b · 2016-07-05 · partir da influência dos higienistas através da criação da seção de...
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O "pequeno jornaleiro" nas páginas dos impressos paranaenses: "menores",
família e trabalho (Curitiba, 1960-1985)
Nicolle Taner de Lima1
Os jornais paranaenses foram e ainda são parte do cotidiano das pessoas no
estado. Em bancas ou por assinatura, chamadas televisivas ou pelo acesso virtual, as
manchetes diárias dos principais veículos impressos são o meio pelo qual milhares de
pessoas no Paraná se informam. Em outra época, os diários e gazetas eram divulgados
de uma forma distinta.
“Extra!Extra!”, bradavam os pequenos jornaleiros - além de algumas
manchetes para chamar a atenção do leitor-amigo, consumidor. Cada um com seu
ponto de venda demarcado, devidamente trajados com o uniforme da Casa do Pequeno
Jornaleiro, a postos cedinho para receber o trabalhador apressado.
Criada em 1943, a Casa se destinava, segundo seu estatuto “(...) a amparar,
educar e encaminhar os menores vendedores de jornais, prestando-lhe assistência
material, moral e intelectual. 2 A partir da moralização pelo trabalho, uma estratégia
pedagógica no combate à delinquência infantojuvenil, prestando-lhes assistência
educacional e material, pretendia organizar meninos que já exerciam a função de
vendedores de jornais. (PEREIRA, 2009, p. 08)
A partir da afirmação de que esses meninos já realizavam a venda de jornais,
pode-se compreender que essa era uma prática comum entre crianças abandonadas e
pobres. (PEREIRA, 2005, p. 29) O trabalho formal e informal de crianças, mesmo para
aqueles que moravam com suas famílias, se fez presente ao longo da trajetória histórica
da sociedade brasileira, mas passa a se tornar um problema para o Estado quando do
aumento da mendicância e outras práticas ilícitas, que se realizam em um ambiente
considerado perigoso à infância: a rua.
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Estado de Santa Catarina, na linha de
pesquisa intitulada Culturas Políticas e Sociabilidades. Orientadora: Prof. Dra. Silvia Maria Fávero Arend. Bolsista
CAPES. email para contato: [email protected] 2 Extrato dos Estatutos da Casa do Pequeno Jornaleiro, 21 de setembro de 1942.
Segundo Faleiros, (1995, p. 49) as infâncias pobres sempre foram objeto de
política: do controle, proteção, legitimação, organização ou preparação escolar. Porém,
as primeiras décadas da República apresentam alguns desafios maiores para os juristas e
para o Estado com o crescimento do êxodo rural, urbanização e industrialização. O
início do século XX concilia duas visões sobre a relação criança e rua que caminharão
juntas durante muitos anos: a higienista e a do progresso. A higienista porque se
entendia que o lugar para a criança/menor não era a rua e sim um lar com uma família
estruturada – pautada na norma familiar burguesa, noção esta que tornava um problema
qualquer configuração diferente de família. 3
As famílias pobres eram relacionadas com a ignorância e vícios e acusada de
ser incapaz de educar e formar as crianças e se pode perceber esta questão inclusive a
partir da influência dos higienistas através da criação da Seção de Higiene Infantil do
Departamento Nacional de Saúde Pública, por exemplo, bem como na defesa da
importância de crianças robustas e do controle do aleitamento materno, mas ainda mais
quando se percebe que o Estado tinha respaldo para interferir quando entendesse que a
família não era adequada para criar, proteger e educar os filhos, como assinala o artigo
31 do Código de Menores de 1927:
Nos casos em que a provada negligencia, a incapacidade, o abuso de poder,
os máos exemplos, a crueldade, a exploração, á perversidade, ou o crime do
pae, mãe ou tutor podem comprometer a saude, segurança ou moralidade do
filho ou pupillo, a autoridade competente decretará a suspensão ou a perda do
patrio poder ou a destituição da tutela, como no caso couber. 4
O discurso dos defensores do progresso perpassava a questão da urbanização e
visibilidade da pobreza ficava cada vez mais evidente e incômoda para o Estado.
