b . a . b . i . l . a . q . u . e . s - oi futuro · tos manuscritos, montagens, desenhos e...
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. B . A . B . I . L . A . Q . U . E . S .
W A L Y S A L O M Ã O
a l g u n s c r i s t a i s c l i v a d o s
É tarefa difícil falar dos anos 70 sem mencionar um homem que já naquela
época podia ser classificado de “múltiplo”. Waly Salomão dialogava com raro
prazer entre a poesia e a arte visual, transitando pelas vanguardas modernistas
conceituais e seus desdobramentos: minimal art, performance art, body art, land art,
earth works e outros “parangolés” artísticos. Ele foi fundo. Profeta de seu tempo, viveu
na pele as expressões mais representativas do caráter experimental da arte brasileira.
Nada mais Oi Futuro do que Waly Salomão. É com grande alegria que este espaço
de convergência de idéias e pessoas, de tecnologia e arte, recebe as séries de poemas-
objeto Babilaques: alguns cristais clivados, produzidos no Rio de Janeiro, em Salvador
e em Nova York.
Essa soma de linguagens convivendo dentro de um único suporte, no caso, fotografias
tiradas das páginas dos cadernos de criação, matéria-prima desta exposição, foi registrada
sob a orientação do próprio artista. Não se trata, portanto, de uma obra póstuma. Aqui,
Waly – mais presente do que nunca – despe-se das amarras dos salões convencionais e
desdobra, em cada página de seus Babilaques, uma nova faceta de sua arte.
Viva Waly!
Maria Arlete Gonçalves
Diretora do Oi Futuro
suMÁrio
BaBilaques: poesia e arte 10
Luciano Figueiredo
BaBilaques 19
Waly Salomão
os BaBilaques de waly saloMão 23
Antonio Cicero
interfaces da linguageM poética 31
Arnaldo Antunes
BaBilaques ii 61
Waly Salomão
joHn ice get in toucH witH jacK no ice 78
Arto Lindsay
salMo 97
Armando Freitas Filho
walytopias. seis tópos topos u-tópos por amor //
gesto de um certo marinheiro árabe da Bahia 112
Ericson Pires
caMBiar de idioMa pour
provoquer systéMatiqueMent le délire 118
Stephen Berg
englisH translation 125
BaBilaques: publicações, exposições, projeções 138
soBre waly saloMão 141
BaBilaques
construtivista taBaréu 38
as MandíBulas do tuBarão iMperialista versus soMBra cHinesa
de capiM de caBoclo. dramatização em 5 quadros em aberto 46
alterar
caltdernaro 50
altduplicadernaro 52
under tHe Bare tree 54
Koan 56
figuras alpinas 62
Mondrian Barato 66
stride 70
sol cru. no verão... é habitada pelos deuses 74
trying to grasp tHe suBway graffitti’s Mood 82
Mar... e as sereias desaparecendo por falta de estímulos comerciais 84
aMalgâMicas 86
santo graÁlfico 90
Brasilly 92
território randôMia 94
winterlúdio 98
vertozigagens 100
logBooK 104
torpedo suicida 108
olavo Biócio 116
11
As vinte séries de fotografias intituladas Babilaques, realizadas por Waly
Salomão em Nova York, no Rio de Janeiro e em Salvador de 1975 a 1977,
constituem forma rara e surpreendente da relação entre poesia e arte.
Espanta-nos, hoje, o fato de não terem sido direcionadas ou absorvidas pelo circuito
de artes plásticas, permanecendo, ao mesmo tempo, pouco conhecidas pelos poetas e o
mundo literário. Isso, contudo, não é de todo imprevisível, se consideramos o quanto
Waly Salomão afirmou e defendeu o sentido de seu processo criativo em poesia, que
definia como caminho sinuoso, enviesado, meândrico, polissêmico, e sobre o qual gos-
tava de insistentemente replicar e retrucar.
