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Brasília Novembro 2012 www.iesb.br ANO 03 . NÚMERO 05 IESB – Instituto de Educação Superior de Brasília REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DO IESB REDEMOINHO MULHERES NO TRÁFICO BRASÍLIA PARA SER LEMBRADA RELIGIÃO E HOMOSSEXUALIDADE UMA PÁTRIA LONGE DE CASA Brasília recebe cada vez mais estrangeiros que vêm em busca de sonhos e oportunidades

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ANO 03 . NÚMERO 05IESB – Instituto de Educação Superior de Brasília

REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DO IESB

REDEMOINhO

MULhERES NO TRáfICO

BRASíLIA pARA SER LEMBRADA

RELIgIãO E hOMOSSExUALIDADE

UMA páTRIA LONgE DE CASABrasília recebe cada vez mais estrangeiros que vêm em busca de sonhos e oportunidades

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ÍndiceCada vez mais, estrangeiros de todos os cantos do planeta chegam à capital na esperança deuma vida melhor

Brasília para ser lembrada Pontos importantes para a preservação da memória da capital sofrem com o descaso, o abandono e a falta de uma política de conservação

Mulheres no tráfico Cresce número de bocas de fumo lideradas por elas. Presas por venda de entorpecentes já é 37% superior neste ano

Fé e homossexualidade Conflito entre religião e desejo afasta pessoas dos templos e congregações inclusivas são as que mais crescem

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12 Dois lados de uma só moeda No Lago Sul, renda domiciliar é 15 vezes superior à verificada em regiões mais pobres

16 Vida após os 60 É crescente número de idosos que buscam casas de acolhimento no DF ou que decidem encarar a vida sozinhos

20 Analfabetos como maioria Na Vila Guaíra, a 40km de Brasília, mais da metade dos chefes de família não sabem ler e escrever

36 Homens feministas Na contramão do machismo, homens assumem as bandeiras das mulheres, na busca pela igualdade social

44 Queremos ser pais Casais inférteis recorrem a hospital público do DF para realizar o sonho de ter filhos

48 Aborto provocado Estudo mostra que 20% das brasileiras com até 40 anos já optaram por interromper a gravidez

52 Isolados pelo silêncio Pessoas com autismo sofrem com falta de inclusão nas escolas. Famílias reclamam assistência do governo

56 Uma ponte como casa Famílias inteiras vivem sob os vãos de um elevado e, aos inúmeros problemas, soma-se o da falta de endereço

capa

REDE DE SONHOS

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EDITORIAL

ExpedienteCoordenação editorial e edição: José Marcelo dos Santos e Leila Herédia. Projeto Gráfico: Iara Rabelo e Suzana Guerra. Direção de arte: Luciana Lobato. Conselho editorial: Daniella Goulart, José Marcelo dos Santos e Leila Herédia. Coordenação do curso de jornalismo: Daniella Goulart. Direção geral do Iesb: Eda Coutinho Machado. Tiragem: 1.000 exemplares. Redação: (61) 3445-4577. Repórteres e fotógrafos do quinto semestre de jornalismo: Albacyntia Rodrigues, Bruno Ribeiro, Caio César, Caroline Cintra, Dandara Santos, Everson Araújo, Guilherme de Carvalho, Isabel Mega, Lílian Couto, Luis Filipe Rodrigues, Suelaine Anjos e Viviane Carvalho.

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H istór ias. O jornal ista aprende e v ive, todos os dias, com elas. No dia-a- dia da prof issão é comum se deparar com tra-jetór ias dignas de f i lmes e c láss icos da l i teratura . A di ferença é que, no jornal is -mo, os dramas, as a legr ias e os enredos não são f ic t íc ios. Com a Redemoinho não foi d issemelhante. Nossos jovens repór-teres desaf iaram a s i mesmos para bus-car fatos e personagens que pudessem oferecer a você, le i tor, doses de real ida-des mais próximas do que se imagina.

Os personagens da v ida real retra-tados nesta quinta edição convivem, diar iamente, com desaf ios, temores, ex-pec tat ivas e sonhos. Mulheres div ididas pelo t ráf ico de drogas e a busca pela sobrevivência . Pela distância entre os que f icaram em uma terra longínqua e os que escolheram trocar de pátr ia para conquistar opor tunidades. São famí l ias que conseguem sustentar dez pessoas com apenas um salár io mínimo; que co -memoram a fe l ic idade de uma vida nova, poss ibi l i tada pela doação anônima de óvulos e espermatozoides. Pessoas que convivem com o isolamento e o descaso com o aut ismo; e que fazem de pontes a sua morada.

Mais que isso. São homens e mulhe -res que enfrentam o preconceito para se -guir uma fé, sem precisar abdicar de uma or ientação sexual ; que desaf iam os laços com o passado e as rugas t raz idas pelos anos contados pela cer t idão; que, d iante de uma gravidez indesejada, escolhem o abor to. Pessoas que se esforçam, umas pelas outras, para que os di re i tos sejam iguais . Na Redemoinho número 5 , até Bras í l ia v i rou personagem. Lugares que antes movimentavam a capita l do país , hoje estão abandonados. Enquanto o tempo ruía estes espaços, a c idade mu-dou. Surgiram, no entorno, áreas i r regu-lares, como a Vi la Guaíra , conhecida pelo anal fabet ismo e pela v iolência , proble -mas também mostrados nesta edição.

Deu trabalho? Muito. Valeu a pena? Com cer teza! Esse semestre fo i capaz de mater ia l izar o sent ido de ser jornal ista . Mesmo que engat inhando, a inda. A ex-per iência e o prazer de do contato com esta real idade são indescr i t íveis . E , ago -ra , o convite está fe i to. Doze repor tagens esperam por você. Leia , anal ise, saboreie e cr i t ique sem moderação. As histór ias desses personagens da v ida real também são suas.

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O SENEGAlêS Faye Modoo chegou no aniversário de 50 anos de Brasília e não consegue se imaginar mais longe daqui: “O meu sonho é virar um grande empresário em Brasília”

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BRASílIA, TERRA DE SONHOS

Apesar de não ser um grande pólo de atração, a cidade recebe pessoas com uma causa em

comum: a busca por oportunidades

Isabel MEga

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“Vim porque pensava que a capital seria melhor para se

viver, que teria mais empregos e pessoas com dinheiro”

Faye Modoo, senegalês

ROSITA MIlESI, diretora do IMDH, entre os haitianos Jeannise Joseph, Filius Eucard e Magloire Donatien

Eles vêm de todos os can-tos do planeta. São asiáti-cos, africanos, europeus e americanos movidos pelo indiscutível direito de migrar e pela esperança de uma vida melhor. No

Brasil, encontram uma chance de tra-balhar por um recomeço e de sonhar com empregos e oportunidades de estudo. Assim como acontece com as capitais de outros países, Brasí-lia carrega o status de ter boas chances a oferecer a quem vem de fora. Quando chegam aqui, no entanto, a realidade nem sempre é fácil. Muitas vezes, o caminho é o subemprego ou ocupações com remuneração de até um salário mí-nimo. Ao mesmo tempo em que é um atrativo, o alto poder aquisiti-vo da cidade representa também uma das maiores dificuldades. “Vim porque pensava que a capital seria melhor para se viver, que teria mais empregos e pessoas com dinhei-ro”, conta o senegalês Faye Modoo, 43 anos, que chegou aqui em 2010 sem saber para onde ir e sem conhecer ninguém.

Atraído pela qualidade de vida e pelo poder de consumo da popula-

ção candanga, Faye desembarcou e pediu a um taxista que lhe levasse à pousada mais barata que conhecesse. Assim chegou ao Hotel Bandeirante, em Taguatinga, no aniversário de 50 anos de Brasília. “Não fiquei lá nem um mês porque era muito caro e meu dinheiro estava acabando. Peguei um empréstimo com um amigo e conse-gui alugar uma quitinete”, conta. O endividamento também foi o cami-nho encontrado pela família da hai-

tiana Jeannise Joseph, 50 anos, para chegar ao Brasil. Com um país arrasa-do por um terremoto em 2010, não restou outra opção a não ser procurar trabalho e abrigo em outra pátria. “No Haiti não tem trabalho, não tem negó-cio, não tem dinheiro”, explica. “Lá, eu não tinha como refazer minha vida. Só pensava no que iria fazer. Se o abalo

não tivesse acontecido, acho que não estaria aqui hoje”, sentencia. Mãe de quatro filhos com idade entre 23 e 27 anos, ela está no Brasil há dez meses e aguarda visto permanente para tentar trazer a família.

Apesar de não poder ser conside-rada um pólo de imigrações no Bra-sil, a capital foi a morada escolhida em 2012 por mais de 17 mil pesso-as que vieram legalmente de outros países. Em 2010, eram pouco mais

de dez mil. São Paulo é o estado com mais estrangeiros: 770 mil. No total, segundo o Ministério da Justiça, o Brasil tem um milhão e meio de imigrantes. Estes núme-ros, no entanto, não contemplam aqueles que estão aqui de forma irregular. Na capital, é ainda mais difícil prever a real quantidade de estrangeiros.

A tradição diplomática de Brasília ajuda a mascarar a situação daqueles que vêm em busca de so-brevivência e um trabalho mais digno. As estatísticas oficiais se referem, prin-cipalmente, àqueles que vêm traba-lhar em embaixadas ou que perten-cem a organizações internacionais. Na grande maioria das vezes, pessoas que têm boas condições financeiras.

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O quE SãO REDES MigRatóRiaS

Laços interpessoais que ligam migrantes, migrantes anteriores e não-migrantes nas áreas de origem e de destino, por meio de vínculos de parentesco, ami-zade e conterraneidade. Devido à existência dessas conexões, é comum que o migrante oriente seu deslocamento para onde ele já conheça alguém. Esse primeiro apoio é fundamental para que a migração seja bem sucedida.

Fonte: CSEM

A FEIRA do Paraguai, local de trabalho de Wang Juan, é conhecida pelas bancas de estrangeiros. Libaneses

e chineses são as nacionalidades mais frequentes

“O Brasil não tem dados concretos a respeito dos ‘indocumentados’. Não há muitos registros que nos permitam cruzar informações para supor este número. Por percepções, estimo que haja entre 150 e 200 mil estrangeiros em situação irregular no Brasil”, afir-ma a advogada e diretora do Institu-to de Migrações e Direitos Humanos (IMDH), Rosita Milesi, missionária sca-labriana, que presta assistência social e jurídica aos imigrantes em situação de vulnerabilidade social que chegam a Brasília.

Apenas no Varjão, onde fica a sede do IMDH, vivem quase 20 hai-tianos. “Somando os filhos menores de idade da metade deles, são 19 crianças e adolescentes que estão lá (no Haiti), dependendo do dinheiro que vem do trabalho em Brasília”, as-segura Rosita. No Haiti, pouco mais de 50% da população vivem apenas com um dólar por dia. Quem vem tentar a vida aqui, nem sempre é bem visto pelos que ficam. No país do vodu, é comum que as pessoas lancem algum mal àqueles que foram embora. “Es-ses dias conversei com um haitiano que estava muito triste porque o filho de 9 anos estava no hospital. Para ele, alguém tinha feito algo contra a crian-ça, porque ele veio para cá, e o mal só poderia ser desfeito se ele voltasse para lá”, conta Rosita.

uma mala e nada mais

É difícil para um haitiano rece-ber mais do que um salário mínimo no Brasil. Eles chegam aqui apenas com uma mala de roupas. Em Brasí-lia, costumam dividir quitinetes com aluguéis de 450 reais com outras três pessoas, nem sempre parentes. “O haitiano é capaz de dormir sem co-mer, caso não tenha o que comer. É diferente do brasileiro. Se ele volta para casa, ele se fecha”, explica Rosi-ta. Por meio do IMDH, eles recebem doações de colchões, comida, panelas e roupas.

Sobrinho de Jeannise, Filius Eu-card, 31 anos, chegou a Brasília em outubro. Também recorreu a um em-préstimo, que vai ser pago durante anos, para conseguir o dinheiro para a passagem. “Os haitianos gastam muito para entrar. Só conseguimos vir dessa forma e ainda falta muito para pagar”, comenta. Com o dinheiro

que conseguem no Brasil, eles têm que se dividir para se manter aqui, pagar o empréstimo e ajudar os fa-miliares que ficaram. É comum que venham apenas os homens e que as mulheres e crianças fiquem por lá à espera da ajuda financeira. “O terre-moto quebrou toda a nossa casa no Haiti e nós ainda não conseguimos reconstruí-la”, conta.

Para o pesquisador do Centro Scalabriano de Estudos Migratórios (CSEM), Roberto Marinucci, três as-pectos são fundamentais para ex-plicar a vinda de imigrantes para o Brasil: a crise nos tradicionais pólos de atração, a questão demográfica e o crescimento da economia brasi-leira. “Aqueles que antes iam para a Europa e os Estados Unidos, agora estão vindo para cá por causa da crise

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DificulDaDES?Levantamento feito pelo Centro Scalabriano de Estudos Migratórios com 95 imigrantes ouviu paraguaios, uruguaios, bolivianos e chilenos que moram em Brasília, Foz do Iguaçu, Campo Grande, Corumbá, Porto Alegre e São Paulo. Entre os maiores problemas enfrentados no Brasil estão:

Para vir trabalhar

80%: documentação para entrar legalmente no país; 60%: falta de recursos financeiros; 55,7%: deixar os costumes, adaptar-se aos novos; 47,3%: saudade

No trabalho

79%: exploração no ambiente de trabalho/ discriminação; 68,4%: insegurança por estar irregular no país e desconfiança (interesse ou amizade)

Vida cotidiana

69,4%: discriminação, insegurança, medo (vizinhaça, trabalho, direitos); 67,3% : dificuldade de relacionamento com brasileiros (adaptação costumes); 48,4%: idioma

É um problema muito grave

84,2%: falta de informações sobre os próprios direitos; 72,6%: discriminação e exploração por parte de compatriotas; 69,4%: dificuldade de reconhecer o trabalho no Brasil em termos de previdência social, de trabalhar com carteira assinada e de exercício da liberdade de sindicalização.

Fonte: CSEM

“Brasília não pode ser considerada uma cidade de grandes oportunidades de

trabalho” Rosita Milesi, do IMDH

O MESTRANDO Lewis Neyo está no Brasil há três meses e, quando terminar o curso, quer fazer investimentos aqui para poder ganhar dinheiro e começar a vida na África

mundial. O Brasil precisa de mão-de-obra jovem e com o envelhecimento da população e a redução da natalida-de, a solução é favorecer o ingresso de estrangeiros”, esclarece. O pesquisa-dor destaca, ainda, que muitas vezes a chamada rede migratória é decisiva para a escolha da cidade. Ou seja, os imigrantes definem o destino a partir da existência de conhecidos ou de parentes em determinada região.

A rede migratória foi decisiva para a família da chinesa Wang Juan, uma feirante de 32 anos, que há 11 anos adotou o Brasil. O marido veio primei-ro, para visitar um tio, que já estava aqui há mais de 40 anos. “Ele gostou da cidade e quis fi-car. Alguns me-ses depois, eu vim também. Mudamos para muitos lugares em busca de aluguel mais barato. Tudo aqui era e ainda é caro”, conta. Os dois já eram vendedo-res na China e, quando vieram para cá, quiseram continuar na área. “Trabalha-mos muito na rua. Era tudo muito difí-cil. Faltava dinheiro para comer e para comprar o leite das crianças. A gente só usava fralda de pano, pois não tí-nhamos como pagar pelas descartá-veis.” A situação da família se agravou quando eles foram pegos pela fiscali-zação e não puderam mais vender as mercadorias, grande parte de roupas e meias. Passado o sufoco, montaram uma banca na Feira do Paraguai, de onde, atualmente, tiram o sustento das três crianças.

Moradia é primeira barreira

Em qualquer que seja a situação, Rosita Milesi acredita que a moradia é uma das principais dificuldades para os migrantes que chegam a Brasília. “Se estamos falando daqueles que vêm em busca de sobrevivência e de trabalho, a moradia é um dos grandes problemas. O único albergue público da cidade é muito precário e os ho-téis e pousadas são caros. Além dis-so, o custo de vida na cidade é muito elevado e as opções de trabalho são poucas”, analisa.

À difi-culdade da moradia, so-ma-se a de trabalho. O desafio para arrumar em-prego em um local desconheci-

do está presente em quase todas as histórias de pessoas que vêm tentar a vida no Distrito Federal. A região não é de forte industrialização, o que diminui consideravelmente as vagas mais ocupadas por estrangeiros no país. “Apesar da fama provocada pelo imaginário idealizado de capital, Bra-sília não pode ser considerada uma cidade de grandes oportunidades de trabalho”, explica a diretora do IMDH. Nos últimos anos, no entanto, este quadro está mudando. As constru-ções de hotéis e estádios para a Copa do Mundo têm aberto vagas no mer-cado para estrangeiros.

Muitas vezes, a porta de entra-da para essas pessoas é o norte do

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“Trabalhei por oito meses na empresa e na hora que pedi

demissão, não ganhei mais nada"

Filius Eucard, haitiano

PARA A estudante de economia Marta Vara, morar em Brasília é mais barato do que na Espanha. “O custo de vida é um atrativo para ficar aqui”

país. O haitiano Magloire Donatien, 27 anos, trabalha há dez meses em uma empresa de construção, em Taguatin-ga. Ele conta que veio em busca de um emprego melhor. Antes daqui, Magloire estava em Porto Velho (RO). “Lá, rapidamente eu consegui um em-prego, mas o patrão era muito ruim para pagar. Fiquei um mês e 15 dias sem receber nada e decidi vir embora”, lembra. Assim como o senegalês Faye, o haitiano veio para a capital com a cara e a coragem, sem conhecer ninguém. “Quando cheguei aqui, fui para um alber-gue, mas era muito ruim. Com o dinheiro que eu tinha, aluguei um quarto por 500 reais, em Taguatinga. Era muito caro para mim e eu precisava arranjar um trabalho o mais rápido possível”, expli-ca Magloire. Ele conta que, ao passear, viu uma empresa de construção. “Pedi ajuda e alguns dias depois já fui traba-lhar”, relembra, satisfeito.

Faye teve uma sorte parecida. Ele estava se mantendo em Brasília com a

ajuda da família, que ficou no Senegal, e quase foi embora da cidade porque não conseguia trabalho. O destino lhe retribuiu a boa vontade algum tempo depois que chegou. Ele foi a uma pa-daria tomar um café e, pelo celular, se comunicava em francês com um amigo. Quando desligou o aparelho, uma moça foi falar com ele no mesmo idioma. “Nós começamos a conversar e eu lhe contei a minha história. Ela se

chamava Ana Paula e disse que pode-ria me arranjar um emprego em um supermercado”, conta. Dois anos se passaram e ele continua na atividade.

Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, só no primeiro semestre de 2012, foram concedidos mais de 32

mil autorizações para estrangeiros. O sonho dos haitianos Jeannise Joseph e Filius Eucard é fazer parte desta es-tatística em Brasília. Os dois estavam em Manaus e decidiram vir para cá em busca de oportunidades melho-res. “Lá, o salário era bem menor, por isso decidimos vir”, conta Jeannise. Ela trabalhava em um restaurante, enquanto ele era funcionário de uma fábrica de papel. “Trabalhei por oito

meses na empresa e na hora que pedi demissão, não ga-nhei mais nada. Antes disso, eu recebia um salário mínimo por mês, mas o pagamento vinha sempre atrasado”, recla-ma Filius. Hoje, eles dizem que aceitam qualquer trabalho.

O que há por trás das vindas

Para o pesquisador Roberto Marinucci, a facilidade de acesso ao Brasil tem atraído pessoas de todos os continentes, inclusive a Europa. Com a crise, países como a Espanha, antes uma das principais portas para estrangeiros, agora têm um saldo de emigração maior do que de imigra-ção. Desde o início da crise econômi-ca mundial, o número de europeus que vêm procurar trabalho no Brasil aumentou em mais de 24%. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, mais de 260 autorizações de trabalho permanente já foram dadas a euro-peus só no primeiro trimestre deste ano. Para a Polícia Federal, os espa-nhóis são a quarta nacionalidade mais presente no Distrito Federal, só per-dendo para americanos, portugueses e japoneses.

A estudante espanhola Marta Vara, 23 anos, veio terminar a gradua-ção em economia na Universidade de Brasília e não descarta a possibilidade de ficar por aqui depois. “As coisas estão muito difíceis no meu país. As expectativas de trabalho são ruins. Acho que o Brasil pode me oferecer muitas oportunidades quando eu me formar”, afirma. Os amigos de Marta que ficaram na Espanha não estão conseguindo emprego, pois a ofer-ta de trabalho é muito menor que a demanda. “Conheço companheiros que têm duas carreiras universitárias terminadas, mas que ainda assim não estão exercendo uma atividade. Se conseguem alguma coisa, é algo mui-

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O SONHO de Chidera Umenyiliora é se tornar um grande engenheiro elétrico.

“Quero que a Nigéria possa ter 24 horas por dia de energia, como é aqui”

to pior do que eles poderiam fazer. São salários bem mais baixos”, alerta.

A futura economista conta que hoje os espanhóis destinam bem me-nos dinheiro para a diversão e o tem-po livre. “Eles assistem menos filmes e vão menos aos estádios de futebol porque está tudo muito caro”, rela-ta. O país todo sofre com a redução dos salários e aumento dos impos-tos. Marta acredita que no futuro não haverá uma classe média expressiva. “Vamos ter gente muito rica e muito pobre, sem um meio-termo”, afirma. Segundo o Ministério da Justiça, a comunidade espanhola é a quinta maior no Brasil, em relação ao número de lega-lizados. Até maio deste ano, 80 mil espanhóis estavam morando aqui, 20 mil a mais do que em 2009.

Mas não é só a crise lá fora que atrai imigrantes para terras candan-gas. “As pessoas se deslocam em busca de locais que pensam que podem ter melhores oportunidades. Brasília atrai por ser a capital do país e por abrigar a sede de importantes órgãos do governo”, afirma a direto-ra do IMDH. Ela explica que muitos vêm para cá porque também pensam que será mais fácil resolver problemas com a documentação. O alto poder aquisitivo, a presença das embaixa-das e as chamadas redes migratórias também são fatores que provocam a vinda de imigrantes.

Assim como Marta, muitos estu-dantes vêm para Brasília para estudar na UnB. “A universidade é um grande pólo de atração em Brasília. Há muitos acordos universitários para facilitar a vinda de alunos”, explica o pesquisa-dor Roberto Marinucci. Os amigos ni-gerianos Chidera Umenyiliora, 23 anos, e Lewis Neyo, 30 anos, acreditam que estudar em outro país é um diferencial. “A UnB é de graça e é uma das me-lhores faculdades da América do Sul. No meu país, tem mais oportunidades quem estudou fora”, diz Chidera, que estuda engenharia elétrica. Já Lewis

veio para fazer mestrado na área de criminalidade, segurança e política. “Escolhi estudar no Brasil porque vocês falam um idioma diferente do meu (o inglês). No futuro, isso vai me ajudar no mercado de trabalho”, afirma.

