azevedo andrade habitacao poder

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BIBLIOTECA VIRTUAL DE CIÊNCIAS H HABITAÇÃO E PO DA FUNDAÇÃO DA CASA PO AO BANCO NACIONAL DE HAB Sérgio de Luís Aureliano Gama de HUMANAS ODER OPULAR BITAÇÃO Azevedo Andrade

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Da Fundação da Casa Popular ao Banco Nacional de Habitação

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  • BIBLIOTECA VIRTUAL DE CINCIAS HUMANAS

    HABITAO E PODERDA FUNDAO DA CASA POPULAR

    AO BANCO NACIONAL DE HABITAO

    Srgio de AzevedoLus Aureliano Gama de Andrade

    BIBLIOTECA VIRTUAL DE CINCIAS HUMANAS

    HABITAO E PODER OPULAR

    ABITAO

    Srgio de Azevedo Lus Aureliano Gama de Andrade

  • Srgio de Azevedo Lus Aureliano Gama de Andrade

    Habitao e Poder:Da Fundao da Casa Popular ao Banco Nacional Habitao

    Rio de Janeiro 2011

    Lus Aureliano Gama de Andrade

    Poder: Da Fundao da Casa Popular ao Banco Nacional Habitao

    Esta publicao parte da Biblioteca Virtual de Cincias Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.bvce.org Copyright 2011, Srgio de Azevedo e Lus Aureliano Gama de Andrade Copyright 2011 desta edio on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais Ano da ltima edio: 1982, Zahar Editores Nenhuma parte desta publicao pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio de comunicao para uso comercial sem a permisso escrita dos proprietrios dos direitos autorais. A publicao ou partes dela podem ser reproduzidas para propsito no comercial na medida em que a origem da publicao, assim como seus autores, seja reconhecida. ISBN: 978-85-7982-055-7 Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.centroedelstein.org.br Rua Visconde de Piraj, 330/1205 Ipanema Rio de Janeiro RJ CEP: 22410-000. Brasil Contato: [email protected]

  • I

    Sumrio

    Prefcio .......................................................................................................... III Agradecimentos............................................................................................ VIII Introduo ........................................................................................................ X

    Habitao e populismo: a Fundao da Casa Popular .............................1 A Fundao da Casa Popular: o modelo e a ao ......................................6 Casa Popular: o distributivismo da poltica ...............................................9 A filosofia dos conjuntos: o paternalismo autoritrio .............................13 A localizao das casas populares ...........................................................15 Populismo e habitao: as limitaes da Fundao da Casa Popular ......19

    Tentativas de mudana: do Banco Hipotecrio ao Instituto Brasileiro de Habitao ...............................................................................................21

    Crise social e habitao: a perspectiva do Governo Jnio Quadros ........23 O Plano de Assistncia Habitacional.......................................................28 Instituto Brasileiro de Habitao: um precursor do BNH .......................31 O fracasso da mudana ............................................................................34

    O BNH: O novo regime e a poltica habitacional ....................................37 Nasce o BNH: a ideologia da poltica habitacional .................................39 As premissas da nova poltica .................................................................43

    BNH em ao: As correes de rota da poltica habitacional ................48 Os planos de reajustamento das prestaes .............................................50 Os sistemas de amortizao dos planos habitacionais .............................53 O BNH como banco de segunda linha ....................................................58 BNH: Um banco de planejamento urbano? .............................................62

    A trajetria recente da poltica de habitao popular ...........................69 A fase de implantao .............................................................................71 O perodo de decadncia .........................................................................72 O revigoramento das Cohabs ..................................................................79 A situao atual do mercado de habitao popular .................................83 Perspectivas da poltica de habitao popular .........................................87

    II

    Autoconstruo: uma alternativa vivel? ............................................... 92 O balano da poltica: o BNH na berlinda .............................................. 97

    A situao do estoque de habitao popular ........................................... 98 O desempenho social do BNH.............................................................. 100 BNH paradigma de polticas: exportando know-how .......................... 105

    Consideraes finais ............................................................................... 108 Bibliografia .................................................................................................. 111

  • III

    Prefcio

    H at bem pouco tempo, para estudar o Brasil, dispnhamos, sobretudo de literatura ensastica, ainda que, no raro, inteligentemente construda e fecunda de intuies para investigaes posteriores. A partir dos anos 1960, sobretudo, passamos a contar tambm com safras generosas de estudos produzidos pelos brasilianists. Bem diversa a situao hoje. Certamente, como fruto da criao de bons centros de ps-graduao e do envio de numerosos jovens professores e pesquisadores para doutorar-se nas melhores universidades do exterior, temos hoje copiosa produo autctone, fundada nos mtodos modernos de investigao emprica, nas vrias disciplinas das cincias sociais. Lembre-se, tambm, o substancial incremento dos recursos pesquisa na academia e nos centros de investigao, patrocinado por instituies como a Fundao Ford, ou por agncias de governo, como o CNPq, a Finep, o IPEA, entre outros. Assim que hoje, por exemplo, no campo dos fatos polticos, j se pode estudar, com base em pesquisas slidas e anlises metodologicamente rigorosas, os fenmenos eleitorais e partidrios; os movimentos polticos e as ideologias; a formao histrica do Estado brasileiro e sua constituio atual; a articulao do Estado com segmentos da sociedade civil, tais como os sindicatos operrios e as organizaes empresariais; a empresa pblica, a burocracia, a organizao militar, para mencionar apenas uns poucos aspectos de nossa vida poltica recentemente pesquisados.

    Coube aos economistas, et pour cause, antecipar-se a seus colegas das reas mais soft, no enfrentamento, h mais tempo, dos problemas de avaliao de programas de governo. Alis eles prprios reconheceram que o prisma econmico no bastava para uma compreenso inteiria das polticas pblicas, que no omitisse variveis explicao satisfatria e justificasse propostas praticveis de ao governamental. Passaram, assim, a convocar com insistncia seus colegas da sociologia, da antropologia e da cincia poltica para as equipes multidisciplinares de estudo das polticas pblicas. Nem se ignore, tambm, nos ltimos anos, o movimento autnomo dentro dessas disciplinas, orientando-as para a anlise de polticas.

    O presente estudo de Srgio de Azevedo e Luis Aureliano Gama de Andrade rene, entre outras qualidades, a de ser bom indicador dos progressos da cincia social em nosso pas nos anos recentes. Os autores se

    IV

    debruam sobre um problema de poltica pblica a poltica habitacional do governo e o fazem com proficincia na produo de um excelente texto.

    A poltica habitacional terreno privilegiado de confluncia de alguns problemas centrais para a compreenso do Estado e de sua atuao frente s caractersticas da nova sociedade urbana brasileira. Atravs das anlises das polticas de habitao popular, revelam-se problemas da mais alta significao poltica e normativa do Brasil de hoje. Habitao um dos reclamos maiores na luta pela ampliao da cidadania, para que se reconhea nesta a faceta social, qual compete ao Estado dar substncia pela aplicao dos recursos pblicos na poltica de desenvolvimento social. As anlises do presente livro deixam claro quo longe ainda estamos desse ideal.

    O texto no se restringe ao que poderamos chamar Fase BNH da poltica de habitao popular. Os autores levaram mais longe sua prospeco, e procederam a bem cuidado levantamento das iniciativas anteriores do Estado brasileiro, no setor habitacional, na fase da Fundao da Casa Popular, durante a vigncia da Repblica Populista. O populismo foi sensvel ao problema da habitao para as camadas pobres. Contudo, nesse perodo, apesar da participao poltica que se dilatava e da exigncia de que os governantes acompanhassem com maior ateno os humores da opinio pblica dos grandes centros, o desenvolvimento social e, entre seus componentes, a habitao popular, no saram de modesto posto na escala de prioridades no uso dos dinheiros pblicos. Retrica parte, a Fundao da Casa Popular e iniciativas congneres nos vrios escales de governo sofreram mngua de recursos. Pouco se construiu do que se props construir. O clientelismo imperou na atribuio das quotas de moradias entre as regies e localidades e das casas aos postulantes. O paternalismo autoritrio, na expresso dos autores, deu a tnica de relacionamento do governo com o pblico que tinha acesso aos conjuntos residenciais construdos. Habitao popular no foi, portanto, verdadeira poltica redistributiva durante a Repblica Populista, mas meramente uma poltica distributiva.1 Isso no tudo. Um dos pontos mais reveladores da pesquisa empreendida a verificao de que j se esboava, em

    1 Na poltica redistributiva, transferem-se recursos entre grandes categorias socioeconmicas,

    tais como as classes sociais, e as regies. Na poltica distributiva, ao revs, os recursos se pulverizam entre postulantes atomizados, perdendo-se qualquer sentido de mudanas sistemticas no perfil da curva de distribuio desse recurso entre grandes categorias sociais. Os conceitos foram introduzidos por Theodore Lowi, em artigo hoje clssico.

  • V

    plena vigncia do populismo, a tentativa de deslocar a poltica de habitao popular do plano das obrigaes do Estado, num programa subsidiado, para o plano das solues empresariais de mercado. A ideia de um Banco para enfrentar a moradia popular surge durante a presidncia de Getlio Vargas, em 1953. A ideia de correo monetria para os financiamentos habitacionais data do perodo de Jnio Quadros na presidncia. Ou seja, ainda que no tenham essas ideias logrado chegar at a sano final no processo decisrio, so bons indcios de que, j ento, tinham os homens de governo dificuldade de encarar habitao popular como item do desenvolvimento social, bem pblico a ser provido pelo Estado mediante o uso dos recursos tributrios. Como agudamente em anos seguintes, as exigncias do desenvolvimento material, dos projetos grandiosos de potncia emergente, j ento sobrelevavam s demais exigncias nas decises de governo.

    O BNH e sua poltica no surgem, pois, ex nihilo. Por uma parte, elementos essenciais de seu paradigma foram adumbrados pelo populismo vigorante anteriormente. Por outra parte, ao surgir, o BNH tambm, ou at predominantemente, encarado como banco de desenvolvimento social. Ao tratar desse aspecto, os autores nos proveem de acurada descrio da ideologia e percepo dos novos dirigentes quanto ao papel da casa prpria na cooptao das camadas populares no corpo poltico. Alis, lembram eles que esse iderio, inspirador do BNH nos seus primrdios, deitava fundas razes em perodos anteriores.

    Ao BNH tambm se atriburam outras funes na poltica macroeconmica de ento, as quais acabaram por relegar os desgnios sociais e polticos do banco a lugar nfimo na hierarquia de funes da instituio. Na verdade, como bem acentuam os autores, os objetivos do BNH eram mutuamente incompatveis, intrinsecamente contraditrios. Na falta de mobilizao poltica que as apoiasse, as metas redistributiva e sociais perderam terreno para as de dinamizao da economia, capitalizao das empresas de construo e de produo de materiais, gerao de empregos, solidificao do sistema financeiro de habitao.

