência, a emoção, a memória, a capacidade de julgamento, sua visão de mundo e ainda as instâncias psíquicas fora do controle da razão. Entretanto, é pelo primado da imaginação e pela habilidade em exercitá- la artisticamente, através do jogo com as palavras e técnicas de estilo, que o escritor se destaca dos demais homens. Passando boa parte da existência mergulhado em uma esfera de fantasia e na invenção de mundos imaginários, ele acaba sendo visto, no panorama social, como um ser extravagante e excêntrico, e isso é evocado desde a Antigüidade grega. Provavelmente daí tiveram origem as diferentes associações entre loucura e literatura. Tudo gravita em torno da imaginação e da capacidade do homem de crer nas imagens que cria, traduzindo-as em forma artística.

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    Vozes da loucura, ecos naliteratura

    Gislene BarralMestre em Literatura Brasileira / UnB

    No nos surpreendamos ao reencontr-la tantas vezes nas fices doromance e do teatro. No nos surpreendamos ao v-la andar de fato

    pelas ruas (...) a loucura desenha uma silhueta bem familiar napaisagem social.

    MICHEL FOUCAULT

    A atividade de criao literria nutre-se essencialmente daimaginao. Atravs dela, so construdos, de forma arbitrria, seresirreais e, pelo encadeamento de situaes fantasiosas, mundos ilusrios.No gesto de criao, o escritor coloca-se por inteiro, nele investindo ainteligncia, a emoo, a memria, a capacidade de julgamento, suaviso de mundo e ainda as instncias psquicas fora do controle da razo.Entretanto, pelo primado da imaginao e pela habilidade em exercit-la artisticamente, atravs do jogo com as palavras e tcnicas de estilo,que o escritor se destaca dos demais homens. Passando boa parte daexistncia mergulhado em uma esfera de fantasia e na inveno demundos imaginrios, ele acaba sendo visto, no panorama social, comoum ser extravagante e excntrico, e isso evocado desde a Antigidadegrega. Provavelmente da tiveram origem as diferentes associaes entreloucura e literatura. Tudo gravita em torno da imaginao e da capacidadedo homem de crer nas imagens que cria, traduzindo-as em forma artstica.

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    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    Mas, se por um lado a imaginao aproxima loucura e literatura, amaneira de lidar com ela dissocia os dois fenmenos.

    Enquanto o louco apodera-se das fantasias criadas por suaimaginao e age em consonncia com a lgica desse universo irrealque ele cr verdadeiro, o escritor constri seres e mundos ficcionais,aos quais tambm se abandona, alienando-se, momentaneamente, darealidade circundante. Essa necessidade de crer no universo construdoe guiar-se pelas regras de uma lgica ficcional que imprime criaoa condio da verossimilhana. Assim, o momento da criao pode serconsiderado um estado de delrio passageiro e reversvel, no qual ocrescente alheamento da realidade implica inserir-se profundamente emuma dimenso imaginria. Por isso Massaud Moiss refere-se a essemomento, no qual se manifesta a vida inconsciente do artista, comotranse criativo ou neurose artificial:

    Ainda na perspectiva do escritor e no do homem civil, nota-se que umromancista, por exemplo, mergulha no estado de neurose ao inventarhistrias, uma vez que o convvio com as personagens da imaginaocorresponde a um distanciamento da realidade circunstancial. Duranteo tempo da criao, processa-se um alheamento que se diria neurtico,uma turbulncia equivalente neurose (...) presente no ato criativo, aponto de com ele se confundir1.No entanto, passada a neurose criativa, o escritor volta

    realidade fora de seu pensamento e retoma seu mundo concreto, pois afantasia literria resulta da capacidade de embarcar no delrio, combilhete de volta na mo2.

    Nesse aspecto, ao termo loucura, ou modernamente neurose,est sendo agregado o sentido de criatividade e positividade, de algummodo relacionado a perodos em que, como na Renascena, esteveassociado ao saber esotrico e a formas de conhecimento inacessveisao homem comum. Nessa poca, a loucura ainda no era consideradaestado patolgico, tal como o conceito foi sendo construdo a partir da

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    criao dos hospitais gerais na Europa, no sculo XVII, conformehistoriciza Michel Foucault. Antes dessa medicalizao, a loucurainspirava os loucos a escrever livros reputados, pelos homens sbios,como literatura com alto poder de revelao. Na modernidade, com suainsero em um contexto clnico, essa mesma loucura, agora fuga darazo, cala-se, tendo se transformado em barreira criao, em rupturatotal com o pensamento, em morte do artista, como ocorreu comNietzsche, Artaud, Van Gogh, Nerval, Holdrlin, Rousseau e tantosoutros3.

    Esse dilogo entre loucura e literatura, anterior criao e quediz respeito gnese da obra, no autoriza estabelecer, entre as duas,nexos de causalidade ou relaes de contigidade. Isso confundirialiteratura, que antes de tudo exerccio da razo, com um discurso devazo s alucinaes e delrios, ou elevaria a loucura ao estatuto de umsistema ou instituio, quando esta exatamente a negao de qualquerorganizao, coerncia ou ordem. A menos que se tratem de textosescritos por loucos no momento do delrio e em sua linguagem liberada,qualquer obra que aborde a loucura reconhece-a unicamente em suaexterioridade; como experincia objetiva. A fala autntica do louco ,porm, incompatvel com a produo artstica porque, nesta pocaracionalista, a loucura torna impossvel a obra.

    Desse modo, tudo o que se disser de forma racional sobre a loucura,conceito ainda hoje problemtico para as cincias humanas, a verdadede uma razo que j se assegurou vitoriosa no mundo moderno: tododomnio objetivo sobre a loucura, todo conhecimento, toda verdadeformulada sobre ela ser a prpria razo, a razo recoberta e triunfante,o desenlace da alienao4. Contudo, os textos literrios que a tematizamrevelam, em sua subjetividade, as causas, a natureza e o sentido dofenmeno em nossa sociedade, bem como suas implicaes individuais,

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    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    sociais e polticas, iluminando a compreenso humana sobre o problema,pois

    a ligao entre a literatura e a sociedade percebida de maneira vivaquando tentamos descobrir como as sugestes e influncias do meio seincorporam estrutura da obra de modo to visceral que deixam de serpropriamente sociais, para se tornarem a substncia do ato criador5. Por isso, muitas obras literrias descortinam um universo onde

    loucura e razo respiram livremente nos mesmos horizontes sociais,resgatando e prestigiando na histria ou no discurso os valores primitivosda loucura. So reveladas, assim, feies ainda prximas daquelas comas quais Michel Foucault se defronta quando se aprofunda na arqueologiada loucura.

