banco de dados folha - nestrovsky e a análise musical

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Banco de Dados Folha - Acervo de Jornais http://almanaque.folha.uol.com.br/folhetim5.htm[2011-05-03 18:29:05] ADORNO, BEETHOVEN E A TEORIA MUSICAL Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 11 de março de 1988 Adorno formulou a mais abrangente, a mais estimulante e a mais frustrante reflexão sobre a música neste século Arthur Nestrovski O primeiro volume das "Obras Completas" de Theodor Adorno (1903-1969) foi publicado em 1970. Desde então, já foram publicados mais dezoito volumes e outros quatro estão prometidos para breve (1). Destes vinte e três livros, nada menos que onze - praticamente a metade - são dedicados exclusivamente à música. É uma revelação surpreendente: Theodor Adorno, um dos pensadores mais influentes da modernidade, autor da "Dialética Negativa", do "Jargão da Autenticidade", das "Minima Moralia" e da monumental "Teoria da Estética", entre outras obras seminais, se revela também como um musicólogo prolífico, autor de monografias sobre Mahler, Berg e Wagner, criador de uma primeira "Sociologia da Música", palestrante e crítico da música nova e da antiga, compositor e pianista, e teórico da "Filosofia da Nova Música". É uma revelação surpreendente porque a despeito desta vasta produção e a despeito do impacto inicial de um ensaio como o "Fetichismo na Música", ou de uma coletânea como "Dissionâncias", a obra musical de Adorno permanece à margem dos currículos correntes de teoria musical. A despeito de referências obrigatórias aqui e ali, ou de algum comentário perdido num rodapé de página, a teoria musical de Adorno é tida, de maneira geral, como uma contribuição secundária - secundária no contexto de sua obra como um todo e secundária aos interesses primários da educação musical de hoje. A teoria musical de Adorno permanece alojada no quarto de hóspedes do conservatório, onde é tratada com aquela impaciência discreta de quem não vê a hora do visitante ir embora. Do ponto de vista da filosofia, o pensamento musical de Adorno é fascinante, mas incompreensível, já que é preciso bem mais do que um conhecimento superficial de história da música e noções básicas de harmonia para compreender do que se trata. Do ponto de vista da teoria musical, a obra de Adorno representa, de uma só vez, a mais abrangente, estimulante e mais frustrante reflexão sobre a música neste século. Ninguém antes dele fora capaz de dissecar com a mesma agudez os mecanismos modernos de produção, reprodução e consumo da música. Ninguém depois dele já demonstrou semelhante vocação analítica, resultado de uma mistura explosiva entre a composição e a dialética. Mas a teoria musical de Adorno, ou melhor, suas várias versões de uma teoria musical convergem todas numa promessa que ele jamais cumpriu: a elaboração de uma técnica analítica capaz de fazer jus a seu pensamento estético e político. Isto é, uma técnica de análise que nos permita expor a economia interna da partitura em suas relações para com a economia externa do capital. Oscilando entre a filosofia e a música, as análises musicais de Adorno desembocam com frequência num beco sem saída, incapazes de articular mediações entre a dialética social e a da partitura. Este é um problema do qual o próprio Adorno tinha viva consciência, mas para o qual jamais encontrou soluções. É possível se perceber a raiz e a ruína de seu inacabado livro sobre Beethoven, e dos fragmentos e notas para três outros projetos: uma "Teoria da Reprodução Musical", uma crítica das "Correntes Musicais", e uma "Teoria do Rádio". Acossados entre a síntese e a fragmentação, um a um cada volume foi se deixando vencer pelo silêncio. Musicólogo

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    http://almanaque.folha.uol.com.br/folhetim5.htm[2011-05-03 18:29:05]

    ADORNO, BEETHOVEN E A TEORIA MUSICAL

    Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 11 de maro de 1988

    Adorno formulou a mais abrangente, a mais estimulante e a mais frustrante reflexo sobre a msica nestesculo

