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1 Aux Origines de l’humanité Aux Origines de l’humanité Sous la direction de Yves Coppens et Pascal Picq Fayard, Paris, 2001 Volume I De l’apparition de la vie à l’homme moderne Tradução Antonio Romane NÃO REVISADO

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Aux

Originesde l’humanité

Aux

Originesde l’humanité

Sous la direction de Yves Coppens et Pascal Picq

Fayard, Paris, 2001

Volume I

De l’apparition de la vieà l’homme moderne

TraduçãoAntonio Romane

NÃO REVISADO

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C A P Í T U L O

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AS PRIMEIRASARTES NA TERRA

Emmanuel Anati

Diretor do Centro de Estudos Pré-históricos, Valcamonica (Itália)

O homem moderno conquista a terra há mais de 50 milanos. É também nessa época que ele inventa mundos

simbólicos. A arte figurativa e a arte abstrata sedesenvolvem, acompanhando a humanidade moderna.No entanto, uma questão permanece: por que, em dado

momento de sua evolução, os homens buscaram darsentido a seu universo antes de dispor suas

representações do mundo em suportes materiais? Oshomens inventam para si mundos simbólicos que ultra-passam a simples percepção dos sentidos. Essa buscadas origens do pensamento se confunde com aquela

das origens do Homo sapiens e juntam-se ainterrogações que nos são próprias ainda hoje.

Buscar as origens da arte significa buscar a si mesmo. As formas, as cores, os sons,os ritmos, os movimentos, assim como cheiros, são mensagens que nos ajudam adescobrir os outros, bem como a melhor compreender-nos e nos fazer compre-

ender. A arte é um atributo indispensável do Homo sapiens. Que seríamos nós sem arte?Que humanidade poderíamos imaginar? E quais foram as primeiras artes na terra?

O HOMO SAPIENS

CRIADOR DAS ARTESAo falar em Homo Sapiens, nós nos referimos ao nosso ancestral direto que apareceu

há mais de 100 mil anos, numa seqüência de quatro milhões de anos de evolução doshominídeos. Esse ancestral tornou-se realmente sapiens quando adquiriu as característi-cas mentais típicas do homem moderno. A criatividade artística, a capacidade de comuni-cação, de análise, de imaginação, de abstração e de idealização, tornadas possíveis poressas novas aptidões adquiridas ao longo da evolução, constituem hoje em dia a própriaessência do intelecto humano.

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A ARTE, TESTEMUNHO DO DESENVOLVIMENTO DO HOMO SAPIENS

Além da criatividade artística, o pensamento abstrato, a linguagem complexa e articu-lada e uma relação existencial com o entorno visível e invisível, são características donosso ancestral. Esse homem tinha elaborado uma ideologia sofisticada. Ele professavacrenças, havia se imposto regras éticas e estéticas, bases de um contrato social. A arteque nos legou é testemunho de sua capacidade de associação e abstração. A utilizaçãoracional da matéria-prima, notadamente a pedra, fornece uma outra ilustração. A evolu-ção da arte pré-histórica se inscreve, então, no contexto mais amplo do desenvolvimentointelectual do homem.

O Homo sapiens artista, afora as características somáticas próprias da nossa espécie,apresentava as características intelectuais requeridas para produzir arte. Em diferentesmanifestações – arte figurativa, dança, música —, ele traduziu a exigência de idealização,de abstração e de síntese do homem. Ele revela, igualmente, seu desejo de exteriorizaçãoe de comunicação.

Se, por lado, se tem certeza, hoje em dia, de que o Homo sapiens foi um criador dearte, por outro continua a dúvida acerca de seus predecessores. Alguns testemunhos decrenças e de ritos aplicados aos mortos, elementos de cultura material, parecem traduzirexigências estéticas. Coleções de objetos e de formas naturais indicam a existência doconceito de “belo”. No entanto, a hipótese, defendida por alguns pesquisadores, de obrasde arte anteriores ao aparecimento do Homo sapiens ainda resta por ser provada.

