aventuras na estrada real o emboaba

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Bruno dos Anjos

O Emboaba - Parte I -

Capa : Breno Pessoa dos Santos

Ilustrado por Daniel Lima

2007

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I – O Além-mar

Início de noite em Coimbra. As ruas estão praticamente desertas. O pior

do inverno já se foi, mas as pessoas ainda preferem o conforto dos seus cobertores ou lareiras a se aventurarem pelas vielas estreitas da cidade. Cai uma fina chuva e as águas do Mondego contribuem para acentuar a sensação de frio. Estamos em fevereiro de 1705.

O silêncio é quebrado pelos sons dos cavalos e das rodas de madeira a chiar no calçamento da velha cidade. A comitiva rompe as ruas, veloz, tendo à frente um cavaleiro a galope e o coche vindo logo atrás - não é dos maiores, pois as ruas de Coimbra exigem que não sejam largos, mas pode-se ver que é um transporte de ricos, feito em pau Brasil, de cabine fechada e puxado por dois cavalos. Dois outros cavaleiros vêm à retaguarda.

Chegam à pequena Igreja, no inicio da cidade alta. Encontram o templo fechado. O primeiro cavaleiro salta de sua montaria e vai chamar à porta.

Frei Álvaro já se encontrava recolhido quando ouviu baterem. Vestiu depressa a batina e foi ver do que se tratava. Julgou ser algo importante, dado o horário e o frenesi com que batiam.

De dentro da igreja, perguntou: “Quem é e o que queres?”. “A Viscondessa de Viegas deseja confessar-se”. “Mas a essa hora?”. “É urgente, padre”. “E ela não pode esperar até amanhã?”. “Eu disse urgente, padre”. “Vou preparar o confessionário”. Quando as portas da Igreja se abriram, a Viscondessa desceu do coche,

auxiliada pelo condutor. Vestia-se à moda francesa; um belo vestido azul marinho, a realçar suas formas roliças; saia balão armada com merinaque,

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meio aberta expondo as rendas das anáguas; e salto alto. Deu com Frei Álvaro no interior do templo.

“Onde está o Vigário?”. “Frei Miguel já se recolheu”. “Pois vá chamá-lo”. “Não se preocupe Viscondessa, pode confessar-se a mim”. “Eu exijo que traga-me Frei Miguel. Sou a Viscondessa de Viegas e meu

marido, o Visconde de Viegas, como bem o senhor sabe, é o maior benfeitor desta paróquia e também conselheiro da corte do rei Dom Pedro II, portanto não me venha com senões, padre. Vá chamar o vigário titular, imediatamente!”

A Viscondessa mostrou ao frade que sabia ser rude para realizar suas vontades, apesar de fidalga. Sentindo-se bastante desprestigiado, frei Álvaro foi chamar o vigário.

Considerado por seus pares ainda muito jovem (acabara de completar trinta anos), frei Miguel, há seis emitira os votos para sempre e há quase dois era o titular daquela pequena, porém importante paróquia. Importante, pois seu rebanho era, em sua maioria, formado por aristocratas, estudantes da universidade e outros estratos privilegiados da população de Coimbra, o que significava dízimos certos e doações portentosas. Frei Álvaro, alguns anos mais velho, era o primeiro auxiliar, condição com a qual não se conformava apesar de aparentemente diligente. Atribuía o prestigio de frei Miguel à proteção que o mesmo tinha do Cônego Oscar, líder da congregação na província de Coimbra. Também não concordava com a forma como o pároco gerenciava a renda do vicariato, pois julgava-se merecedor de valores maiores do que lhe era reservado. Secretamente, mas sem pudores de qualquer ordem, deseja e ambiciona o cargo maior. A cada vez que um membro da nobreza o trata como serviçal e ao vigário reserva deferência, sente um misto de cólera e indignação que lhe faz arder o peito e embrulhar-lhe as vísceras.

Frei Miguel dormia profundamente quando foi despertado. “Mas o que houve Álvaro? Não disse que não queria ser chamado?”. “A Viscondessa de Viegas está na igreja e exige ter a confissão assistida

pelo senhor”. “Mas não é possível!” Após a exclamação, pensou, “o que essa maluca

quer a essa hora?”. “Diga a ela que estarei pronto em poucos minutos”.

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O confessionário, feito de madeira nobre, consistia de duas bancadas separadas por uma grade, cujos acessos se davam em direções contrárias, o que evitava o contato visual entre confessor e penitente até que se sentassem. E ao fazê-lo, viam-se apenas pelos orifícios da armação. A viscondessa já se encontrava acomodada quando chegou o vigário.

“Boa noite senhora Viscondessa. O que vos angustia o coração a essa hora da noite?”.

“Não gosto que me chames assim. Chame-me de Antonia”. - Após pequena pausa, continuou - “E a minha angústia, o senhor sabe exatamente qual é”.

“Por favor, senhora Viscondessa...”. “Não me chames de Viscondessa!” - Gritou. Frei Álvaro já se retirando para a residência paroquial, ouviu o grito.

Intrigou-se. Conscientemente em pecado, retornou e acomodou-se onde pudesse ouvir a calorosa confissão. Para seu lamento, após duas exclamações mais sonoras porém não entendíveis da Viscondessa, a conversa tornou-se inaudível.

No confessionário, a Viscondessa, aos sussurros: “Chame-me de Antonia.” “Escute-me Antonia, já é tarde, o Visconde deve estar em sua busca.” “Ele sabe que eu estou aqui”. “Santo Deus...” “E há quatro de seus lacaios lá fora a me esperarem...”. “A senhora os deixou lá fora neste frio?”. “Não estou aqui para falar dos lacaios de meu marido”. “A senhora não deveria ter vindo aqui a esta hora, tudo que o povo daqui

mais quer é um nobre ou um padre de quem possam falar. Tem que ter cuidado viscondessa...”.

Após um breve silêncio, frei Miguel olhou por entre as grades do confessionário e viu que o assento estava vazio. Antes que pudesse pensar qualquer coisa, surpreendeu-se com a Viscondessa invadindo seu reservado.

“Chame-me de devassa.” Atracaram-se. Beijos voluptuosos. Lutaram para acomodarem-se

naquele minúsculo espaço. Após vencer com dificuldade a batina, a saia, o merinaque, as anáguas, o espartilho e as calçolas, o frei tapou a boca da madame e ali mesmo consumaram o ato.

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A face de Frei Álvaro transpirava puro ódio. Sujo, devasso, pecador, repetiam seus pensamentos. Como um sacerdote pode ser tão infame?! Algo deve ser feito imediatamente, pensou. Retirou-se a tempo de não ser notado pelo audacioso casal de amantes.

Pouco mais de uma hora após ter entrado, com um amplo sorriso de satisfação estampado na face, a viscondessa de Viegas saía da igreja, para o alívio dos seus acompanhantes, que àquela altura já tinham as pontas dos dedos congeladas. O cocheiro apressou-se a lhe abrir a porta e auxiliá-la a subir à condução. Então a fidalga disse, “agora estou leve novamente”. O lacaio respondeu com um sorriso contido e embaraçado - admirado que estava, pois ela jamais lhe dirigira uma palavra, antes. “É mesmo uma senhora mui religiosa”, concluiu.

Pouco depois da meia-noite, frei Álvaro acordou um serviçal da paróquia e mandou que lhe preparasse um coche. Disse-lhe que precisava realizar uma extrema-unção. Quando, curioso, o servo quis saber quem era o enfermo, o frade desconversou, deu a ordem para que fosse rápido e que tudo fizesse com atenção e em silêncio para não acordar o pároco. Apesar de que aquele lá – pensou – de certo está a roncar um sono profundo, pois nestes tempos sombrios, os injustos dormem tranqüilamente. Saiu como queria, sem ser notado.

Horas depois, outra pessoa foi dar às portas da igreja. Alguém com uma missão urgente. Estava ali por ser discreto, capaz e obediente. Entrou na casa paroquial sem dificuldade e conduziu-se na calada como se conhecedor do caminho fosse. Em poucos minutos chegou às portas dos aposentos de frei Miguel. Com cuidado, manuseou uma ferramenta pontiaguda para destrancar a pesada fechadura tão discretamente como se a chave tivesse. Fechou logo a porta. Deu dois passos em direção à cama.

Miguel realmente já dormia um sono profundo, mas mesmo se assim não fosse, se estivesse levemente adormecido, não notaria aquele sorrateiro invasor, useiro e vezeiro de andar sob as sombras e nas pontas dos pés. Quando lhe ocorreu de despertar, não teve sequer tempo para dizer uma palavra.

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Golpeado contra a fronte, desmaiou.

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Ao abrir os olhos, percebeu que estava em um cômodo escuro, atirado

ao chão frio. A luz do sol entrava pela grade, formando feixes que pouco iluminavam e nada aqueciam. A cabeça lhe doía aos píncaros. Não sem esforço, levantou-se e conseguiu cambalear ate a grade por onde entravam os raios.

