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JUNHO 2019 BOLETIM CULTURAL O MARAVILHOSO À MARGEM CAPA DO MÊS + DESENHOS POR ENILA MARIA PALMEIRA

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JUNHO2019

BOLET IM CULTURAL

c o l u n a p e r i f e é r i c a # 5

O MARAVILHOSO À MARGEM 

h o m e n a g e m a t o n i m o r i s s o n : ,

a g r a n d e v o z d a e x p e r i ê n c i a n e g r a

( 1 9 3 1 - 2 0 1 9 )

CAPA DO MÊS + DESENHOS POR ENILA MARIA PALMEIRA

A G O S T O / 2 0 1 9

AC E P U S P

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Sede: Rua da Consolação, 1909Anexo: Rua da Consolação, 1699Cerqueira César - São Paulo/SPpróximo às estações Paulista e Mackenzie da linhaamarela

Associação Cultural de Educadores ePesquisadores das Universidades deSão Paulo

c o n t a t o

www.acepusp.com.br(11) 3258-1436 | (11) 3132-0692facebook.com/acepusp.associacaoinstagram.com/acepusp

c h a m a d a d e p r o j e t o s

Tem algum projeto cultural que gostaria de trazer para onosso espaço? Entre em contato conosco pelo e-mail:[email protected]@gmail.com

í n d i c e

Acepusp em 2019 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Eventos culturais - atividades regulares . . . . . . . . .Eventos culturais - atividades de agosto. . . . . . . . . . . Coluna Perifeérica #5 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

- Homenagem a Toni Morrison: a grande voz daexperiência negra (1931 - 2019).- Prefácio de "O Olho Mais Azul " (tradução).- "Ensaio a partir de duas notas ao romance deMorrison - ou o ponto de vista negro não é o queparece", por Marcos Medeiros.

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A Acepusp (Associação Cultural de Educadores e Pesquisadores dasUniversidades de São Paulo) é uma instituição sem finslucrativos, formada por estudantes de diversas universidades públicasbrasileiras. Fundada em 2002, a Associação atua em áreas daeducação com o intuito de fomentar o acesso das classes populares àcultura. Localizada no centro de São Paulo, apoia organizaçõesautônomas e coletivos, abrigando uma gama de atividades no espaço.A associação é orientada politicamente à esquerda e é autônoma emrelação a partidos e universidades. O mais antigo projeto da associação é o Cursinho Popular, existentedesde 2002, com cursos pré-universitários e de extensão, voltados aestudantes em fase de vestibular.Em 2017, teve início o Centro de Línguas, oferecendo a preçospopulares aulas de inglês, espanhol, francês, alemão, cursosinstrumentais, plantões e clubes de conversação. Em 2019, a ACEPUSP, em parceria com grupos culturais de São Paulo,visa ampliar o acesso à cultura por meio de eventos, oficinas, cursos delonga e curta duração (como artes visuais, dança, cineclubs, entreoutros). Nosso objetivo está para além do simples fomento à cultura.Num cenário político caótico e desfavorável, lutamos por suapermanência, encarando-a não como um ópio dos intelectuais, mascomo um bem coletivo, inalienável, um convite à reflexão. É sobretudoum instrumento de conscientização e transformação das estruturassociais.

a c e p u s pe m 2 0 1 9

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a t i v i d a d e s r e g u l a r e s

e v e n t o s c u l t u r a i s

dança de salão Lambazouk

O Movimento Lambazouk (dança para todos) oferecerá aulas dedança de salão (especificamente Lambazouk/Lambada). O cursotem turmas de iniciantes e iniciados, formando profissionais de

dança de salão em uma nova etapa do projeto a depender dointeresse do aluno.

Quando: terças e domingos, das 19h às 20h

Onde: Domingos - Sala PoisÉPraQuê? Terças - Prédio Anexo, Sala 2 ..

Valores: R$ 100 (mensal)Inscrições: tratar direto com o grupo/professoras.

Gratuito para alunos Acepusp

tango às quartas

O Tango às quartas, projeto do TEM, tem o propósito de ensinar asbases e os princípios de caminhada do tango, levando em conta aconsciência corporal, o cuidado e o respeito ao nível de cadapessoa. Tango em turmas exclusivas para mulheres - todas asmulheres! Descontos para mulheres negras e trans. Se você tem alguma dificuldade, não fique sem dançar, fala com agente! Se você é mãe, seu filho ou filha é bem-vindo! Quando: Toda quarta-feira, das 19h30 às 20h45 (iniciantes) e das 21hàs 22h30 (intermediárias).Onde: Prédio Anexo, Sala 2 .Valores: R$80 (mensal) / R$200 (trimestral) Inscrições: tratar direto com o grupo/professoras.Descontos para mulheres negras e transsexuais Gratuito para alunos Acepusp.