(PEREIRA, 2009, p. 24). Segundo Rodrigues, (1998, p. 13) a emergência em tratar os
pobres coincidia com um projeto de construção de uma nação civilizada, pautada no
progresso. Para os intelectuais
era necessário organizar racionalmente o espaço físico e social, porvir
fulgurante vitória da ordem e progresso sobre as forças caóticas. Ao planejar
3 Ponderações: os termos menor e família desestruturada, serão utilizados apenas quando me referir às fontes e ao
ideário da época – e portanto, destacados em itálico. Ao me referir aos sujeitos, empregarei termos como crianças,
meninos, adolescentes ou similares. 4 BRASIL Decreto n.o 17943 A, de 12 de outubro de 1927. Capitulo V, Art 31.
uma cidade modelo almejavam-se ruas limpas de toda sujeira física e
humana, nada de miséria exposta nem de crianças famintas a pedir esmolas.
Nesse novo centro urbano não havia lugar para crianças e mulheres que,
empurradas pela miséria de fome, faziam do espaço de rua local de
sobrevivência e lazer.
Ainda no Estado Novo, o progresso se relaciona com outras questões, outros
sujeitos. Com o advento do nacionalismo, as políticas direcionadas à infância se
relacionam mais com a preservação da raça, manutenção da ordem e com o progresso
da nação. Há, portanto, certa transição acerca das políticas públicas para a infância,
sendo o menor visto como um problema social e a intervenção jurídica passa a ter
caráter mais assistencial.
É a partir da ideia de que estes meninos e meninas seriam o futuro da nação, o
Estado passasse a chamar para si as tarefas de educação, saúde e punição para crianças e
adolescentes. Para Silva, (SILVA, 1997, p. 45) esta fase de políticas para a infância, que
ele denomina “Assistencial”, é marcada pela existência de convenções e tratados
internacionais, pelo estabelecimento da assistência como responsabilidade do Estado,
pela diferenciação das leis para o menor desassistido e o menor infrator, e pela
afirmação do Poder Judiciário no trato das questões da infância: foram criadas diversas
instituições no início da década de 40, pelas quais se pretendia formar trabalhadores
como capital humano, através do preparo profissional, e resguardar a noção de
hierarquia por meio da educação das crianças. (PEREIRA, 2009, p. 33)
No Paraná, já no fim da década de trinta do século XX, foram criadas
instituições em parte para substituir estabelecimentos que já existiam; a maioria dessas
escolas se destinava a oferecer assistência a meninos pobres, órfãos e abandonados, em
regime de internato e semi-internato, ofertando cursos e oficinas visando à preparação
para o trabalho, ou ainda, funcionando como colônias de reclusão, mantendo a ideologia
de moralização pelo trabalho.
É neste contexto que se cria a Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, aos
moldes da instituição homônima no Rio de Janeiro, idealizada pela esposa do
interventor Manoel Ribas, D. Anita Ribas. Segundo Pereira, (PEREIRA, 2009, p. 36)
desde sua fundação, a Casa teve grande apoio dos jornais do Paraná, inclusive
recebendo subsídios por parte da imprensa – apoio que o autor credita à relação com a
venda dos jornais; a instituição por sua vez, prestava sempre homenagens aos
representantes e diretores dos veículos de informação.
A partir das fontes impressas disponíveis na Biblioteca Pública do Paraná, se
pode notar que a imprensa divulgava, majoritariamente, as datas festivas e descrevia as
ações da casa. Ao analisar o discurso dos periódicos paranaenses pretendi notar como os
jornais fazem referência à Casa, como os meninos são chamados e como estão
representados por estes periódicos, com quais termos e se suas histórias anteriores ao
trabalho de jornaleiro são contadas.