A visão familiar o tranqüiliza. Reconheceu o pátio do Convento do Carmo. Concluiu estar em uma de suas clausuras. Perguntou-se por que. Encontrou a cama e de súbito adormeceu novamente.

Horas depois foi acordado por um noviço que não conhecia. Observou que era um jovem de braços fortes e fisionomia sisuda, imaginou que fosse ele quem o golpeara. “Acompanhe-me”, disse-lhe o moço sem rodeios. Frei Miguel tentou conversar, mas não obteve atenção. Insistiu tanto que o rapaz lhe disse, entre dentes, “Cônego Oscar quer lhe falar”.

Cônego Oscar era o vigário prior da congregação em Coimbra, conhecia frei Miguel desde quando este era noviço. Havia sido seu professor no Colégio do Carmo e responsável por sua ida a Roma e à terra santa e pelos seus estudos na Universidade de Coimbra. Desta vez estava furioso com o pupilo.

“Mas o que aconteceu Cônego Oscar?”. “Ora, eu esperava que vossa senhoria pudesse me explicar”. “Em verdade de nada me lembro, apenas de um soco”. “Conheces o Visconde de Viegas?”. “Claro”. “Melhor a esposa dele, imagino. Saiba que o Visconde colocou dezenas

de homens ao seu encalço. Quer-te vivo ou morto. Inteiro ou em partes”. Um calafrio lhe desceu a espinha. Frei Miguel sabia bem que o visconde

era um dos homens mais ricos e influentes de Coimbra, fidalgo de primeiro grau, possuía em sua cota de indicações vários dos melhores cargos públicos da cidade, era amigo de pessoas influentes na corte e tinha sob seu comando um destacamento inteiro das forças de segurança da cidade.

“A tua sorte é que sou muito bem informado, antes que todos os soldados e mercenários da cidade saltassem de suas camas eu já havia recebido a informação”.

“Aposto minha salvação que foi frei Álvaro que me intrigou com o visconde. Não me admiro se vier a tomar meu lugar na paróquia”.

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“Realmente, não se admire. O visconde é um dos maiores benfeitores da Ordem. Não podemos nos indispor com ele. Quando acontecia com esposas de mercadores, eu tinha como contornar, até naquela ocasião quando o senhor se envolveu com a esposa de um sargento da guarda Real eu pude salvar-lhe, agora fornicar com a esposa de um fidalgo poderoso como o visconde de Viegas é de uma estupidez bárbara! E sem falar no pecado mortal que é violar os sagrados votos de castidade e ainda consumar o adultério de uma mulher que foi casada pela Santa Igreja! Especialmente quando o pecador não demonstra nenhum traço de arrependimento cristão!”.

Miguel teve vontade de dizer que um dia esteve apaixonado pela Viscondessa de Viegas e que se sentir assim não é tão mal como pensas, mas claro não diria isso, não seria inteligente fazer o cônego ainda mais irado. Em verdade, há muito tempo deixara de amar a viscondessa, desde que ela, como uma louca, passou a procurá-lo em lugares e momentos inoportunos e por vezes perigosos. Se dissesse ao cônego que a amou, na certa ele diria que tinha gosto por mulheres bizarras. Já devia ter posto um fim naquele caso, mas para ele a castidade há muito deixara de ser um voto fácil de ser cumprido e no final das contas, aquela loucura proibida ainda mexia com ele. Bem que o cônego Oscar poderia dizer-lhe, não te alertei que as fraquezas da carne ainda seriam a tua perdição? Mas um religioso como ele jamais quebraria o segredo da confissão, nem mesmo ao próprio confessor.

“Vejo que não me adiantará em nada fazer minha defesa. Vossa reverendíssima já me condenara. Então, o que pensas fazer? Vais me entregar ao visconde, para que me esfole vivo? Denunciar-me ao Santo Ofício? Mandar-me para o Brasil? Ou ainda, matar-me-ia o senhor mesmo, para que a Ordem não sofresse as conseqüências dos meus pecados?”.

“Exatamente!” “Matar-me-ia?” “Mandar-te-ei ao Brasil.” Cônego Oscar mandou que lhe trouxessem trajes civis. Disse-lhe que

não levasse sequer uma batina para não levantar suspeitas, afinal o visconde possuía contatos importantes em Lisboa, especialmente no porto, de onde partiam as frotas para o Brasil. O clérigo intuíra que o fidalgo não se satisfaria apenas com o degredo, levaria frei Miguel ao Tribunal da Inquisição, para que fosse torturado e morto. Deu-lhe algum dinheiro e o abençoou. Entregou-lhe uma carta de recomendação destinada ao comissário geral do vicariato

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carmelita da Bahia e providenciou para que toda a operação de fuga fosse feita secretamente. Não deveriam chamar atenção, já que todas as saídas de Coimbra àquela altura certamente estavam sendo vigiadas pelos homens do visconde. Chamou o frei ao pátio e lhe mostrou o meio que usaria na fuga.

“Um coche funerário? Eu não vou viajar dentro de um caixão!”. “Escuta bem, Miguel. Não demorará e o Visconde virá a minha procura,

ele não é nenhum ingênuo, logo irá deduzir que podes estar aqui. Apressa-te e deita-te neste caixão ou poderás ter que usá-lo realmente como a definitiva morada de seu corpo”.

Após os irrefutáveis argumentos de seu protetor, Frei Miguel deitou-se e viu a porta do caixão ser fechada. Dois furos na madeira lhe garantiriam o ar necessário para a viagem. O coche funerário partiu assim que a escuridão da noite tomou por completo a cidade. Na condução, o mesmo noviço que o buscara na clausura. Na saída da cidade, foram interpelados por guardas.

De dentro do caixão, Miguel tudo ouvia, atento e muito tenso. Um dos guardas logo quis saber. “Aonde vai a essa hora, frade? Não achas um tanto tarde para iniciar uma viagem?” O jovem noviço respondeu que levava o corpo de um velho padre para ser enterrado em sua vila natal, nos arredores da cidade do Porto. Desconfiado, o soldado ameaçou abrir o caixão, mas foi repreendido por seu superior. “Não é necessário blasfemar!” Pediu benção e os deixou partir.

Seguiram viagem margeando o rio Mondego, por entre as casas dos humildes e dos comerciantes. Quando a última casa já estava ao longe, o noviço bateu no caixão e frei Miguel pôde se levantar. O frade olhou pela janela traseira do carro e pôde ver as luzes das tochas na Torre de Almedina sumirem no horizonte da noite. Despediu-se da cidade onde havia sido feliz e partiu rumo ao desconhecido. Chegariam a Lisboa em quatro dias.

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2. O Mar dos Homens A náusea o fazia suar frio e lhe turvava a visão. Sentia-se totalmente

vazio, pois vomitara desde que a caravela deixou o porto de Lisboa, há cinco horas. Ainda assim, Frei Miguel parecia ter em si sempre mais alguma coisa para ser colocada para fora. Bílis, medo, merda. Havia vômito em suas roupas e ao seu redor. Encontrava-se em um dos compartimentos do porão da embarcação, encostado em um barril de azeite, pedindo a Deus que o mundo balançasse um pouco menos. Transparecia pavor. Olhava ao redor e o que via era homens rudes, sujos, criminosos, condenados e degredados de toda a sorte. Jamais imaginara-se em um covil como aquele. Inevitável lembrar de seu pai e irmãos.

Miguel nasceu em Aveiro, em uma família de marujos. Seu pai foi o primeiro deles que se aventurou em travessias oceânicas, participou de carreiras para as Índias e chegou a ganhar bom dinheiro. Morreu durante uma destas travessias depois que a sua nau fora atacada por corsários. Como navegava a serviço de sua Majestade e descendia de uma linhagem limpa, sem mouros, cristãos novos ou processados pelo Tribunal da Inquisição, a generosidade real providenciou que o caçula dos quatro irmãos fosse entregue aos Carmelitas Calçados de Coimbra, para que fosse educado nas letras e preparado para o sacerdócio. Os demais seguiram a carreira do pai e se tornaram homens do mar. Desde que se graduara na Universidade não via a mãe ou seus irmãos. Planejara fazer-lhes uma visita por algumas vezes, mas foi sempre adiada por motivos diversos, grandes ou pequenos, verdadeiros ou desculpas. Agora temia jamais vê-los novamente.

Desde que chegou ao Colégio do Carmo, ainda infante, despertou a atenção de seus professores por sua perspicácia e pelo claro entendimento que demonstrava acerca dos números e das operações aritméticas. Mostrou-se ser um estudante aplicado e noviço dedicado aos deveres para com a Ordem e a Igreja. O então Frade Oscar, diretor do convento, foi o responsável pelo período que Frei Miguel passou em Roma no Colégio Pio Português, por sua viagem à Terra Santa e por sua formação em Direito Canônico pela Universidade de Coimbra.