Sonhos, cultura e amor pelo país

Diferentes nacionalidades, cultu-ras e personalidades, mas um ponto em comum: o amor pela terra que os acolheu. A saudade de casa e da família que ficou existe, mas é com-pensada pela recepção calorosa de grande parte dos brasileiros. “Acho que uma das coisas mais lindas que

o Brasil tem é a sua gente. As pessoas são incríveis. Sou a intercambista mais contente daqui!”, relata a espanhola Marta Vara. Já o haitiano Filius define a receptividade brasileira com apenas um gesto: um abraço. “Minha terra é minha terra, mas gosto muito daqui”, completa Jeannise.

A chinesa Wang Juan já tem até o jeitinho brasileiro de vender. Dona de uma banca de óculos na Feira do Paraguai, ela dá opiniões sobre qual acessório combina mais com cada freguês. “A cultura da gente é toda misturada. Sinto falta de lá, mas gos-

to daqui. Lá eu não poderia ter três filhos”, diz. Ela afir-ma que as crianças gostam mais do Brasil do que da China. “São brasileiros mes-mo”. Wang só reclama da falta de vontade para traba-

lhar de alguns brasileiros. Ela diz que na China, quem tem trabalho, tem vida melhor. “Aqui eles não percebem muito isso. Para um país crescer, todo mundo tem que levantar e abrir o co-ração para trabalhar”, afirma.

Quando se fala de sonhos, os africanos Chidera Umenyiliora, Lewis Neyo e Faye Modoo são exemplos. Os dois primeiros querem voltar e ajudar a Nigéria. “O sistema elétrico do meu país precisa ser mudado. A luz acaba várias vezes por dia. O meu sonho é acabar com isso”, conta o futuro en-genheiro elétrico, Chidera. Já Lewis quer atuar no combate à corrupção.

“Vou voltar e ajudar meu país”, promete. Os desejos de Faye, por outro lado, vão ser realizados em Brasília mesmo. Empacotador em um supermercado e comerciante autô-nomo nas horas livres, Faye acredita que aqui é o melhor lugar para realizar seu sonho: abrir uma loja e ser um grande empresário do comércio. “Não sei nem explicar o quanto gosto daqui. É em Brasília que eu quero correr atrás da minha vida, dos meus sonhos”, afirma com um grande sorriso no rosto.

Alto poder aquisitivo, presença de embaixadas e redes migratórias

contribuem para a vinda de imigrantes

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Direito e legislaçãoA falta de registro oficial faz com que muitos estran-

geiros fiquem invisíveis ao Poder Público. Segundo o Mi-nistério da Justiça, apenas os estrangeiros regulares têm os mesmos direitos dos cidadãos brasileiros. Quem está aqui de forma ilegal não pode ter acesso a direitos com saúde, educação, trabalho com carteira assinada e previdência so-cial. Rosita Milesi destaca a necessidade de dados concretos a respeito dos chamados indocumentados. Países como Ja-pão e Austrália, comenta ela, têm registros confiáveis sobre o número de estrangeiros irregulares. “Os dados interferem na opinião pública. Superestimá-los leva a população para um lado que não tem sentido. As pessoas começam a achar que a entrada de estrangeiros é incontrolável e que vai faltar emprego para quem é daqui. Subestimar, por outro lado, é não levar em conta uma realidade que precisa ser olhada com atenção e ajuda a manter essas pessoas à mar-gem da proteção social”, alerta.

Para se ter uma ideia, em 2009 foi realizada uma anistia que permitiu que os estrangeiros regularizassem a situação no Brasil. O senegalês Faye Modoo foi uma das 45 mil pes-soas que se registraram. “Os amigos que vieram comigo não tiveram paciência para tirar os documentos e voltaram. Agora, eu posso ficar aqui de forma segura até 2020”, relata.

Para os especialistas, parte da explicação para a vinda de estrangeiros está no fato de o Brasil ter uma fronteira ampla e pouco fiscalizada, o que facilita a entrada dos imi-grantes ilegais. “Entrar aqui se torna algo muito simples”, explica o pesquisador do CSEM, Roberto Marinucci. Nos últimos anos, os acordos do Mercosul têm facilitado a en-trada de bolivianos, paraguaios e peruanos. “A imigração limítrofe é muito forte”, complementa Marinucci.

Segundo o Ministério da Justiça, nos últimos anos estas foram as comunidades que mais cresceram no Brasil. De 2009 para cá, por exemplo, o número de bolivianos aumen-tou de 35 mil para mais de 90 mil. A falta de uma política rígida de deportações é um dos fatores que contribuem para a permanência no Brasil. “O governo brasileiro só de-

porta quem comete um crime”, afirma a Rosita Milesi. Para a advogada, o país convive com contradições. Ao mesmo tempo em que acolhe estas pessoas, não ratifica acordos importantes como a convenção nacional sobre a proteção dos direitos dos trabalhadores migrantes. O país convive também com o Estatuto do Estrangeiro, de 1980, época em que o regime militar ainda ditava as ordens e via o imigrante como uma ameaça à segurança nacional. “É uma lei totalmente superada e retrógrada, que não contempla a questão dos direitos humanos”, afirma o pesquisador Roberto Marinucci. Em 2004, o governo começou a analisar propostas de uma reformulação do estatuto, mas nada saiu do papel.

O que há de mais atual são resoluções do Conselho Nacional de Imigração (CNIG) e do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). Facilidades de visto para quem tem união estável com brasileiros, inclusive do mesmo sexo, e a obtenção de residência permanente para quem foi vítima de tráfico de pessoas são alguns exemplos de avanços proporcionados pelos dois órgãos.

Solução alternativa para haitianos

Após o terremoto de 2010, a estimativa é que mais de sete mil haitianos entraram no Brasil, principalmente por Brasileia (AC) e Tabatinga (AM). Hoje, nestas cidades, é quase impossível encontrá-los. Houve um grande movimento de organizações sociais em busca de empresas que pudessem oferecer empregos aos recém-chegados. Companhias do Brasil inteiro contrataram haitianos e os levaram para todos os cantos de país. Eles entraram aqui como solicitantes de refúgio. A solução para abrigar a nova população veio de resoluções do CNIG e do Conare. “Apesar deles não reunirem os requisitos para serem refugiados, estes dois órgãos deram residência permanente aos haitianos por motivos humanitá-rios”, explica Rosita. Já foram concedidas mais de quatro mil vistos regulares aos hatianos e 5.600 carteiras de trabalho, mas nem metade delas são assinadas.

EStRaNgEiROS NO BRaSil1,54 milhão de regularizados

Maiores comunidades: Portugueses (331.162), Japoneses (132.658), Italianos (97.986), Bolivianos (91.124) e Espanhóis (82.577)

Maiores aumentos absolutos (2009/2012): Bolivianos: 35 mil para 91.124; Paraguaios: 11 mil para 27.319; Peruanos: 6 mil para 28.698

Estados com maior número de estrangeiros: São Paulo: 771.889, Rio de Janeiro: 314.224, Paraná: 77.043. No Distrito Federal: entre 10 mil e 7 mil regulares

São 9.444 permanentes, 944 temporários, 40 refugiados, 8 fronteiriços, nenhum asilado e nenhum provisório. re

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PIRâMIDE DE MúlTIPlOS ExTREMOS

De segunda a sexta-feira, os Rocha* têm uma rotina de pelo menos dez horas de trabalho por dia. Cláudio*, 37 anos, é servidor público

e dá aula em um curso preparatório para concursos. Sílvia*, 39 anos, é advogada e professora universitária. Apesar da correria, os dois não abrem mão de fazer as refeições juntos. Uma situação bem diferente da chefe da família Ferreira. "Dona Fátima tem 56 anos e uma jornada dura. É emprega-da doméstica e começa no trabalho às 7 horas. Nunca consegue almoçar com os dois filhos e os seis netos, ta-refa que fica sob a responsabilidade da nora. Por trás da rotina de trabalho igualmente pesada está a disparidade de renda vivida por essas duas famí-lias e tantas outras do Distrito Fede-ral. Enquanto os Rocha* têm renda conjunta de R$ 40 mil mensais para bancar as despesas das cinco pessoas da casa, a família Ferreira conta com apenas um salário mínimo para ga-rantir o sustento do dobro de pessoas.

Segundo a pesquisa Situação So-cial nos Estados, de 2009, divulgada este ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Distrito Federal é a capital com a maior renda

e o mais alto PIB per capita do país. Em 2001, o valor era de R$ 939,80; já em 2009 subiu para R$ 1.326,20. Um crescimento de 41%. Porém, ainda assim o DF apresenta grandes dife-renças socioeconômicas entre as regi-ões administrativas e, de acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad), a renda domiciliar no Lago Sul, de R$ 18.950,96, supera em 15 vezes a da Estrutural, que fica em R$ 1.358,96. “Aqui no DF, além do setor de serviços ser 93% do PIB, os salários são muito elevados. Por isso, também, apresenta alto número de desemprego e, assim, maior desigual-dade entre as classes”, explica o pro-fessor de finanças públicas da UnB, Roberto Piscitelli.

Renda mais baixa é minoria

Sobreviver com um salário míni-mo faz parte da vida de, pelo menos, 43 mil famílias do DF, segundo o Insti-tuto Brasileiro de Geografia e Estatísti-ca (IBGE). Ao contrário de outras capi-tais, a renda mais baixa por aqui é mi-noria. A chamada classe A, de acordo com a mesma classificação do IBGE, soma 95 mil famílias, todas com renda superior a 20 salários mínimos. Mais que o dobro daquelas que vivem com R$ 622 por mês. “A gente tenta, né?!”, comenta a zeladora Vera Lúcia Souza

Trindade, 43 anos, ao observar que tem a obrigação de fazer com que cada centavo seja usado para bancar as contas de um mês inteiro. “Vamos esticando até o último dia, mas quan-do não sobra nada, bate uma tristeza”, diz. Para Fátima Ferreira, a realidade é semelhante. Na casa com seis crian-ças e três adultos desempregados, o jantar é feito quase sempre com as sobras do almoço. Quando não tem, recorrem ao pão. “É mais barato e en-che a barriga”, explica.

No outro extremo, para a família Rocha* muitas vezes o problema é falta de tempo. Eles saem para jan-tar pelo menos uma vez por sema-na. “No nosso dia a dia, a comida é quase sempre bem simples“, comenta Cláudio. Moradores do Lago Sul, eles têm filhos de 8 e 3 anos. As crianças estudam em uma escola particular, cuja mensalidade, para cada um, é de R$ 1,5 mil. Uma amiga de longa data completa a família. “Aqui nun-ca faltou nada, porém, é preciso ter uma atenção redobrada na criação de nossos filhos, para que eles não cresçam achando que a vida é fácil”, diz Cláudio.

Em Ceilândia, Vera parou de es-tudar no 2º ano do ensino médio. As dificuldades financeiras já existiam nesta época, e ela tomou a decisão

EM GUARIROBA, casa em que Vera mora de favor necessita de urgentes reformas

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Na capital reconhecida pela desigualdade, sobreviver com R$ 622 é desafio para 43 mil famílias; enquanto outras 95 mil vivem com renda superior a 20 mínimos

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de deixar os dois filhos com a mãe para trabalhar. “Esta foi a única solu-ção que encontrei. Não tinha dinheiro para pagar uma empregada que cui-dasse bem dos meus filhos e precisa-va trabalhar para sustentá-los”, relata. É o que faz desde então. Hoje, os fi-lhos, com 21 e 18 anos, ainda moram com a avó, na Cidade Ocidental (GO).

contas e mais contas

No Areal, na casa de Fátima Ferreira, as despesas com água, luz e telefone consomem R$ 300 dos R$ 622 que ela recebe. Com o supermercado, o problema se agrava. A conta nunca sai por menos de R$ 800. Como o valor ultrapassa a renda da família, ela recorre à compre-ensão do dono do mercado, que sempre vende fiado. “É uma dívida que nunca aca-ba”, avalia. Os Ferreira moram na casa em que Fátima conseguiu do gover-no em 1999, por meio do programa Morar Bem. Na época, pagou por um ano 12 prestações de R$ 20 e, para receber a casa, desembolsou outros R$ 500 em apenas uma parcela. Se fosse hoje, comenta, seria impossível garantir a moradia. “Com este salário que eu ganho, ia continuar sonhando em ter a minha casa própria”, afirma.

Já para Vera, ter casa própria ain-da é um sonho. Ela vive de favor na casa do irmão em Guariroba. Com o emprego de zeladora, recebe apenas um salário mínimo para pagar as dí-vidas e ajudar nas despesas de onde mora. Os R$ 622 são divididos entre a conta de água, luz, supermercado, 18 parcelas de R$ 300 de um empréstimo que pegou para pagar o cartão de crédito, além da mesada de R$ 150 da mãe e outros R$ 70 para a filha.

O endividamento é comum tanto da família Trindade quanto na Fer-

reira. Fátima está com o nome no Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) por dever R$ 6 mil a lojas de roupas e móveis. Ela “emprestou” o nome a amigos que fizeram compras, não pa-garam e sumiram. “É uma dívida para a vida toda. Não vai dar para pagar nunca. Não tenho nem esperança”, queixa-se. Os Rocha* não têm dívi-das, mas as despesas são altas. Ape-nas com a conta de telefone são R$

800. Os dois carros consomem, em média, R$ 1,2 mil em combustíveis. O supermercado é feito uma vez ao mês e mantimentos e carne saem por cerca de R$ 1,8 mil, sem contar ver-duras, legumes e frutas. Às despesas de manutenção, somam-se, ainda, as com empregada doméstica, faxinei-ra, passadeira, piscineiro e jardineiro, que totalizam R$ 3.160.

Assim como Cláudio e Sílvia, a fa-mília Mendes não faz controle orça-mentário e integra a chamada classe A do DF. A professora aposentada

Maria Mendes de Freitas, 52 anos, e o marido, o contador Nelton Joaquim Borges, 46 anos, moram em Taguatin-ga, com a filha Maria Clara, 14 anos. A renda do casal é de R$ 20 mil. A família é pe-quena, mas as despesas da casa nem tanto. As compras

do mês saem, em média, por R$ 2 mil. Contas de água, luz e telefone custam mais R$ 600, e o combustível para abastecer os dois carros fica em torno de R$ 800, sem contar outras despesas (vide quadro).

Enquanto Vera e Fátima colocam todos os gastos no papel e fazem as contas para o dinheiro durar o mês todo, a única coisa que Maria se preo-cupa é com as anotações para a lista de

Para o professor Roberto Piscitelli, grande número de servidores

públicos e alto desemprego acentuam desigualdade no DF

NO lAGO Sul, os Rocha* vivem em casa ampla, com vários cômodos, piscina e churrasqueira

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COM RENDA mensal de R$ 622, Fátima é a única que trabalha na casa para sustentar dez pessoas

OS OlIVEIRA têm um rotina intensa de trabalho durante a semana e priorizam educação das filhas, entre elas, a caçula, Regina

compras, de modo a evitar qualquer esquecimento por parte do marido, responsável por ir ao mercado. “Não sei exatamente quanto ele gasta com as despesas”, diz. Também em Tagua-tinga, o casal de funcionários públicos Léo Lima de Medeiros, 46 anos, e Va-léria Regina Lima, 44 anos, tem renda de R$ 17 mil para garantir o sustento de três filhas e uma neta. Além do sa-lário, eles têm renda extra do aluguel de duas casas, que totaliza R$ 1 mil.

Educação e saúde

Educação sempre foi prioridade na casa dos Oliveira, por isso, inves-tem o máximo nos estudos das filhas. Escola e curso de inglês para a mais nova, Regina, 15 anos, somados, saem por R$ 1.480. A filha do meio, Juliana, 18 anos, estuda em casa para con-cursos, já que busca seguir o mesmo caminho dos pais. Camila, 23 anos, faz faculdade de direito, cuja men-salidade é R$ 920. “O estudo é o que faz evoluir, quanto mais investimento fizermos, mais retorno vamos ter”, diz Valéria. Na casa dos Mendes e dos Ro-cha* não é muito diferente. Os gastos com educação também consomem boa parte do orçamento familiar, com mensalidades escolares que variam entre R$ 750 e R$ 1,5 mil.

Enquanto os filhos dessas famílias estudam em colégios da rede privada e fazem cursos complementares, os netos de dona Fátima frequentam es-colas públicas. Muitas vezes, comenta

ela, acabam desmotivados. “O conhe-cimento que recebem é muito impor-tante para a vida”, diz. Na lista de so-nhos dela ainda está ter um plano de saúde. Este ano, ela precisou de um tratamento médico após machucar a perna, porém, teve de esperar quatro meses até ser atendida em um posto de saúde. A doméstica se queixou da demora. “Sem convênio é difícil de fazer acompanhamento”, afirma.

convênios

O convênio, aliás, é outro item que pesa no orçamento domésti-co. Para a família Rocha, a suposta tranquilidade do plano de saúde sai por R$ 1,2 mil por mês. O filho mais novo é alérgico, o que provoca gas-tos extras com alimentação especial e pediatra particular. Os Mendes e os Oliveira também têm convênio médico e odontológico. Já para os Trindade e os Ferreira, consultas mar-cadas e personalizadas não passam de um sonho.

Depender do atendimento mé-dico do governo não é fácil e a de-mora para uma consulta é a maior reclamação dos que dependem da saúde pública. “Tenho problema de coluna e desde 2010 meu nome está na fila de espera do posto de saúde”, reclama Fátima. Em outubro, Vera co-meçou um tratamento dentário, que ficou em R$ 490, divididos em cinco parcelas de R$ 98. “Ficou bem aper-tado”, conta.

lazer

Os fins de semana das famílias Ro-cha*, Oliveira e Mendes são agitados. Para as filhas de Valéria e Maria é um momento para sair com as amigas ou com o namorado. Cinema, teatro, sho-ws e boates estão na lista de ativida-des. Para os casais, bailes e bares são os preferidos. Em média, são gastos R$ 80 para cada membro da família. Na família Rocha*, com duas crian-ças, a diversão quase sempre inclui shopping, cinema e teatro, com custo médio de R$ 300 por saída.

Essa realidade está distante de Fátima e Vera. “Vontade de sair eu te-nho, mas sei que o dinheiro que vou gastar em uma noite vai fazer falta o mês inteiro”, comenta Vera. O cami-nho é, então, se reunir com amigos e visitar parentes em outras cidades satélites da capital. Cinemas e shows nem pensar. “Não sobra dinheiro para este tipo de passeio”, comenta Fátima.

As famílias Oliveira e Mendes via-jam pelo menos duas vezes ao ano com destinos dentro e fora do Brasil. Nas férias, costumam ir à praia, hotéis-fazenda próximos a Brasília e Caldas Novas. Em 2011, Valéria fez um tour pela Europa. Por 16 dias visitou Israel, Itália e Jerusalém ao custo de R$ 13 mil. Os Rocha* viajam com frequência maior. A cada dois meses vão a Goiâ-nia visitar a mãe de Sílvia. Nas férias, optam por escapadas mais longas. Em 2010, foram para Orlando e Mia-mi por 17 dias, passeio que saiu por

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OS OlIVEIRA têm um rotina intensa de trabalho durante a semana e priorizam educação das filhas, entre elas, a caçula, Regina

R$ 30 mil. Ano passado, passaram 20 dias em João Pessoa e a viagem ficou em R$ 20 mil. Este ano, já foram a Sal-vador e Recife. Já Maria, só este ano, foi três vezes aos EUA fazer compras. “Adoro viajar e sempre que vou para Miami compro muitas coisas”, declara.

Para as famílias Trindade e Fer-reira, viajar é mais sonho do que re-alidade. Minas Gerais e Goiás foram os únicos lugares visitados por elas, já que têm famílias nestes estados. Nunca foram a Caldas Novas, onde desejam conhecer as piscinas de água quente. “Tenho vontade de ir a Caldas Novas e levar todo mundo, mas com esse tanto de menino, pesa o bolso”, diz Fátima. Vera e Fátima são sonhadoras. Elas desejam viver com o mínimo de conforto e conhecer lu-gares comuns para qualquer pessoa que possui a renda superior a delas. O maior dos sonhos de Vera é ter um es-paço só para ela: uma casa com dois quartos, piso de cerâmica e forro no teto, cozinha com armários planeja-dos, guarda-roupa com porta de cor-rer e cama box. Na garagem, gostaria de ter um Chevette. “Para eu ser feliz falta um lugar para mim. Se eu tivesse minha casa própria e meu carro na garagem estaria tudo perfeito”, conta ela. Fátima já tem a casa própria. Para ela o que falta é uma reforma. “E uma TV de plasma na estante”, completa. (*Nomes fictícios a pedido dos entre-vistados).

Na pONta DO lápiSRocha Mendes Oliveira Trindade Ferreira

Renda mensal 40 mil 20 mil 17 mil 622 622

Água 200 180 200 30 170

Luz 600 160 170 40 170

Telefone 800 200 230 30 70

Supermercado 2.050 2 mil 2 mil 200 800

Combustível 1,2 mil 800 830 - -

Escola 3,6 mil 950 2,7 mil - -

Saúde 3,4 mil 800 490 - -

Serviços domésticos

3.160 850 1,3 mil - -

Turismo e Lazer 7,2 mil 4 mil 3,8 mil 50 100

Outros 5,3 mil 2.680 3,2 mil 350 50

Dívidas - - - 98 500

NAS COMPRAS do mês, Vera compra apenas o básico e diz não sobrar dinheiro para nada

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A VIDA QUE COMEçA AOS 60Apesar de quase metade dos idosos da capital viverem em núclos familiares, é crescente o número dos que recorrem a casas de acolhimento ou que optam por morar sozinhos

luIs FIlIpe RODRiguES

Vó GERAlDA foi vítima de maus tratos e, hoje, vive no Lar Samaritanos de Águas Lindas de Goiás

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Aos 102 anos, Vó Ge-ralda já não anda. Falar sobre o passa-do, nem pensar. Ela prefere esquecer o período anterior ao Lar da Terceira Idade

Samaritanos, de Águas Lindas de Goi-ás, onde foi parar por conta de uma decisão judicial, em 2009. Depois de 15 dias no hospital, onde chegou com feridas e até larvas por todo corpo, foi transferida para a instituição de apoio. O estabelecimento oferece acompa-nhamento 24 horas por dia, além de tratamentos médicos. “Ela está lúcida e não precisa tomar remédio nenhum”, diz a tesoureira da instituição, Nazaré de Oliveira Alves. “Apesar de não andar mais, ela é a mais saudável daqui, mes-mo sendo a mais velha.”

Vó Geralda e os demais ido-sos do Lar Samaritanos fazem parte dos 12,1% dos brasileiros com mais de 60 anos. No Dis-trito Federal, esse percentual era de 7,7% em 2010, segundo a Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), que montou um perfil desse grupo. O número é crescente: em 2007, eles somavam 7,2%. A região que mais concentra essa parcela da população é o Lago Sul, com 20%. Em seguida, vem o Lago Norte (15,28%) e Brasília (13,93%). Na outra ponta, as regiões administrativas com menor número de idosos – SIA, Cidade Estrutural, Itapoã, Varjão e São Sebastião – sugerem que a longevidade é maior onde a qualida-

de de vida é melhor. De acordo com o levantamento da Codeplan, o que une esses dois aspectos – renda e qualida-de de vida - é o investimento feito em áreas como saúde, alimentação, edu-cação, segurança e, principalmente, acessibilidade.