A Imprensa Paranaense
Os dois principais jornais editados em Curitiba ainda hoje, são a Gazeta do
Povo e o jornal O Estado do Paraná, sendo os mais fortes “(...) conglomerados de
comunicação do Paraná, responsáveis, em grande medida, pelas informações
consumidas pela maioria da população paranaense e, consequentemente, pela
formação da opinião pública”. (OLIVEIRA FILHA, 2004, p. 87)
Durante as primeiras décadas de funcionamento desses impressos, se
consolidaram também como jornais oponentes entre si e suas origens se relacionam com
o campo de disputas políticas no estado. Para a comunicadora e socióloga Elza Oliveira
Filha, (2004, p. 91) “não é possível desconsiderar, em qualquer análise que se faça da
imprensa, as complexas relações entre o campo das mídias com os demais campos
sociais, sobretudo o econômico e o político.”
Fundada em 02 de fevereiro de 1919, a Gazeta do Povo em seu primeiro
editorial, se dizia independente e imparcial, mas 40% do primeiro número era ocupado
por propagandas e nas reportagens se via uma defesa enfática pela candidatura de Ruy
Barbosa à presidência. Em sua primeira fase, antes da venda, a Gazeta apresentava um
jornalismo com características notadamente locais e de prestação de serviços e uniu
características de imprensa de opinião e imprensa comercial, nas definições sugeridas
por Bernard Miége.
O Estado do Paraná, inicialmente nomeado “19 de Dezembro”, foi criado em
1951 para dar sustentação ao governo de Bento Munhoz da Rocha, já que seu rival
política era proprietário do jornal “O Dia”, além de deter 50% da Gazeta do Povo
também. (OLIVEIRA FILHA, 2004, p 91) Com o apoio do governo, o jornal aumentou
sua circulação e tiragem, procurando alcançar o interior e oferecer uma cobertura
regional dos acontecimentos.
Na década de 1960, os dois enfrentaram crises e foram vendidos; a Gazeta se
tornou o principal jornal de classificados e anúncios imobiliários, sendo anexada à Rede
Paranaense de Comunicação, responsável também pela transmissão do sinal da TV
Globo no estado; ao passo que O Estado do Paraná foi vendido ao secretário de
Agricultura, Paulo Pimentel, que adquire outros veículos impressos no norte
paranaense, além de canais de televisão e rádio.
Nesta breve exposição sobre os dois jornais com maiores repercussão à época
do recorte temporal aqui compreendido, pretendi que fosse notada a relação desses
impressos com o meio político: ao criar um jornal para a amparar as ações do
governador, a estreita relação que possuíam com secretários, governadores, quando não
com parentes destes, como um apoio político poderia aumentar ou diminuir as tiragens
de um impresso.
Outros jornais utilizados aqui como fonte possuem menor relevância no estado,
nos quesitos distribuição e alcance, mas também porque muitos deles não existem mais,
tais como, o Diário Popular, que circulou durante 47 anos, sendo extinto em 2010
devido a problemas financeiros5 ou ainda, o Diário do Estado, que circulou pelo estado
entre 1955 e 19836 - há ainda o Jornal do Estado, sobre o qual não se encontra muitas
informações.
O importante aqui é perceber como os jornais podem ser enunciadores de
valores e discursos que influenciam os leitores, (DAMINELLI, 2012, p. 04) como
podem alimentar a memória social, já que capazes de criar e fixar representações sociais
de acontecimentos, pessoas, datas e se postulam como meio emissor e propagador de
verdades: (MACHIESKI, 2014)
Os meio de comunicação de massa são parte constitutiva dos
fenômenos sociais que marcam as memórias sociais e as narrativas
históricas contemporâneas, ao assumir o papel de destaque na
5 Diário popular deixa de circular aos 47 anos. Gazeta do povo. 27.08.2010. 6 O Caldeirão intelectual paranaense. Gazeta do Povo. Curitiba. 17.12.11.
formação dos códigos que constituem as culturas políticas.” (AREND,
LOHN, 2014, p. 11)
É fundamental, isto posto, compreender os jornais como fontes enunciadoras
de discursos que se dizem verdades, mas não como verdades. Entender que a riqueza
desses vestígios está justamente na subjetividade dos interesses de quem os produzia,
para se analisar os discursos e “(...) procurar desnudar o jogo de interesses que regem a
sociedade e que ela, a imprensa, de modo velado, seguidamente procura atender”.