    A trajetria da poltica habitacional vista dentro do contexto maior. A abertura social dos programas varia com a necessidade poltica de legitimao popular, oscilante de conjuntura a conjuntura. No perdem, contudo, os autores o sentido de fatores operantes tambm ao nvel micro da anlise, e que constituem mediao necessria compreenso das

    VI

    situaes especficas, concretas. Os reduzidos graus de liberdade movimentao do BNH so expostos. Em que pese sua propenso tecnocrtica, facilitada por assim dizer insitamente pelo paradigma dos engenheiros, que, logo, povoaram a instituio, esta precisava conviver com um ambiente altamente instvel, minado pela inflao em todos os cantos, e era frequentada pelo fantasma da Fundao da Casa Popular, que fracassara antes. Seus dirigentes sabiam que, no mdio e longo prazos, o banco deveria mostrar-se financeiramente consistente, pois a tica social, subsidiadora, havia, no passado, sido dbil para sustentar a instituio anterior na guerrilha quotidiana para assegurar-se os recursos do oramento pblico. Entre a grandiloquncia das mensagens de fim de ano e a prtica diria do Tesouro, soobrara a Fundao da Casa Popular.

    Habitao e poder est longe de mostrar, ao longo dos ltimos 17 anos, apenas a existncia de organizao impermevel, seguindo poltica de curso rgido. Essa poltica oscilou, ora num rumo socialmente regressivo, ora progressivo. O perodo 1970-74 v a aplicao de recursos no mercado popular praticamente sumir. Os anos posteriores assistiram a uma crescente abertura da poltica habitacional, com retorno a programas antigos e lanamento de novos. nfase dada ao contraponto poltico dessas mudanas. Ainda aqui, escapam os autores de inferncias toscas. Sem esquecerem, obviamente, o fechamento poltico durante o perodo Mdici, a que se pode atribuir tambm o refluxo da poltica social do BNH, chamam-nos tambm a ateno para o fato de que coincide esse perodo com a manifestao da crise das Cohabs, acumulada em anos anteriores pela atuao delas junto s camadas mais pobres, insolventes. A crise exigia ou uma reviso maior da poltica habitacional do governo, ou a drstica autodefesa organizacional do BNH, alternativa essa que veio a prevalecer, dado o contexto poltico maior dos primeiros anos 70.

    Depreende-se do trabalho que a poltica habitacional, apesar dos avanos recentes com os novos programas, do tipo do Profilurb, ainda deixa de fora imenso contingente da populao, a que se concentra na faixa de renda de trs salrios para baixo. Os autores procedem avaliao de alguns dos programas novos, lastreada em pesquisa de campo de experincias com o Profilurb, programa que apresenta algum potencial junto a essa camada socioeconmica. Ao contrrio da tendncia dominante em outros estudos da poltica habitacional, os autores deste tendem a no rejeitar in limine as novas orientaes da poltica habitacional para o uso do mutiro, da autoajuda e

  • VII

    da autoconstruo nas periferias urbanas. Sem discutir o mrito terico das teses sobre superexplorao da fora de trabalho, os autores recusam-se a tirar delas a consequncia prtica de condenar programas pblicos que se valham daquelas modalidades de ao. No creio que discordariam de que o desejvel, o timo, em matria de poltica social seria a situao em que, como parte da cidadania, estivesse o direito de morar com dignidade mnima, direito a ser assegurado pela ao estatal, que provesse habitao como qualquer outro bem pblico, para as pessoas incapazes de solucionar seu problema de moradia no mercado. Mas, antes do timo, preciso conseguir o bom ou, ao menos, o possvel, dentro do atual contexto de ao governamental e estruturao da sociedade. A autoconstruo no inveno do BNH nem do tecnocrata. Ela j existe e amplamente usada pela populao, sendo discutvel que o seu uso em programas habitacionais v piorar a situao dos que participarem desses programas. Demais, ainda que correta, a perspectiva da superexplorao seria parcial, por olhar a situao como armada apenas em termos de um jogo soma-zero. certo que o trabalhador perde lazer, descanso, alm de no ser pago pelo trabalho extra.2 A construo da casa no apresenta inovaes, sendo ao contrrio rigidamente determinada pelos preos e tipos dos materiais disponveis e acessveis ao autoconstrutor. Contudo, sem cair na tentao folclorista de tecer loas ingnuas ao mutiro e prticas assemelhadas, reconhea-se, tambm, que, ao se criar uma associao vicinal para arrancar da autoridade melhoramentos na vila ou favela, construir as casas, melhorar os acessos virios e introduzir outros benefcios, no s se agregaram valores materiais ao patrimnio individual e social o que no desprezvel como tambm se acresceu algo em termos de vida social e poltica.

    Pela meno dos temas que contm, pode o leitor prefigurar a riqueza do texto. No apenas trabalho calado em boa pesquisa emprica e elaborado com penetrao analtica e rigor terico, tambm estudo perpassado do sentido de relevncia prtica e responsabilidade social e poltica, como convm a uma avaliao de poltica pblica.

    Antnio Octvio Cintra Belo Horizonte, janeiro de 1982

    2 Note-se que esse aspecto pode ser atenuado num programa, ao imputar preos de mercado s

    horas de trabalho nele gastas, que entraro na contrapartida comunitria que o projeto preveja.

    VIII

    Agradecimentos

    A ideia de escrever este livro surgiu do convvio profissional dos autores na Fundao Joo Pinheiro. Entretanto, sem o incentivo e apoio de Edmilson Bizelli dificilmente a ideia teria vingado.

    Os primeiros captulos foram elaborados a quatro mos e os demais foram reescritos aproveitando artigos e trabalhos dos autores. Nesse sentido, seria quase impossvel enumerar aqui todos aqueles que colaboraram para a realizao de cada parte deste trabalho. Limitar-nos-emos a mencionar to somente as contribuies de mbito mais geral.

    Queremos inicialmente agradecer a Ariel Tacla, que nos permitiu o acesso a documentos sobre a poltica habitacional pr 1964, sem os quais seria muito difcil cobrir o referido perodo. Da mesma forma, somos gratos aos antigos funcionrios, dirigentes e muturios da Fundao da Casa Popular que nos prestaram as informaes essenciais para compreender a lgica institucional daquela agncia pblica.

    Aos funcionrios do BNH, especialmente Assessoria de Pesquisas, agradecemos o dilogo aberto com que sempre nos brindaram no trato dos problemas habitacionais. As pesquisas financiadas pelo banco, nas quais participamos como pesquisadores da Fundao Joo Pinheiro, foram fundamentais para o aprofundamento de vrias hipteses que levantamos no transcorrer do livro. Nesse sentido, o convvio mantido com diversos companheiros da FJP Berenice Guimares Vasconcelos de Souza, Eduardo Fernandes Silva, Flvio Saliba Cunha, Ricardo Pinheiro Penna, Joo Batista Mares Guia e Dezso Eduardo Francsali possibilitou no s maior conhecimento do tema, mas tambm uma frutfera discusso sobre o desempenho da poltica de habitao popular. A Dezso, como a Afonso Henriques Borges Ferreira, Carlos Genuno Quadros Figueiredo e a Flvio Rianni agradecemos tambm a ajuda no levantamento, montagem e clculo de vrias tabelas estatsticas que utilizamos.

    Nossa especial gratido a Geraldo Majella Moreira Duarte, que, como amigo dedicado, nunca se furtou a debater os temas mais controvertidos, nem a colaborar na reformulao de textos que nos pareciam mais confusos, funcionando como uma conscincia crtica dos autores.

  • IX

    A nvel de agradecimento pessoal, gostaramos ainda de destacar a importncia de Antnio Octvio Cintra, que, alm de uma leitura minuciosa e crticas pertinentes s verses preliminares deste livro, serviu como inspirador de uma linha de anlise comprometida com propostas de polticas pblicas.

    Por fim, gostaramos de ressaltar o incentivo de Marco Antnio E. L. de Salvo Coimbra e o apoio institucional prestado pela Fundao Joo Pinheiro. Nesse particular, agradecemos a Alcindo Ribeiro de Souza e a Lea Dutra Costa, que colaboraram na reviso dos originais; a Elizabeth Westien Duarte, Maria Cedia Rubinger de Queiroz, Maria Isabel da Silva, Helena Schirm e Rosana Velloso Montanari, que to eficientemente corrigiram e elaboraram as citaes bibliogrficas, e a Joana Zenbia Damasceno e Norma Sueli Rodrigues, que, com grande dedicao e esforo, cuidaram da datilografia do livro.

    Os autores Belo Horizonte, janeiro de 1982

    X

    Introduo

    Avaliar uma poltica tarefa rdua, de difcil soluo. Uma poltica busca, muitas vezes, a realizao de mais de um objetivo, serve a numerosos propsitos e leva, com frequncia, a efeitos e resultados no antecipados.

    As metas perseguidas no tm, usualmente, a coerncia pretendida, nem horizontal, com outras polticas, nem vertical, atravs do tempo: os objetivos so contraditrios, no complementares entre si e podem, ou no, variar ao longo da poltica. Alm disso, o que explicito nem sempre tem correspondncia em comportamentos. No raro, as metas so a retrica da poltica.

    Metas e objetivos no constituem a nica fonte de incerteza para a avaliao. Ainda que se pudessem resolver as questes de quais so as metas efetivamente buscadas com a poltica, como devem ser ordenadas entre si, e que peso deve ser atribudo a cada uma delas, restaria o problema crucial de como se distribuem os custos e benefcios. No basta apenas comparar objetivos propostos com realizaes alcanadas para se ter a avaliao da poltica. Comparaes de antes e depois, simples na aparncia, envolvem problemas de difcil superao. , preciso assegurar-se de que os resultados alcanados se devem s medidas tomadas. A causalidade das polticas tem de ser demonstrada.

    Por outra parte, os meios utilizados para implementar os objetivos formam um filo rico para medir o acerto das polticas: a soluo adotada a resposta que melhor atende aos objetivos pretendidos? Que constrangimentos traz, em termos de custos e acesso aos benefcios?

    No tem o instrumental das polticas o carter de neutralidade que frequentemente se lhe atribui. Ao contrrio, ele constitui focus eminentemente poltico. na definio do como que se fazem as escolhas bsicas das polticas. A avaliao no pode, pois, deixar margem a questo dos meios, sob pena de se restringir a constataes empricas: o quanto das metas foi atingido.

    Sob dois aspectos, a experincia da poltica de habitao popular acumulada ao longo das ltimas trs dcadas constitui eixo privilegiado para a anlise poltica. Primeiro, pela grande ressonncia social do tema e pelos vrios intentos de manipulao ideolgica que conheceu no perodo,

  • XI

    presta-se para a investigao de questes ainda pouco abordadas, concernentes prpria origem das polticas: como nasce uma poltica? Em resposta a que situaes? Quem a articula?

    Um segundo aspecto diz respeito insero da poltica habitacional na estratgia de desenvolvimento urbano: que papel lhe reservado? Que relaes mantm com outras polticas urbanas?

    A poltica habitacional, conforme se mostrar mais adiante, no parte de viso compreensiva do problema urbano no pas. Ao contrrio, desde o incio da implantao ela tem carter nitidamente fragmentrio. Privilegia o aspecto habitao stricto sensu, e s muito gradualmente anexa novas reas, tais como gua, esgotos sanitrios e planejamento de cidades. O quadro institucional que lhe corresponde , por outra parte, atpico: no perodo populista ela estava a cargo da Fundao da Casa Popular (FCP) e dos vrios Institutos de Aposentadoria, e aps 1964 sua frente se encontra, no um ministrio ou um rgo de administrao direta, mas um banco: o Banco Nacional de Habitao.