A dona de casa Odersa Caetano, de 89 anos, mora na Asa Norte e é um exemplo de idosos com boa condição financeira. O filho mais velho trabalha na Presidência, em Angola. O caçula e os netos vivem em Brasília. “Além da minha aposentadoria, meu filho sem-pre ajuda lá da África, então eu não passo necessidade alguma”, revela. Ela morava sozinha, em Goiânia, até o ano passado, quando familiares a conven-ceram a vir para a capital federal. “Eu aceitei vir, mas quis continuar sozinha.

Eles se preocupam, claro, mas nunca aconteceu nada”, diz. Dona Odersa dispensou até a oferta de uma em-pregada para cuidar do apartamento. Ela mesma prefere fazer os serviços domésticos.

Ao contrário do que pode pare-cer, a vida em lares de idosos pode ser confortável, dependendo do poder aquisitivo das famílias. O Espaço Convi-vência, na Asa Sul, é um exemplo disso.

Por R$ 7,6 mil mensais, o idoso pode morar em um quarto individual e ter acesso a sala de jogos, atendimento médico, fisioterapia, biblioteca e salão de beleza. Alimentação e serviços de oxigênio, por exemplo, são cobrados à parte. “São 74 profissionais que tra-balham em turnos”, explica a gerente Fernanda Gonçalves. “Eles se dividem nos cuidados de 42 idosos residentes e outros 25 que somente passam o dia.”

A boa condição financeira é a única característica comum aos mo-radores do Espaço. As histórias de vida são bem diferentes. “Tem uma senho-ra que é polonesa e chamou mais a minha atenção. Ela fugiu duas vezes de guerras mundiais. Já teve que lar-gar tudo e ficar apenas com a roupa do corpo”, diz a gerente. “Temos aqui

senhores que foram ministros, procuradores. Cada um tem uma história interessante para contar”.

Mulheres são maioria

O Instituto de Pesquisa Eco-nômica Aplicada (Ipea) divulgou, em 2008, um estudo baseado nas principais características das

Instituições de Longa Permanência de Idosos (ILPIs) – como passaram a ser chamados os asilos, abrigos e casas de repouso, a partir de 2003. Apesar do tempo, a tendência ainda se mostra atual. As mulheres são maioria dos resi-dentes nestes locais. O fato é atribuído à longevidade delas. O levantamento também mostra que grande parte das instituições é filantrópica, ou seja, sem fins lucrativos.

O Lar da Terceira Idade Samarita-nos é uma das ILPIs que se mantém com trabalho voluntário e doações. Segundo a tesoureira Nazaré de Oli-veira, o espaço não recebe qualquer ajuda do governo. “As receitas vêm do benefício recebido por cada idoso, que é convertido totalmente para o próprio atendimento, além da cola-boração de doadores individuais e de algumas pessoas jurídicas”, explica. A maior parte dos benefícios é de um salário mínimo.

O ex-chacareiro Edivino Joaquim da Rocha, o “Seu Divino”, 69, está no Lar há pouco mais de 12 meses. Há dois anos, ele morava com a mulher e um filho, com deficiência intelectual, em Luziânia. O rapaz teria matado a mãe e acabou internado. Depois do

- Expectativa de vida:

Mulheres - 84 anos Homens - 80 ano.

- 13,27% não são alfabetizados. Paranoá, Itapoã e Varjão apresentam os piores índices

- Dos cerca de 200 mil idosos no DF, 69,77% são economicamente inativos.

- RendaRendimento médio do brasileiro entre 60 e 69 anos é de R$ 1.413,65

pERfil DO iDOSO NO DfNo DF, chega a R$ 3.829,94.

- Moradia

A maior parte da população repete o modelo brasileiro e vive em núcleos familiares.

Do total, 45,8%, partilham da companhia de esposa (no caso dos homens idosos), filhos (idosos e idosas) e muitas vezes netos, sendo, em grande parte, responsável pelos cuidados.

Fonte: Codeplan

A região que mais concentra idosos no DF é o Lago Sul,

seguido por Lago Norte e Brasília. Na outra ponta, SIA, Estrutural, Itapoã, Varjão e São Sebastião

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NúMEROS Da viOlêNcia

Atendimentos na Central de Apoio Judicial do Idoso: 835

Casos relacionados a algum tipo de violência: 336 (39% do total)

Violência Psicológica: 53%

Negligência: 33%

Violência Financeira: 30%

Violência Física: 27%

Violência Institucional: 7%

Abandono: 6%

Violência Sexual:1%

Autonegligência:1%

Só um tipo de violência: 181 (54%)

Dois tipos: 124 (37%)

Três tipos: 30 (9%)

Fonte: Codeplan

AlGUNS IDOSOS do Lar Samaritanos têm como única atividade de

lazer diária assistir televisão

O ESPAçO Convivência de Idosos, localizado na Asa Sul, abriga 42 idosos, além de receber outros 25 que apenas passam o dia lá

episódio, aos poucos, Divino foi per-dendo a vontade de viver. “Ele fugia, ficava andando pela rua, até que um dia foi atropelado”, conta Nazaré. O ex-chacareiro não toca no assunto. “O filho mais velho o acolheu durante a recuperação, mas ele acabou fugindo e foi atropelado uma segunda vez”. Depois do segundo acidente ele foi levado para o Lar, onde toma remé-dios antidepressivos e antipsicóticos.

agressões

A história de “Seu” Divino revela um outro tipo de situação enfrentada pelos idosos. A morte da mulher dele é mais um caso de violência entre os tantos registrados todos os dias con-tra as pessoas da terceira idade no Distrito Federal. A Central de Apoio Judicial do Idoso classifica os casos em oito tipos de agressões. A violên-cia psicológica liderou o ranking de atendimentos feitos pela Central em

2011. A região administrativa com maior número de reclamações foi Ceilândia, com 19% dos casos.

O professor emérito da Univer-sidade de Brasília (UnB) Vicente de Paula Faleiros, especialista em violên-cia contra o idoso, verificou que os casos de agressões variam também de acordo com o local onde as denún-cias foram feitas. “A violência financei-ra é mais denunciada no Ministério Público, a física é mais na polícia e a psicológica no Disque Idoso. O que a gente vê é uma diversidade de fon-tes”, explica.

As estatísticas da violência ainda são tímidas, segundo os especialis-tas, porque os casos de agressões são sufocados pelo medo. Muitos idosos, segundo Faleiros, têm receio de denunciar os agressores e perder a única ligação que têm com a famí-lia. “Eles também temem uma reação maior ainda”, explica. “A violência está

ligada a uma relação de confiança. O idoso não pensa que um filho fa-ria isso”. Mesmo que alguns tenham sido pais autoritários, comenta, eles não esperam um comportamento na mesma moeda.

O pesquisador revela que as mu-lheres são as principais vítimas de maus tratos. Os agressores, na maioria dos casos, são os próprios filhos. “Fa-tores como uso de drogas, transtorno de comportamento e a dependência

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excessiva dos pais aumentam as chan-ces de acontecer algum episódio vio-lento”, revela. Por isso, na avaliação do especialista, para que a relação seja mais saudável, é melhor que os filhos deixem a casa dos pais quando se tornam adultos. Aprender a viver por conta própria pode diminuir a chance de o lar sofrer com casos de violência intrafamiliar, segundo ele.

política públicas

A Política Nacional do Idoso (PNI) foi a primeira lei criada especifica-mente para assegurar os direitos das pessoas da terceira idade. Ela consiste em um conjunto de ações governa-mentais que tem por objetivo assegu-rar o exercício da cidadania, partindo do princípio de que o idoso deve ser atendido de maneira diferenciada, em cada necessidade. Além disso, ele não pode se discriminado, de qualquer forma. O próprio Estatuto do Idoso é apontado como um gran-de avanço na preocupação com essa parcela da socie-dade. Ele é considerado uma conquista da sociedade civil brasileira, pois cumpre com os objetivos de inserção so-cial, desde que foi aprovado, em 2003.

O Governo Federal aponta as po-líticas públicas para os idosos como prioridade. Elas envolvem obrigato-riamente as Instituições de Longa Permanência de Idosos. Conceitual-mente, as ILPIs são estabelecimentos para atendimento integral institucio-nal, destinados a pessoas com mais de 60 anos, dependentes ou não,

que não têm condições físicas para permanecer com a família. O objetivo das ILPIs é oferecer serviços médicos, psicológicos e terapêuticos. Todos os profissionais devem ter especializa-ção em gerontologia.

Há exemplos de instituições privadas e filantrópicas vistas como modelo no Distrito Federal. Além do Espaço Convivência, existem outros 17 estabelecimentos do tipo. Quin-ze funcionavam quando o Ipea fez o levantamento. Entre elas estão a Associação São Vicente de Paulo (Ta-guatinga), o Lar dos Velhinhos Maria Madalena (Núcleo Bandeirante), a Co-munidade Renovação, Esperança e Vida Nova – o Lar do Idoso de Planal-tina, o Lar dos Velhinhos Bezerra de Menezes e o São José (Sobradinho), e a Casa do Vovô Lar Cecília Ferraz de Andrade (Plano Piloto).

O Lar dos Velhinhos Bezerra de Menezes, por exemplo, é um lugar

que faz o idoso se sentir útil à socie-dade. Lá, existe uma oficina de papel artesanal e reaproveitamento de ma-teriais, onde são produzidos livros, flores decorativas e ímãs de geladeira.

idoso sim, dependente jamais

O mito de que apenas adultos jovens chefiam os lares é derrubado

pela funcionária pública aposenta-da Rosa de Lima Silva. Aos 78 anos, ela está entre os 15,56% de pessoas com mais de 60 anos que têm total autonomia em relação à vida financeira e pes-soal, segundo da-dos da Codeplan. Outro suposto padrão que é desmentido pelo estudo é a de que mulheres mais velhas não conseguem sustentar um lar sozinhas. O estudo também aponta que, além de serem maioria, as mulheres têm responsa-bilidade mais representativa na faixa acima de 70 anos. “Trabalhei muito para comprar meu apartamento, não vou sair daqui tão facilmente”, afirma. Ela nunca teve filhos e os familiares mais próximos moram no Maranhão.

Quando precisa, recorre aos amigos.

Rosa Silva não pode mais viver sozinha e conta com o auxílio de uma em-pregada. Devido à osteo-porose, diagnosticada há 18 anos, a aposentada não tem mais os movimentos

plenos das mãos e sente muitas do-res no corpo. “Eu tenho que tomar vários remédios e até para isso eu preciso de ajuda.” Ela deixa claro que prefere pagar salário maior para uma pessoa do que se mudar para uma instituição de idosos. “Eu posso ter poucas pessoas próximas, mas eu prefiro ter isso a ficar em um lugar fechado, esperando para morrer”, afirma.

Outra que prefere a indepen-dência é a jornalista aposentada Teresinha Machado Gomes, de 65 anos. “Eu tenho verdadeira aver-são a asilos”, afirma. “Minha mãe morreu há pouco tempo depois de muito tempo doente. Eu nunca deixei que ela fosse para um abri-go, e nem irei também”. Divorciada há 12 anos e sem filhos, ela mora em um apartamento na Asa Nor-te. Teresinha não tem carro e usa o transporte público para se deslocar pela cidade. “Ando de ônibus, sem dificuldades, para resolver meus problemas.”

AOS 78 anos, Rosa de Lima Silva depende de ajuda por problemas de saúde, mas se recusa a ir

para qualquer estabelecimento de repouso

Gerontologia: ciência que estuda

o processo de envelhecimento

em suas dimensões biológica,

psicológica e social.

"A violência financeira é mais denunciada no Ministério Público; a física, na polícia; e a psicológica no

Disque Idoso"Professor Vicente de Paula Faleiros

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UMA VIlA DE POUCAS lETRAS

O Brasil ainda está no vermelho quando o assunto é educação: o Censo de 2011 aponta quase 14 milhões de analfabetos e, na Vila Guaíra, a 40km

de Brasília, metade dos chefes de família não sabe ler e escrever

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No bairro Céu Azul, em Valparaíso de Goiás, a cerca de 40 km de Brasília, está localiza-da a Vila Guaíra. Uma área irregular, mar-cada pela violência,

que enfrenta outro grave problema: das 3.228 famílias que moram lá, mais da metade são sustentadas por che-fes de família analfabetos. De acordo com levantamento feito pela Asso-ciação Comunitária Amigos da Vila Guaíra, 70% dos homens com idade entre 37 e 59 anos não sabem ler e escrever. Já as mulheres avançam um pouco mais: 75% daquelas que têm entre 22 e 48 anos chegaram à 3ª ou 4ª série do ensino fundamental. A par-tir daí, abandonaram a sala de aula. Na opinião do professor da Universi-dade Federal do Pará Wagner Morei-ra, especialista em educação, a reali-dade reflete a situação de miséria e abandono vivido pelos moradores daquela região. “A esco-la não garante a sobrevi-vência imediata de uma população que careça de saúde, alimentação, moradia e segurança, que são fatores básicos para dignidade huma-na,” comenta.

O ajudante de pedreiro Antônio Arraes, 39 anos, oito filhos, conhece bem essa necessidade de sobrevivên-cia imediata. Ele nunca frequentou uma sala de aula. “Nunca pensei em estudar”, diz, de forma a cortar o as-sunto. A esposa, a dona de casa Ge-neva Rocha, 49, moradora da Vila há 10 anos, até pensa, mas não vê opor-tunidade. “Acho impossível. Quem vai cuidar dos meus filhos?”, questiona ela, que abandonou os estudos na 4ª

subempregos, pela falta de esco-laridade. “Por ter uma alimentação inadequada, muitas crianças apre-sentam problemas de saúde,” relata a diretora.

Para os alunos do ensino básico e fundamental, não existe qualquer es-cola na Vila Guaíra. Geograficamente, um muro divide a Vila do Céu Azul. Como esse muro é da Escola Muni-cipal Ulisses Guimarães, na prática, a comunidade a considera parte da Vila. A diretora da escola Cristiane Mala-quias conta que 80% dos alunos são de lá. “Uma grande parte das crianças tem dificuldade de aprendizagem e apresentam problemas, como a falta de disciplina.”

Vinte e sete professores ensinam os 1.080 alunos matriculados, sen-do que 860 têm entre 6 e 14 anos e estudam do 1º ao 5º ano do ensino fundamental, nos turnos matutino e

vespertino. Existem duas turmas de crianças com deficiência intelectual: são 28 alunos que contam com uma sala multifuncio-nal, dois computadores e jogos para o desenvolvi-mento. A merenda é ba-lanceada e nunca falta.

Somente no primeiro semestre, foram 11 desis-tências e cinco transferên-

cias, a pedido dos pais, por problemas relacionados às drogas. Um aluno da escola, com 14 anos, que cursava o 5º ano, morreu, em setembro, com seis tiros. A diretora conta que o cri-me ocorreu em um bairro próximo, chamado Morada Nobre. “Existe uma guerra velada entre a criança e o trafi-cante”, comenta Cristiane.

O que mais preocupa os professo-res da escola de Céu Azul é o envolvi-mento dos alunos com as drogas e a

série do ensino básico. Hoje, a renda da família se resume a cerca de mil reais, soma dos 800 reais, em média, recebidos por Antônio e dos 204 reais do Bolsa Família.

A realidade vivida pelo casal se repete com vários dos filhos. Dois desistiram de estudar. “Não importa o tempo que levar, quero ver todos formados”, sonha Geneva. Para Wag-ner Moreira, a esperança é um traço comum entre essas famílias. “Mesmo aqueles pais que não conseguem terminar os estudos por estarem cor-rendo atrás do sustento material, ge-ralmente procuram orientar os filhos para a escola”, comenta.

Educação infantil

A comunidade da Vila Guaíra con-ta com um Centro Municipal de Edu-cação Infantil que atende 215 crianças entre 1 e 5 anos no maternal e jardim.

Diretora da escola, Ana Maria Freire conta que, por meio de doações e da promoção de rifas e bazares, consegue realizar os projetos extraclasse, como a semana da criança, por exemplo.

Ana observa que as famílias são participativas, mas que existem pro-blemas sociais graves na comunidade. Além disso, diz, a maioria das mães não trabalha, tem muitos filhos, de-pende de benefícios do Governo e os maridos, por sua vez, só conseguem

SEGUNDO PESQUISA do IBGE, a Vila Guaíra é considerada assentamento irregular onde reside o maior número de pessoas no Centro-oeste

“A realidade aqui é difícil, a maioria das mães não trabalha e os pais só

conseguem subempregos pela falta de escolaridade”

Ana Maria Freire, diretora do Centro Municipal de Educação Infantil Semeando o Saber

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CRIANçAS DO 2º ano brincam de roda com a professora Laize Lima:

esperança de um futuro melhor

presença dos traficantes nos arredo-res. Uma docente, que preferiu não se identificar, diz que as próprias crian-ças levam o relato da violência em suas casas e no bairro para dentro da sala de aula. Ela destaca que devido à existência de familiares envolvidos com o tráfico de drogas, as crianças começam a ter contato com armas e passam ao uso de solventes, antes de partir para drogas como o crack.

Uma outra professora, que também teme ser iden-tificada, ressalta que casos de violência fazem parte do cotidiano dos alunos, todos do ensino fundamental. A diretora lembra que, em ou-tubro, seis meninos entre 8 e 14 anos invadiram a escola em um sábado, após terem roubado uma lata de tinner em uma loja pró-xima, e quebraram 150 janelas. Eles faziam parte de apenas duas famílias. A direção chamou os responsáveis e puniu as crianças e os adolescentes com medidas socioeducativas dentro da instituição.

Por causa da condição social da comunidade, as escolas reduziram a lista de material para um kit básico: caderno, lápis e borracha. Do 6º ao 9º ano, a população conta com qua-tro opções próximas, três delas mu-nicipais e uma estadual, onde 60% dos alunos são da Vila Guaíra. Existe uma escola em construção na Vila, mas de acordo com a coordenadora do censo escolar municipal de Val-paraíso, Maria Iza Almeida, não há previsão para ser entregue e ainda não foram definidas as séries a serem oferecidas.

Medo de chegar à escola

É à noite que muitos renovam as esperanças. Diariamente, 220 alunos vão para a Escola Municipal Ulisses Guimarães, onde participam da Edu-cação de Jovens e Adultos (EJA). O programa possibilita o retorno à sala de aula e a conclusão dos estudos em um menor espaço de tempo. O problema é que vários dos adultos

de Vila Guaíra têm medo de sair de casa quando o sol se põe. A dona de casa Renata da Silva, 22, mãe de dois filhos, um de 8 e outro de 3 anos, é uma delas. Ela parou de estudar na 5ª série. “Aqui na Vila eles deveriam saber que nós precisamos estudar durante o dia, que é quando é mais tranquilo e as crianças estão na esco-la”, afirma. O marido Jocélio Silva, 25, teve o mesmo destino ao chegar à 7ª série. Hoje, trabalha como gari.

O medo também é destacado pela dona de casa Adilza Divina de Almeida, 39, que reclama da falta de oportunidade profissional. “Quem tem estudo tem emprego, queria ser recepcionista e trabalhar em algum escritório.” A sensação de inseguran-ça é agravada pela falta de iluminação e pela distância das instituições de ensino. De acordo com Maria Iza, a Secretaria de Educação de Valparaíso

não tem qualquer projeto relacionado à educação dos adultos na Vila Guaíra.

Também dona de casa, Lucicléia Lima da Silva, 32, que parou de fre-quentar a escola na 6ª série, alega que a sensação de insegurança é do-minante, o que a impede de pensar em retomar os estudos. “Não gosto de deixar as crianças sozinhas, aqui é perigoso” O marido é analfabeto

e trabalha como pedreiro. Ela casou aos 14 anos e, um ano depois, teve o primeiro filho. Hoje, são cinco: a mais velha com 17, o mais novo com 2. Todos estudam.

jovens e adultos

Na Ulisses Guimarães, a diretora Cristiane Malaquias comenta que, neste semestre,

os alunos da EJA vão participar da elaboração de uma cartilha de cons-cientização ambiental, voltada para a realidade vivida pelos moradores da Vila Guaíra. Além dessa instituição, a Escola Municipal Antônio Bueno, a Es-cola Municipal Caic, A Escola Munici-pal Céu Azul e o Colégio Estadual Céu Azul, que ficam aproximadamente a 6 quilômetros da Vila Guaíra, também oferecem a EJA.

Aos 17 anos, Verônica Sousa é uma das alunas do período noturno da Céu Azul. Ela comenta que não tem medo de ir para escola porque sem-pre está acompanhada, mas antecipa que não pretende levar à frente os estudos. “Eu não vou fazer faculdade, eu quero trabalhar em uma loja de brinquedos”, afirma. Companheira da EJA na mesma escola, a dona de casa Amanda do Nascimento, 19, quer ser advogada. “Acho importante estudar.

“As drogas são um problema que assombra a comunidade.

Existe uma guerra velada entre a criança e o traficante”

Cristiane Malaquias, diretora da Escola Municipal Ulisses Guimarães

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VERôNICA SOUSA, 17, estuda à noite, se esforça para fazer o dever de casa,

mas não pretende fazer faculdade

AMANDA DO Nascimento, 19, conclui o ensino fundamental esse

ano e pretende fazer direito

Quero dar um futuro melhor para o meu filho”, destaca, referindo-se a Vi-tor, de 1 ano.

Medo e coragem são recorrentes nas histórias dos moradores da Vila Guaíra. Aos 58 anos, a catadora de latinhas de alumínio Raimunda No-nata Irene se orgulha de saber ler e escrever e exibe, vaidosa, o caderno. Aluna da 2ª série na Escola Munici-pal do Céu Azul, ela sobrevive com a venda do material reciclável. “Se eu conseguir terminar os estudos, quero fazer pedagogia para ensinar crian-ças. Eu tenho vocação e gosto muito.” Ela só faltou aula uma vez nesse ano, porque ficou doente.

Bolsa família como renda

Praticamente 90% das famílias da Vila Guaíra recebem o benefício do Bolsa Família. Com três filhos, Priscila Fernanda Cha-ves, 24, depen-de do repasse mensal de 160 reais. Dois dos filhos, o de 7 e o de 4 anos, já estão na escola. Ao engravidar, estava na 8ª sé-rie. Parou de es-tudar. Hoje, sonha em voltar. “Ter es-tudo é tudo. É ter um futuro melhor”.