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Foi durante o período universitário que o jovem pôde refinar seu gosto pelas artes e pelas letras. Seus contemporâneos e amigos na universidade eram músicos, pintores e poetas que se reuniam em sarais e festas que se tornaram célebres nas noites da cidade. Interessou-se também ainda por astronomia, pela história de Portugal e chegou a ser iniciado nas filosofias humanistas. Secretamente, leu escritos proibidos. Tornara-se, por assim dizer, um intelectual e passara a questionar sua vocação. Conheceu mulheres, poemas e pecados com os quais não sonhara. Passara a ver seus irmãos de sangue como inferiores, bárbaros tão incultos quanto incapazes de serem donos de seus destinos. Acabou por desenvolver crescente desprezo até mesmo pela sua própria mãe. Era mesmo do vicariato, na parte alta de Coimbra, que ele gostava. Sempre às voltas com gente sofisticada, viajada, apreciadora das artes. E havia também as mulheres e seus desejos secretos que somente um confessor poderia conhecer tão bem.

Agora tudo parecia tão longe e sem sentido ou serventia. Humanismo, vinhos finos, livros, sonhos, não havia nada além do forte cheiro de azeite misturado ao odor de seu próprio vômito e do maldito balançar do mar. A noite demorou a chegar e passou como um sofrimento. A nau enfrentou chuvas e ondas tempestuosas. Mal dormiu uma hora, contados todos os momentos que julgou tê-lo feito. Mas a manhã trouxe certa calmaria. Aventurou-se pela primeira vez ao convés.

O céu estava nublado. Caia uma garoa fina e fria. Pelo menos as roupas que Cônego Oscar conseguira eram boas, o casaco de pele grossa o protegia do frio e da umidade. Viajava na menor embarcação da frota, uma caravela redonda de quatro mastros, 50 toneladas de capacidade e pouco mais que trinta metros de comprimento; foi o único lugar que conseguira. As pessoas fugiam para o Brasil e de si mesmas aos montes, pensou. Outras seis embarcações compunham a frota, duas naus de 300 toneladas, dois galeões de guerra e mais outras duas caravelas menores. O frade podia avistá-las bem pequenas no horizonte, um galeão podia ser visto a estibordo. Observando a caravela em que viajava, percebeu que os passageiros mais potentados viajavam no castelo da popa, enquanto o comando da tripulação ocupava o da proa. Os pobres, grumetes e condenados viajavam no porão do navio, assim como os ratos e o azeite.

Frei Miguel, como cada um dos passageiros dos porões, tinha direito a um litro e meio de água e outro de vinho por dia. Tanto a comida quanto o

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vinho que lhe serviam era uma droga, segundo seu paladar. Conhecia as mais finas iguarias das culinárias portuguesa e européia, e ali a única coisa que comia era uma espécie de ração preparada com arroz de péssima qualidade e pedaços de carne salgada, ambos tão duros quanto pedras. Diariamente também ganhava três biscoitos. E como sentia saudade de um vinho do Porto!. Para dormir cada um se arranjava como possível. Deitados lado a lado no chão do segundo pavimento, privacidade era palavra desconhecida e não raro se misturavam ao balanço das ondas. Nos primeiros dias chegou a pensar seriamente em comprar um lugar nos castelos dos privilegiados com o dinheiro que lhe restava - pouco mais de dois mil réis, em moedas de quatro cruzados1 e algumas patacas2: havia gastado quase o mesmo valor para conseguir embarcar às pressas quando a caravela já iniciara os primeiros movimentos. Porém ao avaliar que não sabia que tipo de situação lhe aguardava no Brasil, decidiu-se por poupar aquela miséria, que era como via os valores que lhe haviam sido dados por Cônego Oscar.

Evitava os assuntos religiosos; receoso de ter descoberta sua condição de presbítero. Ainda que respeitasse as horas canônicas, procurava sempre orar em silêncio e de maneira breve. Na mocidade, quando noviço, eram estes os momentos mais importantes de seu dia, perseguia com fervor o contato iluminado com Deus e acreditava que um dia elevar-se-ia em espírito a ponto de ouvir a voz do Pai. Adulto, seu coração perdeu parte desta esperança e com o passar dos anos, diante do Deus silente, passou a rezar e celebrar missas de modo como que corriqueiro, sem absorver-se, por obrigação e sem resquícios da vocação que um dia creu ser a sua. Quando deu por si já cometia pecados ditos graves sem se corar.

Havia muitos grumetes a bordo, mas não faltava trabalho a ninguém. Não demorou para que Miguel passasse a ser requisitado para serviços diversos, como carregar cabos das velas, limpar convés e distribuir comida. Logo os marujos perceberam que o frei não era homem para trabalhos brutos - era fraco e desatento para a lida no mar. Ainda assim, em geral, os homens gostavam dele. Talvez pela conversa diferente - falava de coisas distantes e engraçadas. Fez certa amizade com um grumete franzino, alojado no mesmo compartimento, nascido e criado em Lisboa, filho de um casal de lacaios de gente muito fina. Seu nome o frei ignorava, e assim como todos os outros que 1 Moeda de ouro; cada cruzado equivale 400 réis. 2 Moeda de prata de aproximadamente 320 réis.

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conheciam o rapaz, pois o faziam apenas pelo apelido pejorativo, Pocabosta. Era um sujeito ansioso, de tiques em excesso que vivia falando de lendas sobre montanhas de ouro em um tal sertão das minas dos cataguá.

“Por acaso achas mesmo que exista nesse lugar uma montanha inteira de ouro?”

“Uma não, senhor Miguel, várias.” O Frei tomava o rapaz por um ingênuo, ainda mais com um apelido

daqueles. O pior – pensava – era que bastava colocar os olhos na criatura para entender exatamente o porquê da zombeteira. Fraco, ingênuo, submisso e feio, vive olhando para o chão e aparenta incessante pressa, mas solidário, uma virtude cara naquele porão. Os outros marujos, mais fortes ou de maior patente, abusavam da fragilidade do coitado: berros, intimidações, ameaças, pontapés, um cardápio variado para atender à sede de violência e ao gosto pela subjugação daqueles brutos. O frei, apesar de aparentemente frágil, possuía um traço que intrigava aqueles homens - falava bem como um fidalgo, sabia ler igualmente bem e já demonstrara ser mestre em contas. Que tipo de degredado era aquele afinal? Podia ser tudo, um nobre amaldiçoado ou excomungado, um oficial desertor, um padre ou feiticeiro. Era melhor ser amigo que se indispor com ele, calculavam.

Nos porões do navio, o frei estimava que viajassem cerca de sessenta pessoas e nos castelos da proa e popa, acreditava que estariam umas vinte, entre tripulantes, militares, fidalgos e mulheres. Bom, as mulheres eram um problema naquela caravela, ou melhor, a falta delas. Nos porões não havia mais que dez. A desigual proporção era um tormento para os homens e principalmente para elas. Só deixavam de ser estupradas se passassem a ser protegidas por um homem ou quando passavam a cobrar dinheiro, fumo ou vinho pelos coitos sucessivos. Não raro uma mulher se amancebava com dois ou mais marujos, por proteção. Nos castelos, imaginava o frei, devia haver várias fidalgas de pele alva, rechonchudas, cheirando a perfume de Paris. A viagem estava programada para durar cinco semanas ou talvez seis se tudo corresse bem.

Muitos praticavam sodomia. Jovens garotos eram abusados sexualmente na madrugada. Homens se deitavam com outros homens abertamente, a despeito da rígida disciplina militar e religiosa das viagens marítimas. O capelão nunca pisava nos porões, mas nos convés, fazia sermões ameaçadores e duros. Muitos daqueles homens eram atormentados pela culpa

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e apesar de toda brutalidade às vezes pareciam frágeis pelo medo de se verem condenados outra vez, agora não ao degredo ou a prisão, mas ao Inferno. Os assassinatos, os furtos e as tentativas de motins eram reprimidos duramente, mas os pecados e os crimes da carne eram tolerados ou, em certa medida, ignorados. Casos de homossexualismo ou sodomia, quando ocorriam em terra e principalmente quando se tornavam escandalosos, eram sempre punidos exemplarmente, sendo previstas inclusive a tortura e a morte na fogueira. Entretanto, no mar as coisas eram diferentes. A bordo daquele porão, em poucos dias mais nada escandalizava.

Na segunda semana passaram a navegar em águas calmas, mas a tranqüilidade era só aparente. Com o tempo corrido no mar e com as situações de higiene cada vez mais deploráveis, logo começaram a aparecer as doenças. Escorbuto, mal de Holanda, febres hemorrágicas, gripe. Improvisaram uma enfermaria fortificada pelos galões de vinho.