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Samba de gafieira

Além de forró e bolero, o Mulheres que Conduzem oferecemaulas de samba de gafieira. Antigamente a gafieira era umbaile popular, de entrada paga e frequentado por pessoas debaixo poder econômico. Na década de 1960 em diante,frequentado por classes mais abastadas. A proposta do grupoé uma prática livre de gênero e classe. Não é necessário virem pares. Quando: toda sexta, das 20h às 21h30. Onde: Prédio Anexo, Sala 2 .Valores e inscrições tratar direto com o grupo/professoras.Gratuito para alunos Acepusp.

O Ballet Koteban oferece as "Aulas de dança mandingue". Ocurso é aberto tanto a população negra como aos

admiradores da cultura africana. O Ballet Afro Koteban é umgrupo de artistas e educadores negros cuja pesquisa se volta

à cultura do Oeste Africano.

Quando: todo domingo, das 10h ao 14hOnde: Sala PoisÉPraQuê?

Valores: a confirmar com o grupoGratuito para alunos Acepusp.

Inscrições: [email protected] pelo site: www.acepusp.com.br/eventos

koteban - aulas de dança africana

Inscrições: www.acepusp.com.br/eventosPrédio Anexo, Sala 2 [Rua da Consolação, 1699, 2ºandar].Sala PoisÉPraQuê? (Rua da Consolação, 1909, 1º andar).

i n s c r i ç õ e s

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las tardecitas: la ronda maluca (agosto)

Agosto é um mês marcado no mundo do tango como o mês doCampeonato Mundial de Tango em Buenos Aires. Mas na práticaLas Tardecitas a gente resolveu fazer um campeonato diferente!

Uma 'competição' que valoriza diferentes formas de dançar otango, que celebra a diversão, o abraço gostoso e a simplicidade. É

pra todo mundo e iniciante também pode! Com direito acertificado e o seu nominho escrito maravilhosamente pelas mãos

de fada da Aline Akemi!Vai ser descontraído, leve e divertido! Só vem! ♥

17h30 - Aula de TANGO com Mariana Franco

18h30 - Prática! Musicaliza Laura Audi!

Pode vir como se sentir confortável, pode dançar com quemquiser, mulher com mulher, homem com homem, até homem com

mulher pode!Todes são bem vindes! �

Quando: Domingo, 04/08, das 17h30 às 22h30. Gratuito (entrada colaborativa e solidária)

e v e n t o s c u l t u r a i sa t i v i d a d e s d o m ê s d e a g o s t o

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04/08

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p a l e s t r a s l i t e r á r i a s f u v e s t :

m i n h a v i d a d e m e n i n a - h e l e n a m o r l e y

Dando continuidade ao ciclo de palestras literárias, no dia 11/08,teremos:Publicado em 1942, o livro em questão é um diário dividido numasérie de entradas. A narrativa remonta aos fins do século XIX,numa Diamantina Pós-Abolição. Os momentos históricos desse"interregno" (ou período de transição) são avaliados aos olhos deuma garota provinciana, que descreve minuciosamente um retratovivo e humorístico das Minas Gerais entre 1893 e 1895. Na palestra, o professor Ernesto revisitará as passagens, de modoa dar um panorama da obra que sirva aos intuitos dos alunos parao vestibular Fuvest. Quando: 11/08, domingo, às 10hOnde: Rua da Consolação, 1909 (sala a confirmar no dia). Gratuito

11/08

17/08

k a r a o g a y d a a c e p u s p

THE TIME HAS COME FOR YOU TO LIP-SYNC FOR YOUR LIFE (AGAIN)!!!No return mais aguardado do milênio, a festa-karaokê mais arrasode todas está de volta! No sábado 17/08, vem com o bonde pro KaraoGAY, um evento prasbi, trans, gay e sapatão bater o cabelo, dublar com as manas, fazerperformance com pop, funk, brega, axé, MPB, E EVIDÊNCIAS! ☭☭☭ respeita as mana, as mina e as mona!Nenhum tipo de violência ou opressão será tolerada. ☭ LGBT TEM CLASSE! ☭ ☭ PREÇOS ☭Entrada: 5 acuésCerveja: 3x10 acués, 1x5 ☭ INFOS ☭Quando: Sábado, dia 17/08, às 20h30Onde: Espaço Pois É Pra Quê.Acepusp - Rua da Consolação, 1909. (Pertinho do metrô Consolação)

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m i n i c u r s o - t u d o s o b r e f o t o g r a f i a

Em duas aulas, com duração de três horas cada, o mini-curso "Tudosobre Fotografia" abordará diversos temas da área, dentre os quaisestão a história, técnica, estética e filosofia. Voltado aos interessadosem obter conhecimentos abrangentes e introdutórios sobrefotografia, o curso tem viés popular, e por esse motivo se destina aopúblico geral, com valor acessível dentro do mercado. Para ospúblico interno da Acepusp (Cursinho Popular, Centro de Línguas,associados e funcionários em geral), é gratuito. O palestrante, Jeff Dias, é bacharel em Arte e Mestre em Comunicação.Atuou como fotógrafo no Jornal Valor Econômico, Revista Hardcore,Playboy dentre outras publicações. Também atuou em instituiçõescomo SESC, FIESP, FGV, Governo do Estado de SP dentre outras. Informações:

* Turma semanal - Terça e Quinta (20 e 22/08, das 19h - 22h20) - 20 VAGAS** Turma domingo - (18 e 25/08, das 10h - 13h20) - 25 VAGAS*** Valor: R$ 50,00 Gratuito para público interno Acepusp.