    Arthur Nestrovski

    O primeiro volume das "Obras Completas" de Theodor Adorno (1903-1969) foi publicado em 1970. Desdeento, j foram publicados mais dezoito volumes e outros quatro esto prometidos para breve (1). Destesvinte e trs livros, nada menos que onze - praticamente a metade - so dedicados exclusivamente msica. uma revelao surpreendente: Theodor Adorno, um dos pensadores mais influentes damodernidade, autor da "Dialtica Negativa", do "Jargo da Autenticidade", das "Minima Moralia" e damonumental "Teoria da Esttica", entre outras obras seminais, se revela tambm como um musiclogoprolfico, autor de monografias sobre Mahler, Berg e Wagner, criador de uma primeira "Sociologia daMsica", palestrante e crtico da msica nova e da antiga, compositor e pianista, e terico da "Filosofia daNova Msica". uma revelao surpreendente porque a despeito desta vasta produo e a despeito doimpacto inicial de um ensaio como o "Fetichismo na Msica", ou de uma coletnea como "Dissionncias", aobra musical de Adorno permanece margem dos currculos correntes de teoria musical. A despeito dereferncias obrigatrias aqui e ali, ou de algum comentrio perdido num rodap de pgina, a teoria musicalde Adorno tida, de maneira geral, como uma contribuio secundria - secundria no contexto de suaobra como um todo e secundria aos interesses primrios da educao musical de hoje. A teoria musicalde Adorno permanece alojada no quarto de hspedes do conservatrio, onde tratada com aquelaimpacincia discreta de quem no v a hora do visitante ir embora.

    Do ponto de vista da filosofia, o pensamento musical de Adorno fascinante, mas incompreensvel, j que preciso bem mais do que um conhecimento superficial de histria da msica e noes bsicas deharmonia para compreender do que se trata. Do ponto de vista da teoria musical, a obra de Adornorepresenta, de uma s vez, a mais abrangente, estimulante e mais frustrante reflexo sobre a msicaneste sculo. Ningum antes dele fora capaz de dissecar com a mesma agudez os mecanismos modernosde produo, reproduo e consumo da msica. Ningum depois dele j demonstrou semelhante vocaoanaltica, resultado de uma mistura explosiva entre a composio e a dialtica. Mas a teoria musical deAdorno, ou melhor, suas vrias verses de uma teoria musical convergem todas numa promessa que elejamais cumpriu: a elaborao de uma tcnica analtica capaz de fazer jus a seu pensamento esttico epoltico. Isto , uma tcnica de anlise que nos permita expor a economia interna da partitura em suasrelaes para com a economia externa do capital. Oscilando entre a filosofia e a msica, as anlisesmusicais de Adorno desembocam com frequncia num beco sem sada, incapazes de articular mediaesentre a dialtica social e a da partitura. Este um problema do qual o prprio Adorno tinha vivaconscincia, mas para o qual jamais encontrou solues. possvel se perceber a raiz e a runa de seuinacabado livro sobre Beethoven, e dos fragmentos e notas para trs outros projetos: uma "Teoria daReproduo Musical", uma crtica das "Correntes Musicais", e uma "Teoria do Rdio". Acossados entre asntese e a fragmentao, um a um cada volume foi se deixando vencer pelo silncio.

    Musiclogo

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    Dentre os fragmentos de seu livro sobre Beethoven, conta-se uma descrio relativamente longa do projetocomo um todo. Em verso traduzida para o francs, esta descrio foi publicada por Mac Jimenez e Marcde Launay na "Revue d'Esthtique", n. 8, 1985 (volume inteirante dedicado a Adorno). Trs anos antes, arevista inglesa "Music Analysis" (volume 1, n. 2) j publicara uma conferncia proferida por Adorno em1969, gravada, transcrita e traduzida por Max Paddison. O contraponto entre os dois textos, fragmentadose improvisados como so, pode revelar muito das preocupaes do Adorno musiclogo, face s objees desua cara-metade de filsofo. Uma leitura polifnica desses textos pode demonstrar a extenso doproblema, bem como sugerir possibilidades de resposta para o impasse da anlise musical.