Ao reunir pela primeira vez na exposição Babilaques: alguns cristais clivados essa
parte pouco conhecida de sua obra, cuja grafia -B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S- ele gostava de
utilizar e desenhar, para salientar o significado das imagens produzidas, lembramos do
poeta extremamente culto que soube bem apreciar e incorporar à sua poética exem-
plos da arte e dos pensamentos sobre a arte que talharam a sua sensibilidade. Assim,
torna-se evidente que sua poesia se fez e permaneceu muito ligada não só à pintura
e à escultura, como também à riqueza do espírito libertário próprio das vanguardas
artísticas do século XX, que contribuiriam fortemente para levá-lo a expressar-se não
apenas em prosa e verso.
Trata-se, pois, de expressão “amalgâmica” envolvendo a inter-relação entre as dife-
rentes artes e realizada em fotografias que registram, em ângulos e luzes particulares,
espacializações de palavras, construções e desconstruções semânticas, ideogramas, tex-
tos manuscritos, montagens, desenhos e colagens, todos eles executados em cadernos
de espiral pautados, de diferentes formatos, intencionalmente assumidos como valores
BaBilaques: poesia e arte
luciano figueiredo
12 13
estruturais. De um lado, os cadernos de espiral como objeto elementar, simples, banal;
de outro, uma operação realizada nesse suporte de proposição poético-visual extre-
mamente audaciosa e sofisticada: a mise-en-scène que se constrói quando o poeta
situa para a câmera sua escrita de objetos que configurarão múltiplas leituras e
significados.
Ao lado da forma gestual e espontânea de diferentes versões de sua caligrafia, atuam
valores plásticos como cor, plano, espaço, luz e tempo, inseridos em colagens de ima-
gens impressas, objetos e ambientes. O trabalho da câmera, realizado quase sempre
por Marta Braga, enquadra os cadernos em situações escolhidas, muitas vezes inusi-
tadas, ao ar livre ou em ambientes montados para o momento do clique e o flagrante
do jogo cinético-visual. Vêem-se os cadernos em calçadas de diferentes cidades,
em pisos, gramas, superfícies de pedra, sobre roupas, palhas de palmeira, lençóis de
cama, remos de barco, ao sol, ou mesmo em camadas, uns sobre os outros; o caderno
CALTDERNARO ou o caderno ALTDUPLICADERNARO.
Reveladas em slides de 35 mm, as fotografias, algumas das quais publicadas pelo
próprio Waly em revistas de poesia ou projetadas em eventos animados por suas elo-
qüentes leituras de textos, distribuem-se em grupos sob um título específico. Mui-
tas vezes, é o próprio título que dá forma final ao conjunto de imagens, como em
KOAN, MONDRIAN BARATO, CONSTRUTIVISTA TABARÉU, BRASILLY e AMALGÂMICAS.
Mas se trata sempre, como o poeta repisava, de uma operação “polissêmica”, uma
mescla pessoal de signos, idiomas e linguagens, que se fundem em um exercício de
imagens sobre imagens.
Waly estabelece, com razão, um diferencial em relação à chamada poesia visual,
categoria estanque e variante da arte conceitual, que tentava, na mesma década em que
os Babilaques foram feitos, superar conflitos das vanguardas modernistas, por intermé-
dio de desdobramentos em minimal art, performance art, body art, earth works e land
art, entre outras manifestações.
* * *
CREIO QUE, PARA ENTENDER MAIS DETALhADAMENTE esse viés da obra de Waly
Salomão, é preciso lembrar de alguns momentos de sua trajetória como poeta, entre
os quais a formação no calor das vanguardas baianas no início dos anos 1960 e seus
primeiros textos após a mudança para o Rio de Janeiro e São Paulo.
Durante os anos em que viveu na Bahia, como estudante de direito e teatro, inserido
no movimento político estudantil, Waly participou de excepcional período cultural e
da modernização institucional das artes e ciências do país. De 1958 a 1964, as van-
guardas, presentes nas artes plásticas, na música experimental, na dança, no teatro, no
cinema, na museologia, na antropologia e na educação, não só formaram um núcleo
de possibilidades de interação entre as artes, como também iniciaram uma experiência
pioneira de descentralização cultural ante a força hegemônica do eixo Rio de Janeiro–
São Paulo. Isso certamente marcou profundamente talentos formados na província,
como Waly Salomão, servindo de base para a articulação de novas idéias e posições
culturais, que, nos anos seguintes, enfrentariam o gravíssimo conflito social decorrente
dos desafios de sobrevida da livre expressão, amplamente cerceada após a tomada do
poder pelos militares.