    A criao, em 1946, da Fundao da Casa Popular, e a do Banco Nacional de Habitao (BNH), em 1964, so as duas mais conhecidas iniciativas no perodo que ilustram a tentativa de equacionar o problema habitacional. Essa prioridade a nvel do urbano explicvel em virtude do processo de rpida industrializao das ltimas dcadas, que, atraindo um imenso contingente rural para as metrpoles e cidades mdias, praticamente congestionou a rede urbana existente, incapaz de responder adequadamente s novas demandas. O resultado foi escassez de moradia, alta dos aluguis, aumento de construes clandestinas, favelas, especulao imobiliria e presso sobre o sistema poltico. O Brasil, que em 1940 possua 68,8% de sua populao no campo, inverteu essa posio em 1980. Dados preliminares do censo indicam que 67,6% da populao brasileira reside em centros urbanos.3

    A anlise da poltica de habitao popular nesse perodo apresenta ainda maior interesse pelas caractersticas do quadro econmico e institucional:

    1. O populismo pr 1964 e o regime autoritrio dos ltimos 17 anos;

    3 Conforme dados citados in Martina, George Evoluo e perspectivas da migrao interna

    no Brasil, conferncia proferida na Abertura do Seminrio sobre Transmisso e Controle de Doenas Tropicais na Processo de Migrao Humana, (mimeo), 2 de julho de 1981.

    XII

    2. Os fluxos e refluxos experimentados pelo sistema econmico no perodo;

    3. O contexto da rpida urbanizao. Uma poltica, independentemente de seu objeto material, no responde

    apenas a condicionantes localizados no ambiente externo. Fatores internos, ligados tanto ao planejamento quanto execuo, podem afetar o sentido e a direo assumidos pela poltica. Enfoque privilegiado de anlise a prpria histria natural das polticas: como se configuram no tempo os problemas para os quais a poltica o remdio? Que efeitos advm dos xitos e fracassos percebidos? Como evolui o quadro institucional da poltica? Quais so os agentes principais? O que fazem? Como se compem internamente?

    objetivo deste estudo explorar os aspectos que tm constitudo o cerne da poltica de habitao popular nas ltimas trs dcadas. Para tal, privilegia-se a anlise da Fundao da Casa Popular e do Banco Nacional da Habitao, que so, no perodo em pauta, a matriz da poltica habitacional. Entretanto, questes de relevo como a atuao das carteiras habitacionais dos diversos Institutos de Aposentadoria no perodo pr 1964, o papel do solo urbano, os impactos econmicos das atividades da construo civil no sero tratadas, neste trabalho, em vista das limitaes de pesquisa a que esteve sujeito.

    As anlises aqui desenvolvidas no tm a pretenso de avaliar ou mesmo cobrir todas as dimenses da poltica. Constituem, antes, apreciao global, espcie de balano crtico da poltica de habitao popular a partir de 1945.

  • 1

    PARTE I

    HABITAO E POPULISMO: A FUNDAO DA CASA POPULAR

    nstituda pelo Decreto-lei n. 9.218, de 1 de maio de 1946 a Fundao da Casa Popular foi o primeiro rgo, de mbito nacional, voltado

    exclusivamente para a proviso de residncias s populaes de pequeno poder aquisitivo. Os Institutos e Caixas de Aposentadoria e Penses, antes dela, atravs das carteiras prediais, vinham atuando na rea fragmentariamente, pois atendiam apenas a associados.

    Verses sobre sua origem do conta das intenes polticas que motivaram sua criao. Teria sido a partir do conhecimento que o ento deputado Juscelino Kubitschek tivera das atividades vitoriosas de um empresrio mineiro na construo de casas populares atravs do Instituto de Aposentadoria e Penso dos Industririos (IAPI) que surgiu a ideia de uma entidade de cunho nacional destinada a habitaes populares. Segundo o depoimento desse empresrio, que, mais tarde, no Governo Kubitschek, seria o superintendente da Fundao da Casa Popular (FCP)1, Juscelino o teria levado ao presidente Dutra para que o ajudasse a persuadi-lo das vantagens polticas de uma iniciativa nessa rea.

    Curiosamente, anos depois, o Banco Nacional da Habitao (BNH), que viria a ser um dos herdeiros da Fundao, teria sua instituio determinada por motivaes anlogas. Ambas foram iniciativas de governos que sucederam a administraes populistas e que acenavam com a casa prpria como um meio de angariar legitimidade e alcanar penetrao junto aos trabalhadores urbanos. De estilo e trajetria de atuao diversas, tanto o BNH quanto a

    1 Essa verso se apoia nas informaes obtidas junto a Marcial do Lago, mas no pde ser

    checada com outras fontes. A questo da origem da FCP no est, portanto, a nosso ver, inteiramente elucidada. No apenas os institutos e caixas construam habitaes populares. Alguns Estados e o Distrito Federal tambm atuavam na rea. Perfeitamente factvel que da tivesse surgido a ideia de se criar um organismo especializado. fora de dvida, entretanto, o contato de Juscelino e Marcial do Lago com o presidente Dutra: mas que tivesse sido esse o primeiro momento em que a questo considerada por Dutra outro aspecto do problema.

    I

    2

    Fundao da Casa Popular no lograriam, entretanto, responder altura aos desafios que lhes foram antepostos, como se mostrar adiante.

    Consideraes de ordem poltica parecem ter pesado decisivamente para fazer vingar a ideia da criao da Fundao da Casa Popular. O quadro da poca mostrava um Partido Comunista em ascenso, com forte penetrao junto s populaes operrias das grandes cidades. No passara despercebida ao governo a votao que tiveram os candidatos comunistas Assembleia Constituinte, onde lograram formar bancada de 14 deputados e um senador, perfazendo 9% do eleitorado. A expressiva votao de Fiza candidato quase desconhecido lanado pelo PC Presidncia da Repblica e que alcanara 600 mil votos reforava ainda mais o clima alarmante que envolvia as elites dirigentes.2

    Dupla estratgia foi empregada pelo governo para lidar com as incertezas polticas da poca: por um lado, deflagrou medidas repressivas que culminariam com a declarao de ilegalidade do PC e a cassao de seus parlamentares em 1947; por outro, tentou ganhar as simpatias dos setores populares atravs de aes de cunho social.

    A escolha de 1 de maio para a promulgao do Decreto-lei que criou a Fundao da Casa Popular reveladora do alcance poltico que se pretendeu dar a tal iniciativa.

    Pensada inicialmente para enfrentar os problemas habitacionais das faixas de populao de baixa renda, a Fundao da Casa Popular passaria, com o Decreto-lei n. 9.777, de 6 de setembro de 1946,3 a ter possibilidade de atuar em reas complementares que fariam dela um verdadeiro rgo de poltica urbana lato sensu. Cabia-lhe, de conformidade com esse decreto, financiar obras urbansticas de abastecimento d'gua, esgotos, suprimento de energia eltrica, assistncia social e outras que visem melhoria das condies de vida e bem-estar das classes trabalhadoras (...). Era ainda de sua competncia financiar as indstrias de material de construo, quando,

    2 Os dados referentes bancada foram retirados de: Skidmore, T. E. Brasil: de Getlio a

    Castelo: 1930-1964. Rio, Paz e Terra, 5.a ed., 1976, p. 90. A informao sobre a votao de Fiza foi extrada de: Basbatun. L. De 1930 a 1960, in 4.a ed., Histria sincera da repblica. S. Paulo, Alfa-mega, 4.a ed., 1976, v. 3, p. 186. 3 Brasil. Leis, decretos etc. Decreto-lei n.o 9.777, de 6 de setembro de 1946. Lex: Coletnea

    de Legislao: legislao federal e marginlia, S. Paulo, 10, pp. 753-6, 1946. Citaes retiradas da p. 755.

  • 3

    por deficincia do produto de mercado, se tornar indispensvel o estmulo de crdito (...), proceder a estudos e pesquisas de mtodos e processos que visem ao barateamento de construo (...); financiar as construes de iniciativa ou sob a responsabilidade de prefeituras municipais, empresas industriais ou comerciais e outras instituies, de residncia de tipo popular destinadas venda, a baixo custo ou a locao, a trabalhadores, sem objetivos de lucro (...); e, finalmente, estudar e classificar os tipos de habitao denominados populares, tendo em vista as tendncias arquitetnicas, hbitos de vida, condies climticas e higinicas, recursos de material e mo de obra das principais regies do pas (...). Outra novidade do decreto foi a introduo da habitao rural nos aspectos de construo, reparao e melhoramento, como nova meta institucional.

    Tais mudanas refletiam a percepo de que no era possvel enfrentar o problema de moradias sem atacar os entraves representados pela ausncia de infraestrutura fsica e de saneamento bsico. Mostravam, por outro lado, que no bastavam medidas que complementassem meramente as aes das administraes locais. Era preciso fortalecer o prprio mercado estimulando a produo de materiais , modernizar as prefeituras, atravs de treinamento e qualificao de pessoal, e estudar o processo de morar das classes populares, para se tirar partido da prtica comunitria de construir, das tcnicas e dos materiais regionais utilizados.

    A experincia se encarregaria de demonstrar, nos anos seguintes, quo irrealistas e pretensiosas eram tais metas. Como atacar simultaneamente o problema da moradia popular no campo e na cidade e o da infraestrutura sanitria? Como dotar as prefeituras de pessoal qualificado e ao mesmo tempo realizar pesquisas e estudos que conduzissem ao barateamento de construes?

    Como financiar a indstria de materiais carentes no mercado e prestar assistncia social s classes trabalhadoras?

    A tarefa era desproporcional fora, aos recursos e maturidade institucional da Fundao da Casa Popular. No eram apenas constrangimentos de ordem tcnica, financeira e administrativa que tornavam invivel a abertura de tantas frentes de trabalho. No plano poltico, muitos desses objetivos poderiam ser considerados assuntos de peculiar interesse do municpio, faltando-lhe competncia constitucional para atuar livremente nessas reas. Tampouco dispunha a Fundao de

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    respaldo poltico, traduzido em recursos financeiros, apoio dos Estados ou legislao que lhe conferisse monoplio de algum recurso crtico, que lhe desse posio de vantagem para negociar com os municpios.

    Legislao posterior viria corrigir a megalomania inicial do rgo, restringindo-lhe o territrio de ao. A Portaria n. 69, de 23 de maio de 1952, do Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio, que dispunha sobre os Estatutos, reduziria o papel das atividades complementares, admitindo-as apenas quando de todo indispensvel em face dos seus programas e realizaes e de preferncia nos municpios de oramentos reduzidos, sob a garantia de taxas ou contribuies (art. 1., item 5).4 Como tais municpios dificilmente poderiam oferecer garantias de taxas ou contribuies, eliminava-se, na prtica, a possibilidade de atuao significativa nos setores ligados ao abastecimento de gua, esgoto, energia eltrica e assistncia social.