Segundo Lucicléia, a renda de 198 reais do Bolsa Família ajuda a equi-librar os gastos da casa. “Fico triste porque nunca trabalhei, queria ser secretária, tenho muita vontade, mas sem estudo como é que faz?”. Na co-munidade da Vila Guaíra a maioria das mulheres não trabalha e o motivo mais recorrente para o abandono dos estudos é a gravidez precoce. Para o especialista em educação, esse é um ciclo recorrente. “Retomar os estudos em qualquer idade requer o estabele-cimento de prioridades,” analisa.

problemas diversos

A população conta com um cen-tro comunitário, um centro de educa-ção infantil, um posto de saúde, uma quadra poliesportiva e uma escola. O líder comunitário Edmilson Souza, 45, lidera 15 voluntários na Associação Amigos da Vila Guaíra e acompanha de perto os problemas da comuni-dade há mais de 22 anos. Como a

área ainda é irregular, os moradores precisam se deslocar até a cidade de Valparaíso, a aproximadamente 8km, para buscar suas correspondências no Centro de distribuição dos Correios, já que a Vila não possui código de ende-reçamento postal.

A população paga pela luz, mas não pela água fornecida pela Sane-ago. Mas constantemente os mora-dores ficam na mão. A coleta de lixo funciona bem. Edmilson acha um exa-gero a Vila ter mais de 70 botequins e nada de comércio. “Não temos o bási-co, como uma padaria, uma farmácia ou um mercado.”

O centro que presta assistência social aos moradores, por meio da doação de cestas básicas, roupas, remédios e brinquedos, também dis-põe de uma mini biblioteca para con-sulta e um computador com acesso

à internet. Essa estrutura fun-ciona na casa do Edmilson, que mora com a esposa e dois filhos adoles-centes. “Aqui já foi muito peri-goso. Hoje, já melhorou bas-

tante.” Ele afirma que depois que as vielas da Guaíra foram asfaltadas, as viaturas da Polícia Militar passaram a ter acesso à Vila, o que trouxe mais segurança à população.

Apesar das situações relatadas pelos moradores e professores, a as-sessora técnica da Unidade de Gestão e Planejamento da administração de Valparaíso, Suzana Aráujo, diz que a comunidade viveu grandes transfor-mações nos últimos seis anos. “O local era totalmente desprovido de infra-estrutura, hoje mais de 300 famílias foram retiradas das áreas de risco”.

Suzana se refere à chamada Nova Guaíra. Em 2006, por meio do progra-ma Projetos Prioritários de Investimen-tos Favelas, o Ministério das Cidades e o poder público municipal iniciaram a regularização fundiária e o reassenta-mento das famílias em áreas de risco, na encosta do córrego Santa Maria. A população da Nova Guaíra conta com um posto de saúde, um Centro de Re-ferência de Assistência Social e duas quadras poliesportivas.

“Fico triste porque nunca trabalhei, queria ser

secretária, mas sem estudo como é que faz?”

Lucicléia Lima da Silva, dona de casa

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Apesar de ter apenas meio século de existência, parte do patrimônio histórico do Distrito Federal foi relegada ao esquecimento e se deteriora, sem nenhum tipo de manutenção

DanDara SaNtOS

lUGARES ESQUECIDOS

Planejada para ser cida-de-monumento, há 52 anos Brasília impressio-na o mundo; seja pelas ruas e avenidas que dão a ela o formato de aero-nave, seja pela arquite-

tura moderna e simétrica, emoldu-rada pelo verde e espelhos d´água. Mas em apenas meio século, pontos importantes para a preservação da memória da capital e suas cidades satélites já sofrem com o descaso, o abandono e a falta de conservação, resultado da falha de um Estado que, durante o processo de modernização e crescimento, engoliu algumas pági-

nas da história. Alvos da saudade dos moradores e à sombra da ousada pro-posta urbanística de Oscar Niemeyer, os lugares esquecidos de Brasília são hoje pedaços de um estilo de vida, da história de pessoas e das característi-cas de uma cidade que, aos poucos, deixa de existir.

Foi ao som dos versos: “o homem sério que contava dinheiro, parou. O faroleiro que contava vantagem, parou. A namorada que contava as estrelas, parou. Parou para ver, ouvir e dar passagem”, da música “A ban-da”, de Chico Buarque, que em 1968 Brasília deu boas vindas ao que seria uma das molas do desenvolvimento

da capital: a estação de trem Bernar-do Sayão. Símbolo de modernidade para a época, o lugar era o ponto de chegada e partida do luxuoso Trem Bandeirante, criado pela extinta Com-panhia Mogiana, para conduzir com segurança e conforto os interessados em conhecer a capital do país.

Na época a Bernardo Sayão era a referência para todo o país, por conta do requinte. Os trens tinham ar condicionado. As acomodações eram em aço inoxidável e as poltro-nas, reclináveis, o que dava um ar de sofisticação à viagem entre Brasília e São Paulo. Hoje, a estação é um re-trato do abandono e da saudade de

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uma Brasília que, aos poucos, perde a memória. “O trem era sempre lo-tado”, lembra o aposentado Geraldo Rodrigues, 73, que, nos tempos de juventude, sentava nos bancos de ci-mento da Bernardo Sayão, com um copo de café com leite nas mãos, à espera do sino que anunciava a proxi-midade da locomotiva. Para ele, voltar ao local é reviver toda a história da estação. É quando se torna impossível não sentir saudade. “Hoje em dia, as pessoas querem chegar depressa, não ligam mais para o caminho. Mas a vis-ta que eu tive nos trens da Bernardo

Sayão, no início dos anos 70, é algo que vou levar para a vida inteira”, con-ta Geraldo.

No auge, a estação recebia, em média, dez trens por dia, cada um

com cerca de 500 passageiros. Es-quecida a partir da década de 90 por uma capital que deu prioridade ao transporte rodoviário, a Bernardo

Sayão foi transformada em um cartão postal tomado por pichações, grafi-tes e propagandas. O lixo se acumu-lou ao longo dos anos de completo abandono e o mato cresceu em meio aos buracos no cimento. O espaço foi tomado por famílias que ocupa-ram irregularmente as instalações. Cachorros, plantas, carros e uma fiação improvisada, por onde chega energia elétrica por ligação direta nos postes, denunciam a situação de moradia na Bernardo Sayão.

Em visita à estação para recobrar as velhas memórias, Geraldo aponta para um lugar igualmente abando-nado, além dos trilhos. O cargueiro da estação, dominado pela ferrugem, tem parte do telhado carregada pelo vento. Os cadeados antigos, ao lado do mato, dos grafites e das marcas de fogo nas proximidades, compõem um cenário de filmes de terror. “Até pouco tempo atrás esse lugar ainda estava inteiro. Hoje em dia, os prédios são construídos em um piscar de olhos, mas a destruição, por outro lado, vem com a mesma facilidade e rapidez”, lamenta Geraldo, ao caminhar pelo que restou dos trilhos.

A extinta Rodoferroviária de Bra-sília também deixa saudade nos mo-radores quando o assunto são as via-gens, sejam elas de trem ou pelas ro-dovias interestaduais. Planejado por Lúcio Costa, o prédio era um símbolo para a época, mas com a expansão da capital, acabou sendo substituído. “As pessoas costumam dizer que as construções grandiosas e bonitas são a cara de Brasília, mas tudo depende de quem está vendo”, diz a aposen-tada Terezinha das Graças, 63, que frequentou o lugar durante os anos 70, época em que pegou um ônibus para São Paulo e teve a chance de vol-tar para Brasília sobre os trilhos que ligam os dois lugares. “A rodoferrovi-

ária, com aquele clima popular, o barulho, os ambulantes de comida e aquela correria, tam-bém foi uma parte da história de Brasília. A Brasília dos que não tinham muito dinhei-

ro, a Brasília de quem não podia pegar um avião, a Brasília dos apressados e a Brasília das cidades satélites. A Brasília do povo”, analisa a aposentada.

“A vista que eu tive nos trens da Bernardo Sayão, no início dos anos 70, é algo que

vou levar para a vida inteiraGeraldo Rodrigues, aposentado

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Inaugurado em 1982, o Terminal Rodoferroviário de Brasília chegou a receber cerca de 21 mil pessoas por dia, segundo as estatísticas de 2007. Hoje, o prédio localizado na Via Epia, antigo lugar do Ae-roporto de Vera Cruz, é usa-do para outros fins, como o abrigo dos órgãos vincula-dos ao governo. Os vagões ainda estão lá, abandona-dos. Assim como na estação, grafi-tes e pichações tentam esconder a ferrugem e dão um pouco de vida ao ambiente arruinado. “É um descaso muito grande. Essas coisas deveriam ser cultivadas, preservadas e cresce-rem junto com Brasília, e não serem abandonadas e substituídas ao longo dos anos”, reclama Terezinha.

O abandono dos parques

Em uma época em que o discur-so da preservação ambiental está na moda, parques e espaços verdes do Distrito Federal também sofrem com o descaso e o abandono. Um exem-plo é o Parque Três Meninas, inaugu-rado quatro anos após a fundação de Samambaia. Atualmente administra-do pelo Instituto Brasília Ambiental (Ibram), com outros 61 parques, a an-tiga chácara, onde o ex-proprietário

construiu três casas de boneca durante os anos 1960, foi desapropriada pelo Governo do Distrito Federal, uma his-tória que começa em meados da déca-

da de 80. Na época, parte das terras foi loteada para ampliação da área urbana da cidade de Samambaia e o restante recebeu diferentes destinações, como o abrigo do Projeto Casa Cultura, uma escola, biblioteca e até um posto de saúde, para tratamentos alternativos. Mas para Sérgio Monroe, 50, morador de Samambaia há uma década, o Par-que Três Meninas é mais que isso: é um legado ambiental, histórico e cultural.

Analista ambiental do Jardim Bo-tânico de Brasília (JBB), Sérgio é um dos idealizadores do Movimento de Revitalização do Parque Três Meninas (MRP3M), que por meio da iniciativa voluntária promove atividades de re-construção e conservação do espaço. “Nós criamos atividades dentro do parque, como o plantio, e chamamos a imprensa”, conta Sérgio. O objeti-vo, além de chamar a atenção para

o abandono do lugar, é questionar os gestores acerca das promessas de revitalização. “O movimento foca não apenas nos projetos voltados para

a questão ambiental, mas também para a área de lazer, como a construção de uma ci-clovia no interior do parque”, diz o analista ambiental. “As atividades de lazer atraem as pessoas e o movimento no

parque é uma das formas de impelir as invasões que ameaçam tomar o espaço”, explica Sérgio.

Segundo o fiscal do parque, um dos analistas do Ibram, o público do Três Meninas nessa época do ano se resume aos moradores de Samam-baia que procuram os pés de manga e às pessoas que fazem uso do espaço para fazer uso drogas e demais prá-ticas ilegais. Mas o parque está con-templado na lista do “Brasília, Cidade Parque”, desenvolvido pela Secretaria de Meio Ambiente, que visa a con-servação e revitalização de mais de 68 áreas verdes do Distrito Federal. Os custos da reconstrução se tornam possíveis para o GDF por conta do dé-bito que as empresas assumem com o Estado por causar danos à natureza, ficando responsáveis por arcar com uma parcela do valor total da obra.

“O Parque Três Meninas é um legado ambiental, histórico e cultural”

Sérgio Monroe, analista ambiental

PARA GERAlDO Rodrigues, voltar à estação Bernardo Sayão é reviver

parte da história de Brasília

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O Parque Gatumé, também em Samambaia, mostra os mesmos si-nais de abandono. Os 148 mil metros quadrados, esquecidos pelo governo, atraem usuários de drogas, bandidos e se tornou alvo de invasões. Também administrado pelo Ibram, o Parque Gatuné representa hoje um motivo de desencanto para os moradores de Samambaia, que veem o abandono e o esquecimento atingir dois de seus parques, e a inércia do governo diante do problema.

as praias de Brasília

Os portões fechados, as grades enferrujadas e o lixo que se acumula pelo local nem de longe fazem lembrar o que já foi a piscina de ondas do Parque Sara Kubitschek. Durante o tempo em que funcionou, a cada 45 minutos uma sirene soava, saída das proximidades do estacionamento sete, no coração do parque. O som era música para cerca de 1.500 ouvidos e espantava as crianças da lanchonete, onde se saboreava um inconfundível pastel. Nos fins de semana mais agitados, o número de visitantes podia chegar a nove mil e as mesas, dispostas no

interior do clube e do gramado, onde uma sequência de toalhas denuncia-vam as sessões de bronzeamento, também eram logo esvaziadas. A razão era sempre a mesma: o acio-namento do aparelho que criava as ondas artificiais, point dos brasilien-ses na década de 80, na piscina mais famosa do Distrito Federal.

A profissional liberal Nalva de Fátima, 44, se emociona ao falar do

abandono da piscina de ondas. Lem-bra dos verões do início dos anos 80, principalmente de 1982, quando grá-vida do primeiro filho, aproveitava a adolescência no local. “Como o di-nheiro naquele tempo era curto, nós juntávamos todo o pessoal da rua, cada um com um lanche de casa, e íamos a pé do Guará até o Parque da cidade”, lembra. O lugar era cheio e, segundo Nalva, recebia moradores das mais variadas cidades satélites.

Pessoas de todas as idades e classes sociais. “O clube em si era um lugar simples, com apenas uma lanchonete, uma piscina grande e um motor que fazia as ondas. E ainda assim, o lugar era um ponto de encontro único, onde fiz muitos amigos”, completa.

Acompanhada das irmãs mais ve-lhas, a dona de casa Cristina Silva, 34, conta que algumas das melhores lem-branças da infância foram na piscina

de ondas. De mochila nas costas e alguns trocados para o ônibus, Cristina descia nas proximidades do parque Ana Lídia, onde cami-nhava até o estacionamento sete. As memórias remetem ao ano de 1986, quando os fins de semana da dona de casa eram passados

no parque da cidade, ao som de uma característica lambada e dos risos fá-ceis da infância. “Eu tinha 8 anos e na-quela época a Piscina de Ondas estava no auge. Ela era a cara do brasiliense. A praia que nós nunca tivemos”, conta Cristina. “Hoje, os clubes que têm por aqui são os que precisam se associar ou pagar caro para entrar, mas na pis-cina de ondas não era assim. Os gastos eram muito pequenos e cabiam no or-çamento de todo mundo”, lembra.

“A Piscina de Ondas era a cara do brasiliense. A praia que nós

nunca tivemos”Cristina Silva, dona de casa

DEGRADAçãO ATINGE prédios com traços arrojados e compromete a jovem memória do DF

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assistir filmes em sessões improvisa-das de cinema. “Nós íamos às mati nês para dançar as músicas do Barão Vermelho e, como cinema naquela época era um luxo para poucos, tam-bém assistíamos filmes pelos telões, onde se passava até Sessão da Tarde”, conta ela.

Hoje, o Clube dos Servidores é um ponto esquecido entre os centros de lazer do Setor de Clubes do Lago, visitado apenas por morcegos e curio-sos. Os mais de 15 anos de abandono são visíveis no espaço deteriorado, onde infiltrações destroem o teto e a grama ultrapassa o piso de concreto. Teia de aranha, vidros e azulejos que-brados, somados ao lixo e às picha-ções, compõem um quadro que, 20 anos antes, segundo Léia, era inexis-tente. “O Clube dos Servidores foi um dos lugares mais bonitos de Brasília”, lembra. “Eu e meus irmãos pegáva-mos um ônibus para a Rodoviária e de lá, íamos direto para o clube, levando pães com mortadela na mochila”, con-ta Léia, aos risos.

Hoje, a administração do Clube dos Servidores está dividida. De acor-do com a Advocacia Geral da União (AGU), que detém parte do clube des-de 2009, uma reforma foi realizada, mas a revitalização, ainda é um plano futuro e sem previsão de acontecer. A Universidade de Brasília (UnB), que detém parte do prédio principal, cui-da da vigilância e da limpeza de todo o prédio principal, enquanto a outra parte do clube, no que cabe à área de lazer, é responsável pelo Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário (Sindjus). Juntos, os administradores argumentam que a revitalização do espaço exige uma reforma que, por

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Ao revisitar a Piscina de Ondas, 25 anos depois, Cristina se choca com a situação de abandono do clube. Ao lado do lugar que abrigava o pesque-pague e o pedalinho, atrações igual-mente famosas no parque durante os anos 80 e 90, uma construção aparente-mente simplória, com mu-ros baixos e uma cerca gas-ta, exibe os maus tratos do tempo. Uma negligência, critica Cristina. “É doloroso ver como está hoje e pensar que, enquanto pra mim a piscina é tão importante e nostálgica, para o meu filho e a geração dele será apenas um depósito de lixo”, reclama.

Segundo o administrador do Par-que da Cidade, Paulo Dubois, existe um projeto de revitalização do espa-ço. O trabalho poderá ser feito pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap), mas não há previsão de quando isso deverá ocorrer. Mesmo se a revitalização for feita, segundo ele, dificilmente a es-trutura original será mantida. Dubois alega que a Piscina de Ondas não se encaixa nem nos padrões exigidos pela Fiscalização Sanitária e que por causa dos custos de manutenção ela também não caberia no orçamento do GDF. “O que as pessoas não per-cebem é que o projeto original da piscina não é mais atrativo. Para con-seguir revitalizar a área precisamos

redimensioná-la”, explica. A iniciativa requer uma autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e de uma aprova-ção tanto do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico (PPCub) como do Plano de Uso e Ocupação do Solo do Parque da Cidade, que já está na Câmara Legislativa.

Mas a Piscina de Ondas não é o único clube abandonado no interior da capital. Situado às margens do Lago Paranoá, o Clube dos Servido-res, um dos mais belos de Brasília até meados dos anos 90, coleciona me-mórias. O salão de festas em tábua corrida, o ancoradouro para embar-cações com deck, quadras esportivas e a piscina com pontes marcaram a juventude de milhares de brasilienses. Pessoas que, como a juíza de futebol Léia Santos, 51, iam ao clube até mes-mo para, além das festas e matinês,

CASAS DE bonecas do parque das meninas foram construídas nos anos

60 e estão tomadas por pichações

CONCHA ACúSTICA já foi espaço privilegiado de shows à margem do Lago Paranoá

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enquanto, não cabe no orçamento. Antigo responsável pela administra-ção do lugar, o Sindjus conta já ter feito eventos na entrada do clube, com o intuito de angariar fundos para a reconstrução, mas a quantia arrecadada não passou de R$ 8 mil, montante simbólico perto dos custos que uma reforma exigiria

O Centro Administrativo, Viven-cial e Esportivo do Guará (Cave) tam-bém é alvo de reclamação. A piscina vazia e abandonada chama a atenção de quem passa. O espaço deveria abri-gar o Clube Unidade de Vizinhança, que como muitas obras obsoletas de Brasília, nunca foi utilizado para a fina-lidade original. Os banheiros públicos e churrasqueiras estão sem condições de uso e o desleixo da administração também inutilizou a piscina, que está completamente destruída. O espaço do Clube Vizinhança existe há mais de 30 anos e hoje a única função é servir como abrigo provisório para órgãos como o Instituto Candango de Solida-riedade (ICS), Junta Militar e a Gerência de Desenvolvimento Social.

Outras ruínas

Brasília ainda abriga uma série de outros pontos, espalhados pela cidade. Em estado de abandono e esquecimento não apenas pelos governantes como também pelos moradores da capital, a Capela Nie-meyer, localizada na Ermida Dom Bosco, não recebe visita de fieis. Ne-nhum evento religioso é realizado lá. Mais uma entre outras três cons-truções semelhantes do arquiteto, a capela, pequena em tamanho e rica nos detalhes característicos de Oscar Niemeyer, como as curvas e as retas que se misturam, contrasta tanto a modernidade como o desleixo. Ali, não muito longe da Ermida Dom Bosco, a Concha Acústica de Brasí-lia, antigo espaço privilegiado que recebia eventos e shows, também deixa à mostra a falta de manuten-ção. Com grades enferrujadas e uma grama que hoje cresce por cima do antigo palco de concreto, o lugar se estende, à beira do lago, em comple-to estado de deserção.

Enquanto os artistas, produtores e o público brasiliense se queixam da falta de um espaço para a realização de shows, a Concha Acústica, anfite-

atro ao ar livre, se deteriora. Segundo a Secretaria da Cultura, as obras de reconstrução do espaço, capaz de re-ceber cerca de 10 mil pessoas, não en-tram no orçamento anual destinado ao órgão, uma vez que lugares de si-tuação mais emergente, como o Cine Brasília e o Catetinho, são prioridade. Enquanto isso, o lugar deixa sauda-de. “A Concha era bem frequentada e organizada, mesmo tendo entrada franca”, lembra a estudante Elen Ta-váres, que já foi em shows do Belo, Raça Negra, Mitiê do Brasil e Natirruts. Hoje, o local é frequentado apenas pelo vigilante que cuida para que o espaço não seja invadido.

O Planetário de Brasília é outro espaço turístico abandonado no DF. Inaugurado em 1974 para exercer tanto uma função turística quanto pedagógica, o local parou de fun-cionar 22 anos depois, quando, sem manutenção, começou a acumular mofo e infiltrações. Em 2005, o GDF iniciou os projetos para a reativação do Planetário e as obras, com prazo previsto para maio de 2011, ainda não foram finalizadas. O estado de inércia prejudica não apenas o po-tencial turístico da capital, mas o en-sino das escolas, que nos tempos de funcionamento do planetário, cria-vam passeios educativos ao lugar. O estudante universitário Roberto Alves, 25, visitou o planetário com a escola em meados de 1995 e relata ter se encantado com o que viu. “Ti-nha um corredor escuro, com astros iluminados. Lembro até hoje”, conta o estudante. “O abandono prejudica uma boa parte da população, pes-soas que não vão ter a mesma opor-tunidade que eu tive, de conhecer o lugar. Se houvesse mais investimen-to, as crianças talvez sonhassem em ser astronautas em vez de jogadores de futebol”, completa.

O Pólo de Cinema de Sobradi-nho, o Centro Islâmico do Brasil e o cemitério de carros do Detran tam-bém são pontos turísticos em com-pleto abandono. locais que precisam de socorro das autoridades. A repor-tagem tentou entrar em contato com o Governo do Distrito Federal para saber quais providências serão toma-das em relação a cada ponto abando-nado do DF, mas até o fechamento desta edição, não foi respondida.

PISCINA DE Ondas foi um dos points de Brasília nos anos 80

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ENTRE O DESEjO E O PECADOConciliar religião e homossexualidade é um desafio enfrentado por muitos brasileiros, mas há igrejas voltadas ao público gay

bruno BuciS RiBEiRO

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Cecília Souto* só cho-rava enquanto a mãe gritava com a bíblia apontada para o céu. “Ela dizia que eu era uma traidora, que es-tava tomada pelo ‘coi-

sa-ruim’”, lembra a moça. O “pecado” dela foi se apaixonar por uma menina da igreja e descobrir ali a homosse-xualidade. Já se passaram três anos e desde então Cecília vive em conflito entre a religião e os relacionamentos. O caso mostra que a liberdade sexual ainda não atingiu alguns segmentos mais conservadores da sociedade, como a maioria das religiões, por exemplo. Situação que se contrasta com a realidade. Uma pesquisa feita pela Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo entre os frequentado-res da Parada Gay apontou que 30% dos homossexuais revelam publica-mente a condição antes dos 15 anos. E as igrejas não estão preparadas para lidar com estas pessoas, segundo o teólogo e padre ca-tólico James Alison, que se autodeclara homossexual.