    Tudo o que se origina do homem penetra de modo incisivo nacriao artstica. As instncias do inconsciente, inefveis e misteriosas,por demais abstratas para serem reconstitudas racionalmente, participamda gnese da obra. Fora do controle da razo e do consciente, nasestruturas primitivas da mente, nos espaos mais recnditos onde searmazenam e circulam livremente os arqutipos de tempos imemoriais,os sonhos adormecidos da humanidade e os instintos intocados pelacivilizao, do-se os monlogos da imaginao que levam criaoartstica, to bem explorados por estticas como a simbolista e asurrealista. Nessa fonte onde nascem os germes da loucura, tambmbrotam os da imaginao criadora6. Esse comprometimento entre formasdiferentes da imaginao humana levantado tambm por Foucault,quando cita a prpria literatura que, exacerbando a fantasia do leitor,leva-o loucura pela identificao romanesca:

    As quimeras se transmitem do autor para o leitor, mas aquilo que de umlado era fantasia, torna-se, do outro, fantasma: o engenho do escritor recebido, com toda ingenuidade, como se fosse figura do real.Aparentemente, o que existe a apenas a crtica fcil dos romances deinveno mas, sob a superfcie, constata-se uma inquietao a respeitodas relaes, na obra de arte, entre o real e o imaginrio, e talvez tambm

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    a respeito da confusa comunicao entre a inveno fantstica e asfascinaes do delrio7.A comunicao sem fronteiras entre real e imaginrio consagrou

    o anti-heri Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Inspirado na leituradesenfreada de suas inmeras colees de romances de cavalaria, resolveviver as histrias lidas e que acredita serem reais at que, aps um longoperodo de existncia errante, de peripcias e desvarios, trazido devolta para casa e para a realidade material. J a personagem Emma, emMadame Bovary, no conhece esse retorno, porque sua vida vai secomplicando cada vez mais e seus problemas transformando-se em umabola de neve, levando-a a um fim trgico. Com a imaginaoestimulada pela leitura de obras romnticas, a anti-herona se deixainfluenciar por seus enredos e tenta fazer de sua vida uma dessashistrias: Lembrou-se ento das heronas dos livros que lera, e a poticalegio daquelas mulheres adlteras ps-se a cantar em sua memriacom vozes fraternais que a encantavam8. Para isso, idealiza umapersonalidade e passa a viver segundo padres morais que ela prpriano aceita, numa afronta ao meio social. Sucumbe aps uma existnciadesvairada, que como a provncia considera suas atitudes, porque notem foras suficientes para enfrentar a sociedade de sua poca. Aliteratura insufla sua loucura, aqui entendida como a incompatibilidadeentre suas aes e o cdigo social, ao ativar o rompimento de umaconscincia que no distingue entre os limites do mundo criadoarbitrariamente pela imaginao e aquele em que o ser est efetivamenteinserido.

    Essas associaes evidentemente no significam reconhecer ohomem que cria como um portador de psicose ou o estado de espritocriativo do artista como uma morbidez, mesmo havendo autores paraquem a neurose a fico real (izada), e a fico a inveno daneurose (ou sua catarse por manifestao) 9. Por isso o texto literrio

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    se assemelha muitas vezes ao texto psicanaltico. Embora os artistasno apresentem regularmente comportamentos desviantes, grande onmero daqueles que, por diferentes situaes, se enveredaram pelaterra estranha, fascinante e perigosa da loucura. Isso leva a pensar que oartista, como o filsofo, o sbio, o crtico, assemelha-se ao paranicopor perceber tudo o que percebe o indivduo comum: mas tambmmuitas outras coisas de que este no suspeita10, possuindo uma visomais aguada da realidade. Compreende-se, entretanto, que pode havernisso uma vinculao entre razo e desrazo, ou seja, a acuidade depensamento pode fazer com que a viso do artista ultrapasse as fronteirasda realidade sensvel e alcance uma dimenso que s se atinge pelasensibilidade, porque o nvel da arte no o nvel do real ou do natural,mas o nvel do admirvel, do impossvel, crvel; uma realidade forado real11. No entanto, o artista transcende esse conhecimento profundodo real ao dar forma, atravs da obra, a essa nova realidade que capta;enquanto o louco, mergulhado cada vez mais no inconsciente, depara,na maioria dos casos, com uma liberdade difcil de expressar.

    Segundo a psicologia, a maioria dos artistas so indivduos bemajustados, produtivos socialmente e demonstram plena adequao aoseu espao social, no qual se mostram participantes ativos12. Essaadaptao ao meio provm talvez de sua compreenso mais aguada darealidade humana e social, que pode at mesmo atuar como ummecanismo de defesa contra o choque de sua sensibilidade extremacom a brutalidade intrnseca existncia civilizada. Freud pressente naarte, assim como na loucura, o poder de criar fantasias, que so medidaspaliativas para se suportar a vida, por demais rdua, e afastartransitoriamente as presses de uma realidade desprazvel13. Assim, aprpria criao artstica pode, em muitos casos, operar como um processode adaptao do artista ordem social de que participa, acomodando as

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    insatisfaes existenciais e possibilitando sua ao como ser ajustado eprodutivo.

    Enquanto a literatura reveste-se de positividade por ser construoindividual e social, a loucura, nesse mundo cada vez mais racional, noencontra uma forma de equilbrio entre a subjetividade e o meio exterior.No havendo uma ativao de seu poder, sua forma de reao hostilidade do mundo recrudescida e suas fantasias projetam-se novazio, no nada, no no-ser. Ainda que para a psiquiatria o escritor jtenha deslocado as fronteiras entre normalidade e insanidade, problemtico querer identificar, nas caractersticas textuais, ndices doestado psicolgico de seu autor, mesmo que a obra sempre reflita asexperincias existenciais daquele que a cria.