    Paralelamente s adaptaes de objetivos, mudanas expressivas ocorreram nas fontes de financiamento da Fundao da Casa Popular, fazendo-a depender exclusivamente de dotaes oramentrias da Unio. O dispositivo legal de sua criao previa, alm dos recursos tradicionais como doaes, contribuies e transferncias do Tesouro, emprstimo compulsrio de pessoas fsicas que adquirissem terreno de valor superior a 200 mil cruzeiros ou que construssem edificaes de rea acima de 200m2. Os primeiros estariam obrigados a emprstimo igual a 0,5% do preo de compra de terreno; os ltimos, a 15 cruzeiros por metro quadrado construdo. O prazo de resgate era superior a 30 anos, equivalendo, na realidade, a um imposto disfarado. A inteno era nitidamente redistributiva: adquirentes de imvel mais bem aquinhoados estariam subsidiando os menos favorecidos, mediante o financiamento da Fundao da Casa Popular.

    Esse dispositivo no chegou a ser implementado. Trs meses depois o Decreto-lei n 9.777 o revogava, instituindo em seu lugar a contribuio obrigatria de 1% (um por cento) sobra o valor do imvel adquirido, qualquer que seja a forma jurdica da aquisio, cobrado juntamente com o imposto de transmisso, de valor igual ou superior a 100 mil cruzeiros.5 Mantinha-se inalterada a filosofia redistributiva, cobrado que era o imposto

    4 Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro: Estatutos; aprovados pela portaria n.o 69, de 23

    de maio de 1952, do Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio. Rio [s/d]. p. 4. 5 Brasil. Leis, decretos etc., op. cit.. nota 4.

  • 5

    apenas dos adquirentes de propriedades imobilirias cujo valor de transmisso excedia a 100 mil cruzeiros.

    Duas razes bsicas concorreram para que tal imposto no viesse a ter eficcia: primeiro, o contribuinte tinha um forte incentivo para falsear o valor real das transaes, para fugir taxao; segundo, os Estados, a quem competia a arrecadao, nem sempre recolheram Fundao da Casa Popular os impostos cobrados.

    Cabendo aos Estados o nus administrativo e o desgaste poltico, sem contrapartida financeira, era de esperar que no tivessem empenho em colaborar com a Fundao da Casa Popular. Argumentava-se com a inconstitucionalidade da apropriao do tributo, alegando tratar-se de reas de competncia fiscal dos Estados. Alguns simplesmente se negaram a arrecad-lo, e a maioria que o fez nem sempre o recolheu Fundao da Casa Popular.

    Num contexto em que os Estados desfrutavam relativa autonomia, e carecendo a Fundao de instrumentos de presso para fazer valer seus interesses, o cumprimento da lei dependia, em grande parte, das boas relaes polticas entre o Governo Federal e as administraes estaduais. Publicao oficial da FCP dava conta do precrio recolhimento do imposto pelos Estados: A despeito da existncia de texto de lei determinando aos Estados o recolhimento aos nossos cofres da taxa de 1% sobre os impostos de transmisso cobrados sobre imveis de preos superiores a 100 mil cruzeiros, a quase totalidade das Unidades da Federao tem se abstido, atravs dos cinco anos de nossa existncia, de observar os termos de tal dispositivo legal.6

    Para remediar o fato via-se a Fundao na contingncia de realizar custosas gestes junto aos Estados para sensibiliz-los da importncia de tais recursos.7

    Incuo, controvertido e politicamente desgastante, o imposto seria revogado pela Lei n. 1.473, de 24 de novembro de 1951, e substitudo por dotaes oramentrias decrescentes, para os dez anos seguintes. Embora

    6 Cobrana da taxa de 11/2. O Ncleo, Rio, 1(3), p. 2, julho de 1951.

    7 De acordo com essa publicao, na gesto do general Delmiro Pereira de Andrade, ltimo

    superintendente da FCP, no Governo Dutra, foram enviados emissrios para os Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Bahia objetivando o levantamento dos montantes no recolhidos e a regularizao das dvidas dessas Unidades para com a Fundao.

    6

    no tivesse sido fonte expressiva de receita, tal imposto acenava com a possibilidade da autossuficincia que tornaria a instituio menos dependente das boas graas do poder e menos vulnervel s oscilaes da conjuntura financeira da Unio. Eliminada a alternativa de autossuficincia, no restava Fundao seno disputar com dezenas de outros parceiros os nem sempre seguros e cobiados recursos oramentrios. Essas verbas, prmio de consolao que lhe deram, logo se revelaram insuficientes.8

    A FUNDAO DA CASA POPULAR: O MODELO E A AO

    Inicialmente, a Fundao da Casa Popular construa tanto por empreitada como por administrao direta. Com o passar dos anos esta ltima modalidade foi gradativamente sendo abandonada em favor da primeira.

    A opo pela administrao direta, nos primeiros anos, justificava-se pela necessidade de familiarizar os tcnicos da instituio com os problemas da construo de conjuntos, alm de permitir experincia com materiais notradicionais, para baratear o custo das obras. Tais experincias, levadas a efeito em pequena escala, foram pioneiras no pas.

    8 Os montantes das dotaes oramentrias institudas pela Lei nmero 1.473 eram os seguintes:

    1 exerccio Cr$ 200.000.000,00 2 exerccio Cr$ 180.000.000,00 3 exerccio Cr$ 160.000.000,00 4 exerccio Cr$ 140.000.000,00 5 exerccio Cr$ 120.000.000,00 6 exerccio Cr$ 100.000.000,00 7 exerccio Cr$ 80.000.000,00 8 exerccio Cr$ 60.000.000,00 9 exerccio Cr$ 40.000.000,00 10 exerccio Cr$ 20.000.000,00

    Brasil. Leis, decretos etc. Lei n.o 1.473, de 24 de novembro de 1951. Lex: Coletnea de Legislao; legislao federal e marginlia. S. Paulo, 15, p. 443, 1951. Conforme se pode depreender das consignaes decrescentes, parece ter havido expectativa de que, com o passar do tempo e com o retorno dos investimentos realizados, seria possvel a FCP alcanar uma situao de autossuficincia. Tal inferncia foi confirmada em entrevista feita com antigo assessor da Superintendncia da Fundao. Evidencia-se a ingenuidade do argumento, de vez que se desconsiderou inteiramente a hiptese de inflao em um perodo de dez anos.

  • 7

    A mais importante delas foi realizada no Rio de Janeiro, entre os anos de 1949 e 1950, no bairro de Guadalupe.

    Nesse conjunto, ao lado de edificaes de alvenaria, construram-se casas de madeira, bloco e placa de concreto, uma das quais, denominada balo, se assemelhava a um iglu. No interior da Bahia testou-se a possibilidade de aproveitar as tcnicas tradicionais de barro batido e pau a pique para habitaes rurais, em antecipao s iniciativas que hoje buscam desenvolver tecnologias intermedirias, vinculadas ideia de um ecodesenvolvimento.9

    O regime de empreitada, com licitao, foi o mais utilizado durante toda a trajetria da Fundao da Casa Popular. A partir de 1952, idealizou-se uma forma de licitao que buscava simultaneamente baratear o custo unitrio da construo e proteger as pequenas e mdias empresas regionais, que, por razes de escala, nem sempre tinham condies de arcar com os prazos, custos e vultos das obras postas em concorrncia.

    Sugesto feita em reunio do Conselho Tcnico da Fundao, em 18 de novembro daquele ano, estipulava os objetivos e explicitava os procedimentos a serem seguidos nessa nova modalidade de licitao:

    considerando que a FCP, no desempenho de suas atribuies, , muitas vezes, levada a abrir concorrncia para a construo de um nmero elevado de casas, com prazo curto, em localidades onde existem poucas firmas construtoras, quase todas de reduzido capital e, portanto, impossibilitadas de concorrerem por no apresentarem condies satisfatrias para assumirem grandes responsabilidades, considerando ser de toda a convenincia, quer sob o ponto de vista econmico, quer pelos efeitos morais resultantes, seja dada a oportunidade s boas firmas locais de contriburem para a realizao de to elevada obra social, na medida de suas possibilidades; considerando que uma das medidas que permitir a realizao desse objetivo fracionar a empreitada, adjudicando aos concorrentes, na

    9 Conforme entrevista concedida por ex-funcionrio da Fundao da Casa Popular, a

    experincia de Guadalupe mostrou que a casa tradicional ainda era a mais vantajosa, j que as demais exigiam tecnologia, maquinaria e mo de obra especializada e eram de preo mais elevado, Segundo esse mesmo funcionrio, a experincia da Bahia buscava combinar as prticas tradicionais de pau a pique e barro batido com as tcnicas mais modernas de revestimento e instalao hidrulica como forma de assegurar habitaes baratas e com certo padro sanitrio.

    8

    ordem de sua classificao, pelo preo unitrio da proposta vencedora, o encargo da construo de um nmero de casas que esteja de acordo com suas possibilidades; e no intuito de evitar que os concorrentes faam um acordo, combinando o preo mnimo a ser apresentado, a concorrncia pblica ser aberta para um nmero de casas compatvel com as possibilidades dos construtores locais. Uma vez abertas as propostas e classificados os concorrentes, os mesmos sero informados que a Fundao da Casa Popular resolveu construir maior nmero de casas e deseja aproveitar a mesma concorrncia. (...) O classificado em segundo lugar dir se aceita essa empreitada pelo preo unitrio classificado em primeiro lugar e, no caso afirmativo, fixar o nmero de casas que o interessa, e assim sucessivamente at completar o nmero de casas a serem construdas.10

    Proposta em 1952, somente na gesto Kubitschek tal modalidade de licitao viria a ser implementada em larga escala, com algumas modificaes. Em sua nova verso, que prevalecia apenas para conjuntos de mais de 50 unidades, reservava-se metade da obra firma vencedora, sendo o restante dividido entre as trs empresas melhor classificadas. Procurava-se, alm dos objetivos mencionados, obter parmetros de custo e qualidade.

    Outra iniciativa nesse perodo, para fazer face ao processo inflacionrio existente, consistia em antecipar parcelas do pagamento das empreitadas, desde que aplicadas aquisio de materiais, estocados no prprio canteiro de obras e sujeitos fiscalizao da Fundao da Casa Popular. O mecanismo permitia ganhos com compras vista e evitava a corroso da inflao.

    Independentemente da modalidade da construo, direta ou por empreitada, os projetos arquitetnicos foram sempre desenvolvidos pela Fundao da Casa Popular. As unidades em cada conjunto eram normalmente homogneas, considerando-se popular a residncia de at 70m2, quando se tratasse de projeto de um piso, e de um mximo de 60m2,

    10 Essa modalidade de empreitada pressupunha a concordncia das firmas colocadas em

    segundo, terceiro e quarto lugares na concorrncia. A elas era dada a opo de participar da obra desde que se dispusessem a aceitar os preos da proposta vencedora, conforme o disposto nas Atas do Conselho Tcnico da Fundao da Casa Popular, 34 sesso extraordinria realizada em 18 de novembro de 1952. Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro. Anais do Conselho Central. Rio, 1953.

  • 9

    com dois pisos.11 Geralmente, eram de trs quartos, pois se visava a uma clientela de famlia numerosa.