Pré-Inscrição e matrículas (de 01 à 16/08): 1° passo: Faça a pré-inscrição pelo sistema Galileu (ignore as infosiniciais. Vá direto p/ "Inscrições online"): http://bit.do/Fotografia-2019

* Preencha informações** Selecione "fotografia 2019"***Escolha a turma

2º passo: Ao receber o boleto, faça o pagamento do valor total docurso (R$ 50,00). Ps. No caso de público Acepusp (alunos,professores, funcionários e associados), basta não pagar o boletoapós gerá-lo.3º passo: no ato da matrícula, apresente na secretaria o comprovantede pagamento do boleto, a documentação necessária*** e assine ocontrato (válido para público Acepusp e não alunos do projeto).Pronto,

***Os documentos necessários são:- Cópia do RG; Cópia do CPF; Comprovantede residência; Comprovante de pagamento do boleto (em caso de público nãovinculado à Acepusp).

Pronto! Em apenas três passos, você já estará matriculado.

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20 e 22/08

18 e 25/08

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P A L C O A B E R T O D E A G O S T O

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O Palco Aberto é um dos novos projetos culturais para o segundosemestre. Tem por objetivo movimentar musicalmente a

ACEPUSP, por aproximar o público-alvo (alunos dos projetos daAssociação e público externo) da música como um todo, através de

eventos musicais, sejam eles palestras, shows, saraus e exibiçõesde documentários temáticos.

No último evento, buscamos promover apresentações musicais dosalunos e do público externo, fornecendo equipamento e

infraestrutura para tais acontecimentos. A dinâmica é simples:primeiro, disponibiliza-se o espaço e equipamentos para as

apresentações musicais dos interessados.

Quando: 31/8 (sábado), das 19h30 às 23hOnde: Espaço Pois É Pra Quê.

Entrada: Franca, com comercialização de comes e bebes nasdependências.

31/08

m e s a a b e r t a : p e r m a n ê n c i a e s t u d a n t i l e f o r m a ç ã o u n i v e r s i t á r i a

No próximo sábado, 24/08, a Acepusp receberá uma mesa compostapor professores, plantonistas, alunos, associados e convidados

externos, com o tema "permanência estudantil e formaçãouniversitária". O objetivo reside no compartilhamento de experiênciasna formação universitária destes. As perspectivas de cada um não só

diferem na área de estudos (exatas, humanas, biológicas). Dauniversidade pública a particular, dos que entraram em choque com a

estrutura da instituição, dos que permaneceram ou desistiram, asexperiências de negros e negras, de mulheres em busca de

reconhecimento. O evento é voltado aos alunos do Cursinho pré-vestibular, filiados ou não ao projeto, e ao público em geral. A mesa

estará aberta para perguntas e comentários. Uma troca deexperiências coletivas!

Quando: 24/8 (sábado), das 19h30 às 22h

Onde: Espaço Pois É Pra Quê. Entrada gratuita.

24/08

Para mais informações (inclusive o processo de inscrição em algunseventos, acesse: www.acepusp.com.br/eventos

i n s c r i ç õ e s

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c o l u n a p e r i f e é r i c a # 5PERIFÉRICO + FEÉRICO =  O MARAVILHOSO À MARGEM