O próprio Ja-mes Alison é um caso peculiar. Ao se declarar gay ele contraria uma reco-mendação do papa. "Há uma pres-são muito grande. O Vaticano nos aconselha a não nos assumirmos", denuncia. "Jovens com tendências homossexuais só serão admitidos nos seminários se se tratar de um problema transitório, que deve ser claramente superado, pelo menos três anos antes da Ordenação" de-termina uma encíclica papal de 2005. O padre, porém, se mantém na fé e, apesar de se declarar gay, garante manter o voto do celibato. Alison diz que é exatamente essa falta de habi-lidade das igrejas e o excesso de con-servadorismo delas que está provo-cando o esvaziamento dos templos. "O preconceito interno é uma das principais causas para o abandono da igreja no mundo", reclama.

Segundo o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Es-tatística (IBGE), nos últimos dez anos

PASTORA HOMOSSExUAl celebra culto. O símbolo da sua igreja é a cruz

enlaçada na bandeira do movimento gay

três milhões de brasileiros abando-naram a religião. Mas, na contramão do tradicionalismo, começam a surgir congregações com o objetivo de abri-gar os homoafetivos, rejeitados por outras doutrinas. São as chamadas igrejas gay-friendly (termo utilizado para instituições que são abertas ao público gay, sem serem exclusivas, como é o caso de algumas igrejas).

Ainda assim, ser homossexual re-ligioso, na maioria dos casos, é viver em conflito. Muitos resistem a aban-donar a fé por não imaginarem uma vida sem Deus. "Eu jamais conseguiria viver sem minha fé", diz Kamila Silva*. O equilíbrio entre a religião e os de-sejos, no entanto, não é tão fácil de atingir. “Já orei muito a Deus pedindo para que ele me mudasse. Pedia para que não deixasse que eu fosse gay”, conta Rafael Lima*.

O padre James Alisson diz que já passou por esses conflitos. Foi isso

que o inspirou a escrever uma carta aberta aos jovens católicos gays. O te-ólogo aponta que o preconceito dentro da igreja costuma acontecer justa-mente nos Grupos Jovens. "São grupos reduzidos e muito próximos dos líde-res religiosos, por

isso estão em maior evidência. Além de reunirem pessoas que ainda estão em uma frágil busca por sua sexuali-dade", conta.

A católica Cecília Souto fazia par-te de um destes grupos, quando se apaixonou por Suzana, uma amiga da igreja. “Eu não entendia como algo tão puro em mim poderia ser pecado", diz. A situação para o evan-gélico da Congregação Cristã do Brasil, Rafael Lima, não foi diferente. “Nessa época eu não sabia o que era ser gay, mas tinha conhecimento de que sentia uma coisa diferente pelos meninos”, lembra. O conflito pessoal que enfrentaram fez com que Rafael e Cecília levassem muito mais tempo para aceitar a sexualidade.

Para Cecília, o processo foi trau-matizante. Ela vem de família tradicio-nal e atuante na paróquia. Aos 4 anos já fazia parte da banda. Por essa forte

“O que importa, acima de qualquer dogma, é a minha

consciência. É lá que me encontro com

Deus”Cecília Souto, católica

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CASAl HOMOSSExUAl em culto evangélico da Comunidade Athos. Nesta igreja as demonstrações de afeto entre pessoas do mesmo sexo são comuns

presença na igreja, o relacionamento de Cecília e Suzana foi desencorajado, não só pelos pais das meninas, mas até pela prima do padre, que Cecília tinha como uma segunda mãe. “Me senti ofendida, tanto religiosa como pessoalmente”, conta. “Chegaram a me dizer que eu era a vergonha da congregação”. Ela resistiu, não aban-donou nem a igreja, nem a namorada. Cecília ainda vai à missa todos os do-mingos, mas agora se senta no último banco, para evitar os olhares de reprovação.

No caso de Rafael a situ-ação foi mais amena, até pela estratégia que adotou. Ele revelou a sexualidade para poucas pessoas da igreja, mas recla-ma que os amigos mais próximos, os primeiros a saber, se afastaram. Em casa a situação é ainda pior. “Enfren-tei preconceito da família desde que disse querer entrar na igreja. Meu pai quis me expulsar por eu me tornar crente. Imagina se ele soubesse que sou homossexual”, conta. Rafael foi criado em uma família sem religião, mas aos 16 anos entrou, voluntaria-mente, na Congregação Cristã do Bra-sil, uma das mais rígidas do país. Ele

participou dos cultos por seis anos e chegou a ser o violinista da banda, an-tes de contar aos amigos a condição sexual. Ao perdê-los, Rafael deixou de ajudar nas celebrações, mas ainda vai, impreterivelmente, a todos os cultos. O estudante tem um namorado há 11 meses. “Se alguém me pergunta se sou gay, não escondo. Não mais. Nem na igreja”, comemora.

A rejeição que Rafael enfrenta está longe de ser uma exclusividade.

Um levantamento feito pelo Bureau de Pesquisa e Estatística Cristã (Be-pec) apontou que 9,9% dos homens evangélicos brasileiros já tiveram ex-periências com pessoas do mesmo sexo. Entre as mulheres são 4% dos 1,6 milhão de pessoas que participaram da pesquisa. Muitos desses evangéli-cos começam a descobrir como con-ciliar estas experiências sexuais com a própria fé. É o caso de Rafael, que se considera a pessoa mais religiosa da família. “Hoje sei que Deus vai me

amar de qualquer forma", acredita. "Não imagino minha vida sem minha fé. Ele é meu melhor amigo”, conclui.

O caminho para conciliar a pró-pria homossexualidade e a religião é longo e doloroso, segundo o padre James Alison. “Todas estas moças e rapazes gostariam que sua homoa-fetividade fosse só uma fase, ou que fosse uma opção”, explica. “Não é fácil ser cristão e gay ao mesmo tempo, ainda temos locais conservadores e

onde menos imaginamos”, diz o padre gay. Para ele, a inserção social das Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêne-ros e Simpatizantes (LGBTS) é a melhor forma de acabar

com este preconceito dentro das re-ligiões, principalmente as cristãs. "Se a casa de Deus, infinitamente mise-ricordioso, não os aceitar, quem vai fazer isso?", questiona.

Mudança

O conservadorismo das igrejas, na contramão da liberdade sexual, pode explicar um dado apontado pelos dois levantamentos mais recen-tes do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em

"Acredito que a igreja, como conjunto de seres, ama a todas as pessoas"

James Alison, padre gay

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jAMES AlISON usa camiseta com o termo 'Priest', padre em inglês, escrito

com as cores do orgulho gay

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2000, cerca de 12 milhões de pessoas se declaram ateias ou sem religião. No levantamento de 2010 o número subiu para 15 milhões de pessoas.

Foi neste último censo que, pela primeira vez, o IBGE incluiu perguntas relacionadas à ho-moafetividade na pesquisa. Ao todo, 120 mil pessoas declararam viver em um relaciona-mento homoafe-tivo. Destes 47,7% eram católicos e 25,8% não tinham religião declarada, um número menor que entre os casais heterossexuais. Essa quantidade de pessoas, no en-tanto, pode ser apenas uma pequena porção do total. Estimativas do Mi-nistério da Saúde, com base em um estudo feito 2009, apontam que um em cada dez homens brasileiros já ti-veram relações sexuais com pessoas do mesmo sexo, número semelhante ao encontrado pelo Bepec.

Para Alison estatísticas como es-sas apontam um único caminho óbvio da fé. "Refletindo sobre todos os pro-gressos que tivemos nos últimos 25 anos, só posso acreditar que no futuro casaremos homossexuais dentro da igreja", especula.

O antropólogo da religião da Uni-versidade Católica de Brasília (UCB), Erivan da Silva Raposo, não é tão categórico. "As Igrejas no Brasil têm emissoras de rádio e TV, têm deputa-dos e senadores aos montes, de forma que tanto há uma guerra por imagens sobre o certo e o errado como há po-sições de poder relevantes para a definição de legislação favorável aos homossexuais. Quem vai vencer a guerra? Isso está em aberto", pondera.

Os pronunciamentos mais recen-tes das igrejas cristãs evidenciam que a liberdade sexual está longe de ven-cer a guerra. No lado dos católicos uma encíclica papal foi publicada em 2003 tratando somente do assunto. “A Igreja ensina que o respeito não pode levar, de modo nenhum, à aprovação do comportamento homossexual ou ao reconhecimento legal das uniões”, diz o texto assinado por João Paulo II e produzido pelo então cardeal, e atual papa, Joseph Ratzinger, o Bento XVI. Entre os evangélicos, o posiciona-mento é ainda mais evidente. O pas-

tor Silas Malafaia, líder da Associação Vitória em Cristo, por exemplo, deixa bem claro no site que mantém que somente a aprovação de uniões está-veis de casais gays era uma afronta a constituição. "O STF caiu no ridículo.

O casamento está diretamente ligado às relações hete-rossexuais com o objetivo de preser-vação da espécie humana", escreve.

O antropólogo da religião Erivan Raposo aponta, no entanto, que as igrejas refletem opi-niões da sociedade e não são institui-ções à parte dela. "A religião é apenas um pedaço da história. Há de se procurar as motivações sócio-his-tóricas para essas ma-nifestações de fé", diz o antropólogo. "Tanto o catecismo católico, quanto as radicais posturas pentecostais e neopentecostais são contra a homoafeti-vidade. Isso é reflexo de uma postura de grupos sociais. Outras religiões, principal-mente as centradas em orixás, têm uma forma mais libertária de ver a sexualidade, por re-presentar, costumeira-mente, outros grupos", conclui.

Movimentos so-ciais buscam diminuir estas disparidades en-tre as religiões. Desde a década de 1980 o Brasil tem vivido uma explosão de ações como Paradas Gays e hoje elas estão presen-tes até em municípios com menos de 20 mil habitantes. As Igrejas Inclusivas atuam dire-tamente no apoio des-tes eventos e promo-vem cultos também durante estas reuniões. Na avaliação das ONGs voltadas à diversidade se-xual, isso facilita que não só que a so-ciedade conheça essas congregações,

mas também traz a questão da fé para o centro do debate de grupos gays.

a "cura" gay pela fé

O ponto de equilíbrio encontrado por Cecília Souto e James Alisson para conciliar religião e homossexualidade não é unânime no país. Muitos gays, como Rafael Lima, em determinado momento chegam a acreditar que a homossexualidade era uma doença. "Cheguei a ter medo de contaminar os outros fiéis com minha homosse-xualidade", diz. Isso leva muitos deles à igreja mas em busca de uma saída radical: a cura gay.

Igrejas, em maioria evangélicas, prometem exorcizar pessoas até

“Hoje sei que Deus vai me amar de qualquer

forma”Rafael Lima, evangélico

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HOMOSSExUAl RElIGIOSO fazendo oração, na camiseta dele, a frase símbolo da Comunidade

que elas se tornem heterossexuais e “tomem o caminho correto". Pasto-res famosos e sempre presentes na mídia, são adeptos dessa prática. O deputado federal Pastor Marco Feli-ciano, líder do Ministério Tempo de Avivamento, apoiou em um pronun-ciamento na Câmara dos Deputados, que a cura gay deveria ser instituída. “Negro nasce negro não tem como mudar. Mas quem nasce ho-mossexual pode mudar. Até a palavra homossexual deveria ser abolida do dicionário, já que se nasce homem ou mulher”, afirmou o deputado. O bispo Edir Macedo, fundador da Igre-ja Universal do Reino de Deus, a maior congregação evangélica do país, também apoia a ideia.

Em janeiro deste ano Macedo foi condenado pela procuradoria de São Paulo pelo ritual de exorcismo gay que praticava. A retirada do que ele costuma classificar como "espírito imundo" era feita com o uso de chico-tes. Os fiéis que se submetiam ao ritu-

al eram açoitados durante a “cerimô-nia de cura”. O líder religioso foi con-denado pela prática de charlatanismo por, entre outras, prometer expurgar o vírus da Aids. Na denúncia da Procu-radoria foi declarado que a causa não era só de interesse da comunidade LGBTS, mas de toda a sociedade por ser um “discurso de ódio, homofobia, preconceito e discriminação”.

Ex-membro da Igreja Batista, o ex-pastor Sérgio Viula fundou o Mo-vimento pela Sexualidade Sadia (Mo-ses). Por muito tempo, o hoje ateu se considerou um ex-gay. A função do Moses era atrair homossexuais com ações como teatro, música e apresen-tações para prometer o que Sérgio

chama de esperanças pós-mundanas. "Cheguei a acreditar que estava liber-to no início da minha conversão", diz Viula. Atualmente ele é casado com outro homem. "Reversão de orienta-ção sexual é literalmente um conto do vigário", acredita. Para evitar que mais gente sofra com o conflito da condi-ção sexual, Sérgio criou o blog Fora do Armário, um dos mais conhecidos

no ativismo homossexual do Brasil.

O Moses, apesar da sa-ída do fundador, continua atuante no país. Sérgio, no entanto, desaconselha a bus-ca da “cura gay”. "As pessoas que buscam esse tipo de aju-da precisam de psicanálise,

feita com seriedade por profissional que não esteja ligado a esses grupos, de modo algum. Somente o fato de não se aceitar como é, e de estar dis-posto a se submeter a outras pessoas para tentar mudar algo que constitui tão essencialmente seu próprio ser, é digno de estudo", completa.

“Eu jamais conseguiria viver sem minha fé, Deus é tudo na minha vida, minha intimidade, meu eu,

meu chão”Kamila Silva, da igreja Athos

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igREja paRa gayS é quE MaiS cREScE NO paíS

PASTOR AlExANDRE Feitosa ora por fiel da Comunidade. Lá, rituais de cura são todos para a saúde do corpo,

não há tentativas de reversão de sexualidade

Foi uma ex-ex-gay, termo que designa quem passa por tentativas de reversão sexual sem sucesso, que fundou a Comunidade Athos. Cansados das tentativas de cura, mas cientes da necessidade de Deus em suas vidas, os pastores Alexandre Feitosa e Márcia Dias celebram cultos todas as quartas e sábados, para quem busca se acertar com a sexualidade e com Deus. Na sala se reúnem aproximadamente 70 homens e mulhe-res de todas as idades e etnias. "A grande maioria de nós, eu diria que 90%, vêm das igrejas evan-gélicas", aponta o pastor. "Todos são muito bem recebidos. Não importa de onde venham", diz.

Durante os cultos, a bíblia é mostrada como um livro para os que buscam o bem, não a sepa-ração e o julgamento. "O próprio nome de nossa comunidade vem da bíblia, Atos 10.34, 'Por que Deus não faz distinção entre as pessoas’”, diz Ale-xandre. A Athos surgiu em 2005 como a primeira igreja inclusiva do DF. Este segmento religioso é o que mais cresce entre as igrejas evangélicas. Em menos de uma década, segundo levantamentos da BBC Brasil, foram criadas dez congregações cristãs gay-friendly, com 40 delegações no país. Um levantamento da pesquisadora Fátima Weiss de Jesus, da Universidade Federal de Santa Cata-

rina (UFSC), estima que até 2016 as congregações terão mais de 20 mil fiéis em todo o país.

A Comunidade Athos está localizada no sub-solo do Conic, e os cânticos de oração podem ser escutados desde o pé da escada de acesso. "Nos reunimos para adorar a Ele. Sabemos que o mundo não é cor-de-rosa, mas na angústia devemos nos aproximar de Deus, não deixá-lo", diz Alexandre, com um sorriso no rosto.

Kamila Silva, hoje como fiel da Athos, tam-bém voltou a sorrir. "Eu não poderia ser feliz men-tindo para mim mesma e hoje sou completa", diz. Ela foi casada e teve filhos, mas sabia que era homossexual. Fiel da Assembleia de Deus desde os 14 anos, ela conta que se assumir depois dos 30 não foi fácil. "Minha família finge até hoje que não sabe, não comenta nada", conta Kamila. Ela deixou a igreja e sentia falta de expressar a fé. Foi quando um amigo lhe apresentou a Athos. "Deus é tudo na minha vida, minha intimidade, meu eu, meu chão", conclui.

(*) Alguns nomes foram trocados a pedido dos entrevistados.

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ElES TAMBéM PODEM SER FEMINISTAS

Em sociedade patriarcal e centralizadora, na qual o machismo ainda está arraigado, grupo de homens vai à luta para garantir mais direitos para as mulheres

guIlherme DE caRvalHO

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Começa muitas vezes quando a futura ma-mãe prepara o en-xoval. Se é menino, a maioria das rou-pinhas é azul, por-que rosa e tons mais

claros são considerados por alguns como coisa de menina. Uma escolha que vai além da identidade de gêne-ro e atinge a definição do comporta-mento social. Desde muito cedo, os garotos são incentivados a adotar posturas que reforcem a masculini-dade. É nesta fase que, ao se machu-carem ou serem contrariados, costu-mam ouvir que homem não chora. E, às vezes, a cobrança segue assim por toda a vida. Esse perfil tradicional, no entanto, começa a mudar e há os que preferem fugir dos estereótipos. O jornalista Jacson José Segundo, 31 anos, é um deles. Mais que isso. Considera-se um homem feminista. “Partindo do ponto de vista de que o feminismo é um modo de pensar e de agir, que luta pela garantia de direitos para as mulheres, me con-sidero sim. Mas também acho que o rótulo é o que menos importa”, ana-lisa. Para ele, que já participou de de-bates sobre feminismo e também de algumas passeatas, como a Marcha das Vadias, as atitudes cotidianas são fundamentais. “O que o homem faz no seu dia-a-dia para compreender a questão e não ser machista é o mais importante,” afirma.

Na avaliação do psicólogo Raul Torres, o peso do machismo atrapalha o próprio homem. “O homem machis-ta é solitário por dentro. Ele se acha tão superior que nada nem ninguém está à altura”, avalia. Segundo o psicó-logo, tal comportamento é resultado da vaidade. Ele diz que o homem ma-chista se recusa a admitir que exista outra pessoa à altura dele, princi-palmente a mulher. Esse não é um problema para Rafael Lopes, 20 anos, servidor da Companhia Energética de Brasília (CEB). Ele cresceu vendo o pai dividir os afazeres domésticos com a mãe. Formado em gerenciamento de redes, diz que a criação fez dele um homem feminista. “Nunca fui pra nenhuma passeata ou protesto, mas acho que igualdade de possibilidades e de direitos deve existir independen-te de qualquer coisa,” diz.

O SERVIDOR público Rafael Lopes, 20 anos, apesar de se considerar feminista, defende

que o rótulo é o menos importante

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Segundo Rafael, é a influência familiar que define quem o indiví-duo será. “Ele (o pai) sempre ouviu a opinião dela (a mãe). Seja na hora de comprar alguma coisa para a casa ou na maneira de educar os filhos”. O exemplo faz com que adote compor-tamento semelhante. “Hoje, eu enten-do a postura do meu pai e tento ser coerente com o que me foi ensinado. Ele nunca admitiu, dentro de casa, algum tipo discriminação,” explica. Assim como Jacson, ele também acre-dita que o rótulo é o menos importan-te. “Não me importo de me declarar feminista. Se ser feminista é defender a igualdade e os diretos das mulheres, então realmente eu sou”, diz. Rafael defende, ainda, que o machismo tira a liberdade, aprisiona até os próprios homens, que ficam obrigados a ado-tar um comportamento padrão.

E ser um homem feminista, para eles, tem vantagens. Quem garante é a especialista em feminismo Roberta Gregoli. Formada em Letras pela Uni-

camp e pesquisadora das representações de gênero e sexualidade no cinema popular brasileiro, ela diz que o feminismo liberta os homens de papéis convencionais. Desde clichês como, não po-der chorar nem fazer balé, até ter o direito à licença paternida-de decente. “Ser um homem feminista é se solidarizar com as mulheres e se indig-nar com a opressão que elas sofrem”, ana-

lisa. “O homem deve pensar em suas mães, irmãs e filhas e querer um futu-ro de oportunidades iguais para elas,” recomenda.

A pesquisadora ressalta que tra-zer os homens para o movimento não é necessariamente uma pauta do fe-minismo. Segundo ela, os homens são importantes pois agregam em número e também porque decisões políticas e econômicas, em grande escala, apesar do avanço das mulhe-res, permanecem centralizadas nas mãos dos homens. “O protagonismo do movimento é, e tem de ser, das mulheres. Se uma pauta feminista for-te é o empoderamento das mulheres, seria no mínimo contraditório ter li-deranças masculinas (encabeçando) o movimento”, finaliza.

Apesar do discurso feminista e da bandeira empunhada até pelos ho-mens em defesa das mulheres, ainda há fatores que dificultam a emanci-pação, a autonomia e o empodera-mento feminino, principalmente na

América Latina. É o que diz o historiador Claudio Silva. Diante do quadro, o feminis-mo existe para tentar igualar os direitos das mulheres aos dos ho-mens. E para colocar em prática tal ideia é necessário combater uma série de proble-mas estruturais da so-ciedade.

Uma das barreiras para a igualdade, se-

DESigualDaDE EM NúMEROS

O censo mais recente do Insti-tuto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que, apesar do avanço do movi-mento feminista, as mulhe-res ainda recebem salários menores que os dos homens, em funções semelhantes. O salário médio delas no país é de R$ 1.097,93, enquanto que de homens é de R$ 1.518,31.

A situação vem mudando, mas em um ritmo lento, segundo os movimentos femi-nistas. Em 2009, as mulheres recebiam uma média anual de 72,3% do que os homens tinham de rendimentos. Em 2003, esse percentual era de 70,8%.

A mesma pesquisa realizada em 2012 apontou que o ren-dimento médio do trabalho das mulheres em 2011 foi R$ 1.343,81, 72,3% do que rece-biam os homens (R$ 1.857,63).

Fonte: IBGE

gundo o historiador, está nas religi-ões conservadoras, que pregam um papel de submissão da mulher. As cerimônias de casamento são uma mostra disso. “Certamente, as religi-ões contribuíram e ainda contribuem bastante para essa visão sexista, da mulher servil que deve viver para agradar o seu marido”, diz, ao desta-car que as doutrinas têm um papel importante no sentido de socializa-ção, mas que ajudam a promover o machismo de maneira velada. “O Brasil é um país ultraconservador. Ele pode até aparentemente ter discur-sos libertários. Mas em várias classes é possível encontrar pessoas ligadas às raízes, onde existem discursos pre-conceituosos”, ensina. Para Claudio Silva, comportamentos machistas podem ser vistos diariamente, em pequenos gestos, por mais fortes que sejam esses movimentos.