    Antes do impasse, contudo, uma dvida clssica, e a soluo da crise de conscincia do analista. "Anlise" uma palavra fria. Vem do grego (ana-lysis) e significa "quebra" ou "dissoluo". A anlise parente da"anatomia" que "corta em pedaos". O analista musical, como o anatomista, tambm se prope a cortarem pedaos para melhor compreender o todo. Marcado pelo estigma da faca e do frio, no h analista queno se veja perseguido, mais cedo ou mais tarde, pelo demnio da dvida, sussurrando verdades einverdades sobre a futilidade da anlise. "A msica", diz o diabo, diz o pblico, e dizem o jornal e osmsicos, "a msica no se analisa. No preciso entender nada de msica para se gostar de msica. Amsica fala diretamente ao corao."

    Esta forma comum de resistncia teoria reproduz uma das modalidades mais antigas de conservadorismo.Analfabetos de d a d anunciam, rancorosos, que os brbaros chegaram para destruir e salgar o jardim daaudio original. De certa maneira, tm razo: a iluso de uma escuta inocente, de uma escuta imediata edivina, desaparece to logo se perceba as leis de construo do objeto musical, que vem de oficinahumana (demasiado humana). A anlise nos conduz de volta arte, em sua primeira acepo: a tcnica, ahabilidade de combinar, construir. Ars (arte), como ordo (ordem), ratio (razo) e res (objeto; realidade),vem da raiz indo-europia "ar-", que significa conectar, ou combinar, e uma vez face face com esta arte- isto , uma vez que se analisa os menores elementos de uma obra e o princpio de suas conexes - umavez dissolvida a totalidade do objeto, j se est praticamente beira de uma desmistificao da obramusical. neste sentido que se deve compreender o comentrio de Adorno sobre a relao entre a obra esua anlise: "A anlise uma dessas formas, como a traduo ou crtica, que permite prpria obra sedesenvolver. A obra musical necessita da anlise, para que possa revelar seu contedo de verdade" (MA,176) (2). A obra de arte, para Adorno, uma forma particular do conhecimento. Como tal, obedece s leisde formao de qualquer outro aparato ideolgico. A anlise musical, segundo Adorno, deve partir doobjeto (compreendido como forma de produo) para chegar ao objeto (compreendido como o resultado deum "campo de foras" que se estende da potica poltica). A anlise perseguida por Adorno umafilosofia do sujeito, mas calcada na exposio de uma falsa conscincia do objeto. A anlise, para Adorno,s faz sentido quando integrada a um projeto mais ambicioso e mais amplo: a crtica da ideologiaespontnea da vida cotidiana.

    Tapearia

    A escolha de Beethoven como tema de um ensaio analtico est diretamente ligada a este projeto. Por umlado, Beethoven representa hoje a prpria imagem do compositor, em sua verso mais sentimental etrivializada. No se trata apenas da adorao e das fbulas que envolvem a memria do Grande Surdo.Suas obras mesmo se estabeleceram como smbolo de tudo que a msica dita (e maldita) clssicarepresenta: profundidade, intangibilidade, humanidade. Mar de lgrimas. Afogar-se acima das estrelas.Beethoven a figura chave que se deve estudar para a disseco das estratgias individuais einstitucionais da recepo musical.

    Por outro lado - o de dentro, o da produo musical - a msica de Beethoven oferece ao analista umatapearia de temas, motivos e interrelaes harmnicas que bem representa o que de mais complexo j foiproduzido com sons, silncio e pentagrama. E a msica de Beethoven representa ainda, para Adorno, areunio de duas outras qualidades essenciais: o profissionalismo e a inteligibilidade. A conscinciaprofissional de Beethoven transparece a cada colcheia, cada compasso, cada frase. Figuras de linguagemse multiplicam a olhos vistos na partitura totalmente livre de ingenuidade. A imagem do surdo no bosque,psicografado a "Sinfonia Pastoral", no se sustenta por mais de duas linhas de anlise. Mas esteprofissionalismo de Beethoven no outra coisa seno o resultado da proximidade entre a anlise e acomposio: "uma espcie de convergncia entre o processo analtico e o processo composicional" (MA,176). A anlise da msica de Beethoven servir, portanto, para reafirmar a primeira lei da psicodinmicada composio: as distncias entre o diletante e o compositor diretamente proporcional razo de suas

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    capacidades analticas. Vale dizer: a qualidade da composio cresce e decresce de acordo com aconscincia crtica do compositor.