    Alm dessa criao de mundos imaginrios, loucura e literaturaguardam entre si pontos de contato que ensejam novas relaes.Certamente um dos mais significativos diz respeito questo dalinguagem, assim entendida toda forma de expresso. Como linguagens,os dois fenmenos regem-se por uma lgica prpria e comportam, emseu cdigo, elementos que no estampam uma significao literal. Osentido de suas enunciaes transcende o imediato e tem implicaesprofundas porque, apesar de usarem linguagens diferentes, o louco, comoo escritor, se expressa por meio de metforas, smbolos, imagens.Portadoras de verdades cujos sentidos s se produzem dentro e a partirde si mesmas, a loucura e a literatura propiciaram, na esteira dessasobservaes, o desenvolvimento dos estudos literrios e psicanalticos.

    O carter transgressor da loucura tambm a aproxima da artemoderna, j que ambas se inscrevem como espao privilegiado demanifestao da subjetividade, no qual os juzos de valor e as convenesde toda espcie mostram-se sem sentido para a conscincia do indivduo. preciso, ento, instaurar uma nova instncia em substituio quela

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    realidade que, j sem razo de ser, se desintegrou. Assim queo artista trabalha a partir de um desespero total perante as forasrepressivas e alienantes do mundo, mas nunca perde uma certa viso,pelo menos, de duradoura alegria h muito perdida. A obra de arte revolucionria por definio, na medida em que desestrutura os sistemasnormais e alienados de percepo no centro da sua dialtica criadora(...) tambm na loucura existem todos estes caracteres, mas no sonecessrias explicaes em termos de pr-disposio gentica patolgicapara dar conta da vitimizao da loucura e do abortar do seu momentocriativo; existem inmeros factores inteligveis cientficos, as pressesfamiliares hiper-normalizantes, a vigilncia e o controlo macios earbitrrios, as influncias formativas e educacionais especficas (...)para dar conta do facto de que o artista pode influenciar poderosamenteo mundo enquanto destruda a potncia do louco e, todavia, ambosaterrorizam igualmente o mundo normal 14.Esse aspecto transgressivo manifesta-se pela criao de um objeto

    inteiramente inusitado dentro do cdigo, mas que s resistiu como artepor transgredi-lo. Para se afirmar como criao, a palavra do escritorrompe, dialeticamente, com o cdigo, ao mesmo tempo em que deveestar compactuando com ele, sob pena de tornar-se no inteligvel: Se,efetivamente, cada palavra escrita por um literato no obedecesse aocdigo da lngua, ela no poderia absolutamente ser compreendida, seriaabsolutamente uma palavra de loucura. Eis a razo, talvez, da pertinnciaessencial da literatura e da loucura15.

    Assim que a palavra literria transgride at o limite onde possaser compreensvel. Entretanto a literatura moderna, sobretudo a lrica,aproxima-se da palavra da loucura porque se prope a ir alm datransgresso, fazer-se to ininteligvel para a lgica racional que seavizinha de uma palavra vazia, da palavra sem sentido da loucura: umalinguagem que, no procurando se adequar a um cdigo, mas escapandodo cdigo, comprometendo o cdigo, a estrutura, a lgica da lngua(...), enuncia a prpria lngua que a torna decifrvel como fala; ou, ditode outro modo, uma fala que inscreve nela seu prprio princpio de

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    decifrao16.Muitas vezes um discurso desconexo, incoerente e sem referentes,

    como o do esquizofrnico, prope-se como texto literrio, na tentativade no representar objetivamente coisa alguma e ultrapassar os limitesda prpria obra, rompendo com o conceito de obra. Assim com apoesia moderna que, empenhada em se tornar um desafio para o leitor,mais o afasta que cativa para o seu deciframento. Exige, por outro lado,um leitor astuto, munido de todo um instrumental terico e prtico deexperincia lingstico-literria, capaz de vencer suas resistncias diantedesse estranho objeto verbal e buscar algum sentido sob toda a recusade sentido que a obra traz17. Essa incomunicabilidade da modernalinguagem literria, que inevitavelmente encontra sua homologia nasociedade de onde emerge, mas que ao mesmo tempo contesta, quer sero que a escrita do esquizofrnico para a razo cartesiana: um discursosem referncia, que no permite a construo de representaes, umdiscurso que no encontra sua justificao fora de si mesmo, um discursoque apenas discurso18.

    Mesmo assim essas obras, como os textos das vanguardasmodernistas, esto na verdade, enquanto propostas artsticas, instituindonovos limites dentro de seus limites, construindo novos paradigmas,deslocando para mais adiante as regras de um cdigo e, com isso, nelepenetrando. Ao inserir-se nesse cdigo, institui-se como linguagemliterria transgressora e, portanto, terreno impossvel para a loucura, jque fruto e obra da razo. assim que a literatura, acolhendo a loucurae buscando situ-la aqum da separao entre razo e loucura, levaa obra a seu extremo limite como obra, uma experincia-limite emostra que enquanto os saberes racionais excluem, desclassificam,rejeitam a loucura como ausncia de obra, como margem exterior doslimites que a razo historicamente instituiu, a literatura, ao questionar a

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    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    obra como obra e procurar expressar a ausncia de obra, acolhe o outroda razo em sua experincia-limite 19.

    Esse problema da fronteira, questo aparentemente to antiga, massempre inquietante porque relacionada a um domnio de incerteza, aindahoje no est distante das preocupaes dos escritores contemporneos. o que intriga Affonso Romano de SantAna quando ele relaciona ospoemas do livro Laos, do antipsiquiatra Ronald David Laing, produo de poetas do Modernismo, como Murilo Mendes, ManuelBandeira, e Carlos Drummond de Andrade. Em ambos, os recursos dasrepeties, a enumerao catica, a escrita automtica e as palavras emliberdade compem uma linguagem que parece absurda, ilgica, caticae muito prxima dos delrios do inconsciente. SantAna vislumbra seuspontos de contato e reconhece nelas a fala montona do esquizofrnicoe do paranico, numa verbalizao que o no-limite entre literatura eno-literatura, razo e sandice.

    Questionando os limites entre a literatura que trata comconscincia da loucura e a no psiquiatria desvairadamente literria evisionria, interroga ainda se no seria a prpria escrita literria umamrbida pretenso20. o que, coincidentemente, Renato Pompeuparece responder, explicando que qualquer ato de imaginao tem umaraiz comum com o delrio, pois consiste em criar algo que no seobservou na realidade externa21. Tambm Bernardo Carvalho traz essaquesto para sua escrita, posicionando-se (Em todos os meus livros osnarradores so loucos e essa a nica possibilidade narrativa que euconheo) e mostrando-se fascinado pela mistura de limites do objetivoe do subjetivo22.