A mão é o motivo maisencontrado em todosos sítios ornamentadosda pré-história.

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AS CATEGORIAS DE ARTE PRÉ-HISTÓRICA

Assim como o Homo sapiens, a arte transformou-se com o tempo. A cada nívelcultural de evolução humana corresponde uma categoria particular de arte pré-histórica.Entendamo-nos, desde já, sobre as questões de datação porque, muitas vezes, de umaescola paleoetnológica ou de um país para outro varia a idade da pré-história.

A pré-história começa com o aparecimen-to do homem, que remonta a mais de quatro,talvez seis milhões de anos na África, a menosde dois milhões na Europa e a menos de 1.000anos em algumas ilhas do Pacífico. Ela seconclui com o começo da história em algumasregiões do mundo e com aquele da proto-história em outros.

Segundo os autores tradicionais, a pré-his-tória se conclui 10.000 anos antes de nossaera, com o fim da idade da pedra no OrienteMédio, ou menos de 300 anos antes de nossaera com a chegada dos primeiros europeus naAustrália. Na Itália, a idade do ferro inscreve-se no interior da proto-história; na Escandiná-

via, no interior da pré-história. Na França, a idade do bronze é considerada como perten-cente à proto-história, enquanto que na Itália ela é anexada à pré-história. Assim, procu-rando evitar querelas vãs, devemos entender por pré-história, aqui, toda época anterior àhistória escrita.

Com tal precisão, busquemos agora as diferentes categorias de arte pré-histórica,aquelas dos caçadores arcaicos, dos caçadores evoluídos, dos pastores e criadores e,enfim, das populações de economia complexa.

A arte dos caçadores arcaicos comporta três modelos característicos chamados –sem dúvida, de maneira esquemática –, “aurignaciano”, “magdaleniano” e “epipaleolíti-co”. No modelo dito “aurignaciano”, que marca na Europa o começo do paleolítico supe-rior, podem ser distinguidos dois grandes estilos: um, expressando-se principalmente atra-vés de gravuras e pinturas sobre suportes vetores; outro, através de estatuetas e outros

objetos de arte mobiliária. Nas fases mais an-tigas, essas criações apresentam, no mundo in-teiro, uma grande homogeneidade. Estatuetase plaquetas do mesmo tipo foram descobertasna Europa e na Sibéria; pinturas e gravuras quemostram importantes similitudes entre si sãoconhecidas na Europa e na Tanzânia. Foi pro-gressivamente, nos horizontes “magdaleniano”e “epipaleolítico”, que surgiram variações. Porvolta do plistoceno, entre 16.000 e 12.000 anosantes da nossa era, caçadores arcaicos espa-lhados por várias áreas geográficas começa-ram a produzir estilos diferentes.

No começo do holoceno, entre 10.000 e12.000 anos atrás, surgem, enfim, em diversaspartes do mundo, os primeiros núcleos de artedevidos a caçadores evoluídos. Os pastores-criadores, e depois as populações com eco-nomia complexa, darão nascimento a novos

1 - Gruta de Lascaux(França).Na arte rupestreocidental, os animaissão pintados ematitudes que traduzemcânones de representa-ção. As cenas da vidasão muito raras enenhuma paisagem éfigurada.

2 - Máscara cerimonialde Kamanibit (Papua-Nova Guiné).Carapaça de tartarugae tecelagem vegetalendurecida com lama epintada, conchas,plumas; dimensões 92x 78 cm. Por volta de1900. A esperança devida de objetos bastan-te perecíveis desse tiponão passa de algunsanos, se não foremconservados numcontexto museográfico.(Foto E. Anati, ArquivosWARA.)

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grupos de arte. A arte visual indica uma diversificação conceitual progressiva na espécieHomo sapiens.

A similitude da criatividade artística das fases iniciais em diferentes partes do mundotraduz, sem dúvida, a presença de uma mesma lógica, de um mesmo sistema de associa-ção de idéias e de simbolização. Ela permite, ao mesmo tempo, vislumbrar a existência deuma língua-mãe universal. Em seguida, desenvolveram-se características regionais.