PARA O historiador Claudio Silva, religiões contribuem para visão sexista e, muitas vezes, mulheres repetem discurso e prática de homens conservadores

jACSON jOSé, 31 anos, considera-se feminista

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publicidade conservadora

Esteticamente bem acabada e de aparência moderna e sofisticada, a publicidade brasileira também ajuda a reforçar o discurso machista, se-gundo o historiador. Segundo ele, a publicidade reproduz e reinventa o que a cultura, por anos, impôs. Um exemplo de machismo na mídia são as propagandas de cerveja. “Eu não sei como mulher consegue tomar cer-veja. A bebida foi masculinizada pela publicidade, onde, através dessa ótica, o único papel da mulher é ser objeto. A impressão que dá é que cerveja não foi feita para mulher,” explica Claudio.

A servidora pú-blica Beatriz Cardo-so, 31 anos, se sente incomodada com a propaganda de cer-veja no Brasil. “Por que propaganda de cerveja com mulher seminua está na televisão há anos? As mulheres também sentam no bar e bebem cer-veja. Elas não estão ali para serem mu-sas, mas consumidoras. Por que não mudar este olhar? Essa é a pergunta que me faço,” questiona.

Blogueira ativista

Beatriz começou a participar do movimento feminista em 2008. Em 2010, se reuniu com um grupo de mu-lheres e criou o blog Groselha News (http://groselha.wordpress.com), para debater questões relacionadas aos direitos da mulher, promover mobi-lizações e atrair público para eventos feministas. Para ela, é preciso aproxi-mar as mulheres da política e apre-sentar à sociedade pautas relaciona-das à causa. “Especialmente por um estado laico, porque a vigília sobre as mulheres, seu comportamento e seus corpos é histórica, perpetua o poder da religião e também do Estado sobre as mulheres,” acredita.

O machismo está tão arraigado na sociedade, segundo o historiador Cláudio Silva, que muitas vezes, de maneira inconsciente, as próprias mu-lheres repetem o discurso e as práticas dos homens conservadores. “No mo-mento de educar os filhos, algumas mulheres tendem a ser mais liberais

com o filho do que com a filha. Isso é negativo, pois, a partir daí começam a se estabelecer papéis distorcidos. E há, ainda, algumas circunstâncias nas quais a mulher pensa ter um papel pré-determinado,” explica.

A pesquisadora Roberta Gregoli lembra que o comportamento ainda é consequência de uma sociedade pa-triarcal e centralizadora. “Tomo muito cuidado para não culpar as mulheres, nem mesmo as que são contra o femi-

nismo. As mulhe-res já são supos-tamente culpadas numa série de si-tuações absurdas, desde estupro até o exercício de sua própria sexualida-de,” analisa. Para ela, as pessoas, independente do sexo, fazem par-te de um sistema

maior, que perdura por centenas de anos, no qual as influências culturais e históricas são decisivas. “Inevitavel-mente, esse sistema dita, em maior ou menor grau, a maneira como as pessoas pensam e agem. Mudar esse sistema, o patriarcado, não é fácil. Você percebe que está lutando uma batalha difícil quando metade do seu time está contra você.”

Aos 23 anos, a atendente de te-lemarketing Solange Santos se de-clara contra o movimento feminista.

“Acho que as mulheres de fato são mais frágeis, delicadas, nossa condi-ção de mulher nos beneficia com uma graça e sensibilidade,” diz. Ela é con-tra movimentos como a Marcha das Vadias e acredita que o movimento feminista está na contramão do papel da mulher.

- Defender o direito das mulheres receberem salários iguais aos dos homens para realizar o mesmo trabalho;

- Dividir os cuidados com a educação dos filhos, por entender que se trata de uma obrigação de ambos;

- Aceitar que as mulheres escolham se querem e quando querem ser mães;

Condenar a violência física ou psicológica contra a mulher que se recusar a fazer sexo ou quando

paRa ElES, SER fEMiNiSta é...ela se posiciona contra o pai ou marido

- Ter em mente que tarefas do-mésticas são de responsabilidade de todos os moradores da casa, sejam eles homens ou mulheres;

- Ser contra qualquer tipo de vio-lência contra a mulher e defender o direito delas de terminarem relacionamentos afetivos.

Fonte: Blog Papo de Homem (http://papo-dehomem.com.br/) e Centro de Estudos Feminista e Assessoria, Cfemea (http://www.cfemea.org.br/)

Mulheres não devem ser culpadas por estereótipos, nem mesmo as que são

contra o feminismo

Roberta Gregoli, pesquisadora

A ATENDENTE de telemarketing Solange Santos, 23 anos,

acredita que o movimento feminista está na contramão

do papel da mulher

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ElAS COMANDAM O TRáFICO

Cresce número de mulheres que lideram bocas de fumo no DF, e presas por venda de entorpecentes já totalizam 937 apenas este ano, um aumento de 37% em relação a 2011

VIVIane caRvalHO

Aos 27 anos, Sara* mora na região de Fazendinha com os três filhos. O mais novo, de 3 meses. A voz doce e o jeito tí-mido nem de longe

denunciam a mulher temida naquela região, por comandar um dos princi-pais pontos de venda de drogas em Itapoã. O comércio funciona na casa dela, perto das crianças, a qualquer hora do dia ou da noite. “Se engana quem pensa que essa é uma vida fá-cil. O medo da polícia nos prender é constante”, afirma. A participação de mulheres no tráfico é crescente na Ca-pital Federal. Segundo a Polícia Civil do Distrito Federal, apenas no primei-ro semestre deste ano foram detidas 937, contra 679 no mesmo período do ano passado, um aumento de 37%. Na

região de Itapoã, foram seis mulheres neste ano, e apenas duas nos seis pri-meiros meses de 2011.

Ex-cabeleireira, Sara* afirma que passou ao comércio de entorpecentes por influência de amigos. Ela ganhava cerca de R$ 500 por mês. Hoje, apenas em uma noite de maior movimento, fatura, em média, R$ 2,5 mil. “O medo existe, mas é bom vender. Só saio dessa vida se for pra ganhar muito dinheiro”. Assim como ela, Vera*, 28, também re-lata que passou a traficar por questões financeiras. Ela é a responsável por um dos maiores pontos de venda de ma-conha, cocaína e crack em Itapoã I. Há cinco anos, desempregada e com o marido preso, assumiu a boca de fumo deixada por ele. “Não gosto de vender. Faço por necessidade”, garante.

O comércio ilegal naquela região segue quase sempre uma mesma ro-

tina: de segunda a segunda-feira, 24 horas por dia. Para Sara*, todo dia é dia para ganhar dinheiro. Ela conta, porém, que a procura é maior a partir das 18 horas e nos finais de semana. A mão de obra, completa Vera*, é fácil de ser encontrada, mas é necessário um tempo para se estabelecer uma relação de confiança com esses novos “soldados”. “Eu vendo só em casa, po-rém tem gente que faz isso por mim na rua”, diz Sara*. As mulheres são as preferidas para a atividade. Algumas, menores de idade. “Elas passam mui-tas vezes despercebidas.”.

Nem sempre elas ficam sozinhas pelas ruas da cidade. Na região de Ita-poã e Itapoã I, as duas chefes do trá-fico contam com a ajuda, juntas, de seis homens e de duas outras mulhe-res. Embora pareça uma quantidade pequena, a agilidade e desenvoltura

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deles fazem com que o trabalho seja lucrativo. “Já tive mais ajudantes traba-lhando para mim. Mas onde tem muita gente tem também muita confusão”, explica Vera*. Por isso, as traficantes só trabalham com pessoas de extrema confiança. “Não dá pra entregar a mer-cadoria para qualquer um”, completa.

jovens e pardas são maioria

Mulheres pardas, entre 18 e 24 anos, da área urbana. Este é o perfil, se-gundo o Departamento Penitenciário Nacional, do maior número de presas no Distrito Federal em 2012. Foram re-gistradas, porém, três detenções entre aquelas com mais de 60 anos. Pardas somaram 467, seguidas pelas negras com 136, e, por último, as brancas, com 127.

Dados do Sistema de Infor-mações Penitenciárias do Minis-tério da Justiça mostram que, das 3.761 prisões efetuadas no primei-ro semestre deste ano, 544 são mulheres. São Sebastião concen-tra o maior número de pessoas do sexo feminino que foram parar atrás das grades: 233, seguido por Bra-sília, com 172, e por Ceilândia, com 93.

Sara* faz parte da estatística. No começo do ano, chegou a ser detida por quatro meses na Colmeia, a Pe-nitenciária Feminina, por tráfico de drogas. Por ser ré primária, acabou solta. Vera* também já passou pela experiência. Há dois anos, ficou por seis meses atrás das grades. O medo, hoje, faz parte da rotina, e o cuidado é dobrado, mas elas não pensam em abandonar a atividade.

Segundo a Secretaria de Seguran-ça Pública, o tráfico é o crime pelo qual as mulheres têm sido mais presas: são 544, seguido por roubo (176) e furto

(135). Embora seja evidente que a par-ticipação de mulheres no mundo do crime seja menor em comparação à dos homens, que chegam a 3.217 pri-sões até a metade deste ano, o tráfico vem fazendo cada vez mais parte do universo feminino.

Maconha lidera

A principal droga apreendida no Distrito Federal é a maconha. De janei-ro a junho, foram 633 quilos. Já a co-caína teve 429 quilos confiscados pela Polícia no mesmo período. Segundo o Diretor da Divisão de Repressão às Drogas II do DF Jorge Antônio Cheim Pires, esses dados não levam em con-sideração que o crack e a cocaína são

provenientes da pasta base de coca, que ao chegar às mãos dos traficantes é misturada com outros produtos para que possa ser comercializada.

É por isso que o crack, apesar de ser considerado a droga do momen-to, não tem o número de apreensões maiores que as da maconha. Os po-liciais tentam interceptar a chegada desses entorpecentes com operações feitas na capital. “Nós apreendemos este ano, em uma operação, 15 qui-los de pasta base de cocaína. Se essa droga fosse difundida para outros tra-ficantes, ela poderia se duplicar ou até quadriplicar no número de porções de pedras de crack”, analisa o diretor.

Os policiais ainda apreenderam 1,3 kg de merla, 55,7kg de crack e 75 frascos, aproximadamente, de lança-perfume.

Jorge Pires ainda reclama que, sem os recursos necessários, a polícia passa por dificuldades para trabalhar. Faltam policiais. “O efetivo policial é praticamente o mesmo que há 40 anos”, afirma. Mas isso não faz com que as operações feitas diariamente nas cidades para prender quem pratica esse crime seja interrompido. Segundo números da Coordenação de Repres-são às Drogas (Cord), neste ano foram registradas mais prisões de trafican-tes no DF. "Este ano chegamos a um número de prisões de 145 homens e 27 mulheres. Essas mulheres presas

formam cerca de 20% da popu-lação [carcerária] do DF segundo a Cord", avalia. Por questões de segurança e sigilo das operações, eles não revelam de que forma se organizam para chegar até essas drogas e traficantes.

Ao analisar o envolvimento de mulheres com o crime, o dire-tor esclarece que elas estão cada

vez mais atuantes no tráfico. “Antes de serem presas, essas mulheres assu-mem algumas funções na área como gerentes de compras, venda direta e contabilidade", explica.

passaporte para o crime

Segundo a doutora em Direito Penal e líder do Grupo de Pesquisa Política Criminal, a professora da Uni-versidade Católica de Brasília Soraia Mendes, no Brasil ainda não há muitas investigações sobre a participação das mulheres neste crime. “As pesquisas que existem não buscam compreen-der e analisar de forma diferenciada o envolvimento da mulher no delito”, ex-

72% das presas na Colmeia estão lá por tráfico, seguido por

roubo e furto, como mostram dados do Departamento Penitenciário Nacional

PROCESSO DE “embalamento” para comercialização da mercadoria é feito por várias pessoas de forma simultânea

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O RaNkiNg DOS cRiMES

Tráfico: 544

Roubo: 176

Furto: 135

Homicídio qualificado: 48

Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito: 22

Latrocínio: 21

Quadrilha ou bando: 21

Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido: 19

Receptação:19

Estelionato:18

Extorsão:17

Uso de documento falso:9

Seqüestro e Cárcere privado:5

Atentado violento ao pudor:3

Estupro: 3

Disparo de arma de fogo: 3

Falsificação de papéis,selos,sinal e documen-tos públicos: 3

Corrupção de menores:1

Fonte: Departamento Peniten-ciário Nacional, 2012

plica. Soraia acredita que o passaporte para a prática criminosa pode estar diretamente relacionado à violência doméstica. “É preciso ir fundo às cir-cunstâncias pelas quais essas mulheres se envolveram com o tráfico. Muitas delas entraram neste mundo através de seus companheiros, após sofrerem algum tipo de violência doméstica”, afirma Soraia.

Embora a participação dessas mulheres no tráfico venha crescendo, a professora ainda considera rara a presença delas como chefes de bocas de fumo. Para ela, assim como na vida social e econômica, o gênero feminino também tem dificuldades em alcan-çar cargos superiores em empresas no mundo do crime. “A maioria é mula, aviãozinho ou companheira de trafi-cante. Dificilmente, comandam um bando”, diz.

Geralmente, essas mulheres são presas por delitos como levar drogas no corpo, seja para os parceiros no pre-sídio ou mesmo para outros países. Segundo o Departamento Penitenci-ário Nacional, vinculado ao Ministério da Justiça, oito mulheres foram presas no DF, apenas no primeiro semestre deste ano, por tráfico internacional de entorpecentes. O número é conside-rado pequeno quando comparado ao de homens no mesmo período: 28. Na avaliação da pesquisadora, a mulher, normalmente, é presa por qualquer delito e sofre uma cobrança diferen-ciada da sociedade em relação ao ho-mem. Muitas vezes, são acusadas de não ligar para a família e para os filhos. “A mulher é muito discriminada por

seu gênero. Crescemos com estereó-tipos de mães donas de casa”, analisa.

Menores envolvidos

Se, nas estatísticas oficiais, mulhe-res entre 18 e 24 anos representam a maioria das presas por tráfico, na reali-dade das ruas, jovens até mais novas já podem ser vistas trabalhando aberta-mente com entorpecentes. Como são menores, muitas vezes acabam apre-endidas e, em seguida, liberadas. O universo da renda fácil seduz cada vez mais essas meninas. O caminho quase sempre é o mesmo. Começam como mensageiras encarregadas de avisar aos traficantes a presença da polícia no local, depois “aviãozinho”, levan-do a droga de um ponto a outro, até passarem a venda direta, chamadas de gerentes para depois assumirem a contabilidade das vendas, considerado o cargo de confiança do líder.

Aos 16 anos, Carla* já está nesta terceira etapa. “Faz um ano e meio que vendo drogas. Por enquanto não me arrependo da escolha que fiz”, diz a adolescente. A opção, conta, foi a for-ma de conquistar independência. De classe média baixa, tinha a vida como de qualquer outra menina da idade dela. A ambição por roupas de marca e por objetos pouco comuns a uma ga-rota da periferia provocou a guinada. ”Sou muito independente. Já me viro sozinha há três anos. Vendo porque gosto de usar coisas caras”, explica.

Quase sempre o adolescente se envolve com o mundo das drogas por influência de algum adulto. Carla conheceu esse universo pelo irmão, hoje preso. No ponto de venda para o qual ela trabalha, estão também ou-tras cinco meninas com idade entre 14 e 16 anos.

a vida atrás das grades

O discurso de quem esta do lado de fora se diferencia do de quem está presa na Penitenciária Feminina do Gama, mais conhecida como Colmeia. Moradora de Ceilândia e presa há seis meses por tráfico de drogas Samara*, 47 anos, disse ter se envolvido com o crime para tentar ajudar um dos cincos filhos. O rapaz, que já tinha sido pre-so, vendia comprimidos usados para a prática do golpe conhecido como ‘boa noite cinderela’ e, em uma opera-ção policial, corria o risco de ser pego

NA PENITENCIáRIA feminina Colmeia, elas trabalham com artesanato e confecções de tapetes enquanto cumprem a pena

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DROgaS apREENDiDaS NO Df DE jaNEiRO a juNHO DE 2012

Tipo Unidade de medida Total Total em (kg)

Maconha g 633.188,07 633,118

Merla g 1.361,71 1,362

Cocaína g 429.904,06 429,904

Crack g 55.730,22 55,730

Haxixe g 687,39 0,687

Ecstasy/MDMA comprimido 947 -

LSD microsselo 19 -

Lança-Perfume ml 7.042,06 70 frascos

Fonte: Laudo Preliminar/IC 76935-5 Polícia Civil do distrito Federal

PARA A pesquisadora Soraia Mendes, mulheres ainda são minoria e

dificilmente comandam; em geral, ocupam postos como os de mula,

aviãozinho ou companheira de traficante

e voltar para trás das grades. “Como ele estava foragido da polícia, ele me pedia para ir buscar os comprimidos para ele na farmácia e eu ia para não complicar ele”, diz Samara*.

A mãe não sabia, mas a farmácia já estava sendo investigada pela polí-cia, que esperou o momento certo da negociação para prender todos os en-volvidos na comercialização ilegal da droga. “No dia em que eu fui buscar a mercadoria teve a apreensão. Pois eles marcavam de entregar os compridos sempre no mesmo horário e local num shopping”, conta.

Samara* ficou detida por três meses e 26 dias e, no dia da audiência, con-seguiu a liberdade pro-visória. “Eu já estava reconstruindo minha vida de novo. Conse-gui uma bolsa de es-tudos de enfermagem em uma faculdade e trabalhava como mo-nitora em uma escola”, lembra. Depois de três anos, ela foi presa no-vamente para terminar de cumprir a pena de nove anos. “Eu me arrependo e não faria de novo. Se eu pudesse faria tudo ao contrário do que fiz”, de-sabafa. Ela diz que conta com o apoio da família e recebe visitas sempre que possível na penitenciária.

A situação de Silvana* é diferente. Ela foi presa no aeroporto de Brasília, ao tentar transportar drogas de Porto Velho (RO), onde morava, para Natal (RN). Certa de que receberia R$ 4 mil pela transação, ela não contava com ter que passar por uma escala de vôo aqui, onde foi descoberta e presa por tráfico. Sem conhecer ninguém em Brasília, Silvana* revela que a família não sabe da prisão. “Eu sou apenas uma dona de casa que cuida dos três filhos. Nunca mexi com isso na minha cidade. Só fiz mesmo na hora na preci-são”, relata Silvana*. Hoje, ela trabalha na confecção de tapetes no presídio. Sem ajuda ou visitas, a ex-garçonete diz que gostaria de poder cumprir a pena na cidade em que mora. “Mas só de estar perto de casa, da família tendo alguém pra vir me ver já ajudaria bastante”, desabafa.

Em situação um pouco mais com-plicada, está a marroquina Jade*, de

27 anos. Presa há um ano, a mulher veio ao Brasil por um convite feito pelo então namorado para conhecer o país. “Ele me chamou para fazer uma viagem e eu vim acompanhar”, conta. O passeio, na realidade, se tratava de uma negociação de transporte ilegal de drogas. Antes de ser presa, ela pas-sou por Natal e São Paulo. “Depois ele me pediu para pegar uma mala para ele em Salvador e foi embora na frente. Eu fiquei aqui por mais duas semanas”, lembra. Sem saber que a mala conti-nha uma grande quantidade de dro-gas, Jade* acabou presa ao passar por Brasília, em uma conexão que seguiria

para Marrocos. “Eu não sabia que a mala tinha droga”, jura.

Jade*, assim como Samara* e Silvana*, afirma que a maior difi-culdade em estar presa é a saudade da família e a falta de liberdade, já que dinheiro ne-nhum paga o direito do cidadão de ir e vir. Segundo o agente de

polícia e Gerente Administrativo Peni-tenciário Jovenal Alves de Lima Neto, aproximadamente 72% das detentas da Colmeia, hoje, cumprem pena por tráfico de drogas. “Das 640 presas, 220 delas estão em prisão provisória aguardando julgamento e 420 já fo-ram sentenciadas”, explica o agente. (*Os nomes foram preservados a pedi-do das entrevistadas).

Muitas são levadas à venda de entorpecentes por influência de

companheiros, namorados ou

familiares

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NOSSOS FIlHOS, DE PAIS ANôNIMOS

Com o sonho de formar uma família, casais recorrem ao

serviço de Reprodução Humana para torná-lo realidade

CarolIne ciNtRa

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Foram dez anos de angús-tia e tentativas de engra-vidar, até que veio o diag-nóstico: infertilidade con-jugal. Tanto a professora Analice Constância Souza quanto o marido dela, o

vigilante Agrício de Souza, eram esté-reis. Mas o que fazer diante do sonho de ter filhos? Era 1996 quando eles se deram conta que não adiantava mais se esforçar. Foi quando se cadastra-ram no Setor de Reprodução Humana (SRH) do Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib), para o programa de Fertilização in Vitro (FIV) que só entra-ria em funcionamen-to dois anos depois. O casal teve de recorrer tanto à doação de óvulo quanto de es-perma. “Chamaram o primeiro grupo de 30 mulheres e eu es-tava dentro. E graças a Deus deu tudo certo. Para mim é uma felicidade dobrada”, diz Analice. Hoje, com 23 anos de casados, a pro-fessora e o vigilante comemoram com família completa. Os gêmeos Alanny e Allyson estão com 13 anos.

Mas nem sempre as tentativas de engravidar por métodos artificiais dão certo. Em muitos casos é necessário repetir o procedimento várias vezes. Questões como idade e a saúde da mulher, por exemplo, precisam ser levadas em conta. Quanto mais nova, maiores as chances de sucesso.

Aos 35 anos, Analice teve três embriões implantados no útero. Na época, o médico deu 25% de chance para que ao menos um sobrevivesse. Hoje, ao lado dos gêmeos, Analice se sente realizada. “Quando os meninos completaram 10 anos o pessoal do hospital fez uma festa para eles, por-

que foram os primei-ros bebês de proveta em hospital público em Brasília”, conta. “Foi um tratamento dolorido, mas va-leu a pena e eu faria tudo de novo, porque hoje eu sou uma mu-

lher completa. Tenho uma família”, comemora Analice.

Segundo as informações dispo-níveis no site da clínica Gênesis, com o passar dos anos, os ovários perdem a capacidade de liberar óvulos sau-

dáveis. A idade que isso ocorre varia de mulher para mulher. A perda mais intensa ocorre entre 30 e 40 anos. E mesmo que o ciclo menstrual seja mantido, a capacidade reprodutiva fica comprometida. O teste que avalia a reserva de óvulos e verifica a quanti-dade e qualidade deles é o que mos-tra as chances que a mulher tem de engravidar espontaneamente ou de forma induzida. Por isso, o tratamento é sempre individualizado, de acordo com a saúde do casal.

cHaNcE DiMiNui cOM O tEMpO

Em geral, a possibilidade de o processo dar certo varia entre 25% e 50%, de acordo com dados da Clínica Gênesis, es-pecializada no procedimento. Em mulheres com até 34 anos, o índice é de 30%, que cai para 22% para aquelas entre 35 e 40 anos. A partir daí, a taxa de sucesso é de 11%.