    Neste ponto preciso fazer uma ressalva. Theodor Adorno foi aluno de Alban Berg, que foi aluno de ArnoldSchoenberg. Este fato, por si s, j explica muitas coisas. Explica, por exemplo, de onde vem o slidoconhecimento musical de Adorno. Dois volumes de composies do jovem Adorno, publicados em 1970,incluem um quarteto de cordas, trs peas para orquestra e vrios ciclos de canes para voz e piano. Noso obras-primas, mas no so piores que as composies juvenis de outros talentosos alunos de Berg oude Schoenberg. Como Ernst Krenek ou Roberto Gerhard, tambm Adorno aprendeu com Berg o significadodo artesanato na composio - aprendeu anlise - e aprendeu a fundamental lio de esttica do mestreSchoenberg: "o verdadeiro propsito da construo musical no beleza, mas sim a inteligibilidade". uma posio furiosamente "germnica", que tem sua justificativa terica na "Crtica do Juzo" de Kant. uma posio difcil, discutvel, parcial e comprometedora. Uma vez livres da beleza, Adorno e Schoenbergse vem conduzidos idia da msica como teoria, composio como estabelecimento de um "campo deforas", obra musical como "problema" (MA, 181). Uma vez livres da beleza, livres de um ornamento deum belo que so suas marcas de batismo, Adorno e Schoenberg se vem comprometidos com umatradio musical especfica, que tem sua origem justamente em Beethoven. Desenvolvem da uma lucidez euma cegueira complementares e opostas. Cada texto de Adorno carrega consigo um outro texto, seu outrotexto, ausente e presente nas entrelinhas. o elogio do belo, que nem Adorno nem Schoenberg jamaispuderam contemplar. A beleza, para Schoenberg, sinnimo de complacncia. A beleza, para Adorno, mentira, manipulao. A msica de Beethoven, cuja superfcie nunca "bela", nunca "boa de se ouvir",oferece a Schoenberg uma lio monumental sobre o significado da composio como construo esacrifcio, e oferece a Adorno nada mais nada menos do que uma filosofia.

    Combinatria

    Percebe-se agora a importncia da anlise para a filosofia musical de Adorno. Se a msica, a msica deBeethoven, mas no s a dele (cf. as monografias sobre Mahler, Berg e Wagner, e os ensaios sobre Bach,Schoenberg e Webern, entre outros) constitui propriamente uma reflexo filosfica, ento o que preciso se ganhar acesso s suas formas de leitura. E o que a leitura seno uma "arte", Ars, uma tcnica decombinaes? Leitura, como inteligncia, lgica, lxico ou lei, vem de uma raiz indo-europia "leg-" quesignifica selecionar ou combinar. A escuta analtica, para Adorno, ser aquela escuta capaz de identificar oselementos selecionados pelo compositor e organizados pelo engenho do artista - ser aquela escuta quereproduz ela mesma a constituio da obra, se afirmando como uma "arte da leitura". A escuta analticaser aquela escuta que recupera a arte da arte, numa poca em que a arte j desapareceu, consumidapela voracidade de um pblico sentimental. A escuta analtica ser aquela que persegue o objeto, o encarasem medo, e se arrisca difcil fortuna do pensamento.

    Trabalho

    Da obra musical tida como objeto, "ordem e conexo das coisas", a anlise desvela a obra como trabalho,produo de uma "ordem e conexo das idias das coisas". A anlise servir, por tanto, para desfazer afalsa separao entre o conhecimento e o objeto do conhecimento. Atravs da anlise, a msica nos deixaouvir o conhecimento como a prpria produo do objeto do conhecimento.