    Cabia aos municpios doar o terreno e realizar as obras de infraestrutura, gua, luz e esgoto, conforme clusula de um termo de compromisso que firmavam com a Fundao da Casa Popular.12 Era em resposta s solicitaes das municipalidades que a Fundao analisava a viabilidade da implantao de conjuntos. Em princpio, a seleo da cidade para a construo de conjuntos deveria levar em conta as necessidades locais, o apoio da prefeitura e a ordem das solicitaes. Nem sempre as decises se pautaram exclusivamente por aspectos tcnicos. O nmero de solicitaes excedendo as possibilidades da Fundao da Casa Popular dava a esta ltima posio privilegiada de escolha. Sendo a casa um recurso escasso e politicamente rendoso, a deciso de onde construir muitas vezes baseou-se em consideraes de interesse clientelstico. Motivaes polticas teriam, entretanto, peso ainda maior na alocao das casas entre os postulantes.

    CASA POPULAR: O DISTRIBUTIVISMO DA POLTICA

    O decreto-lei que institura a Fundao delimitava vagamente a populao que faria jus ao financiamento. Fazia referncias a brasileiros e estrangeiros com mais de dez anos de residncia no pas, ou com filhos brasileiros, que no tivessem habitao prpria. A preferncia para aquisio ou construo de moradia obedecia seguinte proporo:

    a) trabalhadores em atividades particulares 3 b) servidores pblicos ou de autarquias 1 c) outras pessoas 1

    11 Diferentemente da(s) Cohab(s), a Fundao da Casa Popular dispunha de grande variedade

    de tipos de casas e projetos, quase sempre em funo das condies locais. Alguns desses tipos receberam os nomes dos locais para os quais foram elaborados, como por exemplo, tipo Marechal Hermes e Sorocabana. 12

    A Fundao construiu tambm em terrenos doados pelos institutos, sendo que nesses casos arcava com o nus da infraestrutura. Por outro lado, houve outras articulaes com os institutos, em que estes repassavam todos os recursos, entrando a Fundao apenas com a administrao da obra. Neste ltimo caso os beneficiados atendidos deveriam ser os segurados dos respectivos institutos.

    10

    Mais tarde, a esses critrios seriam incorporados outros, pertinentes a renda e a tamanho de famlia. S poderiam pleitear financiamentos os candidatos cuja renda familiar lquida no excedesse a 60 mil cruzeiros anuais, e que tivessem sob sua dependncia econmica um mnimo de cinco pessoas.13

    Se, por um lado, ao no exigir nveis de renda mnima se poderia considerar a lei como tendo um cunho eminentemente social pois no exclua as parcelas menos favorecidas da populao por outro, ao colocar tetos to elevados de renda, 12,8 salrios mnimos lquidos mensais, terminava por permitir, em princpio, que setores relativamente bem aquinhoados pudessem tambm disputar as almejadas casas populares. Se isso no ocorreu em grande escala porque houve uma excluso voluntria dos setores mdios, que no achavam condizente com a sua posio social habitar os conjuntos populares.14

    Nesses termos, a renda deixou de ser um critrio para a seleo. O nmero de dependentes tornava-se, pelo menos em teoria, o fator determinante na classificao e escolha dos candidatos. Em casos de empate tinham preferncia os de ordem de inscrio mais baixa. Entretanto, a escolha nem sempre teve o carter impessoal sugerido pela legislao.

    O acesso casa prpria era, na prtica, limitado. Restries de informao, de prazo, de nmero de inscries e de unidades oferecidas reduziam drasticamente as possibilidades de amplo atendimento.

    Os editais de divulgao tinham alcance restrito, com a maioria dos candidatos tomando conhecimento atravs de parentes, amigos, vizinhos e outras fontes informais. Os prazos de inscrio para cada conjunto nem sempre foram suficientes para permitir uma divulgao maior e a apresentao dos interessados. As fichas, nos moldes de senha com direito inscrio, distribudas nas filas tornaram-se prtica corriqueira.

    13 De acordo com o art. da Lei n. 1.473, de 24 de novembro de 1951. (Brasil. Leis, decretos

    etc., op. cit., nota 9). 14

    Entrevistas realizadas em antigos conjuntos de Belo Horizonte revelam que a maior parte dos adquirentes de casas populares percebiam, por ocasio da compra, rendimentos ao redor de trs salrios mnimos.

  • 11

    Diante das necessidades da populao e da oferta limitada de casas populares no estranho que viesse a Fundao da Casa Popular a lanar mo de expedientes para desencorajar a demanda.

    Relatos da poca do conta das dificuldades de inscrio, desde o ato de dormir em filas, para garantir a senha, at a procura de um pistolo, para facilitar a tramitao dos papis. Superada a fase inicial da inscrio, eram conferidas as informaes do candidato atravs da visita de uma assistente social. Esta procurava certificar-se do nmero de filhos, das condies de moradia, da situao jurdica do domicilio, se havia processo de despejo que justificasse ateno especial e se a famlia dispunha de algum bem imvel. Concluda a visita, procedia-se classificao dos postulantes, com a convocao dos selecionados para assinatura de escritura de promessa de compra e venda e posterior posse da casa.

    Injunes de ordem poltica enviesavam o processo. Inscries fora de prazo, solicitaes que no preenchiam as condies prescritas, alteraes de classificao e privilgios na escolha de casas no foram casos raros. Sabedores de tais constrangimentos, muitos candidatos buscavam reforar suas possibilidades atravs de acompanhamento mais de perto do processo, de contatos polticos, e de favores a funcionrios e dirigentes. A ideia reinante era que, se deixado prpria sorte, o processo seria passado para trs.15 Evidncia desse clima e da percepo dos candidatos pode ser depreendida de uma coluna publicada na revista O Ncleo, rgo da Fundao da Casa Popular:

    (...) queremos, agora, lhe falar, caro candidato. Para comear, volveremos ao dia em que Voc, pela primeira vez, veio Fundao tentar obter uma casa onde morar. Nessa ocasio lembre-se as suas condies habitacionais eram bem crticas. A sua necessidade era das maiores. Ns sabamos disso e o atendemos com a melhor boa vontade. Voc foi ouvido, em seguida inscrito e, logo aps, visitado. De acordo com a classificao obtida, sua ficha de inscrio foi colocada na ordem rigorosa de precedncia. Como ainda tivesse de esperar um pouco, Voc se impacientou. Achou que sua situao era insustentvel; que devia receber a casa

    15 Em entrevista feita com moradores do Conjunto Carlos Pratas, em Belo Horizonte, no se

    constatou um s caso em que o adquirente no tivesse feito uso de prticas de influncia. Alguns dos candidatos chegaram mesmo a converter-se em cabos eleitorais nas regies onde tinham morado e julgavam ter alguns votos.

    12

    imediatamente. Foi quando ns lhe expusemos a realidade da situao. Havia alguns milhares de pessoas esperando casa. Na sua frente, algumas centenas. O critrio da necessidade no podia ser desrespeitado. Que cada um fosse contemplado na ocasio devida. Mas parece que nossas palavras no foram bem compreendidas A despeito de lhe termos explicado que a Fundao lhe enderearia um telegrama, to depressa dispusssemos de meios para atend-lo, a sua presena, nos nossos escritrios, tem sido constante. Nessas, ocasies, voc procura saber por que ainda no recebeu casa. E tudo. O que j lhe foi dito, das vezes anteriores, tem de ser repetido. Ultimamente, ento, as razes apresentadas pelos funcionrios do Departamento de Administrao Imobiliria no tm merecido o seu acatamento. No sabemos por qu. Revestem-se elas da maior dose de honestidade que se possa conceber. No raro, voc vem ter ao Gabinete da Superintendncia, para ouvir, do Chefe do Gabinete, e de seus subordinados, as mesmas palavras que j lhe foram ditas no DAI. E nem podiam ser outras. A verdade uma s. Por isso, dirigimos-nos, agora, a Voc para solicitar, ainda esta vez, um pouco mais de compreenso da sua parte. Queremos pedir-lhe que, uma vez inscrito, permanea em sua casa aguardando os acontecimentos (...)16

    Outro indcio das presses clientelsticas da poca era a existncia de uma espcie de reserva tcnica,17 constituda de pequeno nmero de unidades em cada conjunto, no sujeitas aos critrios formais de distribuio, medida que se apresentavam candidatos com cartucho poltico, a Fundao fazia uso de tal estoque. Nem sempre, porm, os pedidos de polticos podiam ser atendidos apenas com a reserva tcnica.

    Acossada por presses polticas, de difcil superao, e sem dispor de fonte estvel de recursos, que lhe permitisse fazer frente a conjunturas desfavorveis, a Fundao da Casa Popular no foi capaz de alcanar maturidade institucional traduzida em paradigmas universalistas, em firmeza de objetivos e em prestgio organizacional. A imagem que dela

    16 A Casa Popular aconselha, in O Ncleo, Rio, 1, 3, p. 7, julho de 1951.

    17 De acordo com depoimento de funcionrios da Fundao da Casa Popular, a reserva

    tcnica tinha uma existncia informal. Nem sempre se fez dela uso exclusivamente poltica. s vezes tais unidades eram distribudas entre postulantes de comprovada necessidade, mas que por motivos diversos no puderam cumprir as exigncias legais nos prazos determinados. Nos perodos eleitorais, quando a presso poltica era mais intensa, nem sempre essa reserva tcnica era bastante.

  • 13

    ficou era a de um rgo deriva, despersonalizado, que vagava ao sabor das injunes e das caractersticas transitrias de seus chefes.

    A FILOSOFIA DOS CONJUNTOS: O PATERNALISMO AUTORITRIO

    Clientelista na deciso de onde construir, na seleo e classificao dos candidatos, a Fundao tornava-se tutora paternal e autoritria na administrao dos conjuntos. Prova desses traos so algumas das clusulas constantes das escrituras de promessa de compra e venda de moradias. No apenas a conservao do imvel preocupava a Fundao da Casa Popular. O comportamento social e individual dos moradores era objeto de longas e minuciosas consideraes, o que podia levar inclusive resciso do contrato.

    Previa-se punio, com perda da casa, para os compradores que, por seu procedimento, vierem a tornar-se nocivos ordem ou moral do Ncleo Residencial, ou criarem embarao sua Administrao; ou o que promover agitao de qualquer natureza no conjunto ou permitir que dependente seu o faa; ou ainda aquele que se negar a receber, em seu imvel, funcionrios do Servio de Assistncia Social da FCP... e a prestar-lhe informaes solicitadas. Tambm punido com a perda da casa o adquirente que no destinar o prdio exclusivamente para sua moradia e da famlia, ou utiliz-lo em atividade de carter religioso, poltico, esportivo, recreativo ou outros inconciliveis com a finalidade a que destinado o imvel.18

    Partia-se do suposto de que as classes populares no estavam preparadas para a vida em comunidade. Precisavam ser guiadas para utilizar e conservar as instalaes da casa, da as visitas de inspeo nos primeiros anos, to comuns quanto impertinentes nos relatos de antigos moradores. Estes careciam, na percepo da instituio, de conhecimentos rudimentares sobre construo, instalao eltrica e equipamentos hidrulicos, razo por que adaptaes e mudanas, em principio vedadas pelo risco de danos integridade arquitetnica e patrimonial do conjunto, s eram permitidas ouvidos os responsveis pela administrao, os funcionrios do escritrio local da Fundao. A imagem que se fazia era de um caos inevitvel, de favelizao dos ncleos, no fossem a oniscincia e a onipresena da FCP.