    Ainda do ponto de vista da criao e da linguagem, no h comodistinguir entre a lgica gramatical e ficcional das narrativas produzidaspor um discurso paranico e as da narrativa fantstica da fico literria,

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    j que uma dessas modalidades pode seguramente passar-se pela outra.Quando Todorov traa um paralelo entre esses discursos23, diferenciaas duas categorias discursivas apenas no nvel do enunciador: no discursoparanico o sujeito da enunciao cr verdadeiramente na existnciareal dos eventos narrados, comportando-se de acordo com suas genunascrenas; no discurso ficcional literrio a autoria, inclusive na rigorosaestruturao da obra, conduz racionalmente sua organizao, numtrabalho artstico que envolve o jogo harmnico de metforas, smbolos,imagens. Essa autoria obviamente percebe a distncia entre aficcionalidade do que narrado no objeto verbal e a realidade emprica.

    No caso da obra literria fantstica pode-se falar na necessidadede rompimento com a lgica do mundo real e a aceitao do acordoficcional por parte do leitor24, enquanto no texto do louco a ruptura sed entre o sujeito e a realidade emprica, constituindo os procedimentosda linguagem apenas mais um ndice desse confronto. Parece que, nessecaso, e se esse for o objetivo de uma anlise, apenas um instrumentalterico comprometido com a viso psiquitrica poderia detectar no textoos ndices que denunciam o rompimento pelo autor das fronteiras entrenormal e patolgico, j que os mecanismos da lgica narrativa, comumao discurso paranico e ao fantstico literrio, so insuficientes para taldistino.

    A loucura a rejeio da exterioridade rumo ao mergulho nomundo da imaginao, onde reina a total liberdade, onde o ser se voltaprofundamente para seu interior, num gesto de desvencilhamento detodas as convenes e posturas sociais e numa reao normalizao.No que tange razo, esse movimento significa o aprisionamentoontolgico, a supresso da faculdade do pensamento, a reduo dohomem animalidade. Mas neste mundo cada vez mais racionalizado,a loucura pode estar assumindo, assim como a palavra literria, o papel

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    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    de um elemento de denncia de uma ordem social, poltica e econmicaconstruda pelo e para o homem, mas que no corresponde a seus anseiose necessidades, afastando-o cada vez mais do convvio com sua naturezainterior.

    Nesse caso, nem mesmo a referncia a uma patologia e a umaleso cerebral basta para tentar explicar a loucura, j que seu sentidovai se fixando como desvio de normas e rejeio de paradigmas decomportamento. Atravs disso, a subjetividade se afirma comopossibilidade de ruptura com um mundo organizado. Isso leva a pensarnos loucos como homens insubmissos, vidos de desenvolver aomximo a sua subjectividade sem referncia s exigncias doquotidiano e na loucura como talvez o clmax do pensamento quandoest em ruptura total com o seu meio pois, contestando as normasconstritivas do racional, a organizao global da sociedade que se peem questo25.

    Se o inconsciente uma instncia que sempre concorre naproduo literria, j que est na natureza da atividade do escritor aexibio de seu inconsciente26, em alguns momentos esttico-histricosele chega mesmo a dominar a linguagem. Pelo menos foi essa a intenodos surrealistas ao defender como linha mestra dessa esttica o resgatedas instncias mais recnditas da mente humana e sua livre manifestaona produo da obra. Como literatura sempre representao, dir-se-iaque o Surrealismo tenta representar na linguagem do texto a linguagemdo inconsciente. Esse o diferencial em relao participao do interiorhumano na obra: enquanto na obra tradicional o inconsciente controlado pela razo, na moderna, especialmente nos textos dasvanguardas e atravs da escrita automtica e livres associaes, aproposta libert-lo na linguagem da obra, que se torna sua prprialinguagem, seu lugar privilegiado de manifestao. Mas, apesar de toda

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    a radicalidade que se possa atribuir s propostas vanguardistas, asurrealista mostra-se extremamente lcida quando esclarece que

    no se trata de escolher a loucura contra a razo, sendo essa escolha toexclusiva e injustificvel como a escolha inversa, que a da ordemsocial; pelo contrrio, trata-se de fazer admitir que no poderiam existirrazes srias para afastar a priori os doentes mentais da existncianormal, que o exame da loucura nos revela certas possibilidades doesprito (...) que, uma vez descobertas, devem ser exploradas e integradasna atividade total do esprito27.Nesse aspecto, o objetivo acolher o outro lado da razo e, antes

    de uma separao entre normal e patolgico, buscar a integrao detodas as potencialidades do esprito humano.

    medida que traa a trajetria percorrida pela loucura da IdadeMdia contemporaneidade, Michel Foucault registra a literatura comopresena nesse caminho histrico-filosfico, configurando a loucuratambm como uma experincia literria. Tanto est Foucault convencidode que o problema da loucura no se encerra nos domnios da medicina,que se vale de diferentes reas de conhecimento humano e de vises devariadas instituies sociais para buscar conhecer a ontologia dofenmeno. Desse modo a literatura, enquanto campo de saber e cultura,ter tambm sua parcela de importncia para a elaborao dessa histriada loucura. Assim, os textos literrios vm absorvendo e representandoas diferentes manifestaes e sentidos da loucura e modelando suasformas desde seus tempos de livre trnsito nos horizontes do homemrenascentista. Naquele mundo, sua liberdade tagarela vai oferecer o temada navegao dos loucos como inspirao para inmeras composiesliterrias, que tm a nau como veculo de travessia de uma realidade aoutra, numa viagem simblica, ao final da qual se encontrava umaverdade oculta ou distante.

    Nos sculos XVI e XVII, com seu gradual aprisionamento, a falhamoral e social que a loucura est retratada em Cervantes, com D.

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    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    Quixote, em Shakespeare, com Rei Lear e Macbeth, em Ariosto, com Aloucura do sbio, e em outras obras que mostram a loucura semprerelacionada punio, como conseqncia da entrega imaginaodesregrada, aos excessos do amor e aos desesperos da paixo. No papelde crtica moral e poltica, em O elogio da loucura, de Erasmo deRoterdam, ela protesta contra os abusos praticados pelos religiosos eaponta, na ronda do desatino, a posio abjeta de cada instncia dasociedade europia do comeo do sculo XVI.