    Em sua palestra de 1969, Adorno passa em revista algumas das formas correntes de anlise musical, dos"guias temticos" a anlise motvica "a la" Riemann e anlise schenkeriana. Dessa resenha no sobrapedra sobre pedra, mas muito se aprende sobre o que est espera do analista. Os "guias de viagem"temticos, maneira das contracapas de disco ou dos programas de concerto so dispensados com uma spalavra: reificao. Sua nica virtude foi ter conduzido analistas como Riemann ou Rti a um estudo dosmenores elementos isolados da composio. Mas as anlises de veia motvica sofre, por sua parte, de outroproblema agudo. Ocupados com a montagem de seus quebra-cabeas, os analistas desprezam o tempo e omovimento em favor de um esquema de papel. um problema antigo, um drama de duas cabeas: "todo ovir-a-ser da msica , fato, ilusrio, posto que a msica, enquanto texto, verdadeiramente fixa e no'vem-a-ser' coisa alguma..." (MA 179). O analista que se concentra exclusivamente na relao formal entremotivos musicais se professa cientfico praticante, pousando a mo esquerda sobre a partitura. Mas ignorara partitura em favor dos sons no menos absurdo que abdicar dos sons em favor do texto escrito. "Amsica s ganha coerncia quando percebida como um vir-a-ser. Eis a o paradoxo da anlise: por um

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    lado, a anlise limitada pelo que fixo e est ao alcance da mo; por outro, deve traduzir o queaprendeu em termos de movimento, um movimento coagulado pelo texto musical" (MA, 179).

    Heinrich Schenker se sai um pouco melhor neste confronto. A anlise schenkeriana se prope a demonstraro princpio de unidade da msica tonal. De acordo com Schenker, ao nvel mais profundo de toda obratonal se distingue uma linha bsica, que desce do terceiro grau tnica da escala. Esta linha, combinadacom a linha fundamental do baixo (1-5-1) constitui o "Ursatz": a base contapuntstica de toda linguagemtonal. Partindo do "Ursatz", possvel conceber a composio - que, para Schenker, sempre sinnimo decomposio tonal - como um processo gradual de ornamentao desta cadncia. A anlise percorreria ocaminho inverso, destacando os ornamentos da superfcie, penetrando os nveis mdios, mais sbrios, edescobrindo finalmente o "Ursatz", a estrutura arquetpica da obra, uma espcie de Id da tonalidade.

    Desta idia derivam dois corolrios. Se o "Ursatz" realmente, como quer Schenker, a base de todamsica tonal, ento ser necessrio pensar cada nota de uma obra em relao a esta cadncia-me. E oque isto significa que a idia de dissonncia deve se projetar do momento individual ao nvel da obracomo um todo. esta a grande descoberta de Schenker. Uma vez apreendida sua noo de dissonncia, aanlise schenkeriana nos leva inevitavelmente a uma escuta estrutural.

    Para Adorno, como para Schenker, a composio um processo sistemtico e passvel de representao.No por acaso que tanto Adorno quanto Schenker consideram Beethoven - o mais sistemtico de todosos compositores - como o maior de todos os compositores. Todavia, ao contrrio de Schenker, que postulao "Ursatz" e transforma a anlise num mtodo redutor, Adorno v na reduo um dos maiores perigos parao analista. "Ao reduzir a msica a suas estruturas mais fundamentais, Schenker interpreta como casual efortuito precisamente o que, em certo sentido, a prpria essncia da msica" (MA, 174). Isto : Schenkerparte da superfcie, chega ao fundo e fica por l. Descobre o que comum a toda obra tonal; ignora o quefaz de cada obra uma outra obra, de cada compositor um outro compositor. De um ponto de vistaschenkeriano, as diferenas entre, digamos, Haydn e Mozart, so menos importantes do que suasemelhana primal no "Ursatz". Mas as diferenas entre Haydn e Mozart so justamente o que fazem deHaydn Haydn e de Mozart Mozart. O mtodo analtico de Schenker nos permite avaliar o que Schenkermesmo desprezou. preciso partir da superfcie, descer at o fundo - e retornar. Do explcito ao implcito ede volta ao explcito: uma teoria materialista da tonalidade deve percorrer cada caminho e cada idia empelo menos duas direes simultaneamente.