OS GêMEOS Alanny e Allyson, 13 anos, filhos de Analice, foram os primeiros bebês

de proveta em hospital público do DF

“Foi um tratamento dolorido, mas valeu

a pena e eu faria tudo de novo”

Analice Constância, mãe pioneira

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A idade foi a grande preocupa-ção da contadora Joselma Carvalho Moraghi. Hoje, com 40 anos, casada há oito com o comerciante Renato Moraghi Júnior, ela ficou quatro anos na fila de espera do SRH para iniciar o tratamento. O casal foi chamado para a primeira tentativa em outubro. “O começo do tratamento foi muito tenso, pois tive que fazer um exame que iria determinar se eu poderia prosseguir no programa ou não, por causa da idade, mas graças a Deus eu estava apta”, comemora Joselma. Mas a alegria durou pouco. Ao fazer o teste de gravidez recebeu o resultado negativo.

No Hmib cada pessoa tem direito a apenas duas chances no programa. “A lista de espera é muito grande e nós temos que limitar isso, senão a gente não dá conta”, explica a co-ordenadora da Reprodução Humana do hospital, Rosaly Rulli Costa. Então, a paciente tem duas tentativas de in-seminação e outras duas de fertiliza-ção in vitro. Caso nenhuma dê certo, a receptora perde a vaga. Joselma e Renato já pensam em fazer a segunda tentativa e acreditam que nessa terão resultado positivo. “Meu marido é va-sectomizado. Desde o início do casa-mento sabíamos que era necessário recorrer ao banco de sêmen. Eu creio que na segunda tentativa vai dar tudo certo”, diz a contadora.

A procura pelo procedimento em hospital público é grande, pois, como

observa a médica, o procedimento tem alto custo e sai por mais de R$ 20 mil. No Hmib, tudo é de graça. “Tem uma lista de mais de três mil pacientes e duas mil já foram chamadas. Em mé-dia, são de 150 a 200 casais atendidos, por ano”, diz Rosaly Rulli. O Hmib é um dos três únicos hospitais públicos em todo o Brasil a oferecer o tratamento integralmente, sem qualquer custo. As outras unidades estão em São Pau-lo e em Minas Gerais.

A primeira inseminação artifi-cial realizada no Brasil foi em 1992. Naquela época, fazer o tratamento era restrito a apenas casais heteros-sexuais. De lá para cá, não apenas a técnica foi aprimorada, como o acesso também foi ampliado. Hoje, mulheres solteiras e casais homossexuais que querem ter filhos também recorrem ao procedimento. Este é o caso da maquiadora e designer de sobran-celhas Roberta Andrade. Em união estável há 12 anos com Suzana Ian Barbosa, ela alimenta o sonho de ser mãe. “Essa foi a minha escolha, minha opção de ter um filho, gerar um filho com a minha parceira, sem que fosse um casamento heterossexual”, expli-ca Roberta.

A maquiadora foi casada com um homem durante oito anos. E, desde então, tentou engravidar e não con-seguiu. Ainda casada, optou por fazer a fertilização in vitro, mas a primeira tentativa não deu certo. Depois da se-paração começou a se relacionar com Suzana. Como as duas têm o sonho de serem mães, optaram pela inse-minação com sêmen de um doador desconhecido. Na clínica, sentiram o peso do preconceito. “Tinha gente que ficava olhando e falava ‘porque duas mulheres estão na fila de espe-ra?’, como se fosse uma coisa para-normal. Quando ela (Roberta) entrava na clínica perguntavam ‘Cadê o seu

marido?’. Na hora de escolher o sê-men eles ficavam olhando para nossa cara. A gente tava pagando, não era nada de graça”, conta Suzana, com indignação.

Roberta e Suzana fizeram todo o tratamento em uma clínica parti-cular. Só com o procedimento gas-taram R$ 33 mil, além das despesas com exames adicionais e remédios. A maquiadora chegou a ficar grávida por três meses, mas perdeu o bebê. “É uma frustração muito grande”, diz Roberta, emocionada. Após a experi-ência, ela deixou de lado o sonho de gerar um filho. Optou por ser mãe por meio da adoção, o que deve ocorrer ainda em 2013.

Moral x cultura x religião

A decisão de procurar por um banco de sêmen ou de óvulos é pes-soal e muita gente resiste ao falar so-bre o assunto. O ginecologista e es-pecialista em bioética, Antônio Carlos Rodrigues diz que é preciso levar em consideração vários aspectos, como os culturais, morais e até religiosos. “Hoje, já há inúmeras pessoas que fo-ram concebidas por esses métodos, e, por ainda ser um tabu, elas não gostam de se expor”, conta o médico.

Os assuntos relacionados aos procedimentos médicos, no que diz respeito à reprodução e à vida, são tratados pela bioética. Os especialis-tas afirmam que para este setor não há uma verdade absoluta, já que os conceitos mudam na medida em que a sociedade evolui. O que existe são apenas reflexões sobre determinados assuntos polêmicos, como por exem-plo, o aborto, eutanásia, barriga de aluguel e também o banco de sêmen.

Antônio Carlos é autor de um ca-pítulo do livro “Criopreservação de Gametas, Embriões e Tecidos Germi-nativos e Laboratório de Fertilização

- O doador deve ter entre 18 e 40 anos;

- Estar em abstinência sexual de no mínimo dois dias e no máximo cinco;

- Ser saudável;

cOMO SER DOaDOR- Ter espermograma normal;

- Passar por uma série de exames e testes sorológicos para afastar o risco de doenças infecto- contagio-sas e sexualmente transmissíveis, como Aids hepatite e sífilis, por exemplo.

APóS A frustração de perder o bebê, a designer de sobrancelhas, Roberta Andrade hoje sonha em adotar uma criança especial

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in Vitro”. No capítulo “Aspectos Éticos, Morais e Religiosos do Banco de Sê-men”, o médico detalha os aspectos técnicos e a legislação brasileira sobre o assunto e faz um apanhado da for-ma que cada religião avalia a utiliza-ção de material genético e biológico para fazer reprodução humana.

Ele destaca, por exemplo, que a infertilidade humana vem se consolidando como um pro-blema de saúde que traz impli-cações médicas e psicossociais. Antônio Carlos defende, na pu-blicação, que o procedimento legitima o direito dos casais infér-teis de buscar meios científicos para a procriação. E esta realidade, na avaliação do profissional, remete a limites éticos e jurídicos a respeito de se conseguir o objetivo da repro-dução.

A religião contou muito para a promotora de eventos Denise Alves e o segurança Nilton Alves. Eles são casados há 13 anos. Nilton também é pastor e sentiu um pouco do pre-conceito quando optaram pela fer-tilização in vitro. “Algumas pessoas foram contra, dizendo que se fosse para termos filho Deus nos daria pelo meio natural, mas eu acredito que se Deus deu a sabedoria aos médico nós temos que usufruir dela”, diz. A

esposa relata que o casal passou por muito preconceito antes de decidir pelo procedimento. “Não admiti esse sofrimento na minha vida, porque era um sonho. Eu acreditei primeiramen-te em Deus e também no tratamento”, afirma Denise. O casal, hoje, desta-ca que está realizado, pois após dez

anos de tentativa carregam no colo o maior sonho, que tem o nome de João Guilherme.

quem pode doar

“A doação deve ser espontânea e não pode haver benefícios financei-ros. O doador colhe o sêmen no pró-prio laboratório do banco de sêmen. Estes laboratórios dispõem de salas preparadas para este fim, com privaci-dade e conforto para o doador”, expli-ca o andrologista Eduardo Pimentel. É garantido o anonimato do doador, mas as características físicas como cor de pele, cabelos e olhos, estatura e etnia ficam cadastradas. Este cuida-

do é fundamental para que a mulher que receber o sêmen possa ter a sua disposição uma amostra de um doa-dor que tenha as características físicas mais próximas casal receptor.

A técnica de doar ou congelar óvulos é mais recente e ainda consi-derada um desafio, pois a chance de

engravidar chega no máximo a 30%. Por causa da vida corri-da ou pela falta de um compa-nheiro, algumas mulheres de-cidem congelar os óvulos para usar quando chegar a idade que julgam estar preparadas para serem mães. Poucas pro-curam os bancos para doarem

óvulos a desconhecidas. “Nós esta-mos iniciando um banco de óvulos agora, daquelas pacientes quem têm uma grande quantidade de oócitos (óvulos) para poder ser transferido depois”, explica a médica Rosaly Rulli.

Em geral, as doadoras são recru-tadas pelos médicos, quando alguma candidata precisa recorrer à ajuda de outra para ser mãe. Assim como os homens, elas também se submetem a vários exames. E ao procurar um banco de óvulos, a receptora tam-bém pode escolher as características físicas da doadora, como cor da pele, do cabelo, dos olhos, peso e altura.

“Hoje, já há inúmeras pessoas que foram concebidas por esses métodos, e, por ainda ser um

tabu, eles não gostam de se expor”Antonio Carlos Rodrigues, pastor

NIlTON E Denise sentem alegria ao segurar João Gulherme no colo. Ao lado, Lucivânia Pereira com sua filha Júlia de seis

meses. A estudante tentou engravidar durante sete anos

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Aborto faz parte da história de pelo menos uma, de cada cinco mulheres brasileiras. A maioria usa remédios e métodos que ameaçam a própria vida. Números estão em pesquisa da UnB

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Jovem e solteira, indepen-dente financeiramente, dois cursos superiores no currículo e com três filhos de relacionamento ante-riores, a empresária Maria Teodora Sampaio, 31 anos,

não teve dúvidas. Em julho, ao se descobrir grávida, fez um aborto. A empresária faz parte da estatística que aponta que uma em cada cinco brasileiras re-corre pelo menos uma vez à prática até os 40 anos. O levantamento, chama-do Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), foi feito pela Universi-dade de Brasília (UnB), e mostra que 5,3 milhões de brasileiras já interrom-peram a gravidez por conta própria.

Tanto o Ministério da Saúde quan-to a Secretaria de Saúde do Distrito Federal não têm estatísticas do nú-mero de abortos praticados, porque a estimativa é de que, na maioria dos casos, as mulheres tomam a decisão e interrompem a gravidez em casa mesmo. O ato é proibido no Brasil, com exceção para situações conside-radas especiais, como nos casos de violência sexual, de risco à vida da mãe e de fetos anencéfalos. São 65 hospitais públicos qualificados para o procedimento, segundo o Ministério da Saúde.

No DF, o Hospital indicado pelo Ministério é o Materno-Infantil de Bra-sília (Hmib). Entre janeiro e setembro, 23 mulheres que ficaram grávidas de-pois de serem estupradas procuraram o Hmib para tentar abortar. Apenas 11 conseguiram interromper a gravidez após autorização judicial. As demais chegaram a um tempo de gestação superior ao recomendado para abor-to, de 90 dias, e acabaram tendo os bebês. Dois outros procedimentos fo-ram feitos para fetos anencéfalos. Em todos os casos foi necessário recorrer à Justiça.

Entre a proibição legal e a certeza de que não se quer deixar que aque-la gestação avance, muitas vezes a mulher acaba buscando clínicas clan-destinas. O ginecologista e obstetra Francinaldo Rodrigues Feitosa explica que a tentativa pode levar a paciente à morte. “A hemorragia seguida de infecção em uma fase posterior pode ocasionar o óbito”, comenta. Não há

números precisos para esse proble-ma considerado de saúde pública. A Secretaria de Saúde do DF não sabe precisar quantas mulheres morrem em consequência de abortos mal feitos, pois nem todas chegam a ser atendidas na rede. Acabam morrendo fora da unidade de saúde e a causa apontada costuma ser outra, como infecção generalizada, por exemplo.

Para o médico, as mulheres de-vem tomar cuidado após realizar um procedimento abortivo. Seja através do uso de drogas, medicamentos ou ao introduzir um corpo estranho no organismo. Em clínicas clandestinas, mesmo auxiliadas por pessoas da área da saúde, o procedimento é consi-derado sempre arriscado. Segundo Feitosa, a paciente precisa fazer uma curetagem depois do aborto, o que dificilmente ocorre nesses lugares. A mulher que faz aborto, segundo ele, precisa retirar todos os resíduos da

placenta, além de fazer tratamento com antibióticos e terapia.

Ainda conforme a pesquisa, o uso de medicamentos para a indução do último aborto ocorreu em metade dos casos relatados. O levantamento mostra que cerca de 60% das mulhe-res interromperam a gravidez duran-te o principal período reprodutivo, ou seja, entre 18 e 29 anos. A maior

incidência ocorre entre 20 e 24 anos. A prática é conside-rada mais comum entre as mulheres com escolaridade mais baixa. De acordo com o levantamento, a proporção de

mulheres que abortou chega a 23% entre as que concluíram apenas o quarto ano do ensino fundamental, enquanto 12% para aquelas que che-garam ao fim do ensino médio.

Os pesquisadores destacam, ain-da, que é praticamente igual a inci-dência do aborto entre mulheres de diferentes religiões. Os percentuais refletem a composição religiosa do Brasil: pouco menos de dois terços das mulheres que fizeram aborto são católicas; um quarto, protestan-tes ou evangélicas; e menos de um

O MéDICO Francinaldo Rodrigues lembra que os abortos clandestinos representam grave ameaça à saúde da mulher

“Elas são mulheres comuns, mulheres que todas nós conhecemos”

Débora Diniz, coordenadora da pesquisa

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“Minha barriga estava redondinha. Era nítido a minha gravidez”

Maria Teodora Xavier

vigésimo, de outras religiões. Cerca de um décimo não respondeu ou não tem religião.

caminho possível

Para Maria Teodora Sampaio, o aborto foi o caminho pelo fato de vi-ver um relacionamento aberto e já ter três filhos de relacionamento anterio-res. Assim como inúmeras mulheres, recebeu orientação para a interrup-ção provocada da gravidez em uma clínica particular, onde um médico orientou o procedimento. Mas nem isso garantiu a segurança. Ela lembra que recebeu ape-nas a receita para comprar a droga, e fez tudo sozinha, em casa. Maria Teodora já estava no terceiro mês de gestação. “Minha barriga estava re-dondinha”, lembra.

A empresária diz que perdeu mui-to sangue. Pior, segundo ela, foi a tris-teza, depois do aborto. “A tristeza que fica por dentro é uma coisa indescrití-vel”, salienta. O sentimento é comum nesses casos. Feitosa aconselha a te-rapia para tratar do lado emocional da paciente. Maria procurou atendimen-to médico logo no primeiro dia da hemorragia e o médico disse para que ela esperasse parar o sangramento e depois retornasse para fazer a cure-tagem. O sangramento durou uma semana. A empresária disse saber do risco que correu. “Se fosse com outro médico, eu poderia ser presa. Eu me arrependi de ter tirado. Na hora que

fiz, me arrependi. Não era pra ter ti-rado”, conta.

Desespero

A estudante universitária Paula (nome fictício), 22 anos, engravidou pela terceira vez do namorado, com quem já tinha duas filhas. Eles man-tinham relacionamento há sete anos quando ela descobriu que uma outra menina também estava esperando um filho do rapaz. “Ele me traiu, fui para o apartamento dele, discutimos e falei que não era mais para ver as

meninas”, lembra. Paula estava grá-vida de três meses. Sem consultar o namorado, comprou uma droga abor-tiva e interrompeu a gravidez. Ela con-ta que o rapaz reagiu com violência. “Ele me bateu com chicote no rosto e no corpo. Ainda tenho várias cicatri-zes”, afirma. Hoje, Paula pensa em se mudar de Brasília, mas disse que não se arrependeu. “Não me arrependo de nada do que faço na vida”, afirma.

Durante um ano, a também es-tudante Amanda (nome fictício), 26 anos, ficou grávida duas vezes do namorado, de quem apanhava. Na primeira vez, ela sofreu aborto es-pontâneo. Na segunda, disse ter sido aconselhada pela mãe a comprar um abortivo. Por indicação de uma

amiga, conseguiu o remédio com um traficante no Guará. A decisão da es-tudante foi tomada depois da reação do namorado, que já tinha um filho de 5 anos, com outra mulher. “Ele falou para mim: se vira, problema é seu, não tenho nada a ver com isso”, recorda.

A estudante estava grávida de seis semanas, lembra ter tomado o comprimido em uma sexta-feira e ter passado mal por todo o sábado. “À noite, minha mãe me levou para o hospital”, diz. Ela ficou internada por 24 horas. Para a família, a mãe

da estudante disse que ela estava internada por conta de uma infecção urinária. “Me arrependi muito. Até hoje peço perdão a Deus por isso”, emociona-se. O

namoro acabou e Amanda conheceu outra pessoa. “Casei, não tenho filhos e estou muito feliz”, conclui.

pró-vida

Embora proibido no Brasil, o aborto faz parte da rotina de muitas mulheres, mas há movimentos que tentam convencer as grávidas a não interromper a gestação. É o caso do movimento Pró-Vida e Pró-Família, vinculado à Igreja Católica, que atua em Brasília há 24 anos e já conta com ramificações em outros estados. Nas sedes do movimento funcionam os Centros de Ajuda às Mulheres (CAM). O atendimento é por telefone e ga-rante a privacidade da grávida. Em geral, são mulheres em situação de

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aBORtO EM NúMEROSVocê já fez aborto alguma vez?

Idade Não Sim %

18 e 19 191 11 6%

20 a 24 483 36 7%

25 a 29 488 84 17%

30 a 34 452 79 17%

35 a 39 388 86 22%

Escolaridade

Até a 4ª série do fundamental 191 44 23%

5ª a 8ª série do fundamental 429 80 19%

Ensino médio 974 115 12%

Ensino superior 408 57 14%

Religião

Católica 1168 175 15%

Evangélica ou protestante 551 72 13%

Outras religiões 81 13 16%

Não tem religião/não respondeu 202 36 18%

Fonte: Pesquisa Nacional de Aborto, microdados da amostra, Brasil 2010

ENTIDADE TENTA convencer grávidas a não abortar

desespero, segundo o vice-presiden-te do movimento, o advogado Paulo Fernando Melo. A ligação é gratuita e pode ser feita pelo telefone 0800-772-4007.

O trabalho promovido pelo Pró-Vida utiliza vários métodos de abor-dagem. Desde uma simples conversa, visita com a entrega do enxoval, até exames de ultrassonografia e mostra de feto em tamanho real. Em alguns casos, o grupo procura os pais ou avós da criança para informar da gravidez e tentar fazer aliados. E, em casos ex-tremos, segundo o advogado, o Pró-Vida vai à polícia denunciar a mulher, para que ela seja proibida de abortar. A entidade também acompanha to-dos os projetos de lei que tratam do assunto e que estejam em tramitação na Câmara e no Senado.

O raio-x do aborto no Brasil

A Pesquisa Nacional do Abor-to (PNA), foi feita pela Universidade de Brasília (UnB), em 2010, e ouviu 2.002 mulheres, entre 18 e 39 anos. A médica Débora Diniz, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), é responsável pelo levantamento que, pela primeira vez, contemplou mu-lheres de todas as regiões brasileiras.

A equipe entrou nas casas das pessoas e, segundo a pesquisadora, fez cinco perguntas para as mulhe-res. A principal era se elas já tinham tido alguma experiência com aborto.

A metodologia, segundo ela, é ideal para ser aplicada em países da Amé-rica do Sul, onde o aborto provocado é ilegal. Metade das mulheres que admitiu ter abortado revelou que foi necessário ficar internada para tratar as sequelas.

pelo direito de abortar

Ao contrário do Movimento que tenta convencer as mulheres a não

abortar, existe outros, como a Mar-cha das Vadias, que lutam pela des-criminalização do aborto. Para estes movimentos, a mulher tem direito de decidir sobre o próprio corpo e a prá-tica seria uma das formas de controle de natalidade.

Uma das organizadoras da Mar-cha, em Brasília, é a blogueira Paula Berlowitz, que debate o assunto na internet, no endereço www.cromos-somox.com.br. “A criminalização só aumenta o número de mortes de gestantes e não diminui o número de abortos”, afirma.

Para Paula, a lei é desigual. Muitas mulheres de baixa renda, segundo ela, recorrem a abortos clandestinos ou em casa, onde o risco de perder o útero ou até mesmo a própria vida é maior. “A verdade é que quando as pessoas que condenam a descrimi-nalização e falam que são ‘pró-vida’ é uma hipocrisia”, diz. “Há crianças [passando por] sofrimentos inimagi-náveis, que o que um feto sofreria em um aborto se tornaria ínfimo”, defen-de. Paula é mãe de quatro filhos.

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UMA VOz PARA O AUTISMOFamílias de autistas lutam contra dificuldades

de tratamento e exclusão nas escolas

CaIo céSaR

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As famílias de autistas no Distrito Federal não convivem ape-nas com a dificul-dade de lidar com o deficiente. Elas enfrentam princi-

palmente o silêncio e o abandono por parte do governo, que não tem programas específicos para atender estas pessoas que, devido a um alteração genética, não conse-guem se relacionar com o mundo exterior. São vítimas, neste caso, de um duplo isolamento. “É um mundo ignorado pela sociedade brasileira. O autismo é o patinho feio das deficiências no Brasil”. É assim que o inspetor da Polícia Rodoviária Federal Fernando Cotta define a experiência de ser pai de Fer-nandinho e presidente do Movimento Orgulho Autista Brasil.

Fernandinho tem 14 anos e estu-da na Escola Classe 416 Sul. O rapaz é portador da Síndrome de Kanner, o autismo clássico, o que faz com que ele tenha movimentos repetitivos e incapacidade de articular a fala . No próximo ano, terá de mudar de escola, já que está na idade-limite do colégio atual. A troca, que para muitos pais é algo natural, para a família de Fer-nandinho é mais uma entre as tantas preocupações com o filho.

As crianças com autismo mais severo e que não conseguem se inte-grar até o fim do ensino fundamental são excluídas do convívio escolar no ensino médio, devido à inexistência de uma educação especializada. Sem se adaptar às aulas e ao novo ritmo, muitas são tiradas da escola e enca-minhadas pelos pais para terapias ocupacionais, como oficinas de circo e teatro. É uma forma de preencher o tempo delas e dar algum alento à família. ”Não existe no ensino médio essa atenção, afetividade e paciência. O aluno é apenas jogado em uma sala e seja o que Deus quiser”, protesta Fernando.

As Escolas Classe 416 Sul e 405 Norte atendem 28 e 24 crianças com autismo, respectivamente. O trabalho das instituições é dividido em duas etapas: a socialização e a integração. Primeiro, a criança é inserida em uma sala exclusiva, onde cada professor ministra aula para uma dupla de alu-

nos e desenvolve atividades básicas de convívio e compreensão. Após a avaliação da psicopedagoga decide-se se o aluno é ou não incluído nas salas regulares.

O problema é que muitas crianças com a síndrome chegam à escola sem nenhuma base e a rede de ensino não tem como lidar com isso, de maneira adequada, como destaca a profes-

sora Dyeise Maria dos Santos. “Tem crianças que chegam aqui com 10 anos de idade, sem nenhuma noção de higiene pessoal. Essa base deveria

ser trabalhada nos centros de ensino especial com mais tempo e melhores profissionais, mas isso não acontece. O governo pressiona para mandar para as escolas e muitos desses pro-fissionais dos Centros não têm curso especializado”, denuncia.