O cirurgião-barbeiro era um prático do Açores, chamado Figueiredo. Devia ter uns sessenta anos e quase nenhum cabelo, a não ser o da barba branca. Nos primeiros dias, quase não aparecia nos porões. Agora, sua presença era constante, realizando seguidas sangrias ou ministrando seus estranhos remédios. Além dos enfermos, havia os feridos. Não raro, algum acidente no convés resultava em amputação ou morte. Estava sempre com o avental imundo por sangue e até mesmo sua barba adquirira coloração avermelhada. Os doentes sempre ofereciam vinho em gratidão ao velho médico, que por essa razão, estava sempre bêbado. A sorte dele e de seus pacientes é que encontrou um assistente muito eficiente e inteligente, frei Miguel. Este trabalhava como um verdadeiro faz tudo, fazia às vezes de enfermeiro e até mesmo de médico, quando o titular encontrava-se apagado em algum canto.

Nos últimos dias, Miguel havia percebido que a porção de comida que todos recebiam diariamente vinha sofrendo sistemática redução, executada aos poucos, é verdade, mas àquela altura muitos já reclamavam. Não era difícil para qualquer um perceber que com a tripulação insatisfeita as coisas naquele porão tendiam a ficar ainda piores.

No vigésimo dia da viagem, os marujos trouxeram Pocabosta, esvaindo-se em sangue, à improvisada enfermaria. Uma espécie de gancho de ferro atravessara sua tíbia. O coitado estava aos gritos e o pontiagudo ainda encravado em sua carne.

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“Há quanto tempo isso aconteceu?” – Quis saber Figueiredo, bêbado. “Não sabemos bem. Ele ficou gritando por muito tempo até que

déssemos atenção. Você sabe, essa bosta grita à toa... quando o vi, a poça de sangue já era grande”.

“O que podemos fazer?” – Quis saber um preocupado Miguel. “Precisamos de um machado”. - Respondeu Figueiredo. “Não dá para

arrancar o gancho, ele já perdeu muito sangue. Já fiz o garrote, mas ainda assim se demorarmos a agir toda sua carne vai apodrecer e ele não dura mais que algumas horas”. Disse isso sem cerimônia, bem na frente do ferido em desespero e dor.

Alguém trouxe o machado. Pocabosta quando viu o instrumento na mão de Figueiredo, quase desmaiou. O médico-barbeiro mandou que providenciassem aguardente de uva para o agonizante e para si próprio. Miguel tapou a boca do infeliz com uma bola de couro e, pôde ver o desespero nos seus olhos. Olhou para o velho cirurgião a tentar equilibrar o machado com as duas mãos trêmulas pelo álcool e temeu pela vida do pobre grumete. Tomou dele a arma.

Curiosos aglomeraram-se em volta da mesa. Miguel com o machado suspenso em frente ao rosto, por um segundo descrê do que está para fazer. Então olha ao seu redor. Todos parecem ansiosos. Figueiredo toma um gole da aguardente. Pocabosta não cessa de tentar gritar, ainda que tenha os gritos abafados pelo couro em sua boca. Dois homens fortes penam para deixá-lo imóvel. Em silêncio, Miguel ora. Pede a Deus que esteja certo. Respira fundo.

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Miguel ergue o machado sobre sua cabeça. Desfere o golpe. Pocabosta urra em silêncio. Chora. Imediatamente, Figueiredo lhe mete um lenço molhado no nariz. O grumete perde a consciência. Então lhe retiram o couro da boca e o procedimento da sutura é iniciado pelo cirurgião bêbado.

Minutos depois, o médico e Miguel dividiam uma garrafa de vinho. “Você foi muito bem, rapaz. Salvou o infeliz. Como eu poderia imaginar

que ia me surgir um caso como esse? Justo hoje!” “O que era no lenço?” “Láudano de Sydenham, coisa de ópio. Conheci por um médico inglês.

Santo remédio”. Parecia mesmo ser, pois naquele momento, Pocabosta não mais gritava.

Dormia um sono um tanto agitado, às vezes se debatia, ás vezes grunhia sons estranhos, mas diante do que vivera encontrava-se em relativa paz. Aos olhos de Miguel, Figueiredo era um homem interessante e sagaz. Ocorreu-lhe então questionar o que o fizera abraçar aquela vida errante por mares distantes e porões infectos.

“E o senhor Figueiredo? O que faz aqui?” “Sou sócio do açúcar que vamos trazer no regresso”. “Tens família?”. “Claro, o que pensas que sou? Não me diga que um sujeito que fala tão

bem quanto o senhor me tem como feiticeiro!” Soltou estrondosa gargalhada. “Somente queria entender porque o senhor, nessa idade, deixou o

Açores para se meter nesta merda”. “No inicio foi o dinheiro. O açúcar já enriqueceu muito homem no Brasil e

em Portugal. Mas depois de quatro ou cinco viagens, nunca mais consegui fixar-me em terra outra vez. Já vivi muito, mais do que mereço, foi tempo suficiente para conhecer todo tipo de vício; dinheiro, sexo, jogo. O meu acho que é esse balançar do mar, misturado ao cheiro de sangue e ao gosto de vinho”.

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3. Calmaria podre A cada seis horas aproximadamente, Pocabosta volta a gritar. É o tempo

que dura a ação da droga. Então Miguel traz o lenço e o entorpece. Imediatamente cessam-se os gritos e têm início os delírios. Não fala coisa com coisa. Mas sempre as montanhas de ouro. Em uma oportunidade agarrou o braço do frei e balbuciou:

“Eu sei que você me salvou. Quando eu tiver minha montanha de ouro lhe darei uma pepita de 20 oitavas. Pode me cobrar”.

Miguel riu e não deu muita bola para o assunto. Porém a maneira insistente com que o grumete repetia aquela história

desde que o conhecera acabou por atiçar sua curiosidade. Quis saber do médico.

“É verdade, meu caro. Eu mesmo já presenciei caravelas repletas de ouro chegando a Lisboa. Mas é tudo feito com discrição, El Rey não quer que todo o reino se mude para o Brasil”.

“Mas será mesmo tão abundante quando dizem estes incultos?”. “Acredito que sim. Do contrário não seria tratado pelo governo real como

boatos sem sentido”. Miguel já havia percebido que o velho não se referia com muita

deferência quando se tratava do Rei. Sentia no discurso de Figueiredo sempre uma pitada de ironia que beirava a insolência. Resolveu perguntar.

“O senhor está a fugir de alguma condenação?”. “Todo mundo aqui de certa forma, está condenado ou em fuga, ou

ambos!” – Depois de soltar suas costumeiras gargalhadas, indagou: “Você não, jovem Miguel?”.

O frade sorriu assentindo. Figueiredo continuou: “Mas de minha condenação, não posso fugir. Sou condenado onde quer

que eu esteja”. “Qual é o seu crime?” “Sou um descrente”.– Fez uma pausa, como se refletisse. “Certa vez, em

um domingo, eu estava em minha casa, havia acabado de voltar das Índias há poucos dias. Tinha sido uma travessia assustadora. A pior de toda a minha vida. Os cálculos das provisões foram feitos em erro, faltou alimento e todo o tipo de víveres para a tripulação. Vi homens comer ratos, mordê-los ainda

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vivos, com ira e satisfação. Os mais fracos morreram de fome e os mais insanos alimentaram-se deles. De volta à minha terra, queriam que eu fosse à missa... que rezasse... pedisse por perdão, entregasse meu dízimo. Às favas com o criador. Às favas com o Rei. Porque só há a febre e mais nada.”

Com o passar dos dias, a redução de comida não se estabilizara, havia um clima de insatisfação latente no porão. Até a temida palavra motim era ouvida. Homens acusados de sedição foram chicoteados para que todos tomassem a punição como exemplo. O capelão se mostrava cada vez mais irado nos sermões do convés e comandava ele próprio os açoites corretivos. Sua figura por si só já inspirava medo. Carrancudo, desdentado e um tanto corcunda. Um animal, segundo Miguel. Certa vez, ele chegou a tomar o chicote das mãos do militar que castigava ao seu mando um suspeito de furto de rapé e desferiu duas chibatadas ele mesmo para exemplificar como queria a intensidade da pena. Ainda assim, sempre que um doente ou ferido sentia o frio da ante-sala da morte logo pedia a presença do capelão, que apesar dos pedidos desesperados, nunca se dignava a descer aos porões. Nas cerimônias fúnebres, abençoava aos mortos, encomendava lhes a alma e ao seu sinal, os cadáveres eram despejados ao mar. Em quarenta e cinco dias de viagem, já havia acontecido seis destes rituais, Miguel achava muito, Figueiredo pouco; somente marujos da ralé ou passageiros dos porões, nenhum tripulante do comando ou gente dos castelos.

Miguel havia notado que nos últimos dias o cirurgião-barbeiro vinha gradativamente reduzindo a dose de ópio que ministrava ao Pocabosta, o que o deixava insano. Gritos primais ecoavam pelos porões quando lhe era negada a droga. Miguel quis saber de Figueiredo se a razão do racionamento era material.