h o m e n a g e m a t o n i m o r i s s o n ,

a g r a n d e v o z d a e x p e r i ê n c i a n e g r a

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CRÔNICA, SELEÇÃO DE TEXTOS E COMENTÁRIOS POR MARCOS MEDEIROS

Foi em 2016, em meio às aulas de literatura inglesa, que ouvi falarde Toni Morrison pela primeira vez. Curioso, estávamos nos bancosem frente a biblioteca Florestan Fernandes, na FFLCH, O Rafael,amigo que não vejo tem muito tempo, ouvindo minhas angústiassobre o que estudar na iniciação científica, citou o nome deMorrison pela primeira vez. Quando ouvi imaginei um escritor,homem, branco, pelo nome Toni, e era óbvio partir daí. Mas oretrato foi estranhamente oposto: tratava-se de uma escritoranegra, reconhecida nos EUA pela contribuição à cultura negraatravés de romances, ensaios etc. Aquilo marcou de uma forma quemal pude esperar o termino da aula, fui atrás de um livro dela, atéentão conhecia poucos autores negros, veja lá autoras. Aquele dianunca mais escapou da memória. A prosa de Morrison foi umlampejo na consciência pouco amadurecida para as questões deraça, classe e gênero. No começo importou sim saber que tinha umNobel e era a primeira mulher negra a receber o prêmio. Mas como tempo vi que sua obra vai além das falsas condecorações. Anteontem (escrevo este texto no dia 7 de agosto), soube de suamorte, aos 88 anos de idade, em Nova York - poucos dias após ostiroteios no Texas e Ohio, tratados pelo atual presidente como umaquestão de sanidade mental, "A doença mental e o ódio puxam ogatilho, não as armas". A que interesses tais palavras atendem,podemos imaginar. Não há relação entre uma coisa e outra, ofalecimento de uma escritora laureada e as vítimas de um tiroteio,senão o que os liga. Morrison foi durante a vida muito crítica asociedade norte americana que o cínica de Trump deixa entrever.Ela denuncia a brutalidade de seu país no palco da ficção, semdeixar de exigir do leitor o trabalho de investigar esta denúncia,nas sutilezas e armadilhas que constrói.

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O primeiro romance que tive em mãos foi "O olho mais azul" (Thebluest eye), história triste, doída, que provoca no público negro oubranco simpatia, dó, piedade, o que não deixa de ser umaarmadilha. Pois Morrison, nascida em Lorain, Ohio, três anos apósa quebra da bolsa de NY, não faz sua literatura algo representativode todos. Ela vai ao núcleo duro da experiência particular, quersuscitar questionamentos ao seu leitor. Sua obra é dita "universal",pois dialoga com as obras no cânone mundial, e com aquelasdeixadas de lado por ele. Morrison disse ter lido obras consideradas canônicas pela tradiçãocrítica (Guerra e Paz e Ana Karênina, de Tolstói). Também leu osmodernos, representativos de uma cultura ocidental branca(Virginia Woolf, William Faukner). Isso não exclui seu contato deanos e com uma tradição formada da literatura negra - e queremonta ao Harlem Renaissance, movimento cultural dos anos 20,anos de jazz, blues, Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Langston Hughes,Audre Lorde, de um fervilhar cultural nunca antes visto nos EUA. Aautora não nega suas origens, ao contrário, dá continuidade; muitomenos desdenha da "tradição canônica", por ser branca. O mundodos brancos é a cortina de fundo de suas narrativas. Para recriá-locom duplo apoio, no real e no ficcional, a escritor se impede deturvar a vista com rancor. "O olho mais azul" foi publicado em 1970. Pecola Breedlove (breed= a raça, a espécie, a linhagem, a casta) é uma garota negra esonhadora. Com olhos grudados na TV, deseja ter olhos azuis numtempo em que a industria cultural elegia Shirley Temple comopadrão de beleza americana. A personagem é uma das mais bemconstruídas da autora, envolta numa névoa de mistério. Morrisonalcança tal efeito pela variedade de pontos de vista. Pecola nuncase desnuda por completo, é um enigma vivo. Apesar do sonho, arealidade pesa sobre ela, devastadoramente. Engravida aos 12 anosde idade, é abusada sexualmente pelo próprio pai, invisível aosolhos da sociedade. O acontecimento trágico é determinado porforças que remetem ao passado histórico da escravidão e suasconsequências no presente. Sem mais demora, abaixo o/a leitor(a) tem acesso ao prefácio de"O OLHO MAIS AZUL". A escolha pelas palavras de Morrison sobreo romance não ignoram a narrativa, mas querem provocar ointeresse pela leitura.

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Não pode haver ninguém, tenho certeza, que não saiba o que é sesentir malquisto, até mesmo rejeitado, momentaneamente ou porum longo e duradouro período de tempo. Talvez o sentimento sejade mera indiferença, um suave incômodo, mas ele também pode seexpressar na e pela dor. Pode até ser que alguns entre nós saibacomo é ser realmente odiado - odiado por coisas sobre as quaisnão temos controle e não podemos mudar. Quando acontece, éalgum consolo saber que a rejeição ou indiferença é infundada - que você não merece aquilo. E caso tenha resistência emocionale/ou apoio da família e amigos, o dano é reduzido ou até mesmoapagado. Isso é o que chamamos de stress (às vezes menor, àsvezes incapacitador), que parte de nossas vidas como humanos. Quando comecei a escrever O Olho Mais Azul, outra coisa meinteressava. Não a resistência ao desprezo dos outros, ou de quemodo evitá-lo; ao contrário, interessava-me sobretudo asconsequências muito mais trágicas e incapacitantes de aceitar arejeição como legítima, como auto evidente. Sabia que algumasvítimas de uma poderosa autodepreciação acabam sendoperigosas, violentas, reproduzindo o inimigo que as humilhoutantas vezes. Outros entregam sua identidade; fundem-se em umaestrutura e obtêm a personalidade forte que lhes faltam. Já muitos,no entanto, vão além disso. Alguns, contudo, desmoronam, entramem colapso, silenciosamente, anonimamente, sem voz paraexpressá-lo ou admiti-lo. São invisíveis. A auto estima tem os seusdias rapidamente contados, ocorre em segundos, facilmente nascrianças, antes que o “ego” crie pernas, por assim dizer. Combine avulnerabilidade juvenil com pais indiferentes, adultos desprezíveise um mundo que, em sua linguagem, imagens e leis, reforça odesespero. Está selada a jornada para a destruição.