    Discurso

    Os fragmentos de Adorno sugerem o teor de at, em certos casos, a substncia de suas anlises da msicade Beethoven. So trs as questes analticas por ele abordadas: identificao e crtica, a um nvel tcnico,dos elementos e normas de cada obra estudada; formulao do "problema" da msica de Beethoven; ecriao de um discurso analtico apropriado. As trs questes so interdependentes, de modo que no sepode definir uma sequncia de operaes conduzindo de uma a outra. Como falar do problema da msicade Beethoven se ainda no foi analisada? Mas como possvel analis-la sem formular previamente umprincpio de anlise? Uma vez que se percebe o conhecimento como forma de produo (e no dedescoberta), como possvel confiar numa anlise tcnica, "objetiva" e "neutra"? "Objetiva" a lente dofotgrafo, que s fotografa o que quer ver. "Neutra" a rede bancria da Suia, que administra(igualmente) riquezas de vida ou de morte (desigualmente). E como fazer e falar da anlise sem palavras -palavras que s podem vir da prpria anlise? o que se chama de "crculo hermenutico". A obra deAdorno como um todo oferece mais de uma resposta a este problema. Seus fragmentos de uma filosofia daanlise sugerem um modo musical de se chegar quadratura do crculo.

    Fragmentos

    Se, para Adorno, possvel falar de anlise, fazer anlise e teorizar a anlise, justamente porque a fala,a fbrica e a teoria coincidem na anlise. No h um ponto de partida, como no h um ponto de chegada- se parte e se chega de todo e qualquer ponto, e ao mesmo tempo. No h um ponto de partida porqueno h uma tabula rasa da pesquisa. Como no h objeto sem o objeto do conhecimento. A iluso decausa e efeito que move o crculo hermenutico se confunde com a causa e o efeito deste movimento quenos precipita da esquerda para a direita, linha aps linha e de cima abaixo at o fim. Da esquerda para adireita, o pensamento que foge da simultaneidade, o pensamento que rejeita a contradio a imagem

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    intelectual do que Adorno chamava, com desprezo, de "mundo administrado", um mundo que esse mesmopensamento administrou. A dialtica musical de Adorno, pelo contrrio, uma aplicao do pensamentoformalizado na "Teoria da Esttica". um pensamento que faz da runa, do fragmento, seu princpio dearticulao. O fragmento, como os casos de obra do analista, s pode ser interpretado com a viso do todopresente. Mas este um todo que no equivale a uma simples soma das partes, posto que cada partecontm o todo alm de si. Face iluso de totalidade, face totalidade que s se conquista fora dereduo, o pensamento de Adorno se multiplica em cacos de idia, pedaos de prismas refletindo edifratando um obscuro objeto musical.