“Não se preocupe meu jovem, há bastante ópio para todos nessa caravela”.

“Então porque não alivias a dor deste infeliz?”. “Se não cortarmos agora, ele não larga nunca mais esta merda. Vai por

mim, sei do que falo”. Figueiredo não esperou que Miguel se virasse e sacou o frasco que

continha o láudano, molhou o lenço e inalou com vontade. Dobrou os joelhos e tombou para frente, apagado.

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Uma hora depois suava litros. O frade, preocupado, aproximou-se para lhe secar a careca. O velho balbuciava alguma coisa, mas Miguel não podia entender.

Pocabosta estava mais calmo, e ainda que reclamasse da dor, os gritos foram interrompidos; ou porque ela diminuíra ou porque perdera a voz. Naquele momento, a principal preocupação de Miguel era o médico, achava que se lhe acontecesse alguma coisa, a vida daqueles pobres infelizes e a sua própria correriam ainda mais riscos, afinal, bem ou mal, aquele velho conhecia as técnicas rudimentares que aprendera sabe-se lá onde. As sangrias, os sanguessugas, as suturas, fazia tudo razoavelmente, especialmente quando estava sóbrio.

Desta vez, quando o frei se agachou para enxugar o suor do velho médico, ainda delirante e estendido no chão, teve o braço agarrado. Bruscamente, Figueiredo trouxe o rosto de Miguel para perto de sua boca.

“O capitão deste navio é um imbecil. Vai faltar comida. Não há o suficiente para todos”.

“O senhor sabe bem o que está dizendo?”. “E o pior eu ainda nem disse”. E logo desmaiou. Agora foi Miguel quem o agarrou pelo braço e lhe

sacudiu o corpo, tentando despertá-lo novamente. Desistiu. Largou-o desmaiado no chão e se levantou intrigado. Estaria o velho delirando e achando que está naquela viagem para as Índias onde este fato realmente aconteceu ou estava mesmo receoso que isso se repetisse naquela travessia? Não era a primeira vez que chamava o capitão de imbecil. Depois de horas, Figueiredo pôs-se de pé outra vez.

“Acho que errei na preparação do láudano... ópio demais. Minha cabeça vai explodir. Quanto tempo estive fora?”.

“Umas quatro horas, eu calculo”. Quando foi indagado sobre o que dissera enquanto estava drogado,

tentou pestanejar, mas diante da insistência de Miguel, Figueiredo o chamou a um canto e quase murmurando se abriu.

“O estúpido do capitão encheu o navio de gente e azeite a ponto de ultrapassar a tonelagem racional para uma embarcação deste porte. Por isso estamos tão vagarosos. O senhor não notou que há tempos não vemos as outras naus ou os galeões da frota? Se demorarmos mais que uma semana para chegarmos às ilhas estaremos perdidos”.

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“Santo Deus. E o que ainda falta contar-me?”. “Se achas que isso não é o bastante, espere até ver esta gente faminta”. “Mas o senhor disse que ainda havia algo pior por contar”. “Maldita droga que some com minha consciência, mas não cala minha

boca!”. Fez uma pausa, sorveu um bom gole de vinho. Abaixou mais ainda o tom

de voz. “O capelão está morto. Estava fazendo sua refeição noturna quando não

mais que de repente tombou a cara sobre o prato. O capitão mandou que enchesse o cadáver de óleos essenciais3 para que ele tivesse tempo de pensar em uma solução. Tenho eu certeza que a única coisa que ele consegue pensar é em esconder o ocorrido de todos até que cheguemos às ilhas. Lá, ele acredita que poderá negociar alguns barris de azeite, deixar os doentes e ainda encontrar um novo capelão. Acontece que pelo que me dizem os pilotos, com tanto peso, vamos demorar mais de uma semana, talvez duas, para chegarmos às ilhas. E como a estupidez do capitão não o deixa enxergar um palmo à frente daquele seu nariz de filho da puta, ele ainda hesita em começar a despejar parte do azeite ao mar... aposto todo o meu ópio, que em sua conta, era melhor despejar parte das pessoas, pois elas já pagaram no embarque ou com seu trabalho e o azeite ele só recebe pelo que entrega.”

Miguel tomou a garrafa de vinho da mão do médico e serviu-se de um belo trago.

“Os doentes não melhoram, de nada valem aqueles seus chás, elixires ou suas drogas, esse ambiente infecto e úmido é o que vai nos matar. Caga-se e mija-se em qualquer canto, nem se dão ao trabalho de subir ao convés e despejar seus excrementos. E o sol? Há quanto tempo não se vê o sol! Tem sempre uma nuvem negra em cima desta maldita barca!”.

“É preciso que se tome uma atitude. O capitão Nunes Almeida vai nos levar à destruição”.

“Estás a me sugerir um motim?”. “O Capitão Arrais Belmonte é um homem inteligente e sensato, pode

tranqüilamente assumir o comando. E tu és um homem popular por aqui, atendes aos doentes, ajudas os feridos, todos lhe estimam, até os mais odiosos. Podes liderá-los”.

3 Óleos vegetais usados para retardar o processo de decomposição dos cadáveres; pratica conhecida por embalsamar.

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“O senhor não sabe o que está dizendo”. “Imagine quando as pessoas souberem que navegam sem capelão.

Primeiro, será um impacto, provavelmente a maioria tomará conhecimento quando assistirem a uma cerimônia fúnebre sem que um padre encomende a alma. Oh! Posso imaginar o pandemônio. Depois virá a sensação de desproteção, condenados a morrer sem poderem se confessar e sem direito a um funeral cristão. Aí então é que chega a pior parte da história. Eles percebem que nada mais têm a perder e que não há mais lei que os sacie ou os amedronte. Bem vindo ao inferno, meu caro”.

“Existe outra saída”. “Uma merda, Miguel! Uma maldita merda! Eu não quero morrer num

naufrágio!”. Concomitantemente olharam ao redor e percebem que a discussão já

despertava certa atenção. Voltaram aos cochichos. “Não sou homem de contendas, não me encantam as guerras, mas lhe

digo que tenho a solução, ou melhor, eu sou a solução”. Então Miguel contou-lhe toda a sua história e o motivo que o fazia viajar

escondido entre os desafortunados. Após rir sem reservas por minutos, a ponto de chamar a atenção de todos, Figueiredo murmurou aos ouvidos do Frei: “Então o tal altruísta Miguel, enfermeiro dos condenados, cristão exemplar, capaz de doar suas energias pelo restabelecimento do próximo sem nada cobrar, não passa de um padre fornicador. A vida é mesmo muito irônica, não acha?”.

Figueiredo contou a história de Miguel ao Capitão Nunes Almeida, porém não sem antes assuntar se o marinheiro possuía algum vinculo com o visconde de Viegas ou se sabia se o mesmo havia colocado recompensa pelo frei. Em verdade, o capitão conhecia o fidalgo, mas nutria por ele grande antipatia, o que soava puro ressentimento ao médico. Saberia depois que certa vez o visconde financiara uma de suas travessias e ficara com boa parte dos lucros, amparado nas arbitragens de seções do tribunal ultramarino, presidida por fiéis amigos.

Ofereceu ao médico um legitimo vinho do porto de célebre safra e propôs um brinde.

“Àquele que fez do nobre visconde de Viegas, o maior corno do reino”. E caíram na gargalhada.

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Horas depois, quando o capitão surgiu no porão, de imediato houve um

silêncio quase completo. A autoridade estava ladeada por uma comitiva de marinheiros armados. Trazia nas mãos o crucifixo e a batina do capelão morto.

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O capitão dirigiu-se a Miguel, lhe passou às mãos a imagem e a túnica e

respeitosamente pediu por benção. A cena comoveu a muitos, particularmente aos enfermos, que ao perceberem a simbologia do gesto encheram o ambiente de gritos de “viva” e “santo”. Pocabosta até mesmo se esqueceu da dor e foi aos saltos tocar o frei antes que este subisse ao convés.

Se entre os passageiros havia dúvidas a respeito da legitimidade do novo capelão, estas logo se dissiparam diante da missa em perfeito latim que frei Miguel ministrou pela graça da alma de seu antecessor. Em seguida à cerimônia de despejo do cadáver, todos voltaram ao trabalho.

Mais próximo à tripulação e ao seu comando, não demorou muitas horas para que o frade percebesse que todos navegavam sob nítida tensão, principalmente os pilotos e o capitão arrais, que sempre nervosos discutiam por qualquer tolice. Consultavam os instrumentos a todo instante e cambavam as velas na esperança de roubar o vento pelo outro bordo, o que obrigava os marujos a um balé perigoso para escapar do brusco retorno da verga que compõe a base do mastro. Mas a caravela continuava, nas palavras de Figueiredo, à velocidade de uma velha doente. Enquanto o capitão Almeida praguejava contra a ausência dos ventos, o restante da tripulação praguejava contra ele, pelas costas.