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p r e f á c i o d e

' O O L H O M A I S A Z U L '

( f o r e w o r d o n ' T H E B L U E S T

E Y E ' )

POR TON I MORR ISON

T R A D U Ç Ã O D E M A R C O S M E D E I R O S

EM MEMÓRIA DA GRANDE VOZ DA LITERATURA NEGRA NORTE-AMERICANA

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Por essas razões coube ao projeto deste livro, o meu primeiro,penetrar na vida do menos provável a suportar forças tão nocivas,tendo em conta a juventude, raça e gênero. Começou como umanarrativa sombria de assassinato psíquico. A protagonista destaestória não suportava a solidão, já que sua passividade atransformou num vazio narrativo. Então convidei amigos, colegasde turma; eles compreendiam, até mesmo simpatizavam com osofrimento dela, mas tinham o benefício de pais solidários e umaousadia de espírito própria. No entanto eles também não ajudavamem nada, estavam desamparados. Não podiam salvá-la do mundo.Ela não aguentou. A origem deste romance repousa numa conversa que tive com umaamiga de infância. Tínhamos acabado de entrar no ensinofundamental. Ela disse que queria olhos azuis. Olhei em volta paraimaginá-la com eles e fui violentamente repelida pela imagem,caso o seu desejo fosse aceito. A tristeza em sua voz pareciachamar por simpatia, e eu fingi simpatia por ela, mas, espantadapela profanação que ela propôs, ao invés disso fiquei furiosa comela. Até aquele momento tinha visto a linda, a amável, a adorável, asimpática, a feia e, embora eu certamente tenha usado a palavra“linda”, nunca experimentei tal choque - força a qual erabalanceada pelo conhecimento de que ninguém reconhecia isso,nem mesmo, ou especialmente, quem o possuiu. Devia ter sido mais do que o rosto que eu estava examinando: osilêncio da rua no raiar da tarde, a luz, a atmosfera de confissão.Em todo o caso foi a primeira vez que soube o belo; o imagineicom os meus olhos. A beleza não era simplesmente algo para secontemplar; era algo que se podia fazer. O Olho Mais Azul foi meu esforço para expressar tal percepção;para dizer algo sobre por que ela não teve, ou possivelmentenunca teria, a experiência do que possuía; e também porque rogoupor tão radical mudança. Estava implícita em seu desejo a autoaversão racial. E vinte anos depois, ainda me perguntava comoalguém aprende isso. Quem contou a ela? Quem a fez sentir queera melhor ser uma aberração do que a si própria? Quem a olharae a achava tão fraca, um ser minúsculo na escala de beleza? Oromance bica o olhar que a condenou.*13

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A valorização da beleza racial nos anos sessenta provocou taispensamentos, me fizeram pensar na necessidade da reivindicação.Apesar de insultada por outros, por que essa beleza não podia serreconhecida dentro da comunidade? Porque precisava de amplaarticulação pública para existir? Não é fácil responder... Mas em1962, quando comecei esta narrativa, e em 1965, quando começou aser um livro, as respostas não eram tão óbvias para mim comoaos poucos se tornaram e são agora. A afirmação da beleza racialnão foi uma reação à crítica trocista e bem humorada dasfraquezas culturais/raciais comum a todos os grupos, mas contra ainternalização prejudicial de uma suposta e imutável inferioridade,originada num olhar externo. Por essa razão, foquei em como algo tão grotesco como ademonização de toda uma raça poderia criar raízes dentro domembro mais delicado da sociedade: uma criança; o membro maisvulnerável: uma mulher. Na busca por dramatizar a devastação queaté mesmo o mais casual desprezo de raça pode causar, escolhiuma situação única, e não uma representativa. O caso gravementeextremo de Pecola provém em grande parte de uma famíliadeformada e inábil - diferente da família negra comum e da quefaz parte a narradora. Mas, por mais singular que fosse a vida dePecola, eu acreditava que alguns aspectos de sua vulnerabilidadeestavam alojados em todas as meninas. Ao explorar a agressãosocial e doméstica que poderia, literalmente, levar uma criança adesabar, articulei uma série de rejeições, algumas rotineiras,algumas excepcionais, outras monstruosas, ao mesmo tempotentando evitar a cumplicidade no processo de demonização a quePecola estava submetida. Ou seja, eu não queria desumanizar ospersonagens que destruíram e contribuíram para o colapso dePecola. Um dos problemas era centrar o peso de tal investigação numapersonagem tão delicada e vulnerável, ao ponto de esmagá-la,levando os leitores ao conforto da simpatia, de ter pena dela, emvez de questioná-los pelo esmagamento. Minha solução - dividir anarrativa em partes que precisam ser remontadas pelo leitor -pareceu-me uma boa ideia, cuja execução não me satisfaz agora.Além disso, não deu certo: muitos leitores permanecem tocados,mas não transformados.