Esse testemunho é fundamental para compreender a tendência geral, que vai de umabase original homogênea à diferenciação em diversos modelos. Pode-se mesmo emitir ahipótese de um processo análogo compreendendo outros aspectos conceituais, entre osquais as crenças e as práticas religiosas.

UM CONHECIMENTO FRAGMENTADO

O Homo sapiens era um explorador que queria conhecer o mundo do qual ele tinhasaído. Sem dúvida, foi essa curiosidade que o levou a produzir arte. Existem analogias,provavelmente, entre o desejo do homem de explorar o território e aquele de conhecer,interrogar-se e propor respostas às questões do ser e da existência, do devir e das ori-gens. Assim, sua progressão geográfica acompanhava-se do aumento de suas capacida-des intelectuais. De acordo com as mais recentes pesquisas, a distribuição da arte rupes-tre – as gravuras e as pinturas nas superfícies rochosas – parece estranhamente homogê-nea em toda a terra, tanto que se pode afirmar que, onde quer que se instalou, o Homosapiens deixou traços de sua criatividadeartística e de sua vida espiritual.

Infelizmente, apenas uma ínfima porçãodessas manifestações artísticas chegou aténós (ilustrações 2, 3 e 4) – isto é, obrasrealizadas com materiais duráveis. Por maisinteressantes que sejam, essas criações re-fletem apenas uma parte da arte pré-histó-rica. Na idade da pedra, a madeira era,paradoxalmente, a matéria-prima mais es-palhada. Pode-se, então, pensar razoavel-mente que a grande maioria das obras dearte foi executada sobre suportes orgâni-cos. Os objetos em pedra, osso, chifre,marfim, ou as pinturas e gravuras em ro-chas, se conservaram, pelo menos em par-te, e alguns dentre eles puderam ser encon-trados. Mas quantas obras em madeira, fi-bras vegetais, cascas de árvore, peles deanimais e outras matérias perecíveis estãodestruídas para sempre? No entanto, osarquivos já registram mais de 30 milhões

4 – Fundos de cabanas de 70 mil anos deidade (Har Karkom, deserto de Neguev,

Israel).Os neandertalenses acamparam aqui e

deixaram, perto de cabanas com basecircular, restos de lares e um local de

talhamento de sílex com núcleos e váriasferramentas acabadas abandonadas no

terreno depois de seu uso (HK/105).(E. Anati, 1986, Arquivos WARA.)

3 – A cultura material.Entrada de grutahabitada por grupo decaçadores sandaweem Kongoro (Tanzânia).A cultura materialcompreende recipien-tes obtidos a partir decabaças selvagenssecas e de cascas deárvore. Vêem-sealmofarizes e pilões demadeira e dois recipi-entes em barro cozido;estes foram trocadoscom um grupo vizinhode bantos agricultores-criadores. Cm isso,eles adquiriram pelesde animais caçadospelos sandawe. Aquase totalidade dacultura material produzi-da pelos povos caçado-res provém de matériasorgânicas perecíveis.(E. Anati, 1989, ArquivosWARA.)

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Arte rupestre: o mais importante testemunhoda história cultural e intelectual dahumanidade antes da escrita

As origens da arte e do pensamentoconceitual emergem dos signos e figurasdeixados pelas populações iletradas na superfí-cie de rochas e de grutas no mundo inteiro. Oshomens começaram a desenvolver meios decomunicação art íst icos há pelo menos 40.000anos. A arte rupestre, enquanto narração visualda evolução cultural, ilustra essa herançacomum.

Dos primeiros caçadores-coletores aoscaçadores evoluídos, aos agricultores, aosprimeiros artesãos do metal e às populaçõesprotoletradas, as pinturas e as gravurasrupestres descrevem cenas da vida cotidiana,das crenças e das preocupações em diversosníveis de desenvolvimento. Elas revelam aindaas necessidades individuais e sociais, bemcomo as mot ivações conceituais e comuni-cat ivas.