Miguel instalou-se no castelo da popa, na cabine privativa que antes era ocupada pelo velho capelão. Suas novas acomodações de dois metros de comprimento, com direito a uma arca para pertences e um catre poderiam ser qualificadas de luxuosas, comparando-as às anteriores. Havia mais três câmaras duplas no castelo da popa, em cada uma delas viajava um casal e uma dupla de mucamas. Na proa, o Capitão se acomodava na câmara oficial, e outros oito marinheiros, inclusive o arrais e o barbeiro, ocupavam outras duas maiores.

À noite, Frei Miguel foi convidado a se juntar ao comando da tripulação e participar da ceia na cabine do Capitão. Estavam presentes, além do anfitrião, o Capitão arrais, o barbeiro-cirurgião e os dois funcionários da burocracia real, que viajavam com as mulheres recentemente desposadas para assumirem ambos, importantes cargos na administração colonial do Brasil. Havia na câmara oficial, além de uma confortável cama, uma mesa para refeições e uma estante com escrivaninha repleta de livros, praticamente consumidos pela maresia e pela umidade, há muito não folheados ou abertos. Sobre a mesa,

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além do lampadário a óleo, uma porção de pasteis, um belo bacalhau assado, vinhos, grão de bico, frutas secas e outras iguarias em farturas inimagináveis nos porões. No cardápio das conversas, um assunto era o destaque, a tal calmaria podre que os havia deixado ora inertes, ora desorientados.

“Costumam dizer por ai que navegar é preciso, mas quem o diz é porque, em verdade, nunca navegou”. – Comentou o Capitão. Frei Miguel leu no rosto do arrais seu total desacordo com a opinião do superior. O sujeito enche a barca de peso, comete diversas infrações de navegação e ainda culpa os instrumentos e os pilotos? Era o que se podia perceber na reação silenciosa do piloto ao comentário. O capitão gostava de muito falar e de pouco ouvir. Acreditava na possibilidade de se chegar às Ilhas do Cabo Verde nos próximos três dias. Somente os funcionários reais, tidos pelos outros como otimistas demais e com conhecimentos de navegação de menos, confiavam na expectativa do Capitão Almeida. Quando, duas horas depois, estava já de volta aos seus aposentos, frei Miguel já tinha, ele próprio, um conceito formado a respeito do capitão. “Este é mesmo um imbecil”.

Um novo dia começou com o sol brilhando imponente, sem nuvens no céu, o que dava ao mar uma tonalidade de azul que eles antes ainda não haviam visto na viagem. No horizonte, não se podia ver onde terminava o mar e onde começava o céu. As mulheres e suas mucamas tomavam sol à varanda; os marujos, sem a chuva, pareciam mais animados e dispostos; até o arrais ameaçou sorrir quando conseguiu pegar uma boa corrente de vento. No final da tarde, o capitão era o grande vitorioso, pois se os próximos dias fossem tão bons quanto estava sendo o corrente, chegariam às ilhas conforme ele havia previsto. E assim se deu. Chegou a comentar com Miguel: “Parece que aquele maldito capelão era o peso que nos travava”. Quarenta e oito horas depois aportavam em Santiago.

A estadia na ilha durou três dias. O capitão conseguiu negociar a bom preço parte de seu azeite, reabastecer a embarcação de víveres de toda qualidade e ainda deixar por lá todos os enfermos e passageiros que em sua opinião eram estorvos. Pocabosta acabou por ser deixado para trás, fora considerado sem serventia agora que estava amputado. Muito chorou e implorou para que lhe deixassem seguir viagem. O frei viu quando o infeliz foi arrancado à força da barca e despejado feito coisa no cais do porto. Inconformado, o pobre grumete ficou a gritar enquanto ainda podia avistar a

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caravela. “Preciso seguir!” “Maldito capitão filho da puta!” “Meu ouro!” “Preciso ver a montanha!” De nada adiantou o primeiro arroubo de ira de sua vida, ficou mesmo sozinho com seus impropérios e seu desespero.

A partir da estratégica parada em Santiago, o clima na caravela melhorou e mudou radicalmente o panorama. A proliferação das doenças fora estancada e até os acidentes de trabalho diminuíram drasticamente. O humor mudou entre os pilotos e os demais marujos, o que fez com que as brigas tornassem-se raras. De vento em popa e bem mais leve, o navio agora cruzava o atlântico com velocidade mais que satisfatória. Correram mais duas semanas até que, em uma manhã quente, o frei percebeu uma mancha negra no horizonte azul. Ele ainda não sabia, mas era a primeira vez que avistava a baía de todos os santos.

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4. O Salvador e a Baía

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Assim que adentraram à baía, a tripulação e os passageiros, dos mais

pobres aos mais ricos, expressaram algum tipo de excitação. Muitos gritaram vivas, outros brindaram seus copos de vinho e os mais religiosos louvaram a graça rezando de joelhos. Frei Miguel ficou deslumbrado desde o primeiro instante que colocou os olhos naquelas paragens, lembravam-lhe o Tejo, mas ainda mais colorido e vibrante. Impressionou-lhe profundamente a beleza da ilha de Itaparica. A cidade, bem guarnecida pelos os fortes que cobrem toda a área construída, desponta à beira mar e sobre a colina. À medida que se aproximam do porto, mais intenso torna-se o tráfego de barcas de todo o tipo e tamanho.

Souberam ao aportar que o restante da frota chegara uma semana antes e que, desde então, os demais capitães se divertiam, caçoando do Nunes de Almeida, o mais lento dos homens do mar.

Vestido com a batina que herdara de seu antecessor e tendo às mãos mínima bagagem, acrescida por alguns livros religiosos, presentes do desastroso capitão, Miguel despediu-se da tripulação, destituiu-se do posto de capelão e partiu por entre a multidão que circulava pelo cais.

Seus passos indecisos e olhar vacilante denunciavam desorientação. Muitas pessoas o interpelavam, oferecendo todo o tipo de serviço ou mercadoria.

“A bença, padre. Precisa que leve suas coisa?” Era um negrinho descalço e sem camisa com um tampão de tecido no olho esquerdo. Curioso, o frei levantou o pano e notou que o garoto não tinha o olho.

“Nasci estragado por praga de inimigo”. O frei achou graça. “Se me der um tostão4, levo suas coisa”. “Não é preciso. Quase não me pesa”. “Levo por meio tostão...”. “Ora pois, o que me interessa mesmo é uma informação”. “Se me der dois tostão lhe consigo uma mula pra não ter que andar.

Quer ir a alguma igreja?”. “Sabe onde fica o Convento de Santa Tereza de Ávilla?”.

4 Moeda de níquel; equivalente a 100 réis.

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“Sei sim. Nem é longe”. O negrinho era conhecido ali nas imediações do porto por esse apelido

mesmo, Negrinho, ou melhor, neguinho. Ainda que gostasse de sempre dizer que tinha nome, José, como o pai de Cristo, nada adiantava, pois todos insistiam em chamá-lo pela alcunha. Acabou se acostumando, mas gostaria mesmo é de ser chamado pelo nome, que é a única lembrança que tem ou que acha que tem desde que passou a viver na rua. Nasceu sem um dos olhos, o que foi considerado pelos africanos uma maldição, já para os brancos era imprestável para o trabalho escravo, e acabou abandonado na rua com pouco mais de dois anos de idade. Aprendeu a viver de restos das mercadorias que eram negociadas no porto e das esmolas que às vezes recebia. Tinha uma protetora a quem chamava de tia, uma escrava forra que lhe contou seu nome cristão e que por piedade às vezes o alimentava, mas já havia muito tempo que o garoto não a via. Ele vivia pelo cais, sempre em busca de algum dinheiro ou comida, que recebia em troca de seus serviços de carregador, como esmola, ou conseguindo passageiros para as mulas do Antunes, um próspero mercador da área. Foi assim que conseguiu ganhar a promessa de dois tostões de Miguel.

O movimento nas imediações do porto era frenético, comprava-se e vendia-se de tudo. Especiarias importadas das Índias, manufaturas européias de toda ordem, plantas aromáticas nativas, produtos dos engenhos baianos, em especial açúcar, e claro, os escravos vindos da África. Estes últimos surgiam a todo o momento, às dezenas, acorrentados pelos pés e pelas mãos, em fila indiana, com seus ferimentos adquiridos na travessia e seus olhos assustados.

Miguel se deslocava por entre os transeuntes sobre uma mula puxada pelo neguinho, girava os olhos em todas as direções tentando absorver tudo que a paisagem local lhe permitia; os fortes ao longo da costa, a natureza exuberante, o mercado de escravos e os tantos navios sendo abastecidos de caixas de açúcar, tabaco e madeira. As negras de tabuleiro eram muitas, ficavam nas esquinas a vender quitandas, confeitos ou ervas. Pôde observar meia dúzia de mascates chegarem a disputar a tapa a preferência sobre um lote de produtos ingleses.