(ALVES, GUARNIERE, 2007, p. 09)
Pobres e órfãos, menores e abandonados: o jornaleiro noticiável.
Para esta investigação sobre a relação entre a imprensa paranaense, a Casa e os
meninos, foram selecionadas onze peças jornalísticas – algumas bem completas e com
várias fotografias, outras, pequenas notas e reportagens menores. O recorte da pesquisa
é o mesmo de meu projeto de mestrado, a saber, os anos compreendidos entre 1960-
1985, temporalidade escolhida para que eu possa analisar os vestígios à luz de duas
legislações, o Código de Menores de 1927 e o de 1979, além de que as fontes
perpassam todo o período em que a sociedade brasileira se encontrou em regime civil-
militar.
Estas onze reportagens fazem parte de cinco jornais impressos paranaenses: a
Gazeta do Povo (com quatro matérias), o Jornal do Estado (2), O Estado do Paraná (2),
o Diário do Paraná e Diário Popular, com uma cada, além de uma peça sem
identificação de origem ou data, mas que avalio como dos anos 1980, devido às
referências a datas comemorativas.7 É importante frisar que, muito provavelmente,
existiram outras reportagens, matérias ou notas sobre a Casa, entretanto estas são as que
estão disponíveis no acervo da Biblioteca Pública no Paraná e em algumas pastas
individuais dos meninos que viveram na instituição, fontes estas salvaguardadas no
Arquivo Municipal de Curitiba.
A maioria destas reportagens foi publicada em dias de semana, duas delas em
feriado (dia da Independência) ou véspera de natal; somente 03 delas foram publicadas
7 Essa última reportagem, mas por motivos metodológicos, visto que não possui data, autor, ou
informações a que jornal pertence, foi excluída da análise.
durante o fim de semana, dias em que os jornais possuem matérias mais detalhadas,
com cadernos esportivos e culturais, maior número de páginas e são lidos com mais
calma. Das onze peças, quatro são matérias médias ou grandes, ocupando metade ou
mais da metade da página, as outras são pequenas notas ou reportagens que ocuparam
menos de um quarto da folha.
As imagens também estão presentes, na maior parte das fontes: são 20
fotografias em sete das reportagens. As imagens em preto e branco apresentam meninos
sozinhos ou em grupos, vestidos em seus uniformes, com jornais nas mãos, exercendo
seu ofício; algumas delas são dos meninos rindo em momentos de lazer, sala de jogos
ou jogando bola; outras dos ambientes da Casa, mostrando a estrutura dela, como o
refeitório, dormitório, salas de aula, etc. Apesar de não ser o intento deste artigo analisar
as representações dos meninos na imagem especificamente, se entende que a imagem
também é portadora de discurso, influenciando a percepção e apreensão do texto.
(ALVES, GUARNIERE, 2007, p. 16)
É interessante perceber também que a maioria das reportagens possui um tom
jornalístico mais leve, quatro delas com uma escrita que se assemelha a crônicas e
contos. Iniciam de forma romantizada, como a peça intitulada “Êles vendem notícia”:
“Quando os primeiros raios do sol aparecem no horizonte, uma pequena parte da
população de Curitiba levanta-se silenciosamente (...)”; 8 relatam saudosos os tempos
idos, quando se ouvia as manchetes cantadas pelos meninos ou jornalistas: “Extra!