    Diante da impossibilidade de precisar as causas e tratamentos paraum fenmeno ainda to complexo para a cincia positivista do sculoXVIII, a medicina, que chega a propor os exerccios da imaginaocomo causa da loucura, considera-os, por outro lado, eficazes em suateraputica. A literatura aparece muitas vezes, entre todas as causaspossveis, como deflagradora da loucura ao aguar a imaginao ouprovocar as emoes e choques na alma humana, principalmente osromances, que

    constituem um meio ainda mais artificial e mais nocivo para umasensibilidade desregrada; a verossimilhana de que os escritoresmodernos tentam dot-los e toda a arte que empregam na imitao daverdade s do prestgio aos sentimentos violentos e perigosos quequerem despertar em suas leitoras (...) o romance constitui o meio deperverso por excelncia de toda sensibilidade; ele isola a alma de tudoo que h de imediato e natural no sensvel a fim de arrast-la para ummundo imaginrio de sentimentos tanto mais violentos quanto maisirreais e menos regidos pelas suaves leis da natureza28.Entretanto, se no for desregrado, o cultivo das iluses pode

    tambm contribuir para curar o louco. Para isso, toma-se a literaturacom o sentido de viagem: as leituras devem ser agradveis, levando apessoa a passeios imaginrios, dando a sensao de deslocamentos eprovocando uma mudana no curso das idias29.

    Como temtica, a loucura absorvida por um grande nmero deobras da literatura brasileira, que relativizam seu sentido de acordo com

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    o esprito esttico reinante em cada poca. No sendo tratada comoobjeto cientfico, o enfoque dos textos literrios permite que se vconstruindo, transformando e flexibilizando o conceito de loucura acada representao que dela se faz. Assim, no perodo romntico aloucura confunde-se com a rejeio do indivduo ao mundo exterior es presses sociais, com os quais se sente incapaz de conviver. Parasuperar esse atrito com a sociedade, o sujeito, fugindo realidade,entrega-se a um mundo subterrneo e noturno de fantasias e de confusoentre sonho e realidade, onde a insanidade consiste nesse estado deesprito melanclico, caracterizado pela morbidez, pelo apego idiade morte, tdio, devaneios e excessos da imaginao. Sob esse signo daloucura so construdos os contos de Noite na taverna, de lvares deAzevedo.

    Esse estado de alma desejado e buscado pelo poeta ultra-romntico, adquire, no momento esttico seguinte, a conotao deanomalia ou deformidade fisiolgica. Dentro da viso naturalista,expresso de uma poca de acelerado desenvolvimento cientfico, olouco, como o animal, pertence antes contranatureza, a umanegatividade que ameaa a ordem e pe em perigo, por seu furor, asabedoria positiva da natureza. A loucura assume o papel de ummecanismo patolgico da natureza, tambm aliado ao escndalo daanimalidade30. Esta perspectiva determinista, e ao mesmo tempo tica,da loucura est registrada em O cortio, de Alusio de Azevedo, atravsda personagem Pombinha, cujas crises nervosas so relacionadas aosmecanismos fisiolgicos do corpo feminino.

    Entre as obras agrupadas no perodo realista, a de Machado deAssis contempla generosamente a loucura, tanto pela prodigalidade depersonagens ensandecidas como por tratar diretamente do tema, em Oalienista. Alm de uma crtica cincia positivista (Nada tenho que

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    ver com a cincia; mas se tantos homens em quem supomos juzo soreclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado no oalienista?31 ), que tranca no hospcio o mdico enquanto os loucos sosoltos na rua, esse conto discute as fronteiras entre normalidade einsanidade, quando a personagem Dr. Simo Bacamarte sugere mesmoque o equilbrio perfeito e absoluto das faculdades uma hiptesepatolgica (se devia admitir como exemplar o desequilbrio dasfaculdades, e como hipteses patolgicas todos aqueles casos em que oequilbrio fosse ininterrupto32). Nos romances, o escritor revela aloucura como fruto da prpria condio humana, produto de uma queda(a obsesso provocada pelo cime e a crise de identidade do narrador,em Dom Casmurro) e como forma de poder, conquistado pela fantasiae pelas imagens delirantes que rompem as dimenses espao-temporaisdo real, instaurando uma nova realidade. Nela a personagem tanto podese transmutar em objeto, animal e outros seres, viajando atravs dossculos (Memrias pstumas de Brs Cubas), quanto o filsofo decadoadquire, na hora da morte, o poder de coroar-se imperador, com ouro ebrilhantes (Quincas Borba).

    Mais adiante, na esttica simbolista, visceral reao ao positivismoe cientificismo nascidos com a Revoluo Industrial, a loucura enche-se de glamour e, tornando-se sinnimo de um espao mstico/metafsicoacolhedor e seguro, protege o homem da civilizao corrupta emesquinha. O rtulo de anormal, liberando o inconsciente doindivduo, permite agir desregradamente, experimentando toda formade conhecimento no-lgico. Uma das linhas de fora do Simbolismo,a loucura acena com um estado onde sabedoria e iluminao espiritualpermitem ao ser as mais excelsas vises. Em meio a esses transesmsticos que se vai encontrar a personagem Fileto Seixas, autnticoheri simbolista do romance No hospcio, de Jos Francisco da Rocha

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    Pombo. Mais que uma positividade, a loucura a possibilidade detranscendncia das limitaes materiais.

    Na segunda metade do sculo XIX, a literatura brasileira v-sediante da linguagem catica e aparentemente sem sentido da escritaliterria do dramaturgo Jos Joaquim de Campos Leo, que criou parasi o apelido de Qorpo-Santo. Ele inicia a publicao de seus textos apartir de sua interdio pela Justia como insano, em 1868, e aps terque abandonar sua vida civil. Segundo suas prprias anotaes, suadoena nunca pde ser diagnosticada objetivamente pelos mdicos dapoca. Por vrias vezes se defende, publicando em jornais textos nosquais reclama da grande injustia que lhe fora feita, ficando proibido deadministrar seus negcios e viver junto famlia. Mas nada disso impediuque, com sua criatividade e originalidade, fosse to moderno em suapoca e fundasse, atravs do absurdo, um novo teatro33.

    No perodo pr-modernista, a loucura, como mazela social, aparecetematizada por Lima Barreto no romance de memrias Cemitrio dosvivos. De forma autobiogrfica, relata situaes de humilhao e misriareinantes em um manicmio no Rio de Janeiro, onde estivera internadoaps crises profundas de depresso e delrios alcolicos.