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Outro problema, claro, era a linguagem. Era difícil reter o olhardesprezante enquanto o sabotava. O romance tentou acertar onervo cru do auto-desprezo racial, expô-lo, depois amenizá-lo nãocom narcóticos, mas com uma linguagem que replicava a mesmacapacidade de agir, descoberta em minha primeira experiência debeleza. Justamente porque aquele momento foi tão racialmenteinspirador (a repulsa pelo que minha amiga de escola queria: olhostão azuis numa pele tão negra; o dano que ela estava causando aminha ideia de belo), que a luta era por escrever o que eraindiscutivelmente negro. Eu ainda não sei bem o que é isso, masnem isso, nem a investida em desqualificar um esforço paradescobrir me impedem de tentar segui-lo. Minhas escolhas de linguagem (falante, auditivo, coloquial), minhaconfiança na compreensão total dos códigos cravados na culturanegra, meu esforço para alcançar e dar efeito a co-conspiração eintimidade espontâneas (sem qualquer trama explicativa edistanciadora), bem como minha tentativa de plasmar o silêncio aoquebrá-lo, buscam transfigurar a complexidade e a riqueza dacultura negra norte-americana numa linguagem digna da cultura. Pensando agora nos problemas que a linguagem expressiva meapresentou, fico impressionada com seu curso, sua aderência.Ouvir as línguas “civilizadas” rebaixarem os seres humanos;observar os exorcismos culturais rebaixarem a literatura; ver-se asi mesmo preservado no âmbar das metáforas inadmissíveis** -posso dizer que meu projeto narrativo é tão difícil hoje quanto eranaquela época.

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Esta tradução foi realizada livremente por Marcos Medeiros apartir do prefácio de "The Bluest Eye" (Vintage Books) nos dias 10e 11 de agosto de 2019, como uma forma de introduzir opensamento da autora aos alunos e alunas da Acepusp. Que a memória de Toni Morrison permaneça continuamenteconservada pelo âmbar de sua obra, e não só inspire, mastambém levante toda uma série de questionamentos às geraçõesporvir.

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Ensaio a partir de duas notas ao prefácio deO olho mais azul: ou 'o ponto de vista negronão é o que parece...'

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por marcos medeiros

A tradução de textos literários, desde uma bula de remédio a umprefácio digno de nota, não é tarefa fácil. Pode-se, no primeirocaso, suprimir um detalhe importante ao paciente, e o medicamentoserá ingerido por alguns quando não o é - em casos de gravidezou alergia, por exemplo. Trata-se de tarefa que exige uma granderesponsabilidade. Quanto ao segundo, apesar do desprezo banalem nossos dias ao que concerne o ato de pensar, de refletir - oexame crítico das coisas -, a tarefa exige tanta responsabilidadequanto o caso anterior, inclusive num prefácio como esse.É óbvioque aprendemos mais quando traduzimos a língua do outro e viceversa. O fator do encanto pode ser de várias ordens: aprende-seexpressões cuja singularidade é dizível apenas na língua departida. O/a tradutor(a) sofre na busca pelo equivalente, nuncasatisfeito com o produto final. A palavra "saudade" é intraduzível, ou melhor, é passível detradução, embora muito se perca no processo - I miss you (inglês)é uma expressão (e não uma palavra específica) que quer dizer"sinto sua falta", ou seja, sinto a ausência de alguém ou de algo. JáSehnsucht (alemão), a soma de duas palavras - “anseio ardente(das Sehnen) e dependência (die Sucht) -, condiz a ordem depensamentos e sentimentos capazes de reconhecer o caráterinacabado e imperfeito da vida, bem como o anseio por seuoposto, a felicidade de experiências alternativas. É típico dosindivíduos uma certa tendência para a felicidade - Aristótelessoube reconhecer isso, Platão idealizou ao extremo e bipartiu arealidade, crendo o real como aparência e vice versa; ocristianismo acabou por destruir toda e qualquer relação do Eu como mundo, e Freud viu nela a agitação de impulsos supressores danegatividade. A busca pelo ideal se faz na luta cotidiana com arealidade, lugar de desejos infrutíferos. A densidade de uma palavra como Sehnsucht corresponde asentimentos igualmente profundos, cujo ímpeto é movido porforças positivas e negativas; daí sua ambiguidade latente. Aindaassim o composto não consegue exprimir o significado total, aocontrário de saudade, que não exprime totalmente o sentido deSehnsucht ou I miss you. Algo sempre se perde.