Extra! – Desde a década de 60 não se ouvem mais esses gritos acompanhados da
principal manchete do jornal pelas ruas de Curitiba”, 9 e tratam de maneira descontraída
e emocionada das brincadeiras e desejos para o futuro dos meninos... Na reportagem
“Compra um jornal, tio”, uma das poucas matérias assinadas dentre as selecionadas, e
que já no subtítulo da matéria, se pode notar a linguagem mais sentimental:
Por detrás da poesia que pode representar o fato de sair às ruas com
um pacote de jornais debaixo do braço para vender, está toda uma
história de alguém órfão de pai e mãe que busca viver decentemente. 10
8 Êles vendem noticia. Gazeta do povo. Curitiba 07.02.1970 9 Jornaleiro, a época romântica acabou. Curitiba .15.12.1983 10 Compra um jornal, tio. O Estado do Paraná. Curitiba. 14.12.1980.
A autora Cristina Ponte (2005, p. 91) disserta sobre o fato de que o
sensacionalismo e sentimentalismo acompanham a noticiabilidade da infância. Pela sua
carga dramática ou ao se relacionar a temas leves de informação, as notícias abordam
conteúdos de proximidade com os leitores – mais do que informar sobre a Casa, ou
situação dos meninos, as matérias-crônica parecem mais ofertar um momento de leveza,
marcados por histórias difíceis de meninos que sonham com um futuro melhor.
Para identificar e problematizar os discursos acerca da Casa e dos meninos que
nela moravam, procurei verificar nas matérias elementos e termos recorrentes e
estruturas comuns. Para fins de análise, dividi estes termos em três eixos: O Menor e a
Criança, Família e Origem e Trabalho e Moralização.
O termo menor aparece 11 vezes ao longo de todas as reportagens, sendo que
em algumas não há menção ao termo. Três desses usos marcam apenas a idade dos
meninos, a faixa etária destes; entretanto, todas as outras vezes o uso da terminologia
“(...) baliza fatores de ordem social, econômica, moral e não apenas o quesito idade –
inferior a 18 anos.” (MACHIESKI, 2014, p. 03) Muitas destas vezes a palavra está
acompanhada de abandonado, carente, desprovido, órfão, uma delas até utiliza o termo
ex-menores carentes, porque segundo o jornal, agora estariam bem assistidos. 11
Entretanto, outras palavras foram mais utilizadas para identificar os meninos:
adolescentes, pequenos jornaleiros, garotos, garotada, meninos, jovem, internos ou até
pensionista da instituição.
Apesar do uso do termo menor, que distingue o menino desfavorecido daquele
que tem um lar e uma família, a recorrência do uso de outros substantivos parece
mostrar uma tentativa dos jornais em melhorar a imagem dos garotos e exaltar o
trabalho da Casa, como por exemplo, a ênfase na carência e na orfandade destes garotos
enaltecimento da árdua tarefa dos jornaleiros, mostrando como eram esforçados, mas
também em mostrar que eram ainda crianças: na descrição do cotidiano dos meninos, há
sempre uma menção às brincadeiras (jogos de futebol e fliperama) e pequenas
confusões típicas da idade. Também parece que se tentou marcar a diferença entre esta
e outras instituições, entre estes e outros meninos, como afirmou em entrevista o diretor
da CaPeJo, Milton Kafka:
11 Conheça o exemplo dos pequenos jornaleiros. Jornal do Estado. Curitiba. 07.09.1983.
Apesar de pertencer ao IAM [Instituto de Assistência ao Menor] (...)
funciona em moldes bem diferentes dos outros organismos que
pertencem ao Instituto. Para começar, ela não se destina à recuperação
de delinquentes juvenis, nem funciona tipo casa de correção. Os
meninos que vão pra lá são todos órfãos, sem ficha na polícia mas,
nem por isso menos carentes que todos os menores que existem por aí.