Dito de outro modo, a partir de 1970, a vida cultural no Brasil se constitui de uma
riquíssima e bastante complicada malha de valores, que, de maneira ambígua, limita e
enriquece o legado das grandes realizações artísticas e ideológicas ocorridas nas déca-
das de 1950 e 1960. Essas realizações estiveram, quase uma a uma, diretamente ligadas
ao balizamento das esquerdas políticas e culturais que lideraram, sobretudo na capital
brasileira e nos estados vizinhos, as principais instituições culturais do país, entre as
quais universidades, museus, jornais e editoras.
Um dos mais importantes exemplos desse balizamento foi o Movimento Neoconcreto
(1959–1960), cujos artistas não eram, nem tinha sido militantes de esquerda, mas ti-
veram seu projeto apoiado e difundido pelo melhor das esquerdas culturais na época.
Esse apoio e difusão foram tão marcantes que, hoje, é válido indagar se o destino desses
artistas teria sido o mesmo, se desacompanhado da participação, sem precedentes na
história da imprensa brasileira, do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil.
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Não é inconveniente mencionar que, nesse período, circulavam, apenas no Rio de
Janeiro, ao menos sete jornais diários: Jornal do Brasil, Diário de Notícias, Correio da
Manhã, O Globo, A Última Hora, Tribuna da Imprensa e O Dia, expostos a diferentes
influências políticas. Todos eles possuíam seções para a crítica de artes plásticas, ci-
nema, teatro, música e literatura, em que nomes como Mario Pedrosa, Ferreira Gullar,
Reynaldo Jardim, Oliveira Bastos, José Guilherme Merquior, Roberto Pontual, José
Lino Grünevald, Paulo Francis e Millôr Fernandes cobriam regularmente o panorama
cultural da cidade.
* * *
A GERAçãO QUE FORMARIA A MANIFESTAçãO posteriormente chamada de contracultura
herda o enfraquecimento que atingiu as esquerdas culturais, ou seja, aquelas que já não
sabiam como absorver o novo teatro, a nova música, a nova poesia, as novas idéias e
as novas manifestações da música popular, que provavelmente teve no momento tro-
picalista, em 1967, o seu mais acirrado debate.
A exposição organizada pelo artista plástico Carlos Vergara no Museu de Arte Mo-
derna do Rio de Janeiro em 1971, curiosamente intitulada Exposição, é um momento
muito significativo da relação de Waly Salomão com as artes plásticas. Tratava-se de
um evento experimental que incluiu artistas que jamais haviam participado de exposi-
ções de arte. Waly mostra um único trabalho, a fotografia, feita por Bina Fonyat, de um
poema visual, em que a palma de sua mão aparece aberta sobre típicos suvenires ca-
riocas (pratos pintados com papagaios, asas de borboleta, palmeiras, o Pão de Açúcar e
o Cristo Redentor), e sobre ela uma curta frase oswaldiana: “Conheço o Rio de Janeiro/
como a palma da minha mão/ cujos traços desconheço”.
Assim, o artista começa a explorar as possibilidades de poemas visuais e experimen-
tais com palavras e objetos. É dessa época (1971–1972) sua parceria comigo e Óscar
Ramos em trabalhos ambientais com palavras ampliadas, entre os quais as palavras-
destaque -FA-TAL- e VIOLETO, utilizadas como cenografia do espetáculo musical Gal
“conHeço o rio de janeiro/ coMo a palMa da MinHa Mão/ cujos traços desconHeço”
fotografia [photography] Bina Fonyat, Rio de Janeiro, 1972. Coleção particular [Private collection], Rio de Janeiro
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a todo vapor, e o poema “ALFA ALFAVELA VILLE”, para o qual criamos letras gigantes
levadas para uma performance coletiva de jovens artistas na praia de Copacabana.