    18 Citaes extradas da clusula 16 do contrato padro de Escritura particular de promessa

    de compra e venda de imvel utilizada pela FCP em 1959 nos conjuntos de Belo Horizonte.

    14

    Em defesa desse autoritarismo poder-se-iam alegar o despreparo e as inadaptaes culturais dos beneficirios, que acarretariam a necessidade de proteg-los at que aprendessem a usufruir, de modo adequado, o bem que haviam adquirido. Entretanto, nem esse argumento conservador se sustenta, pois a grande maioria dos moradores percebia acima de trs salrios mnimos e provinha de meio urbanizado. A casa de tijolos, as instalaes sanitrias, os tacos de madeira das salas, os vidros das janelas, os alvos prediletos da fiscalizao dos conjuntos, no eram figuras estranhas experincia urbana dessa populao. Os compradores egressos de favela ou do meio rural eram de nmero insignificante, no justificando o paternalismo das medidas.

    O autoritarismo era ainda mais gritante com a tentativa de controle do comportamento social. O que tornar-se nocivo ordem ou moral do Ncleo? Por que as atividades de carter religioso, poltico, esportivo e recreativo so inconciliveis com a finalidade a que destinado o imvel? Como definir, seno de modo arbitrrio e subjetivo, comportamentos que criam embaraos administrao? Se tais normas fossem levadas ao p da letra, ter-se-ia poder incomensurvel e discricionrio em mos da Fundao e de seus funcionrios, em prejuzo do prprio direito de propriedade.

    Curiosamente, a inadimplncia era considerada um mal menor. Dispositivo de contrato previa meios para remedi-la mediante pagamento de juros de mora de 1% ao ms sobre as prestaes em atraso. O resultado desse dispositivo jurdico, corroborado por decises polticas, que no se tem conhecimento de resciso de contrato por atraso nas prestaes.

    De alto custo, e de duvidosa eficincia, tanto econmica quanto social, o paternalismo autoritrio da administrao dos conjuntos tinha, normalmente, vida curta. Relatos de antigos moradores19 do conta de que tais medidas de controle perdiam fora com o passar do tempo e eram logo desativadas nos primeiros meses.

    19 Conforme entrevistas feitas com antigos moradores de conjuntos habitacionais da FCP em

    Belo Horizonte.

  • 15

    A LOCALIZAO DAS CASAS POPULARES

    Angulo significativo para avaliar a poltica da Fundao da Casa Popular a distribuio espacial dos conjuntos e casas construdas. Onde se localizaram? Que regies, Estados e cidades foram beneficiados? Quais os prejudicados? Que critrios orientaram tais decises? Havia algum padro? Respondia-se com a poltica de localizao s prioridades habitacionais das populaes de baixa renda? Qual o peso do fator poltico? Analisando-se o nmero de unidades construdas por tamanho de cidade em 1950 (tabela 1), percebe-se que se privilegiavam os grandes centros urbanos, pois 68% das construes localizaram-se nas grandes cidades da poca, ou seja, as de populao superior a 50 mil habitantes. Mas isso no quer dizer que no se tenham contemplado os pequenos e mdios ncleos, os quais foram beneficiados com 32% das edificaes realizadas.

    Tabela 1. Fundao da Casa Popular. Casas e conjuntos construdos, por tamanho de cidades at 31 de dezembro de 1960

    Tamanho de cidades Casas construdas % Nmeros de conjuntos construdos % At 5.000 836 5 22 15

    5.000 a 10.000 914 5 24 17 10.000 a 20.000 1.109 7 22 15 20.000 a 50.000 2.586 15 35 25 50.000 a 100.000 2.157 13 19 13

    + de 100.000 9.362 55 21 15 Total 16.964 100 143 100

    Fontes: Dados bsicos: Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro. Fundamentos e bases de um plano de assistncia habitacional. 1961, 60 pp. IBGE: Censo demogrfico, Brasil, 1950.

    Aparentemente, os critrios da localizao espacial estavam em consonncia com as necessidades habitacionais do pas. Nos grandes centros a questo da moradia era provavelmente mais crtica.

    Se os dados de unidades construdas desautorizam, em princpio, a imagem clientelista da Fundao da Casa Popular, o mesmo no ocorre quando se examina a distribuio dos conjuntos. Estes situam-se predominantemente nas pequenas e mdias cidades. Quase a metade dos conjuntos foi edificada em ncleos urbanos com menos de 20 mil habitantes.

    Poder-se-ia alegar que o maior nmero de conjuntos em tais cidades se explicaria em funo do tamanho da demanda: com populao pouco

    16

    numerosa era de esperar que em mdia os conjuntos a fossem menores que os construdos nas grandes cidades. Embora esse argumento seja verdadeiro, no se pode desprezar a importncia poltica que tem a atomizao da oferta de casas populares. De uma tica distributivista vantajoso atender ao maior nmero possvel de clientes. Nesse sentido, quanto mais cidades fossem contempladas, maiores os dividendos polticos alcanados.

    O que mais chama ateno, entretanto, a inexistncia de construes na regio Norte, fato surpreendente apesar do baixo nvel de urbanizao da rea. No seria isso resultante da pouca expresso poltica do Norte, perante outras regies?

    Quanto distribuio de unidades residenciais por regio (Tabela 2), nota-se desequilbrio em favor do Sudeste, onde se localizavam 70% de todas as moradias construdas, enquanto ao Sul e ao Nordeste se destinavam, respectivamente, 5% e 14% das edificaes. A participao elevada do Centro-Oeste deve ser atribuda, basicamente, s necessidades da implantao de Braslia.

    Tabela 2. Fundao da Casa Popular. Casas e conjuntos construdos, por regio, at 31 de dezembro de 1960

    Regies Nmeros de casas Nmero de conjuntos

    construdas % construdos % Norte Nordeste 2.317 14,0 31 22,0 Centro-oeste 1.860 11,0 10 7,0 Sudeste 11.837 70,0 84 60,0 Sul 950 5,0 18 11,0 Total 16.964 100,0 143 100,0 Fonte: Dados bsicos: Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro. Fundamentos e bases de um plano de assistncia habitacional. Rio, 1961, 60pp.

    Se, do ngulo regional ou da perspectiva do tamanho das cidades a poltica de alocao de habitaes apresenta problemas, o quadro ainda mais grave quando se analisa a distribuio por Estado. Ressalta, em primeiro lugar, a posio privilegiada de Minas Gerais e do antigo Estado da Guanabara: em cada um desses dois Estados, isoladamente, construiu-se mais do que em todo o Sul e Nordeste juntos. interessante notar que So Paulo, apesar de mais urbanizado, e de possuir maior nmero de cidades mdias e grandes, situa-se em terceiro lugar em construes, bem

  • 17

    distanciado dos dois primeiros colocados. Alm disso, observa-se que em muitos dos Estados do Nordeste Maranho, Alagoas, Sergipe e Bahia a atuao da FCP foi quase simblica.

    As disparidades no ocorreram apenas entre os grandes Estados. Dentro da regio Nordeste chama ateno baixa prioridade concedida Bahia, em contraste com outros Estados da rea. Assim, construiu-se cinco vezes mais no Cear e nove vezes mais em Pernambuco que naquele Estado.

    Tabela 3. Fundao da Casa Popular Casas e conjuntos construdos, por Estados, at 31 de dezembro de 1960

    Estados Nmeros de casas Nmero de conjuntos construdas % construdos %

    Rio Grande do Norte 240 1,5 7 5,0 Rio Grande do Sul 613 3,5 13 10,0 Minas Gerais 4.248 25,0 46 32,0 Bahia 100 0,5 4 3,0 Sergipe 65 0,5 1 1,0 Rio de Janeiro (antigo Estado da Guanabara) 3.993 24,0 5 3,0 So Paulo 2.959 17,0 24 17,0 Distrito Federal (Braslia) 1.520 9,0 4 3,0 Esprito Santos 294 2,0 2 1,0 Pernambuco 982 6,0 7 5,0 Mato Grosso 160 0,5 2 1,0 Paran 141 1,0 2 1,0 Paraba 228 1,0 6 4,0 Cear 526 3,0 2 1,0 Gois 180 1,0 4 3,0 Santa Catarina 196 1,0 3 2,0 Piau 74 0,5 2 1,0 Maranho 50 0,5 1 1,0 Alagoas 52 0,5 1 1,0 Ex-Rio de Janeiro 343 2,0 7 5,0 Total 16.964 100,0 143 100,0 Fonte: Dados bsicos: Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro. Fundamentos e bases de um plano de assistncia habitacional. Rio, 1961, 60pp.

    De no menor importncia o dado concernente ao nmero de conjuntos por Estado (Tabela 3). Destaca-se Minas Gerais com 46 conjuntos, dos quais apenas cinco na grande Belo Horizonte. Tal fato, apontado anteriormente, revelador tanto do sistema distributivista do

    18

    plano habitacional, quanto da fora da representao poltica mineira junto Fundao da Casa Popular.

    Enquanto o nmero de habitaes populares no antigo Estado da Guanabara se explicava por se tratar da capital do pas, aliada sua condio de grande metrpole, em Minas o fato poderia ser imputado vinculao da direo da Fundao da Casa Popular, em sua fase mais dinmica, com as lideranas polticas regionais. Vale lembrar que, poca, a presidncia da Repblica era exercida por Juscelino Kubitschek.

    Por outra parte, a discrepncia encontrada com respeito a So Paulo entre o nmero de casas efetivamente construdas e o que se poderia esperar em face do seu peso econmico, social e demogrfico, talvez encontre explicao na sub-representao poltica do Estado, conforme sugere Simon Schwartzman.20

    Tabela 4. Fundao da Casa Popular Casas e conjuntos construdos nas maiores cidades do pas at 31 de dezembro de 1960

    Cidades Nmero de casas construdas

    % total das construes da FCP

    Nmero de conjuntos

    % total dos conjuntos da FCP

    Rio de Janeiro 3.993 24,0 5 3,0 Braslia 1.520 9,0 4 3,0 Belo Horizonte 1.109 7,0 3 2,0 Recife 588 3,0 1 1,0 Fortaleza 456 3,0 1 1,0 Salvador So Paulo Porto Alegre Total 7.666 46,0 14 10,0 Fonte: Dados bsicos: Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro. Fundamentos e bases de um plano de assistncia habitacional. Rio, 1961, 60pp.

    Esse ponto reforado pela Tabela 4, que mostra casas e conjuntos construdos nas maiores cidades do pas. Na cidade de So Paulo no se edificou nenhuma unidade residencial atravs da Fundao da Casa Popular. Conforme se pode depreender dos dados, as cidades do Rio de Janeiro, Braslia e Belo Horizonte concentram 40% das construes realizadas em toda a existncia da Fundao da Casa Popular. Como So

    20 Ver a respeito: Schwartzman, S. So Paulo e o Estado nacional. S. Paulo, Difel, 1975, 190 pp.

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    Paulo, outros dois grandes centros urbanos, Porto Alegre e Salvador, no foram beneficiados com casas populares.