    A partir do incio deste sculo, a loucura, como manifestao doirracional e rejeio excessiva racionalidade que controla a criaoartstica at ento, aparece, principalmente, via linguagem dasvanguardas e dos modernistas, quando a subjetividade invade a narrativaliterria. O inconsciente se revela ainda mais na poesia modernista, emque a anarquia, o caos e a desordem passam a ser normas que devem serseguidas e mesmo a idia de poesia subverte-se totalmente. Assim,algumas construes da linguagem potica parecem no fazer a menorlgica, se lidas pelo leitor comum e deslocadas dos contextos onde foramproduzidas.

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    O estigma cria para o louco um espao de indiferena, liberando-o assim para se manifestar criticamente sobre o que quer que seja. Massua palavra e ao acabam por nada criticar, pois se anulam no vazio daprpria loucura. Portadora de uma extrema ambigidade, ao mesmotempo em que afasta, ela tambm atrai. Essa feio imprecisa mostradano conto A doida, de Carlos Drummond de Andrade. Desta vez acriana inocente que, vencendo sua curiosidade, ainda maior que o medo,desvenda o mistrio que para os adultos da cidade reduzia-se sentenade que toda cidade tem seus doidos; quase que toda famlia os tem (...)E doido quem Deus quis que ficasse doido... Respeitemos sua vontade.No h remdio para a loucura; nunca nenhum doido se curou, que acidade soubesse, e a cidade sabe bastante, ao passo que livros mentem34.O que se revela por trs do estigma e do segredo da loucura a solido,o desamparo e a inocncia e, em si prprio, o garoto descobre a razo ea solidariedade.

    Em O exrcito de um homem s, de Moacyr Scliar, a loucurasustm-se sobre um fundo poltico-ideolgico, apresentando-se comorompimento com o sistema, em busca daquilo que , para a lgicadominante, uma utopia: a construo de uma nova sociedade. Apersonagem louca, Mayer Guinzburg, encarna o indivduo que nointerage com o meio. No se considerando parte dele, precisa de qualquerforma mud-lo para solucionar o conflito gerado, garantindo, ainda quepela loucura, uma alternativa para a preservao de sua subjetividade.

    Armadilha para Lamartine, de Carlos e Carlos Sussekind, abordaa questo da loucura a partir dos elementos que a deflagram e de suasignificao em relao a paradigmas familiares e sociais. A loucurairrompe em Lamartine a partir de um impasse psicolgico criado quandoele sai de casa em busca de libertao familiar e da construo de suaidentidade. Pai e filho vivenciam um processo simbitico de dependncia

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    e, sem a tutela da razo paterna, rompe-se o equilbrio psicolgico dojovem. Medida da razo e sua contrapartida inevitvel, a loucura tambm uma forma de reagir aos rigores da racionalidade e libertar-sedeles.

    A loucura, como punio, tambm pode ser um preo a ser pagopela libertao da mulher de um universo familiar opressor ou, do nguloda subjetividade, um espao de proteo e refgio em um mundo mgico(Ali ela construiu uma dimenso em que s cabiam seus interlocutoresinvisveis35). Soluo para um drama existencial e familiar, em Asparceiras, de Lya Luft, ela sinaliza tambm como conseqncia dareflexo e da tomada de conscincia do ser ante o absurdo da existnciaem uma sociedade cujas normas anulam o indivduo. No tendo comodeter o processo de envelhecimento, apesar das cirurgias plsticas ques corrigem o exterior, a av, de O ponto cego, outro romance de Luft,encontra na loucura uma forma de alhear-se angstia da inexravelpassagem do tempo (Era bonita e perfumada e usava muitas jias.Mas uma fora dentro dela a corroa, e no conseguiu escapar atenveredar pela sua loucura onde se salvou. Pois l tudo pode sermisturado e refeito sem limites nem explicaes, ali no h hora nemlugar determinados36). Nas obras desta autora, a loucura exerce o papelde denncia de um sistema social desgastado e em runas, quando nodo desequilbrio do universo racional.

    como um enigma e segredo de famlia que o pequeno Joopercebe a origem da loucura de Tio Zzimo, em O risco do bordado, deAutran Dourado. Sua existncia, pura angstia, dor e tragdia, alternafases de sanidade e de loucura. Ao furor das crises de loucura, seguem-se momentos de purificao, acompanhados de encantamento eiluminao.

    Mais que atrair, a loucura pode contagiar, como no conto Sorco,

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    sua me, sua filha, de Guimares Rosa, que mostra o homem puro dointerior compartilhando com o semelhante a sua dor e frustrao,absorvendo profundamente os sentimentos do outro. A partida da mee filha do protagonista no leva embora sua humana loucura. Antes,deixa encantada a cidade que toda entoa aquela cantilena do desatino,repetida pelas loucas.

    Se ao mundo contemporneo a loucura se apresenta como o graumximo da alienao, as obras literrias plasmam esse estado mentalcomo um componente da prpria ordem familiar e social, que pretere oser humano em prol de valores econmicos, prestigiando o consumismo,a posse de bens materiais e a exibio de um status financeiroprivilegiado como fins absolutos e moral social. Comprometendo-sealm da temtica, muitas obras tm propiciado a reflexo sobre o tema,aps a literatura ter aberto suas comportas para a livre manifestao daloucura sob todas as formas, inclusive atravs do ensandecimento donarrador ou da personagem, quando no da prpria estrutura textual.Isso se d em Teatro, de Bernardo Carvalho, em que a histria sugere aordem social como um jogo montado a partir de muitos enunciados queno se concatenam com nexo e lgica, construindo uma rede de textosque do uma dimenso do confinamento do homem nos papis querepresenta. O entrelaamento desses textos transmite a idia de que aloucura, que emerge do caos da linguagem, um componente da prpriaordem social, de onde a ordem literria intui sua matria. A chave dotexto est nele prprio:

    Porque s invertendo tudo que voc pode ter alguma chance, pormenor que seja, de compreender o porqu. S a lgica do ilgico podetrazer algum entendimento, alguma viso onde tudo se tornou cegueira,eu disse, fazer voc enxergar, por trs da cortina de sentido, um outrosentido que possa dar conta da compreenso do mundo, j que este nofunciona, eu insisti com a psiquiatra, mas j no valia a pena nenhumaexplicao37.