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A obra de ficção, quando artística, almeja também ao estado deplena felicidade - embora o conceito aqui seja de outra ordem. Oromantismo alemão erigiu, como o fez Novalis, o símbolo daprocura pelo inalcançável numa ideia, “a busca pela flor azul” (dieblaue Blüme). A mensagem de Morrison não é nova neste sentido;cumpre humildemente com a função do artista em sua obra de arte.A conquista da felicidade não suprime todo o caminho até suarealização; traz seu oposto, um sabor amargo, como certos frutosagridoces. Logo, palavras como esta trazem, no substrato, todauma história e temporalidade dúbias: são a história de um que,sendo um, refletem a história de todos, estão localizados entre umpassado futuro, entre positividade e negatividade. A palavra édialeticamente articulada ao mundo, a linguagem é estrutural a ele.Se o mundo é lugar doentio, a linguagem será espelho dele, ambosenvenenados pela falta de sentido, algo parecido com o sonho. E éde palavras que se faz um romance como The Bluest Eye. As ferramentas de tradução criadas e desenvolvidas na era dainformação banalizaram a prática a tal ponto de causaremestragos, mas não é de se negar que facilitaram muito ao mesmotempo. Basta recorrer a extensa bibliografia sobre a obra deMorrison desde a segunda metade do século XX aos dias atuais.Em parte, o ponto de vista isolado de certos estudiosos eliminamfatores decisivos a compreensão das contradições que permeiam efazem de sua obra algo tão complexo como os grandes nomes daliteratura, a exemplo de Machado de Assis, Paulo Lins, Leon Tolstoi,Dostoievski, William Faulkner e Virginia Woolf. A lista é imensa, e,cabe dizer, "grande" aqui não é sinônimo de obra feita unicamentepor europeus brancos, cuja linguagem é elevada e artificiosa, e porser exemplares na arte de narrar, logo são modelos a serseguidos. A obra de arte de fato foi exemplar por muito tempo -até o exato instante da bomba, da indústria cultural, da era dainformação; antes do nobel, da ideia de literatura como produtocultural único de certas nações, sua função era partilhar o todopelo olhar confiável de um -, e se mereciam ou não não cabedizer, a distância histórica atrapalha a vista. Para mim sãograndes sobretudo as obras (e não só os indivíduos) que trazemno bojo de suas ideias a negatividade como fator constitutivo doreal. Pois a ficção não é reflexo dela, não é uma fotografia que setire nos espaços de um shopping ou a beira mar. A ficção temhorror ao real. Ao mesmo tempo que o absorve já está prenhe dele.O leitor ou a leitora nem se dão conta, mal notam os sinais dotumor, e quando menos espera a náusea o abate, leva ao vômito, edeste ao alívio.

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Assim a ficção dgna de nota, do início ao fim, perturba, ela nos fazsonhar sua realidade fictícia: num instante o real é dado ao leitor,que por sua vez o vê num instante, exatamente na brecha entre oolhar e a palavra, matéria com a qual a ficção nos envolve. Naficção, a palavra tem uma carga radioativa, que não desvia a vistado acontecimento. Ela nos prende no sonho da ficção, e se apalavra é envenenada, somos envenenados também. O valor daficção não está no vômito ou no horror - no choque. Está naocasião do sonho e no porquê precisamos dele. Se, conforme as palavras de Harold Bloom, Toni Morrison éunanimidade e pertence ao cânone mesmo desprezando-o, osentimento de náusea é ainda maior, sobretudo para quem lê seusromances e se vê repentinamente de olhos nus. Ao que parece,parte da crítica dita literária continua presa a uma espécie dearrogância juvenil, vive no mundo das ideias, pensa-se intocávelpor observadores periféricos, “ressentidos”. O mais grave é queessa mesma crítica determina a visão do leitor desde suaformação escolar à universitária, e não que não deveria estar lá,mas por que ser exclusiva, por que não discutí-la? O esforço detraduzir o prefácio, e as notas abaixo, refletem esse incômodo, doqual não tinha conhecimento até ler a matéria escrita por JulianaCunha no site O Globo. + Aos olhos de alguém que, como Pecola Breedlove, também desejouter olhos azuis numa pele inconfundivelmente negra, acomplexidade de sua obra vai além do que pressupõe certa crítica,e é preciso se dar ao incômodo de questionar as próprias ideias econvicções - este o sacrifício que toda boa literatura requer dosleitores, independente de raça, gênero, posição social etc; afinal,em algum momento é preciso acordar - e talvez por isso certoslivros façam dormir, causem incômodo, sejam irritantes, nãodignos de nosso tempo e concentração; eles podem ser melhoraproveitados nas séries, nos filmes, nos atuais produtos destreamings, - pelo exercício da crítica, até vale a pena… Mesmo sendo estudada pela dita "Escola do Ressentimento" - quenas palavras de Bloom corresponde a toda a crítica marxista, osestudos afro-americanos, feministas, pós-estruturalistas (cito aquia matéria mencionada acima), - o romance bica o olhar de quemjulga sem pensar. Não importa a quem, quer aos defensores docânone, quer aos “ressentidos”.