A essência das característ icas humanasfundamentais, tais como o conhecimento, acultura, a arte, a imaginação e a religião, podeser percebida graças ao estudo da arterupestre.

As obras pré-históricas conhecidas até hojeconstituem um conjunto de mais de 100 milobjetos: f igurinhas, plaquetas, ossos gravados,chifres e madeira decorados. Elas estãoespalhadas no mundo inteiro e se encontramem museus, galerias, coleçõesprivadas.

Contam-se, nos cinco conti-nentes, perto de 70 mil sít ios depinturas, com cerca de 30milhões de imagens e signosarquivados.

Até hoje, mais de 99% daarte pré-histórica é, na verdade,arte rupestre. Considerando aexigüidade de lugares explora-dos, o número total de repre-sentações da arte rupestreexistente pode ser bem maiorainda.

Grandes concentrações dearte rupestre foram descobertasem pelo menos 120 países econst ituem um imenso

patrimônio cujo inventário exaustivo ainda nãoestá feito. Apenas uma pequena parte dessessít ios é objeto de estudos aprofundados.

Uma redescoberta das mensagens e dostemas primordiais é essencial. É imperativo queessa fonte maior de informações sejainventariada, compreendida e protegida.

Pesquisa, documentação e conservaçãodeveriam progredir numa perspect iva mundial.O conhecimento do valor e da significaçãodessa herança deveria ser acessível ao grandepúblico.

Uma avaliação desse patrimônio é necessá-ria, não apenas com fins culturais, mas tambémpara permitir uma constante revisão do estadoda arte, para uso das administrações, dosgovernos, das organizações internacionais eagências que se ocupam da preservação, bemcomo pelas instituições que desenvolvem o usocultural do patrimônio artíst ico e arqueológico.Esse imensa herança é vulnerável. A cada dia,fragmentos ou pedaços de superfícies rochosasse descolam. Os projetos de desenvolvimento,o desflorestamento, a expansão das estradas,as construções de moradias, a extensão daagricultura, podem dificilmente ser barradas,mas a arte rupestre tem de ser repertoriada earquivada antes que seja destruída, para asse-gurar seu testemunho às gerações futuras.

Altamira

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de figuras rupestres e mais de 100 mil objetos de arte pré-histórica, espalhados por maisde 150 países.

Outros aspectos da criatividade artística continuam desconhecidos. Nós sabemos queos homens do paleolítico gravavam signos e deixavam impressões na lama e na areia.Alguns traços foram encontrados em grutas profundas. Mas, externamente, essas obrascertamente foram apagadas pela chuva, gelo, neve ou vento.

Um dos suportes mais espalhados de pinturas – e o mais antigo – deve ser o tapa,pano obtido do líber, a entrecasca de alguns arbustos amassada e batida, utilizado comovestimenta, como cobertura e para a confecção de objetos cerimoniais (ilustrações 5 e 6).Os pigmeus da bacia do Congo ainda hoje sãograndes produtores de tapa. Igualmente algunspovos caçadores, coletores e pescadores na Ama-zônia, na África tropical, no sudeste asiático e noPacífico. Uma tal propagação parece indicar a an-tigüidade do método de produção e de difusãodesse pano não-tecido. Os tapas mais antigos jádatados foram trazidos do Pacífico pelo capitãoJames Cook em 1769.

EVOLUÇÃO DAARTE VISUAL

Na literatura científica produzida até estes últi-mos decênios sobre as origens da arte, destaca-se uma tendência comum: o regionalismo. Os pes-quisadores europeus situavam facilmente a origemda arte na Europa ocidental, lugar a partir do qualessa faculdade criadora ter-se-ia espalhado noresto do mundo. Os pesquisadores da Sibéria,do Oriente Próximo, da África do Sul ou da Aus-trália manifestavam uma tendência análoga. Naverdade, a arte difundiu-se no mundo segundoo grau dos deslocamentos do nosso ancestraldireto.