Uma particularidade daquela massa humana logo chamou-lhe a atenção: as vestes das negras, índias e mestiças, eram extremamente indecentes aos olhos de um morador de Coimbra. Imaginou o que pensariam as beatas

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lusitanas se vissem ou tomassem conhecimento que ali mulheres circulavam livremente tendo sobre a pele uns trapos que quase lhes deixavam as coxas às mostras. Pena que tão magras, pensou.

Após cruzarem boa parte da rua da praia, tomaram o rumo da chamada ladeira da preguiça, cujo nome o frei entendeu logo que chegou. Íngreme e acidentada, era um dos principais caminhos das pessoas e dos produtos importados para a cidade alta. Em todo o percurso da subida, tiveram a companhia dos escravos que labutavam a carregar todo tipo de mercadoria que se comprava dos mercadores da praia. Quando chegou às portas da igreja de Santa Tereza de Ávila, frei Miguel sentiu-se transportado à infância. A fachada do templo era igual, nos mínimos detalhes, à igreja de Aveiro, onde seu pai, quando estava em terra, levava a família à missa aos domingos. Sentiu o peito apertar e um nó lhe subiu pela garganta ao se lembrar daquelas manhãs.

“Garoto José, peço que me aguardes por um instante. Hei de precisar de ti novamente. Toma isso.”

O Neguinho ficou feliz duplamente. Nunca havia tido uma pataca e há muito tempo ninguém o chamava pelo nome. Intencionalmente ou não, o frei acabara de ganhar a fidelidade do garoto.

“Muito bem, senhor reverendo frei Miguel...” Começou a dizer, pausadamente, frei Inácio, capelão do convento e comissário geral da Ordem Carmelita na Bahia. Acabara de ler a carta do Cônego Oscar. “Pelo que aqui me diz meu amigo de Coimbra, o senhor é uma pessoa muito talentosa, com relevantes serviços prestados à Ordem em Portugal. Porém, pela maneira que o senhor teve que deixar a cidade, de certo o fez porque cometera um pecado muito grave”.

“Senhor frei Inácio, eu realmente...”. “Por favor, se quiseres posso tomar-te a confissão, mas antes temos que

terminar esta conversa. Aqui, como em Coimbra, a ordem exerce um papel muito importante na vida da cidade. A Ordem dos Calçados está aqui há mais de um século. Este convento abriga os irmãos Descalços desde 1665, quando foi erguido, graças a doações da população, nas terras que nos foram presenteadas pela Majestade Dom Afonso VI, o vitorioso...”.

Que de vitorioso não tinha nada – pensou Miguel. Continua o frei mestre Inácio:

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“Há poucos anos, leigos de grandes virtudes cristãs e que orientam sua fé pelo Carmelo, fundaram, na cidade, uma Ordem Terceira, da qual todos nós fazemos muito gosto. Aqui na Bahia, preservamos nossa independência, mas nos damos muito bem com o arcebispo D. Sebastião assim como com o governador geral, D. Rodrigo".

“Vossa reverendíssima não carece de se preocupar com minha pessoa, não me interesso por política e entendo bem o sentido da palavra independência quando a diz”.

Não parecia se importar com o que Miguel pudesse ter a dizer, pois assim que terminara de ler a carta de cônego Oscar, havia sobre ele formado conceito e já tinha certa sua decisão:

“Por suas qualidades intelectuais e de formação, poderias ocupar um posto importante no seio da ordem, mas o exercício de sua vocação foi comprometido e pode acontecer outra vez. Não queremos problemas por aqui. Em consideração ao Cônego Oscar e somente a ele, permitiremos que se hospede no convento do Carmo, na cidade alta e que auxilie ao frei Baltazar no pastoreio dos leigos da Ordem Terceira. Mas isso é temporário, pois poderão haver outros planos para vossa senhoria. Por ora, será apenas um discreto colaborador, não celebrará missa ou tomará confissão alguma, também não realizará casamentos ou quaisquer dos sagrados sacramentos. E tenho dito. Agora, se quiser mesmo se confessar, peço que me espere por alguns minutos, na capela, caso contrário, pode se retirar e vá com Deus.

José estava exatamente no mesmo lugar onde frei Miguel o deixara quando este retornou da audiência com Frei Inácio.

“Pra onde vamo, padre? Pra alguma igreja?”. “Conheces uma boa taberna?”. “Taberna?”. “Sim, onde haja vinho, pessoas, boa conversa...”. “Eu conheço uns secos e molhados por aqui que talvez o senhor goste.” “Eu preferiria mesmo uma taberna, garoto”. Voltaram à cidade baixa, onde Frei Miguel pôde comprar roupas civis ao

seu gosto. Nada de perucas ou gibão. Calções, camisa e meias de bom tecido e tamancos novos. Encontrou uma estalagem onde pôde se banhar, cortar os cabelos e barbear-se.

Ao cair da noite, na hora em que haviam marcado, reencontrou José.

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“É importante que preste atenção. Não quero que saibam que sou padre, desejo conhecer a cidade e a batina pode deixar as pessoas receosas, creio eu”.

A taberna ficava a poucos metros do cais. O frei combinou com o garoto que pela manhã se encontrassem na estalagem, deu-lhe mais um tostão e adentrou. Homens bebiam ou jogavam cartas em mesas dispostas caoticamente e bem próximas umas das outras. As negras andavam por entre as mesas em trajes sumários, bolinadas por um homem diferente a cada passo. Por um bom gole de vinho, sentavam-se no colo do sujeito e remexiam os quadris de forma escandalosa para o delírio do agraciado. Não era mesmo um ambiente para um religioso, pensou o frei. Na Europa também havia tabernas próprias ao pecado, mas ali nem ao menos fechavam-se as portas, quem passasse pela rua, fosse uma senhora ou donzela, poderia ver o carnaval de luxurias e excessos. É bem verdade que os transeuntes não aparentavam também se importar com aquilo.

Frei Miguel pediu vinho. Não era barato, e não era bom. Por ali somente se pedia cachaça, miúdos e fumo.

Com o passar das horas, as mulheres sumiram da taberna e com elas boa parte dos homens. Ficaram somente o frei e outros dois portugueses recém chegados à colônia.

“Espero conseguir chegar às Minas. Dizem que o caminho partindo aqui da Bahia é repleto de perigos. Animais e gentios ferozes povoam todo o trajeto”.– disse um deles.

“Ouvi dizer também de bandos armados que roubam até a roupa do corpo!” – Disse o outro.

Miguel, até então calado, resolveu tomar parte da conversa: “Se é assim tão perigoso, porque vocês desejam tanto ir?”. “Ora meu amigo... são as montanhas”. - Disse um deles já rindo,

enquanto o outro completou: “De ouro, meu caro. Montanhas de ouro”. Frei Miguel apenas sorriu, e, finalmente, atendeu aos apelos do

taberneiro e experimentou a tal cachaça. Bebida rude e forte, pensou. Tomou mais uma dose e depois outra e assim foi até não mais se lembrar. Fato é que acordou na manhã seguinte na estalagem com a cabeça a explodir de dor e sem imaginar como encontrara o caminho correto.

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O convento do Carmo era situado em um largo de mesmo nome, próximo ao palácio do governo e ao pelourinho - onde se dava publicidade aos atos da justiça e se puniam escravos ou criminosos. Os casarões e os templos da área eram suntuosos e o ordenamento das ruas decerto gracioso. Assim como em Coimbra, era na cidade alta que residiam os mais ricos. Nas dependências do Convento, almoçou na companhia do vigário provincial Frei Baltazar.

“Encantam-me os pratos feitos pelas negras. Elas colocam dendê em tudo que preparam, na galinha, no pescado e onde for. No inicio me parecia um tanto pesado, mas hoje acho essa combinação um primor”, disse frei Baltazar, com o um pequeno sorriso apertado entre suas rosadas e rechonchudas bochechas. Era, notavelmente, afeito ao conforto e à boa mesa, estilo de vida bem distinto daquele abraçado pelos monges e freiras enclausurados da Ordem.

Os dois frades se deram bem logo de inicio. O vigário pareceu ao frei Miguel ser um pastor obreiro e justo. Logo nos primeiros dias, pôde presenciar a luta dele contra a simonia que era praticada por alguns membros da Ordem e do cabido diocesano. Frei Baltazar se dedicava com igual afinco à organização da Ordem Terceira do Carmo, composta por leigos oriundos das mais altas camadas da sociedade baiana. Frei Miguel procurou colaborar em tudo o que fosse necessário. Tentava ser discreto e polido no trato com os fieis, principalmente com as damas baianas. Entretanto, durante a noite, assumia outra personalidade.

Instalou-se em quarto simples nas dependências do Convento, cujo portão principal era fechado após o por do sol para ser aberto apenas na manhã seguinte ou eventualmente em ocasiões extraordinárias. Curioso acerca da vida da cidade, logo o frei descobriu um jeito de sair do prédio perto das sete da noite e voltar quando quisesse, mesmo que procurasse sempre fazê-lo antes da dez para que pudesse participar das orações da madrugada e evitar que suas ausências fossem percebidas.