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    Absorvendo a instabilidade e a desordem de um tempo em que jno h mais verdades absolutas nem valores imveis, a literatura,decidida a provocar a perplexidade do leitor, assume como peas deseu jogo o narrador incoerente e a inverossimilhana da histria. Em Ofosso de Babel, de Jacynto Lins Brando, a crise do enredo, a deidentidade do protagonista e das condies intrnsecas da narrativapartem do desequilbrio do prprio homem e do mundo da razo. Osonho e a realidade se confundem, construindo uma gama depossibilidades onde o narrador, que, ironicamente, se assume como oautor, prescinde do leitor crdulo, disposto a manter o pacto ficcional.Nesse universo, em que o indivduo se encontra perdido em suaexistncia multifacetada, a arcaica figura e a chancela de Professor deGrego s podem ter sentido como codinome de chefe de uma quadrilhade criminosos.

    como parmetro para a razo que a loucura se apresenta emExtraindo a pedra da loucura, de Vlter Goes. Com a morte de seulouco, a cidade se enlouquece e a insanidade se generaliza: demonstrouao amigo Procurador a importncia do louco para o estabelecimento daordem (...) Porque sem loucura no h parmetro, sem parmetro noh ordem e sem ordem no h governo. O absurdo se solta da coleira etodo mundo acaba ficando doido38. Em Movimento contnuo39, domesmo autor, o inusitado narrador, alma da esttua de bronze do artistaplstico louco, Arthur Bispo do Rosrio, conta em flashback,posicionado em seu pedestal na praa, toda a dor, a indiferena desumanae a solido vividas nos seus anos de internamento, permeadas pelaobsesso por construir, a mando de Deus, uma obra grandiosa.

    Alm dessas obras, muitos outros romances, contos, poemas epeas da dramaturgia compem um significativo conjunto da produoliterria brasileira que contempla a questo da loucura sob diversos

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    ngulos e matizes. Se na literatura a ateno loucura tem sido concedidade forma privilegiada, dada sua recorrncia nas obras e o modo como entendida e representada, a realidade social do louco no Brasil, aindana atualidade, no corresponde a essa acolhida positiva. Ao contrrio, otratamento disponibilizado por parte do Estado e pela sociedade a essapopulao, estigmatizada como perigosa e incapaz, est ainda muitodistante de uma ateno humana que possibilite ao louco suaemancipao individual e social e a libertao dos aprisionamentos queh muitos sculos lhe tem reservado o espao da indiferena e dasegregao, quando no dos maus tratos e martrios. Em que pese todosos discursos de igualdade e liberdade dos tempos ps-modernos, asprticas sociais destoam radicalmente das posturas tericas que elegemcomo soberana a liberdade de pensamento e ao, porm anula suaexpresso. O louco ainda aparece como uma feio estranha noshorizontes sociais, um desvio de todos os paradigmas de uma sociedadehomogeneizada que neutraliza as diferenas humanas.

    Ao preferir a palavra francesa alien em lugar da inglesa insane,provavelmente Tuke40 pressentia nela uma medida mais prxima dacondio social que o louco j teria desde o sculo passado. O que estalienado e o que se aliena no louco no to somente a razo. Desde aentrada no hospcio, compondo um processo que Erving Goffman definecomo a mortificao do eu41, a pessoa perde o domnio de suaidentidade, da liberdade, do direito de ir e vir, da linguagem e dapossibilidade de um retorno ao pensamento organizado nos termos darazo. Na vida errante nas ruas das cidades ou no seio de suas famlias,pelo rtulo silencia-se sua voz e anula-se sua linguagem e espao deao. A conquista dos direitos paulatinamente seqestrados no decorrerdos sculos passa obrigatoriamente pela luta anti-manicomial que seiniciou no mundo a partir da dcada de 1970 e que no Brasil tem

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    efetivamente se construdo, ainda que de forma lenta, desde 1987, apartir da 1 Conferncia Nacional de Sade Mental. Com o envolvimentode representantes da comunidade mdica, da classe poltica e dasociedade civil, esse movimento busca uma radical transformao, emesmo a extino, das instituies que, encarregadas de cuidar da sademental, acabam por cronificar os transtornos mentais e imputar spessoas uma situao de sofrimento e martrio, em nada contribuindopara seu bem estar e sua reintegrao social. A busca da humanizaodas relaes no campo psiquitrico e de novas formas de abordagem daquesto insere-se em uma luta mais abrangente pela construo dacidadania, o que exigir da sociedade e do Estado primeiramente adesconstruo de seus manicmios mentais42. preciso entender quenessa ao poltica mais do que uma analogia precisa, h uma lgicaprecisa que une a luta de qualquer pessoa contra a alienao, pelaexpresso absoluta da liberdade e autonomia, luta de todo o grupo,nao ou classe de oprimidos43.

    No Brasil, essa minoria social deixa de ser insignificante na medidaem que todo o sistema, a sociedade e principalmente os beneficiriosda rede de atendimento da sade pblica pagam, em todos os sentidos,um preo muito alto pela cronificao dos problemas nessa rea e pelaineficincia do sistema em resolv-los. Se a ateno se dirige apenaspara os casos em que os indivduos so hospitalizados e recebemassistncia institucional como doentes mentais, depara-se com umquadro de 424.20l internaes somente no ano de 1999. Estima-se quecerca de 20% da populao brasileira seja acometida de transtornosmentais, a considerados desde a esquizofrenia, com maior ndice deinternaes, at aqueles provenientes do uso de lcool e drogas.

    No mbito das cifras e percentuais, a voz altissonante da loucurapermite situ-la como a quarta maior causa de gastos na rede hospitalar

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    que recebe recursos financeiros do SUS Sistema nico de Sade ,ou seja, quase 10% da verba destinada sade no Pas, o que representouapenas no ano de 1999 o total de R$ 467.774.870,0044. Todo essemontante, se investido em gerao de riqueza humana, atravs daeducao, cultura, lazer e esporte, aplacaria grande parte das mazelassociais que acabam por gerar os transtornos mentais. Mais do que aessa populao internada, que no dispe de condies que lhesfavoream lutar por seus interesses, toda essa milionria soma dedinheiro tem beneficiado aos empresrios dos hospitais particulares.Estes detm 47.730 dos leitos psiquitricos contra os 13.663 da redepblica, o que se torna determinante para a inviabilidade de uma soluo,em curto prazo, que no passe pela internao. Nada interessados emreverter esse quadro, os donos de hospitais particulares mostram-sefirmemente dispostos a manter a situao atual ou at mesmo a expandi-la, j que, segundo sua viso, h seguramente uma constante demandapara fomentar essa que se tornou uma verdadeira indstria da loucura45.E assim que o internamento desde sua criao, no sculo XVIII, at osdias atuais, com toda ingenuidade, transforma-se naquilo que j eraobscuramente: controle moral para os internos, lucro econmico paraos outros46.