Essa performance foi fotografada por Ivan Cardoso para a revista Navilouca, publicada
logo depois por Waly e Torquato Neto. Ainda nessa época, ele realiza com José Simão,
em diferentes favelas do Rio, o filme inacabado Alfa Alfavela Ville, apresentado pela
primeira vez nesta exposição.
* * *
QUAIS SERIAM, ENTãO, AS ESCOLhAS DA ARTE na trilha oblíqua e não programada de
Waly Salomão? O que forma o seu repertório de arte, pintura, escultura, cinema, idéias
e pensamentos finamente escolhidos, e que ele teria elegido como afinidades funda-
mentais?
Se quisermos apreender o cerne de sua persona artística, é possível rastrear o lirismo
sublime dos desenhos e das pinturas de Paul Klee; as abstrações de Wassily Kandinsky;
os poemas caligramas de Guillaume Apollinaire; os relevos, a poesia e as formas orgâ-
nicas de Jean Arp; as assemblages e os quadros Merz de Kurt Schwitters; as pinturas e
os poemas de Francis Picabia; as obras de Piet Mondrian, Marcel Duchamp, Alexander
Rodchenko, Laszlo Moholy-Nagy, Man Ray, Dziga Vertov, Sergei Eisenstein, Bertold
Brecht e Jean-Luc Godard; as vanguardas do Brasil; e, enfim, tudo o que se quis e se
fez como autonomia da arte no século XX, e que estimularia, mas não de modo formal
ou mesmo estilístico, a expressão poética e o experimento livre que deram origem aos
Babilaques.
À diferença da visualidade da poesia concreta e de seus postulados e programas, os
Babilaques se inclinam para uma afirmação da subjetividade e da vida, de um ideário
artístico individual que se constitui ao abraçar livremente a idéia de interação entre as
artes. Algo bem próximo do sentido experimental assumido pela arte brasileira desde
o Movimento Neoconcreto, com o qual Waly Salomão manteve diálogo estreito, em
particular com hélio Oiticica, um dos primeiros leitores e entusiastas do manuscrito
que, em 1972, se tornaria o livro Me segura qu’eu vou dar um troço.
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Waly logo percebeu a complexidade dos conflitos artísticos e ideológicos que mar-
caram a fissura conceitual entre o Concretismo e Neoconcretismo, extraindo para si
qualidades de ambos e não lhe deixando pesarem paternidades ou reverências, que
algumas vezes podem inibir a exploração de expressões individuais. Sua parceria edito-
rial com Torquato Neto na revista Navilouca representou um momento-síntese da visão
de um grupo de poetas e artistas que “apostavam” em um respiradouro, em um meio
de superar os conflitos ideológicos que incidiam sobre todas as expressões artísticas da
época. Se não, como entender a frase: “pelo açougue, também se chega a Mondrian”,
de haroldo de Campos?
Os muitos cadernos de Waly Salomão com escrituras, caligrafias e desenhos não
são manuscritos passíveis de transcrição para tipografias ordenadas e diagramadas em
páginas de texto impressas. São antes objetos poéticos que ele elaborou sem influên-
cia formal de seu repertório artístico. Por isso, não permitem o fetiche ou o culto do
“caderno de artista” ou dos bastidores de criação.
Os Babilaques se iniciam quando ele vai viver em Nova York, deixando para trás o
peso dos conflitos ideológicos enfrentados no Brasil. Na metrópole norte-americana,
encontra condições para realizar o que, de maneira lírica, anunciara no capítulo “The
beauty and the beast”, de Me segura qu’eu vou dar um troço: o ideograma KLEEMINGS,
isto é, Paul Klee + E. E. Cummings = “momento de limpeza”. Literalmente, um outro
momento “na esfera da produção de si mesmo”; desta vez, integralmente por meio da
arte e da poesia.
Rio de Janeiro, agosto de 2007