    Auto-reflexiva quase ao nvel do exagero, a msica de Beethoven bem se presta ao projeto de anliseimaginado por Adorno. A msica de Beethoven a msica do artifcio. Sua marca social aespontaneidade, mas essa uma espontaneidade composta, construda. Em termos talvez mais prximosde Adorno, uma "espontaneidade negativa". O artifcio em Beethoven sinal de uma arte consciente desi, e "uma arte consciente de si uma arte que se analisou"(MA, 176). A anlise de Adorno visa recuperao desta anlise que se confunde com a composio. E esta anlise composta, esta arte dacombinao, reflete e difrata o "problema" que lhe deu origem e que se origina novamente com ela: atonalidade. "Compreender Beethoven compreender a tonalidade"(B). A tonalidade o "princpio reguladordas relaes", o problema capital da msica de Beethoven, e o problema do capital: "a tonalidadesitua-se nos prprios fundamentos da sociedade burguesa" (B). A anlise de Adorno busca justamente oentendimento do "problema" da composio como um problema que tanto imanente msica quantodiretamente ligado s formas de produo e do trabalho. A anlise de Adorno busca refletir a tonalidadecomo forma de composio e como forma de pensamento, e busca refletir a tonalidade como pensamentoe composio da forma, onde "a forma representa a relao entre a obra de arte e a sociedade ("Teoria daEsttica", 12. 18). A forma, a constituio de cada momento individual da obra, o prprio domnio dotrabalho do artista, o "entusiasmo", "enthusiasmos", inspirao como produo, "en-theos", deus dedentro, o artfice, a cultura: nas palavras de Beethoven, "o fogo que consome o fogo, consome anatureza"(B). Uma vez compreendida a forma, isto , a relao entre o trabalho e a obra - uma relaoque pertence ela mesma estrutura social do trabalho - a anlise est prxima da revelao de um"excesso" da arte, um "contedo de verdade" que s mesmo a anlise capaz de reconstituir (MA 177).Para tanto, contudo, seria preciso encontrar formas de mediao. Os desconfortveis saltos, que se podeler em alguns dos fragmentos, entre a filosofia e a msica, ou pior, entre epifanias "poticas" e detalhes dacomposio, so a marca mais clara da ausncia de mediaes. Mas para construir uma anlise mediata,para construir uma "teoria material da msica" (MA 185), seria preciso mais tempo e mais tempo deescrita, seria preciso chegar ao livro, seriam precisos mais anos, que a morte levou.

    assim que a filosofia analtica de Adorno aparece e desaparece aos nossos olhos. Entre fragmentospessoais de trabalho e uma palestra improvisada, mal se pode distinguir a anatomia precria desta anlise.Mas aqui e ali brilha a "leve luz, como um pequeno lume", ausente e presente como uma promessa e umadvida - e um pouco como este ensaio. Uma prtica analtica a partir da viso de Adorno corresponderia auma politizao da anlise. Vinte anos mais tarde - com os erros de Adorno e de outros s nossas costas - possvel, agora, retornar aos fragmentos, e fazer o balano das contas que vamos saldar.

    ____________

    Notas

    (1) "Gesammelte schrifen", Suhrkamp, 1970.

    (2) As referncias no texto esto abreviadas: MA corresponde a "Musical Analysis", volume 1, n. 2, 1982; Bcorresponde traduo da traduo francesa de fragmentos de um texto original de Adorno, descrevendoseu projetado livro sobre Beethoven. A traduo francesa foi publicada na "Revue d'Esthtique", n. 8,1985.

    (3) "Kompositionen", 1980.

    (4) Captulo 6 de "Fundamentals of Musical Composition", Faber & Faber, 1967.

    Fragmentos sobre Beethoven

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    Theodor Adorno

    (...) Como dar vida forma - problema agudo ao se tratar das ltimas obras de Beethoven - e... como darforma ao que vivo, reduzi-lo a seu conceito.

    (...) O entendimento da obra de Beethoven depende da maneira como se interpreta a dialtica do elementomtico... a reunio do que humano com o que vem do mundo dos mortos, dos deuses e demnios... Numuniverso de predestinao e de domnio, s humano no homem o demnio.

    (...) Encerrar o livro invocando a doutrina mstica judaica dos "anjos da relva", destinados a desaparecernum rio de fogo. O carter da msica - nascida como forma de louvao divina, mesmo e justamentequando se ope ao mundo - semelhante ao carter desses anjos efmeros. (E a efemeridade que atransforma em louvao - isto , numa destruio permanente da natureza). Beethoven faz desta imagema prpria conscincia que a msica tem de si mesma. A verdade de Beethoven reside na aniquilao detodo detalhe. Com Beethoven, a composio se transforma de moda a revelar o carter efmero damsica. Segundo suas prprias palavras, o fogo que deve acender a msica no corao do homem - oentusiasmo - "o fogo que consome o fogo, consome a natureza".

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