    POPULISMO E HABITAO: AS LIMITAES DA FUNDAO DA CASA POPULAR

    Embora para uma avaliao rigorosa da poltica habitacional do populismo seja necessria a incorporao de informao sobre atuao dos institutos, das caixas de penses, do poder pblico estadual e at mesmo de algumas prefeituras de grandes cidades, o quadro de realizaes da FCP no deixa de ser dado de relevo que evidencia a baixa prioridade que os governos populistas concederam questo habitacional.

    No se pode ignorar do ponto de vista quantitativo o peso dos institutos e das caixas de penses. Frente a tais realizaes a Fundao da Casa Popular teve desempenho pouco expressivo. A despeito da pretenso de ser o carro-chefe da poltica habitacional, a FCP contribuiu com um pouco menos de 10% das moradias construdas por todas essas instituies no perodo populista. Pouco mais de 900 moradias foram edificadas, em mdia, por ano.

    Ressalta-se, no entanto, que nem toda a produo habitacional dos institutos e das caixas de penses destinava-se a classes de renda baixa. Em muitas dessas instituies particularmente as mais dinmicas a clientela alvo, era, ao contrrio, constituda por famlias de renda mdia ou alta. Vale lembrar nesse contexto a situao dos funcionrios do Banco do Brasil, que figuravam nas estatsticas como setores populares, quando na realidade eram, no dizer da poca, os prncipes da Repblica, dados os altos salrios que percebiam.

    Por que a FCP produziu em toda a sua trajetria histrica cifra to modesta, se eram elevados os ganhos polticos que se poderiam alcanar com a casa prpria? Faltou percepo das vantagens eleitorais de um programa de habitao popular, em larga escala ou, ao contrrio, capacidade de implementao?

    Os minguados resultados da Fundao da Casa Popular pouco tinham a ver com os aspectos administrativos do rgo. Embora figurassem nas alegaes da poca, tais argumentos desconheciam o prprio sentido da

    20

    poltica habitacional e sua ligao com o regime populista. De que valeriam mais recursos em contexto de grande inflao?

    O modelo da casa integralmente subsidiada era um poo sem fundo. Sem retorno, por maiores que fossem as inverses, no se lograria ampliar significativamente o atendimento de casa prpria. A sada do investimento autofinanciado esbarrava na prpria lgica do populismo. Como exigir que se pagasse por um bem que at ento vinha sendo distribudo quase sem nus?21 Como conciliar uma poltica de retorno de investimentos com a imagem paternalista do Estado?

    Tais crticas no implicam endosso de um modelo empresarial para uma poltica de habitao popular. O sentido social da casa prpria para as classes menos favorecidas, as limitaes de renda dessas camadas da populao e as dificuldades de barateamento do custo da habitao, em razo de fatores vrios, tais como o preo do solo urbano, os bices tecnolgicos a uma produo em escala, os longos prazos exigidos para o retorno dos investimentos,22 tm levado, mesmo em pases de economia adiantada, adoo de subsdio por parte do Estado para viabilizar a construo de casas populares. O pecado do populismo no estava nos subsdios, mas em subsidiar quase totalmente.

    Conforme se ver no capitulo seguinte, no passaria despercebido o impasse da poltica habitacional populista. Medidas foram cogitadas para sanar o quadro de debilidade, mas, como era de esperar, no tiveram consequncia prtica. Somente com a eleio de Jnio Quadros, no bojo de um populismo de feio diversa,23 tais medidas poderiam ter tido outro destino. A renncia, entretanto, impediria que tivessem um curso de ao. A mudana da poltica habitacional somente viria a ocorrer com a criao do BNH.

    21 Em um ou dois anos, conforme se apurou junto a moradores de conjuntos habitacionais em

    Belo Horizonte, as prestaes se tornavam irrisrias. Da a imagem da poca de que a casa prpria era quase um prmio. 22

    Sobre as dificuldades do barateamento da mercadoria habitao ver Topalov, Christian Les promoteurs immobiliers. Paris, Mouton, 1974. 23

    Sobre a especificidade do populismo janista ver Weffort, F. C. Estado e massas no Brasil, in Revista Civilizao Brasileira. Rio, 1, 7, pp. 137-58, maio de 1966.

  • 21

    PARTE II

    TENTATIVAS DE MUDANA: DO BANCO HIPOTECRIO AO

    INSTITUTO BRASILEIRO DE HABITAO

    o longo de sua trajetria a Fundao da Casa Popular (FCP) tomou conscincia das limitaes de seu modelo e percebeu que a

    dependncia aos recursos oramentrios, a rpida depreciao das aplicaes realizadas e a estrutura institucional eram entraves consecuo dos objetivos da poltica habitacional. Em vrios momentos reconheceu o gasto excessivo com a burocracia e a timidez de suas iniciativas frente magnitude das necessidades que, no inicio da dcada de 1950, eram estimadas em 3.600.000 moradias, sem contar as favelas e cortios que se alastravam por todas as grandes cidades brasileiras.1

    A primeira tentativa de transformao da FCP que merece destaque ocorreu em janeiro de 1953, com a proposta discutida no conselho central do rgo, para criar um banco hipotecrio.2 Inicialmente pensou-se na implantao de uma carteira hipotecria, vinculada FCP, que teria por objetivo permitir emprstimos, at o valor de 50 mil cruzeiros, a pequenos proprietrios de terreno que desejassem construir casa prpria. Posteriormente a ideia evoluiu para o projeto do banco.

    Os mentores da ideia justificavam a mudana a partir da debilidade financeira da Fundao da Casa Popular, da necessidade de garantir recursos prprios e das dificuldades de levantar, atravs de impostos e taxas, os recursos para suprir o rgo:

    com os exguos recursos financeiros de que dispe, a Fundao da Casa Popular no est, assim, em condies de, ao menos, atenuar de modo

    1 Os documentos oficiais que tratavam do dficit habitacional nem sempre utilizaram

    metodologia constante, obtendo-se, em consequncia, estimativas contraditrias. s vezes, considerava-se o problema da habitao rural; outras vezes, no. A estimativa de 3.600.000 moradias para o dficit em 1950 foi extrada da justificativa do anteprojeto de lei do Instituto Brasileiro de Habitao, encaminhado ao Congresso pelo Governo Jnio Quadros. (Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro. Anais do Conselho Central, Rio. 1953. 2 Ibid.

    A

    22

    sensvel a crise nacional de moradia. Da as inmeras sugestes que tm surgido para dar maior elasticidade e amplitude a seus movimentos, de modo a permitir a acumulao de recursos ponderveis e necessrios a uma poltica social de resultados positivos. Dentre elas, a de mais fcil viabilidade (...) ser a constituio de um banco (...) o qual ter por finalidade capitalizar e angariar disponibilidades financeiras, para a soluo de um problema angustiante, sem o expediente, sempre pernicioso, do acrscimo de impostos e taxas que acarretam, invariavelmente, o encarecimento do custo de vida. Atravs do Banco Hipotecrio (...) as classes menos favorecidas tero assegurada, pelo crdito a longo prazo e juros mdios, a oportunidade de adquirir, reparar ou ampliar a moradia prpria.3

    O projeto do banco hipotecrio, conquanto no tenha sido levado frente, preconizava solues que s muito recentemente vieram a ser cogitadas e implementadas pelo Banco Nacional da Habitao. Pensava-se, naquela poca, no apenas em programas que permitissem o acesso casa prpria, mas tambm proporcionassem a reparao, ampliao e at a construo em lote prprio.

    O projeto do banco hipotecrio previa recursos de vrias fontes: depsitos, lucros das operaes, receitas provenientes de letras hipotecrias de sua responsabilidade e subscrio compulsria por parte dos particulares que viessem a contrair emprstimos junto ao banco. O capital deveria ser integralizado em 90% pela prpria Fundao da Casa Popular. O restante deveria ser coberto por particulares, devedores do banco, na proporo de uma ao de mil cruzeiros para cada conjunto de 50 mil cruzeiros de emprstimo.

    Conforme se pode depreender das fontes de recursos previstas, a criao do banco implicaria modelo novo de poltica habitacional. A captao de poupana, via letras hipotecrias, tinha como corolrio a remunerao do capital aplicado. O prprio plano de um banco, se bem que atrelado Fundao da Casa

    Popular, envolvia, em certa medida, o embrio de uma soluo de mercado para a construo de moradias para populaes de baixa renda.

    Embora a proposta das letras hipotecrias tivesse sido tomada de experincias internacionais, tinha-se conscincia da precariedade do

    3 Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro, op. cit., pp. 645.

  • 23

    mercado financeiro do Brasil e da necessidade de o poder pblico sustent-las. Segundo os autores da proposio, se deixadas ao livre jogo do mercado, as letras enfrentariam dificuldades para colocao, e suas cotaes baixariam a tal nvel que impossibilitaria o desenvolvimento de um plano em escala superior.4 Outra dimenso que se pretendia introduzir na poltica habitacional atravs do projeto era a diviso de trabalho entre a Fundao da Casa Popular e o prprio Banco Hipotecrio de Investimento e Financiamento da Habitao Popular. A este competiria a execuo da poltica, enquanto Fundao estaria reservado o papel normativo. Esse arranjo, em certo sentido, foi tentado quando da criao do BNH. A lei que o instituiu criou tambm o Servio Federal de Habitao e Urbanismo (Serfhau), com funes semelhantes s da Fundao da Casa Popular.

    Procurou-se, para levar adiante a iniciativa do Banco Hipotecrio, o apoio de lideranas partidrias, de autoridades governamentais e do prprio presidente da Repblica, com quem foi abordada a ideia. Imaginava-se que a poca era propcia, pois estava em andamento um plano geral de remodelao do Servio Pblico.

    A despeito da receptividade encontrada inicialmente junto a setores governamentais, o projeto no logrou viabilidade poltica.

    CRISE SOCIAL E HABITAO: A PERSPECTIVA DO GOVERNO JNIO QUADROS

    A outra tentativa de transformao da poltica habitacional digna de nota teria lugar somente oito anos mais tarde, nos sete meses do Governo Jnio Quadros. Durante o perodo Kubitschek optouse por dinamizar a Fundao da Casa Popular, sem alterar-lhe as estruturas organizacionais e os mtodos de ao. Embora no se tivessem superado nesses anos as debilidades que haviam marcado a atuao da FCP no passado, foi a poca de maior prestgio da instituio. Construram-se os conjuntos de Braslia, a maior parte das unidades residenciais de Minas Gerais e do antigo Distrito Federal.

    Foi a partir da percepo de que estava em marcha uma crise social em larga escala, com riscos de convulso poltica, e a econmica de consequncias imprevisveis, que se props a reformulao da poltica

    4 Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro, op. cit., p. 43.

    24

    habitacional com o Plano de Assistncia Habitacional e a criao do Instituto Brasileiro de Habitao.5

    O quadro que ento se delineava para as autoridades era o de um pas premido pela inquietao social. O diagnstico da crise era amplo e abrangente. Realava, de um lado, a estrutura agrria arcaica e injusta, que expulsava o homem do campo, e, de outro, a industrializao incipiente, incapaz de absorver os contingentes de migrantes rurais.