    NotasEste artigo uma adaptao de um dos captulos da dissertao de mestradoVozes da loucura, ecos na literatura: a construo do espao do louco em Oexrcito de um homem s, de Moacyr Scliar, e Armadilha para Lamartine, deCarlos e Carlos Sussekind, orientada pela prof. Regina Dalcastagn edefendida em 2001 na Universidade de Braslia.1 MOISS, Massaud. Literatura: mundo e forma. So Paulo: Cultrix, 1982,pp. 44-5.2 PESSOTI, Isaas. Miragem da literatura, ditadura da imaginao. RevistaCult, n. 7, So Paulo, fevereiro de 1998, p. 61.3 FOUCAULT, Michel. O crculo antropolgico, em Histria da loucurana Idade Clssica. Trad. de Jos Teixeira Coelho Netto. 3 ed. So Paulo:

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    Perspectiva, 1991, passim.4 Idem, p. 471.5 CANDIDO, Antonio. Os olhos, a barca e o espelho, em A educao pelanoite e outros ensaios. So Paulo: tica, 1989, pp. 163-4.6 Cf. Renato Pompeu, tanto no delrio quanto na imaginao em geral , mesmoquando se explicam dados observados, o processo utilizado o mesmo. Adiferena est apenas no fato de que o delirante no possui, como as pessoasem geral, a capacidade de comparar os produtos de sua imaginao criadoracom as realidades observveis. POMPEU, Renato. Todo texto um delrio.Revista Cult, n. 7, So Paulo, fevereiro de 1998, p. 64.7 FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 37.8 FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Trad. de Srgio Duarte. So Paulo:Ediouro, 1998, p. 168.9 MOISS, Massaud. Op. cit., p. 218.10 TODOROV, Tzvetan. O discurso psictico, em Os gneros do discurso.Trad. de Elisa Angotti Kossovitch.. So Paulo: Martins Fontes, 1980, p. 77.11 ATADE, Vicente de Paula. A narrativa de fico. Curitiba: Ed. dosProfessores, 1972, p. 11.12 Cf. COLEMAN, James Cavington. A psicologia do anormal e a vidacontempornea. Trad. de Dante Moreira Leite e Mriam L.Moreira Leite. SoPaulo: Pioneira, 1973, pp.17-8.13 FREUD, Sigmund. O mal estar na civilizao, em O futuro de uma iluso.Trad. de Jos Otvio de Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1974, pp. 99-101.14 COOPER, David. A linguagem da loucura. Trad. de Wanda Ramos. Lisboa:Presena, 1978, pp. 84-5.15 FOUCAULT, Michel. Linguagem e literatura, em MACHADO, Roberto.Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 159.16 MACHADO, Roberto. Op. cit., p. 50.17 Cf. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lrica moderna. Trad. de Marise M.Curione. So Paulo: Duas Cidades, 1978, pp. 141- 212..18 TODOROV, Tzvetan. Op. cit., p. 81.19 MACHADO, Roberto. Op. cit., p. 44.20 SANTANA, Afonso Romano de. A escrita do louco e a loucura da escrita,em Por um novo conceito de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Eldorado,1977, pp. 148-53.21 POMPEU, Renato. Op. cit., p. 64.22 CARVALHO, Bernardo. Arte e loucura na filosofia francesa. RevistaCult, n. 28. So Paulo: novembro de 1999, p. 27.23 TODOROV, Tzvetan. Op. cit., pp. 75-82.24 ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da fico. Trad. de Hildegard

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    Estudos de Literatura Brasileira ContemporneaFeist. So Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 81-3.25DUROZOI, Grard e LECHERBONNIER. O Surrealismo: teorias, temas,tcnicas. Trad. de Eugnia Maria Madeira Aguiar e Silva. Coimbra: Almedina,1972, p. 151.26 TRILLING, Lionel. Arte e neurose, em Literatura e sociedade. Trad. deRubem Rocha Filho. Rio de Janeiro: Lidador, 1950, p. 196.27 Idem, pp. 1545.28 FOUCAULT, Michel. Histria da loucura na Idade Clssica, p. 368.29 Id., p. 318.30 Id., pp. 149-62.31 MACHADO DE ASSIS. O alienista. So Paulo: tica, 1991, p. 40.32 Id., p. 64.33 SILVA, Hlio Pereira da. Qorpo-Santo: universo do absurdo. Rio de Janeiro:Ed. Colgio Pedro II, 1983.34 ANDRADE, Carlos Drummond de. A doida, em O sorvete e outrashistrias. So Paulo:tica, 1993.35 LUFT, Lya. As parceiras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.36 LUFT, Lya. O ponto cego. So Paulo: Mandarim, 1999, p. 48.37 CARVALHO, Bernardo. Teatro. So Paulo: Companhia das Letras, 1998,p. 46.38 GES, Vlter. Extraindo a pedra da loucura. http//www.editorapublico.com.br/pedra.htm., 1999, p. 6.39 GES, Vlter. Movimento contnuo. http//www.editorapublico.com.br/movimento.htm., 1999.40 FOUCAULT, Michel. Histria da loucura na Idade Clssica, p. 469.41 GOFFMAN, Erving. Manicmios, prises e conventos. 3. ed. Trad. deDante Moreira Leite. So Paulo: Perspectiva, 1990, pp. 24-49.42 COMISSO DE RELATORIA DA II CONFERNCIA NACIONAL DESADE MENTAL.Relatrio final da 2 Conferncia Nacional de SadeMental, p. 16.43 COOPER, David. op. cit., p. 42.44 SIH / DATASUS / TABNET/ COSAM/SAS/ Ministrio da Sade.45 BRENER, Jaime e COSTA, Cristina. Brasil mostra tua loucura. RevistaAteno, ano 2, n. 5, So Paulo, 1996, p. 11.46 FOUCAULT, Michel. Histria da loucura na Idade Clssica, p. 427.

    Gislene Barral - Vozes da loucura, ecos na literatura. Estudos de LiteraturaBrasileira Contempornea, no 12. Braslia, maro/abril de 2001, pp. 13-38.