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Afinal, apesar dos ganhos, um ou outro irá alargar ou estreitar osobjetos de pesquisa a cama de Procusto que lhes convém. Inclusiveeu, leitor, leitora. Logo, teci abaixo, em duas notas, consideraçõessobre o prefácio de Morrison ao seu primeiro romance. A intençãonão é a de guiar o olhar do leitor ou leitora antes do contato com aobra, mas de compartilhar minhas impressões após lê-la anosdepois. E sobretudo chamar a atenção para questões linguísticasinerentes ao estilo da autora, indissociável da perspectiva a partirda qual dá forma ao mundo que cria. Ademais, que cada um viva osonho da ficção, - e todos o mesmo. + Artigo: "Toni Morrison foi unanimidade literária". Acesse em:http://bit.do/morrisonporcunha

DUAS NOTAS AO PREFÁCIO: * “O romance bica o olhar de quem a condenou” (no original, “Thenovel pecks away at the gaze that condemned her”). O verbo “peck away” vem de “pecker” e significa “bicar”, tal como oPica Pau (Woodpecker) faz com a madeira. Ou seja, significa tornaralgo perceptível, um por um, como a galinha bica o milho ("hit thekeys, one by one, like a chicken pecking at grain"). Na frase emquestão, Morrison faz uso metafórico da expressão “pecks away atthe gaze that condemned her”, dando-lhe um duplo sentido: deempatia com a amiga da escola, um modo de reconhecer no atosua beleza (após zangar-se e julgá-la por querer olhos azuis),desfazendo-se assim do olhar comum, distanciando-se dele; ecomo ataque ao olhar reprovador e nocivo do branco, mas que nãoa isenta, afinal, também julgou sua amiga precipitadamente. O romance tem, assim, a dupla função de “picar”, de ir direto aoponto e causar incômodo ao olhar preconceituoso - seja o olhar dobranco, motivado pelo racismo, seja o do negro que, ao ser tomadopela fúria do julgamento, “gets mad”, irrita-se sem exame crítico. Ahistória de Pecola Breedlove não salva a ninguém da crítica, nem aprópria autora, daí sua ironia. A grandeza de Morrison não está sóno reconhecimento do outro e na análise dos aspectos sociais quedestroem a vida de suas personagens. Ela o faz distanciando-se,inclusive de si própria.

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** “Ver-se a si mesmo preservado no âmbar das metáforasinadmissíveis” (no original: “seeing oneself preserved in the amberof disqualifying metaphors”) Passagem em si metafórica e por isso requer comentário. O âmbaré uma resina fóssil usada desde a Idade da Pedra. É produzida porvegetais e passível de dois estágios, fluídico e sólido. Muito usadana confecção de ornamentos como colares e anéis, é capaz depreservar espécimes vegetais, insetos, aranhas, crustáceos e outrosorganismos minúsculos em seu interior, pois é resistente ao tempoe à água. Morrison aqui faz uso do vocábulo para caracterizar aqualidade similar da metáfora, capaz também de preservar eeternizar sentidos pela transposição destes. Ao falar de metáforasinadmissíveis, das quais alguém é preservado pelo âmbar destas,a referência diz respeito ao ponto de vista da autora: de crítica acomunidade branca norte-americana, responsável pela trágica vidade Pecola (e tantas outras meninas negras), como também dasociedade negra que, irrefletidamente, não aceita que uma garotatão bela aos seus olhos deseje ter olhos azuis. Cabe enfatizar, talrejeição diz respeito a uma particularidade norte-americana,explicável por suas raízes históricas de escravidão e posteriorsegregação racial. No século XX, ela funda raízes não só narelação comunitária entre negros e brancos nos EUA, na repulsa àimagem do último. O fenômeno não só adentra como tambémcontamina as relações sociais entre negros, na medida em queestes passam a rejeitar o negro que quer ter olhos azuis, semtomar distanciamento, sem compreender o porquê do desejo dooutro, de seu próprio rancor, e da rejeição e ódio mútuos. O negrocomo membro da comunidade isolada é tema inclusive de umromance tardio, Paraíso. Ruby é uma cidade no oeste onde não sepisa se não tiver sangue cem por cento negro e se não for tementea Deus. Onde indivíduos de pele mais clara não são aceitos.Morrison fala da intolerância em ambos os lados da moeda norte-americana, daí sua magnitude.

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