    A crise, segundo os idealizadores do Instituto Brasileiro de Habitao, tinha razes no passado distante e prendia-se a desajustamentos seculares no ritmo do desenvolvimento.

    As causas eram a incompleta e tardia revoluo industrial que penetrara rapidamente o campo e desarticulara suas estruturas, levando ao intumescimento das cidades e condicionando o processo de desenvolvimento anterior.

    As migraes rurais denotam a crise agrcola, presente desde o incio da expanso industrial (...) decomposta a economia natural das semiautarquias latifundirias, abolida a escravido, com a consequente disperso dos ex-escravos nos imensos vazios territoriais do interior, ou evadindo-se para as cidades, no puderam mais os camponeses contar com fontes industriais artesanais de renda. Ficaram reduzidos, com exceo dos fazendeiros, agricultura de subsistncia, o mnimo para viver, e viver mal, com um pouco de feijo, milho e mandioca e alguma criao domstica... Tal foi a consequncia da introduo do capitalismo industrial, embrionariamente industrial, no Brasil.6

    Revelada dramaticamente nas favelas do Rio de Janeiro ou nos mocambos de Recife, a crise habitacional era, sob essa tica, um fenmeno dependente, expresso de outras crises mais profundas e mais amplas. Era agravada pelo xodo rural que a esperana de emprego atraa para a cidade grande.

    5 A poltica habitacional do Governo Jnio Quadros pretendia aes de curto e mdio prazos.

    A curto prazo propunham-se as iniciativas consolidadas no Plano de Assistncia Habitacional, para as quais se solicitara financiamento junto ao BID. As de mdio prazo viriam com a criao do Instituto Brasileiro de Habitao. (Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro. Fundamentos e bases de um plano de assistncia habitacional. Rio, 1961, 60 pp.) 6 Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro, op. cit., p. 13.

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    O problema da carncia habitacional urbana no Brasil (...) prende-se mudana da economia brasileira operada desde, aproximadamente, um sculo. expresso direta da nossa revoluo industrial. (...) A atrao de operrios, imigrantes estrangeiros e do campo, em tomo da indstria txtil, de alimentao de antanho e da indstria mecnica atual, feita de maneira apressada e tumulturia, Inconsciente e sem previso, ao sabor da aventura, inflou as vilas em cidades.7

    As levas de migrantes rurais, despejados nos grandes centros na expresso contundente dos Fundamentos e bases de um plano de assistncia habitacional, o documento que encaminha a questo no Governo Jnio Quadros , encontrariam sorte no diversa da que vinham tendo no campo. A cidade grande, para onde se dirigiam, carecia de infraestrutura, de esgotos sanitrios, de gua tratada, de lotes bem localizados e de preos acessveis. Faltava, alm disso, a essas populaes, de acordo com o argumento oficial, as qualificaes necessrias para se integrarem ao ambiente urbano. Consequentemente, segundo essa viso, os migrantes seriam marginais em potencial, portadores que eram de uma cultura que no os habilitava vida urbana e industrial.8 Cabia, portanto, ao Estado recuper-los para a civilizao, atravs de programas sociais dentre os quais se destaca o habitacional.

    As populaes despejadas no Rio, Recife, So Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, anualmente, em levas, constituem-se em ncleos marginais. Expulsos da agricultura, no logram adaptar-se ao trabalho industrial, sem educao, sade e disciplina para nele incorporar-se. Perdidos os vnculos antigos, seu padro de cultura tradicional no lhe serve para moldar-se s novas condies. Oscilam entre duas reas econmicas e sociais, impotentes de regredir ao ambiente de que foram repelidos e incapazes de assimilar a tcnica do trabalho a que aspiram. Um programa habitacional, de trabalho, educao e sade ser o meio de recuper-las para a civilizao.9

    7 Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro, op. cit., p. 3.

    8 Argumento de tom no diverso pode ser encontrado em documentos oficiais da Fundao da

    Casa Popular em perodos anteriores. O BNH, mais tarde, retomaria essa linha, conforme se pode depreender de citaes que se faro mais adiante da carta de Sandra Cavalcanti ao presidente Castelo Branco e da fala do ministro Roberto Campos em congresso realizado em So Paulo. 9 Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro, op. cit., p. 28.

    26

    O clima da poca, com as Ligas Camponesas, a mobilizao, operria e as mquinas partidrias do PTB nas favelas era, aos olhos do governo, o prenncio de uma situao revolucionria.

    O tom dramtico dos documentos oficiais revela essa percepo: surgem sintomas, em toda a parte, do desespero das populaes, que no tolerariam o adiamento das solues por mais um quinqunio. As Ligas Camponesas do Nordeste e as agitaes operrias do Sul so prenncio da crise, a que deve obviar um governo previdente e responsvel dos destinos da Nao. Sem retrica, nem dramatizao, pode dizer-se que este o momento da encruzilhada. (...)10

    Para fazer face situao revolucionria era imperativo, um corajoso programa de reformas que respondesse s justas demandas sociais dentro de um quadro de ordem: Ou o governo, atende aos anseios populares, ou estes organizaro suas reivindicaes em bases revolucionrias, margem ou contra a ordem social.11

    contra esse pano de fundo que se prope um novo programa habitacional. Subjacente est a ideia de que a propriedade pode ser fator de estabilidade poltica. Atravs da casa prpria o trabalhador lograria no s ascenso social, como tambm civilidade, conforme acentua a justificativa do novo plano habitacional:

    o status de proprietrio d ao trabalhador um senso mais elevado de responsabilidade, levando-o a fazer todos os sacrifcios e empenhar seus esforos para mant-lo. De revoltado contra a ordem social, o beneficirio passar a ser um sustentculo dela, um homem que acredita na ascenso social. H que contar com a mudana da mentalidade que se opera no trabalhador, desejoso de, egresso do inferno, nunca mais a ele retornar.12

    Curiosamente, usavam-se os mesmos argumentos que mais tarde fundamentariam a proposta de criao do Banco Nacional da Habitao, o que se ver mais adiante.

    De par com os objetivos sociais, estavam, pois, razes polticas a justificar o programa habitacional. Buscava-se com ele garantir a

    10 Ibid.. p. 24.

    11 Ibid.. p. 24.

    12 Ibid., p. 49.

  • 27

    sobrevivncia do regime democrtico, presumidamente ameaado pela agitao poltica que encontrava terreno propcio nas condies de vida inferiores das populaes pobres das cidades.

    Escolhia-se o caminho da reforma, em estratgia de perder alguns anis, mas salvar os dedos. Para no ver escapar-lhe o leme da poltica, restava ao Estado tomar a dianteira e antecipar-se ao problema, concedendo benefcios aos setores populares, antes que estes os alcanassem pela mobilizao da fora.

    Vale destacar, neste contexto, os termos tradicionais e conservadores em que era colocado o problema: as massas precisariam ser guiadas e orientadas, cabendo ao Estado recuper-las para a civilizao, posto que a mudana para as cidades havia destrudo os laos de solidariedade que faziam delas no campo um todo orgnico. Chama ateno a semelhana com a viso que ditou o paternalismo da Fundao da Casa Popular, traduzido nos procedimentos minuciosos com que esta pretendia tutelar os habitantes dos conjuntos.

    Se as questes social e poltica constituam o fulcro da poltica habitacional que se pretendia implantar com o Plano de Assistncia Habitacional e com o Instituto Brasileiro de Habitao, isso no quer dizer que se relegavam a lugar subalterno os efeitos econmicos que dela poderiam advir. Na verdade, a dimenso econmica tinha lugar de realce, pela contribuio que poderia trazer para atenuar os graves problemas de desemprego em reas crticas, como o Nordeste. Era o que se alegava com o exemplo do New Deal, em que obras pblicas tiveram papel de relevo na absoro de mo de obra e no combate recesso da economia.

    Os objetivos econmicos embutidos na poltica habitacional eram, entretanto, ainda mais complexos. Partia-se de que era possvel desencadear quase que uma poltica de desenvolvimento calcada nos investimentos habitacionais. A indstria de construo civil, incentivada por um programa macio de casas prprias, teria carter germinativo, levando criao de novas indstrias e retendo, regionalmente, capitais que, sem outra alternativa atraente, terminariam por migrar para os centros dinmicos. Imaginava-se que tais efeitos culminariam por refletir-se na prpria agricultura de subsistncia, fortalecendo-a com novas demandas geradas na expanso da construo civil.

    28

    Outro efeito de no menor importncia era o referente adaptao ao trabalho urbano e industrial que a experincia da construo poderia trazer para os migrantes rurais. De acordo com o argumento do Plano de Assistncia Habitacional, na ausncia da indstria leve, fase do aprendizado na disciplina fabril, a construo civil supre-a, com os mesmos resultados. Ela proporciona, imediatamente, um salrio fixo e ensina um ofcio, atribuindo-lhe poder aquisitivo para participar dos bens industriais.13

    O PLANO DE ASSISTNCIA HABITACIONAL

    Complexa e ambiciosa, a poltica habitacional esboada durante o Governo Jnio Quadros, que no passaria do papel, por causa da renncia, buscava mais que a mera remodelao do velho figurino da Fundao da Casa Popular. No que se negasse a esse rgo crdito por sua atuao. O documento que justificava o Plano de Assistncia Habitacional era generoso na avaliao que dela fazia, embora reconhecesse a modstia dos nmeros que exprimiam suas realizaes.

    A soluo idealizada com o Plano propunha linhas de ao de curto e de longo prazo. Preconizava, de incio, o revigoramento da FCP, que mais tarde deveria ceder lugar a uma nova instituio, o Instituto Brasileiro de Habitao (IBH).14

    A curto prazo, propunha-se um programa de construo de 100 mil casas no perodo compreendido entre julho de 1961 e dezembro de 1962. Para tanto, previa-se um emprstimo de 80 milhes de dlares a ser tomado junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), cabendo FCP entrar com 10 bilhes de cruzeiros.15

    As casas a serem edificadas tinham custo estimado em 200 mil cruzeiros, ou 800 dlares norte-americanos. Seriam dotadas apenas dos elementos essenciais, com o cho de concreto, sem revestimento (interno ou

    13 Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro, op. cit., p. 42.

    14 s vezes o Instituto Brasileiro da Habitao aparece como Instituto Nacional de Habitao

    (BNH) particularmente no documento Fundamentos e bases de um plano de assistncia habitacional (Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro, op. cit., Entretanto, o projeto de lei que acompanha esse documento, e que criaria o novo rgo, usa a designao de Instituto Brasileiro da Habitao). 15

    Fundao da Casa Popular, Rio de Janeiro, op. cit., pp. 358.

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    externo) nem portas internas, vidros e outros acabamentos, que ficariam conta dos beneficirios. A Fundao da Casa Popular competiria, segundo o esquema de financiamento, a aquisio do terreno, a montagem da infraestrutura de gua, esgoto e de rede eltrica, em colaborao com as prefeituras municipais, e, eventualmente, a parcela de entrada, quando o muturio no dispusesse dos recursos necessrios para tal. Nesse caso, a FCP supriria a entrada com fi