A fala dos meninos também teve espaço nos jornais: das 11 reportagens, seis
delas contém fala dos garotos. São falas sobre sua origem e da família, sobre a rotina da
Casa, sobre os planos para o futuro – as falas e as incertezas típicas da infância davam
certo tom descontraído e marcavam o que afirmo acima sobre o fato de que eram apenas
crianças, da pretensão de melhorar a imagem dos meninos. É o caso de João Farias
Souza*, 13 anos à época, cuja fala inicia a reportagem “Recado do João: ‘tá tudo bem
aqui, pai”’: “- Então amanhã vou vender jornal com a minha fotografia”.12
É comum o enaltecimento dos jornaleiros exemplares, descritos como modelos
para os outros internos, disciplinados, trabalhadores e com uma boa quantia no banco:
parte das vendas dos jornais era depositada em uma caderneta na poupança da Caixa
Econômica Federal, “(...) para preservar o futuro”. 13
Dos nove meninos entrevistados, todos se reportaram bem a Casa e elogiaram
a estrutura, se dizendo apegados ao diretor e à rotina. Deve-se problematizar,
certamente, que os meninos escolhidos a dar entrevista muito provavelmente eram
selecionados pela casa. Apesar disso, Paulo Leandro Garcia*, reclamou um pouco do
dia-a-dia de jornaleiro, de trabalhar na chuva, mas sobretudo da pouca quantia ganha,
segundo ele:
“Só recebemos em torno de Cr$ 3000, o resto vai para a poupança.
Mas com três mil, não dá pra fazer nada. É só uma gorjeta que eu
gasto sempre no fliperama.” 14
Já a narrativa da procedência e da família das crianças abrigadas na instituição
marca dois aspectos: o discurso atrelado à norma familiar e o da importância da Casa na
vida destes garotos. A origem é sempre descrita como humilde e os meninos se
lembram dela com pesar nas entrevistas; as palavras desregrada ou desestruturada
acompanham a palavra família, para explicar o porquê da estadia dos meninos na
12 Recado do João: “Tá tudo bem aqui, pai”. Estado do Paraná. Curitiba. 07.10.1976. 13 Jornaleiro, o trabalho que começa muito cedo. Gazeta do Povo, Curitiba.19.08.1983 14 Jornaleiro, a era romântica acabou. Jornal do Estado, Curitiba. 15.12.1983.
instituição. Pelas reportagens, alguns possuíam membros da família, mas ou estes não
queriam recebê-los ou os próprios meninos preferiam não visitá-los, como Fernando
Neves*. Nascido em Umuarama, foi mandado à Casa junto com o irmão e informou não
ter “(...) vontade de ir ver a mãe, porque a gente está bem aqui. Lá é só tristeza.” 15
As falas do diretor Milton Kafka descritas na reportagem “Compra um Jornal,
tio”, exemplificam o imaginário da época acerca da importância da família ou a falta
dela na formação do caráter das crianças, afirmou que “estes meninos não são
delinquentes, embora sejam extremamente carentes de afeto, de uma família” e que
“são garotos carentes mas que escaparam de se tornar pivetes, trombadinhas.” 16
Neste discurso de que as famílias pobres e consideradas desestruturadas
poderiam ser um ambiente que facilitaria o desvio da moral por parte destes meninos, a
solução então seria encaminhá-los ao trabalho.
A rotina destes garotos foi narrada em seis das onze reportagens, associada ao
acordar cedo, ter horários, ir à escola, tomar banho – tudo teria seu horário de ser
realizado, até mesmo o lazer. Neste contexto, o labor é exaltado como formador de
caráter nos jornais e o cotidiano atarefado dos garotos foi tido como sinônimo de
disciplina. Seria a partir do trabalho que estes meninos e meninas pobres se tornariam
‘cidadãos’ – através da disciplina – entendida aqui como uma forma de controle social e
um meio de coerção e formação de corpos obedientes, dóceis e úteis: torna-se necessária
para tal procedimento, visando à sujeição, mas acima de tudo, à formação de uma
relação que torne o corpo obediente e útil ao mesmo tempo. (FOUCAULT, 2009, p.