Sinais de autismo

O autismo emite sinais que po-dem ser observados pelos pais nos primeiros anos de vida dos filhos. O primeiro alerta é o si-lêncio. A criança fala pouco ou quase nada. Depois, vem a timi-dez e, em seguida, o compro-metimento da interação social, dificuldades na pronúncia e o comportamento repetitivo.

De acordo com profissionais do Instituto Kennedy Krieger, maior rede dos Estados Unidos especializada em pesquisa online sobre o transtorno, se

“É um mundo ignorado pela sociedade brasileira. O autismo é o patinho feio das deficiências

no Brasil ”Fernando Cotta, presidente do Orgulho Autista

ACEITAçãO DOS pais influencia no comportamento da criança

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Em 2010, no Dia Mundial de Conscientização do Autismo, a Organização das Nações Unidas -ONU declarou que a doença atinge cerca de 70 milhões de pessoas em todo o mundo. No mesmo ano o psiquiatra Marcos Tomanik Mercadante, um dos au-tores da primeira e, por enquanto única, estatística brasileira sobre os casos de autismo no Brasil, citou em audiência pública no Senado que o número possa chegar a 2 milhões de autistas no país.

Tramita na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participa-

tiva (CDH) do Senado, um projeto de lei que apresenta soluções para melhorar a qualidade de vida dos autistas. O PL 1631/11 de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), prevê a inclusão dos estudantes autistas nas clas-ses de ensino regular e o atendi-mento educacional especializado gratuito, quando não for possível a inserção em classes comuns. “O projeto quer estabelecer os direitos fundamentais, como a garantia de educação e saúde es-pecializada gratuita. Queremos equiparar o autista ao portador de deficiência física e mental” afirma Fernando Cotta.

DaDOS E DiScuSSõES

HENRIQUE, DIAGNOSTICADO aos 3 anos, hoje estuda na Escola Classe 416

esses sinais forem percebidos antes dos 3 anos de idade, as chances de sucesso no tratamento, que podem dar melhores condições de vida aos autistas, são muito maiores. O proble-ma é o preconceito dos pais.

Em vários casos, os pais demo-ram a aceitar a deficiência do filho, situação que influencia também no comportamento da criança. “Aqui di-zemos que existem os pais parceiros e os pais sabotadores. Tem pais que

se interessam, dão continuidade em casa e você percebe a evolução da criança. Mas há casos em que você percebe que o pai tem vergonha e normalmente os filhos desses pais são mais agressivos”, conta a professora Mara Rúbia Martins

A gravidade do autismo oscila bas-tante, porque as causas podem variar, o que gera diferenças individuais no quadro clínico. Assim, o diagnóstico varia de caso a caso. O tratamento para

o autismo é dividido em duas partes. O médico envolve pediatria, neurologia, psiquiatria, odontologia. O tratamen-to não-médico é composto pela psi-cologia, fonoaudiologia, pedagogia, terapia comportamental e orientação familiar. O sucesso, segundo os espe-cialistas, depende principalmente da qualificação dos profissionais. E é aí que está uma das grandes barreiras para o Brasil, segundo a psicóloga Fa-biana Andrade. “Não só em Brasília, mas também no Brasil. Não se trata do autismo na faculdade, curso de es-pecialização em Brasília só existe um no Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento (Ibac)”, alerta.

Remédios

Autismo é um mal sem cura. O tratamento com remédios serve ape-nas para diminuir os sintomas, como o distúrbio do sono, a auto-heteroa-gressividade e o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). Os melhores me-dicamentos custam caro. Uma caixa de comprimidos, suficientes para 1 mês de tratamento, chega a custar até 600 reais. Os mais baratos são os oferecidos pela rede pública de saú-de. O problema é que são os menos eficientes e os que apresentam mais efeitos colaterais, segundo a psiquia-tra Rosa Horita. “Utilizamos a Rispiro-dona, mas ele é um medicamento que gera muitos efeitos colaterais, como ansiedade, tontura, dores musculares, tremores, aumento da salivação e do peso, por exemplo”, diz a psiquiatra. “Além disso a maioria das crianças só ingerem o remédio em comprimido, o que aumenta o preço do medica-mento de 20 para 120 reais. Isso para uma família que ganha um salário mí-nimo é caro”, conclui.

Arcar com os custos de um trata-mento para autistas é uma tarefa difí-cil para as famílias. Um estagiário em psicologia cobra 320 reais por mês, para acompanhar uma criança autista, quatro vezes por semana. Uma sessão semanal com psicólogo oscila entre 200 e 500 reais. O problema é que uma criança com autismo precisa de outros tratamentos, como sessões de equoterapia para fortalecer a muscu-latura e ganhar equilíbrio, fisioterapia para melhorar a postura e fonoau-diólogo, para aprimorar a fala. Tudo não sai por menos de R$ 2 mil men-

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O alto custo dos tratamentos é mais um empecilho na vida das

famílias

NAS SAlAS especiais são desenvolvidas atividades básicas de convívio e compreensão

tRataMENtOSAnálise de Comportamen-to Aplicada (ABA) - busca diminuir os comportamentos problemáticos relacionados ao autismo e desenvolver novas maneiras de agir.

Treinamento e Ensino de Crianças com Autismo e Outras Dificuldades de Comunicação Relacionadas (TEACH) - oferece estratégias de conhecimento e comporta-mentais. Ajudam os professores a intervir na capacidade de desenvolver habilidade do alu-no. O método oferece técnicas de organização, estruturação, repetições e treinamento, considerando pré-requisitos im-portantes para a alfabetização. Usa recursos visuais, para que a criança possa prever e compre-ender as atividades diárias com mais facilidade e ter reações apropriadas

Sistema de Comunicação por Troca de Figuras (PECS) - é um sistema de ensino que permite à criança com pouca ou nenhuma habilidade verbal comunicar-se usando figuras.

sais, podendo passar facilmente de R$ 4 mil, dependendo da gravidade do quadro. “O ideal é que meu filho frequente a fonoaudióloga uma vez por semana, mas cada consulta custa 120, 150 reais. Aí fica difícil”, reclama o motorista Ailton dos Santos, pai de um autista.

Stela, a filha da professora de in-glês Evellyn Diniz, estuda no Jardim de Infância da 108 Sul e faz natação, fonoaudiologia e terapias durante a semana. O tra-tamento dela é or tomolecular, não envolve me-dicamentos con-vencionais. Só os manipulados e suplementos que a garota conso-me custam R$ 3 mil por mês. Desde fevereiro na lista, em outubro ela foi chamada para começar a equotera-pia, com sessões uma vez por semana, durante 30 minutos. “Especialistas re-comendam uma jornada de 20 horas semanais entre escola, atividades e terapias para essas crianças”, afirma Fabiana. “Trinta minutos de equote-rapia é uma gota d`água no oceano”, lamenta Evellyn.

Responsabilização das mães

A culpa pelo autismo já foi atribu-ída à mãe. Foi nos anos 50 e 60, quan-do o psicólogo austríaco Bruno Bette-lheim afirmou que a deficiência seria resultado da indiferença da mãe em relação à criança. Na época, ele che-gou a criar o termo "mãe-geladeira", para descrevê-las. Com o avanço da

medicina e das pesquisas ficou com-provado que o autismo está ligado a fatores genéticos, associados a causas ambientais. Muitas crianças, inclusive, já apresentam sintomas desde bebês, o que descarta, por completo, a ques-tão da influência das mães.

Ainda há profissionais que acre-ditam na teoria do austríaco. “Várias vezes fui ao neurologista, psiquiatra e eles perguntavam: Evellyn como está seu casamento? Você mudou de casa

recentemente?”, reclama a pro-fessora de inglês. “Teve um médi-co que disse que a minha mudan-ça dos Estados Unidos para o Brasil teria sido a

causa desse transtorno, o que é um absurdo. E olha posso te garantir que isso acontece até hoje”, afirma.

preconceito

Lidar com o preconceito dentro de casa, entre familiares, e da socieda-de faz parte do cotidiano das famílias com pessoas autistas. Selma Ribeiro, mãe de Henrique, 7 anos, afirma que o preconceito existe até dentro das escolas. “Uma vez cheguei à escola e ele estava sozinho na sala de aula. A professora preferia andar com a outra criança que era mais calma e evitava o Henrique, por ele ser mais agitado”, diz. Na época, o garoto estudava em uma escola pública convencional da Asa Sul. Hoje, Henrique está em uma escola inclusiva, e a mãe, mais tran-qüila. “Infelizmente tem professores

que só se preocupam se a criança toma algum medicamento ou não, para saber se ela estará dopada e mais calma durante a aula” finaliza.

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OS SEM-ENDEREçOCom os vãos de uma ponte como casa, famílias inteiras sofrem sem assistência básica por falta de dados oficiais de residência

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NO lADO norte da ponte do córrego de Taguatinga, seis famílias construíram seus barracos

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O Distrito Federal é reconhecido pela desigualdade so-cial. De um lado, políticos e empre-sários desfrutam de mansões à bei-

ra do lago Paranoá. De outro, famí-lias inteiras sobrevivem na miséria, embaixo de pontes. São pessoas que vieram de outros estados para tentar a sorte grande e acabaram se depa-rando com o abandono e a exclusão da sociedade. O catador de lixo An-tônio Carlos da Silva, 48 anos, mora há 16 anos com a mulher, Marlene da Silva, 46, e os filhos no vão da ponte do córrego Taguatinga. “Tudo que nós queremos é um lugar para morar de forma digna”, conta. Além dele, outras cinco famílias adotaram o local.

Antônio e Marlene deixaram Barreiras, na Bahia. O que eles não esperavam era que o Distrito Fede-ral seria tão difícil. Foram empregos negados, expulsões e abandono de locais impróprios para construção até

chegarem à ponte que liga a QNL a Samambaia Norte. Foi o único local onde disse ser possível, mesmo de forma precária, construir um barraco para a família. “No início era difícil, construíamos o barraco e eles vinham e derrubavam, recolhiam toda a ma-deira e, às vezes, levavam até nossos móveis”, lembra Antônio. Porém, a família persistiu e sempre que a mo-radia era destruída, eles reconstruíam, até que o os fiscais simplesmente pa-raram de ir lá.

Quatro dos seis filhos moram com eles: Raquel, 20, Tiago, 18, Bruna, 10 e Cauã de 5. Os dois mais velhos ficaram na Bahia. Dos que estão aqui, apenas Bruna estuda. Ela frequenta a Esco-la Classe 614 de Samambaia, o que garante o repasse do Bolsa Família no valor de R$ 160 para ajudar nas despesas. Tiago faz trabalhos infor-mais, cortando grama, nas chácaras vizinhas. Raquel já tem dois filhos, Laiane, de 1 ano, e Tierre, de 6. Am-bos já nasceram com a ponte sobre o córrego Taguatinga como endereço.

Dia-a-dia

O dia da família começa cedo. Marlene e o marido acordam por volta das 6 horas. Enquanto Antônio vai para as ruas em busca de garrafas pets, papelão e latinhas de alumínio, ela leva Bruna para a escola, onde a menina permanece durante toda a manhã. A mãe vai para as chácaras da região, pedir água potável aos vi-zinhos.

Durante a tarde, Marlene volta para casa, lava roupas, faz separa-ção do lixo recolhido por Antônio. As crianças ajudam no trabalho. A vida segue a rotina de uma família como outra qualquer. Antônio chega, des-cansa no sofá, toma um chá e brinca com os netos. Eles sobrevivem de forma precária, sem elementos bá-sicos como água encanada, esgoto, banheiro e alimentação adequada. Contam, porém, com energia elétrica, graças a um colega da família, que fez um "gato" de um poste público de iluminação que fica ao lado da ponte.

A família tira a maior parte do sustento de trabalhos temporários e doações. São, em média, R$ 200 por mês para a compra do botijão de gás e comida. Seu Antônio consegue ven-der o quilo da latinha a R$ 1,50, mas o papelão é mais difícil. "Quase não vale a pena vender papelão. Eles compram o quilo por apenas R$ 0,10 e, se estiver molhado, o preço é ainda mais baixo", afirma o catador.

De tempos em tempos, grupos religiosos levam cestas básicas e rou-pas. E foi por meio dessas doações que a família conseguiu uma bomba de água, instalada próxima ao cór-rego às margens do barraco. Sem-pre que querem usá-la, conectam a tomada à rede e pronto: ela drena a água do córrego e transfere para uma mangueira ou para o chuveiro do banheiro improvisado pelo patriarca.

Para cozinhar, Marlene utiliza o fogão que ganhou de presente dos voluntários. O equipamento, no en-tanto, é usado com parcimônia. O feijão, por exemplo, cujo cozimento é demorado, é preparado em uma lata que serve como fogão à lenha. “É preciso fazer isso para economizar o gás”, conta. Ela possuía uma geladeira, também doada. O eletrodoméstico estragou devido a uma descarga elé-trica. “Tive que dar um jeito na carne

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CAMA BOx, televisão, dvd e geladeira, todos conseguidos com doações, fazem parte da rotina da família de Darlene

que tinha, cozinhei uma parte e jo-guei o resto para os cachorros, por-que já estava estragando”.

O banheiro é improvisado, com um pano que cerca uma pequena es-trutura em madeira onde fica o chu-veiro. “Quando queremos ir ao ba-nheiro, usamos uma sacola de super-mercado e depois jogamos no mato mesmo”, explica Marlene.

preconceito

A família conta que um dos principais problemas enfren-tados é o preconceito. “Somos pessoas de bem, e não vaga-bundos. Nos julgam por outros mo-radores de rua”, reclama Antônio. Outro problema é quando um dos in-tegrantes da família adoece. Marlene conta que não pode levá-los ao Hos-pital Regional de Samambaia ou ao Centro de Saúde 3 de Taguatinga, os mais próximos, porque nenhum de-les aceita a ponte como endereço de cadastro. É necessário que busquem Unidades de Pronto Atendimento de

Saúde (Upas). “Eles dizem que ponte não é endereço, não serve pra fazer a ficha e então não nos atendem. Quan-do alguém fica doente temos que ir a Upa da Samambaia ou Ceilândia, que não atendem a todos os problemas.”

Darlene da Silva de Almeida, 43 anos, é a irmã mais nova de Marlene

e mora no vão do outro lado da pon-te. Darlene vive com o companheiro e quatro, dos cinco filhos. Três deles com menos de 12 anos. A filha mais velha se mudou com um namorado. Maria Eduarda, 2 anos, tem síndrome de down. Ela conta sofrer os mesmos problemas que a irmã quando quer levar os filhos ao médico. “Além de ser especial, minha filha está com uma hérnia na barriga e não posso levá-la

ao hospital ou posto de saúde por-que eles se recusam a nos atender”, denuncia.

Darlene diz não aguentar mais a situação. Cansada de esperar por um lote do governo, ela planeja voltar para a Bahia com os filhos até o fim do ano. “Quero ter uma vida melhor

e lá, por mais difícil que seja, será melhor que aqui, poderei tratar da minha filha direito”, avalia.

albergue

Os Silva lembram que, an-tes, quando os fiscais derruba-

vam o barraco, eles eram levados para o Albergue Conviver, em Taguatinga Sul. “Prefiro mil vezes morar debai-xo da ponte a ir para o albergue”, diz Antonio. Essa situação cíclica é con-siderada quase comum. Segundo a assistente social do Núcleo Especia-lizado em Abordagem Social (Nuaso) de Ceilândia, Melissa Lemos Apolônio, é realizada abordagem sistemática, semanalmente, e já existe vínculo por

Desde 1996, os Silva aguardam um lote do governo e já foram

várias as tentativas e inscrições em programas habitacionais

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quEM é a pOpulaçãO

quE vivE NaS RuaS DO Df

- 2.512 pessoas moram nas ruas do DF

1.972 adultos

540 crianças e adolescentes

- Localização

30% estão nas Asas Sul e Norte

30% em Taguatinga e Ceilân-dia.

- Grupos etários

30,2% têm de 31 a 40 anos;

29,4%, de 22 a 30 anos

20%, de 41 a 50 anos

4,2% são idosos

- Habitação e aluguel

77% não têm ou não aluga casa

23% têm ou aluga

Maioria não tem qualquer forma de habitação convencio-nal e regular, fazendo das ruas seu único local de moradia e sobrevivência.

- Por que o DF?

49,1% vieram para procurar trabalho

15,4% vieram para acompa-nhar algum familiar

6,4% para fazer tratamento de saúde

- Alimentação

Ganha – 36,2%

Compra – 30,4%

Pede – 29,6%

COM A bomba de água doada, Marlene consegue água para a lavagem de roupas e louça

parte da equipe com algumas famílias que lá residem. “Já foram realizados atendimentos e encaminhamentos, assim como, orientações quanto aos serviços socioassistenciais efetivados. As famílias que têm crianças no local foram encaminhadas ao Conselho Tutelar de Samambaia Norte, para acompanhamento”, afirma.

Melissa explica que nem todas as famílias estão cadastradas em pro-gramas sociais devido à falta de do-cumentação, porém, já estão sendo acompanhadas de perto. A assisten-te social ainda informa que não faz parte das atribuições do Nuaso, assim como não condiz com os princípios da Política Nacional para População em Situação de Rua (PNPR), a retirada compulsória dessa parcela da popu-lação, em qualquer faixa etária. Da mesma forma, não são utilizados mé-todos coercitivos que venham a ferir os direitos do cidadão.

A recusa em ir para um albergue faz parte de boa parte da população de rua, como destaca a socióloga Ca-mila Potyara, doutoranda em Políti-cas Sociais. Ela afirma que os estudos apontam que muitas vezes as pessoas nessa situação não vão para o local por medo ou desconhecimento do serviço. “As instalações são precárias, além de não possuir assistentes so-ciais, psicólogos ou enfermeiros sufi-cientes”, aponta.

O coordenador da unidade de acolhimento, Jean Marcel Pereira Ra-tes, 29 anos, rebate as reclamações e afirma que a realidade não é bem

assim. “Os acolhidos do Albercon pas-sam por uma avaliação psicossocial na qual identificam seus objetivos de vida e assim são ajudados a atingi-los”, diz Jean. Ele admite que já houve, pelo menos, três casos de morte no local: duas de forma natural e uma por assassinato. Jean conta que o al-bergue passa por uma reestruturação. “Existem, hoje em dia, outros cinco centros de acolhimento no DF, cada um voltado para uma população alvo como crianças, idosos e mulheres”.

Atualmente, Taguatinga e Ceilân-dia são as cidades do Distrito Federal com maior número de pessoas mo-rando na rua. Isso ocorre, na avalia-ção da socióloga, porque as leis de patrimônio cultural não se aplicam às Regiões Administrativas diferentes da RA I, o Plano Piloto.

Tanto Camila Potyara quanto Jean Rates concordam que a ocupa-ção embaixo da ponte ocorre porque lá as famílias encontraram um certo “conforto”, na medida em que rece-bem doações diretas da população ao redor, sensibilizada com a situação. “Querendo ou não é uma forma de abrigo, de não ficar ao relento. É um teto sobre as cabeças”, conclui Camila Potyara.

Na l2 Norte

No Plano Piloto, também po-dem ser vistos moradores embaixo dos muitos viadutos e pontes. Sob o elevado da L2 Norte, próximo ao Setor de Autarquias Norte, vivem Ana Maria Pereira de Morais, 34 anos, e

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A socióloga Camila Potyara analisa a situação de quem mora nas ruas do Distrito Federal como completamente distinta da de qualquer outra capital do país. Por ser nova e moderna, Brasília tem leis que a diferenciam de outras metrópoles. Aqui, os mendigos são alvo constante de fiscalização do governo. “Uma das exigências para que uma cidade seja tom-bada como patrimônio cultural da humanidade é que não haja favelas nela, ou seja, existe uma perseguição do estado”, conta. A especialista conta que existem três tipos de moradores de rua no DF.

Os migrantes, que vêm para Brasí-lia em épocas festivas. São famílias que saem dos estados de origem durante o Natal, Páscoa ou outra data comemorativa, na esperança de receber doações da população ou do governo local. Podem ser facilmente encontrados no final da Asa Norte, próximos à Ponte do Bragueto. “Eles vêm, normalmente de Goiânia, Bahia ou Minas Gerais, recebem tudo que podem e depois vão embora. Normalmente, são mais visíveis, se instalam em pon-tes, viadutos ou mesmo barracas. Tudo para facilitar o recebimento de doações”, explica Camila.

Os trabalhadores, que moram em outras cidades do Entorno, têm trabalho em Brasília e casa própria, porém optam por passar as noites, ao longo da semana, nas ruas para evitar gastos de passa-gem. Retornam para casa durante os finais de semana.

Os sem teto, que são realmen-te aqueles que sobrevivem de mendicância, sem emprego ou casa. “São mais difíceis de ser encontrados, pois são os que mais sofrem perseguições por parte da polícia, governo ou pelos próprios moradores do DF. Normalmente se escondem no mato, buracos ou embaixo de pontes de difícil acesso”, esclarece a socióloga.

Brasília tem o maior PIB do Brasil, entretanto, também tem um dos custos de vida mais elevados, o que torna praticamente impossível que uma pessoa de baixa renda adquirir um imóvel, mesmo que em cidade satélite. Para Camila, é preciso a adoção de leis de política social dignas. “Não é porque eles são moradores de rua que não merecem uma política mínima. Ao contrário, deveria ser ótima, um exemplo para o resto do país”, ter-mina. Atualmente, mais de 2.500 pessoas vivem nas ruas de Brasília.

pOpulaçãO DE Rua DO Df

AléM DE fonte de diversão por parte das crianças, as garrafas pet são vendidas para empresas de reciclagem e garantem parte da renda do casal

o marido, Everaldo Morais. Às vezes, alguns amigos também ficam por lá. Eles não têm estrutura como a da fa-mília Silva, moram em uma barraca de camping, protegida por papelão e madeira, sem nenhum móvel. Apesar disso, Ana diz gostar de morar ali por ter uma proteção maior do que em outros lugares na rua.

Ana cozinha os alimentos em fogo de lenha, em latas. Eles dormem em um tapete dentro da barraca, do-ada por moradores da região. O casal não tem onde tomar banho ou ir ao sanitário. “Banho eu tomo de madru-gada, com balde quando dá e, se tiver vontade de ir ao banheiro, faço na rua mesmo, no mato”, explica.

A sobrevivência deles vem, prin-cipalmente, do dinheiro que recebem ao vigiar e lavar carros nos setores Comercial e de Autarquias, durante a semana. “Às vezes, as pessoas que já nos conhecem nos dão roupas ou comida”, conta a moradora de rua. Ela afirma que não sofre qualquer tipo de perseguição. “Ninguém vem nos incomodar aqui”. Entretanto, são obrigados pelos fiscais a se retirarem do local constantemente, mas sempre retornam em seguida.

Outra diferença é que, apesar de também ter seis filhos, a vigia de carros não mora com nenhum deles. “Não trouxe nenhum dos meus filhos pra debaixo da ponte, todos moram em outros estados com os pais ou ou-tras pessoas”, revela.

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