Utilizava-se de discretas passagens, existentes em cada uma das laterais da igreja, por onde podia ter acesso ao convento e às ruas. Nas noites em que estivessem combinados, o garoto José levava para ele uma mula selada e um candeeiro na esquina da ladeira do Carmo. Miguel dava um tostão ao garoto e, vestido em roupas seculares, rumava anônimo para as tabernas da cidade baixa.

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Aquela que o frei gostava de freqüentar pertencia ao Peixoto que se vangloriava de ser o único taberneiro da rua da praia que vendia a cachaça do engenho de Tomás de Freitas, a melhor cachaça do mundo, segundo a opinião de muitos dos freqüentadores daquele botequim. Ali, como em muitos outros, o dono do estabelecimento também atuava como alcoviteiro, colocando suas escravas na prostituição ou agenciando mulheres livres pobres para a atividade. Um dos motivos que traziam Miguel àquele lugar, além da notória boa cachaça, era que ali procuravam fazer com que os encontros ocorressem de modo discreto. Exatamente por essa particularidade, foi lá nos fundos da cozinha e ao ar livre que pela primeira vez frei Miguel pagou por um banho dado por duas jovens negras faceiras.

Conversava-se sobre tudo naquele ambiente; mulheres, navegações, minas e até política. Em Salvador podia-se dizer que o poder estava dividido entre os burocratas da administração real e os senhores de engenho das cercanias da cidade. Entretanto, no restante da capitania da Bahia, o poder da classe dos segundos era praticamente absoluto. Senhor de engenho era um titulo que muitos gostariam de ostentar, mas pertencia somente aos empreendedores, donos de imensas sesmarias e numerosos escravos, em cuja propriedade se produzia açúcar, farinha ou tabaco em grandes quantidades, além de possuírem todas as ferramentas necessárias ao trabalho, algumas bastante engenhosas como os famosos moinhos de água do recôncavo. A maioria dos freqüentadores daquelas tabernas era formada por marujos, pequenos comerciantes, escravos forros e lavradores livres que trabalhavam nos engenhos e retornavam à cidade após a colheita. Ali se tratava de política de um modo genérico, discutia-se qual senhor de engenho era mais poderoso ou mais cruel, qual burocrata era mais esnobe ou corrupto, mas não havia, ao menos não parecia haver, impulsos revoltosos ou questionadores, apesar de o governador geral não ser muito popular por aquelas bandas e El Rey raramente ser mencionado.

Outro ponto da cidade freqüentado por Miguel, aqui sem o disfarce civil, era um armazém de secos e molhados bem próximo ao largo do Carmo. Neste estabelecimento, a clientela era formada por reinóis abastados, altos funcionários da Administração e da Justiça Real ou advogados, e até por alguns senhores de engenho e seus feitores. Frei Miguel gostava de beber uma taça de vinho após a última missa do dia, repetindo o hábito de alguns dos fiéis daquela paróquia. Às vezes, quando convidado, tomava parte da conversa. A

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se comparar com as tabernas da cidade baixa, a política ali era discutida em outros termos. Os reinóis reclamavam que os cargos na Câmara estavam todos nas mãos dos senhores de engenho, já estes e seus asseclas se queixavam que o governador geral enchera a administração de patrícios incompetentes e que por essa razão nada funcionava direito na cidade. Também era muito comum ouvir, por ali, os portugueses criticarem seus iguais e seus descendentes do Rio de Janeiro, principalmente porque era senso comum em Salvador a idéia de que a politicagem dos reinóis daquela capitania fizera com que a região das minas ficasse, eclesiástica e administrativamente, na jurisdição fluminense. Por vezes diziam: “Daqui a pouco vão querer transferir a capital da Colônia para o Rio de janeiro!”.

Um assunto também recorrente naquele armazém era a iniciativa da Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos, formada por alforriados, de construírem perto dali uma igreja, cuja obra, àquela altura, inicio de julho de 1705, já se encontrava adiantada.

Estavam à mesa, além de frei Miguel, o dono do armazém, Augusto Brito, o Irmão Domingos Assis, importante funcionário do governo e um dos principais membros da Ordem Terceira do Carmo, e Sebastião, advogado, também membro da ordem e fiel amigo deste último.

“Se por aqui todos fossem realmente comprometidos com a fé e com a nossa Ordem, nossa igreja seria erguida antes que a dos pretos” - reclamou Domingos. À exceção de Miguel, todos pareceram concordar, mesmo que nenhum deles fosse realmente um importante doador da obra. Sebastião então disse:

“Se ao menos algum senhor de engenho se comovesse com a causa da Ordem, com muitos escravos e dinheiro, poderíamos começar já a construção da nossa igreja e ainda terminaríamos antes dos pretos”.

“Ora, senhores, não sejamos ingênuos – exprimiu-se Irmão Domingos - Senhores de engenho gostam de rezar em suas próprias igrejas, somente se dignam a vir à cidade quando têm algo importante a ser decidido pelos vereadores na câmara, onde eles invariavelmente possuem a maioria. Muitos deles até mesmo permitem que seus escravos ajudem na construção da igreja dos pretos, isso sem falar, naturalmente, daquilo que é sabido sem segredo em toda cidade da Bahia e no recôncavo, de que muitos geram filhos de suas escravas”.

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“Imaginem os senhores que é intenção dos pretos fazer a Igreja mais bonita da cidade alta, para rivalizar até mesmo com a Sé!” - disse Brito, com ares de indignado. Voltou se para o frei e disse:

“O senhor, que é conhecedor de Direito Canônico, esclareça-nos... não seria esse intuito uma blasfêmia?” Antes que Miguel pudesse responder, o Irmão Domingos disse:

“Mas é claro que se trata de um sacrilégio, uma igreja de escravos não pode ser mais importante que a Sé!”.

“Penso que igreja dos pretos não será mais importante que nenhuma outra. A Sé, por si só já carrega toda sua santidade, o templo da Irmandade dos pretos será mais uma casa de oração na cidade, o que é muito importante para a vida das pessoas. Creio que os senhores devam ver a questão por esse lado”.

“Não me admiras que tenhas esta opinião, frei Miguel” - disse-lhe Irmão Domingos, já irritado. “O senhor não conhece os pretos, eles não são cristãos, apenas fingem para enganar a lei. São pagãos adeptos a rituais diabólicos, onde dançam e batem tambores. Se continuar a defender os forros, encontrará problemas por aqui” – terminou de beber sua taça de vinho e levantou-se, retirando-se do armazém, no que foi acompanhando por Sebastião. Miguel virou se para Brito e disse, justificando-se:

“Os senhores me pediram uma opinião...”. “Se continuar a expressares sua opinião deste modo, ficarei sem minha

freguesia”. Não era a primeira vez que o Irmão Domingos e frei Miguel discordavam

a respeito dos negros. Ainda na primeira semana na cidade, o frade despertou a revolta de boa parte dos membros da Ordem Terceira do Carmo e de toda a paróquia, especialmente daquele destacado Irmão, ao permitir que o garoto José entrasse na igreja e contemplasse o altar e seus santos, quando no interior do templo estavam alguns brancos. Por conta desta ousadia, várias reclamações e queixas chegaram aos ouvidos do frade mestre Inácio, no Convento de Santa Tereza. A esposa de Domingos chegou a solicitar audiência com o bispo para denunciar o que acreditava ser a maior imoralidade da colônia, permitir que um negrinho pagão pisasse no chão sagrado de um templo cristão. Mas é claro que o bispo, sendo o homem ocupado que era, deixava querelas deste tipo a seus auxiliares, que eram, em sua maioria, muitos bons de conversa, mas de ação nula. Um perfil oposto ao da senhora

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Maria Angelina Assis, que era voluntariosa e dada ao mando, rígida com escravos, criados e crianças, qualidades não comuns, porém também não raríssimas entre as senhoras portuguesas. Corriam na cidade, à boca pequena, comentários, maldosos ou não, que davam conta que na verdade, era ela própria e não o marido que governava a casa e a família. Obesa, muito mais que o desejável, segundo o juízo de Miguel, dona de um buço tão cabeludo como de um rapazola, não raro arvorava para si o direito de reprimir moralmente paroquianos como se fosse um homem da Ordem ou mesmo um frei. Em reuniões sociais com outras damas da sociedade baiana, costumava denunciar a existência de pessoas e de famílias, na cidade alta, envolvidas em rituais africanos e com feiticeiros. Dada a posição de seu marido no governo e o seu rigoroso modelo moral, era uma das mulheres mais respeitadas da cidade, apesar de não muito estimada, pois notória era sua atuação como delatora, junto aos familiares do Santo Oficio. Frei Miguel se divertia sozinho ao imaginar o que ela pensaria se soubesse a idéia que tinha em mente.