132)
Considerações Finais
A partir da análise das fontes impressas selecionadas, onze peças jornalísticas
de cinco jornais paranaenses distintos, pretendi compreender qual a representação do
menor e da Casa, a partir de três focos: a questão do menor (O Menor e a Criança), da
família (Família e Origem) e do trabalho (Trabalho e Moralização).
15 Casa do Pequeno Jornaleiro mostra como educar o menor. Diário do Paraná. Curitiba. 15.03.1978 16 Compra um jornal, tio. O Estado do Paraná. Curitiba. 14.12.1980
Estes aspectos se relacionam entre si e estavam de acordo com o ideário das
décadas compreendidas na pesquisa: a família desestruturada, gestada no contexto da
era desenvolvimentista, pobre e marginalizada no entorno das cidades, mal ou não
incluídas em programas sociais e pelas oportunidades de trabalho, (DAMINELLI, 2013,
p. 02) era um ambiente insalubre para se criar meninos, que ao buscar um meio de
colaborar com a renda da casa, ocupavam as ruas – consideradas um local onde se
poderia desviar da conduta moral que a norma exigia - pra se dedicar à mendigagem,
aos pequenos furtos, vendas de balas ou, nesse caso, jornais.
A mentalidade da moralização por meio da atividade laboral se manteve por
muito tempo como pedagogia vigente na intenção de recuperar a conduta dos garotos
considerados desviantes, delinquentes, e também de se implantar a disciplina entre
meninos que, se acreditava, já possuíam inclinação à vida desviante.
Nos discursos dos jornais selecionados, a Casa do Pequeno Jornaleiro de
Curitiba é sempre exaltada pela preocupação e modo com que trata os meninos,
oferecendo-lhes uma alternativa de futuro, através de um trabalho considerado honesto.
A rotina, os horários, as estruturas da Casa, bons jornaleiros como exemplo e até ex-
pequenos jornaleiros que exerciam cargos de destaque e possuíam profissões
importantes, são itens enaltecidos para demonstrar o bom trabalho da Casa e que a
estratégia de trabalho árduo e disciplina apresentavam ótimos resultados, segundo as
matérias.
Os meninos, denominados menores na maioria dos impressos, marcando assim
sua diferenciação de condição social e situação irregular, parecem contar com a
simpatia – e interesse, já que são os vendedores do trabalho final – dos jornalistas e
representantes da imprensa. A partir da análise se pode perceber o uso de outros
substantivos, em alternativa ao carregado termo menor, a ênfase no abandono e na
orfandade dos garotos e a tentativa em demonstrar que eram todos bons meninos que a
Casa estava encaminhando para o caminho da moral e do trabalho.
Referências
Fontes
Casa do Jornaleiro: não há mais internos. Diário Popular. Curitiba. 10.03.1985.
Casa do Pequeno Jornaleiro mostra como educar o menor. Diário do Paraná. Curitiba.
15.03.1978
Casa do Pequeno Jornaleiro passa para a responsabilidade da Prefeitura. Gazeta do
Povo. Curitiba, 24.12.1985.
Compra um jornal, tio. O Estado do Paraná. Curitiba. 14.12.1980.
Conheça o exemplo dos pequenos jornaleiros. Jornal do Estado. Curitiba. 07.09.1983.
Êles vendem noticia. Gazeta do povo. Curitiba 07.02.1970
Jornaleiro, a época romântica acabou. Jornal do Estado. Curitiba .15.12.1983
Jornaleiro, o trabalho que começa muito cedo. Gazeta do Povo. Curitiba. 29.08.1983.
Jornaleiro, uma atividade que contribui para educar o jovem. Gazeta do Povo. Curitiba.
20.03.1982.
Recado do João: “Tá tudo bem aqui, pai”. Estado do Paraná. Curitiba. 07.10.1976.
Estatuto da Casa do Pequeno Jornaleiro. Setembro de 1942.
Diário popular deixa de circular aos 47 anos. Gazeta do povo. 27.08.2010.
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Decretos
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