Nas fases mais arcaicas de manifestação daarte visual, quer na África, na Ásia, na Austrália,na América ou na Europa, podemos encontrar amesma gama limitada de assuntos, a mesma sériede símbolos ou de sinais abstratos e os mesmosgêneros de associação entre eles. Trata-se de ummesmo idioma visual que poderia indicar a pre-sença de uma protolíngua. Essa hipótese nos con-duz a pensar que a criatividade artística existia jáno Homo sapiens primário em sua terra de ori-gem – sem dúvida, a África – antes de sua grandediáspora.

6 – Tapa (Melanésia).Decorações preta e marrom.(40 x 47 cm, ref. 154 – Arquivos WARA.)

5 – Aldeia de Ambasina província do Ouro(Papua-Nova Guiné).Três jovens fazemcompanhia a uma viúvacom roupa de luto e ocorpo coberto compintura branca. Asjovens estão vestidascom tangas de tapa,cintos e bijuterias.(Foto de abril de 1921,Arquivos WARA.)

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DATAÇÕES TEMPORÁRIAS

Com o desenvolvimento dos conhecimentos e o uso de novos métodos, as dataçõespropostas são regularmente corrigidas. O começo das artes nos diferentes continentesvem sendo empurrado cada vez mais para longe no tempo. Aliás, a denominação deobjeto de arte e a datação recuada proposta para algumas obras esporádicas – em Israel,na Austrália, na Índia, no Brasil e outros lugares – exigem verificações.

A descoberta recente de um santuário paleolítico em Har Harkom, no deserto deNaguev (Israel), permite evidenciar um novo tipo de arte, ou proto-arte. Com efeito, ohomem coletou pedras com formatos naturalmente antropomorfos ou zoomorfos e asjuntou num sítio, chamado HK 86B pelos arqueólogos, para nelas gravar, às vezes, olhosou narinas. Se tais estátuas podem ser consideradas obras de arte, a data do começo dacriatividade artística no Oriente Próximo deve ser prolongada em vários milênios.

A arte enquanto costume espalhado já estava presente há mais de 40.000 anos naÁfrica, na Ásia e na Austrália. Na Europa, os mais antigos testemunhos também remetema cerca de 40.000 anos; na Américas, as datações disponíveis são mais recentes.

7 – A persistência dastradições.Pintura rupestre naTanzânia. A seqüênciaestratigráfica dessarocha, na zona deKondoa, mostra pelomenos quatro fasesdos caçadores arcaicoscom figuras animaiscom linha de contorno eideogramas; elas sãocobertas por figurasantropomórficas eanimais pertencendo adiversas fases doscaçadores evoluídos. Aseqüência dessasuperfície cobre váriosmilênios.(E. Anati, 1985, ArquivosWARA.)

Repartição dos 150 principais sítios de arte rupestre no mundo1 - Canadá, Estados Unidos, México, Caraibas: 17 sítios2 - América do Sul 21 ´´3 - Oceano Pacífico 3 ´´4 - África 32 ´´5 - Oriente Médio 6 ´´

6 - Europa: 17 sítios7 - Ásia 29 ´´8 - Índia 3 ´´9 - Austrália, Indonésia, N. Zelândia 13 ´´

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O EXEMPLO DAS GRUTAS DA TANZÂNIA

A presença de grutas e abrigos ornamentados nos altos planaltos da Tanzânia central,no sudeste da África, tinha sido documentada no século XIX. Mas foi preciso esperar osanos 1980 para identificar uma seqüência de estilos repetindo-se na mesma ordem crono-lógica em cerca de 200 grutas e abrigos, numa zona de mais de 10.000 km2.

Inúmeras superposições permitem definir seis períodos de criatividade artística, que sedistinguem pelos temas, pelos gêneros de associação e cenas representadas. Esta suces-são de seis épocas “históricas” abrange a epopéia do homem moderno na África sul-oriental ao longo dos últimos 40.000 anos. Trata-se verdadeiramente de uma crônicaescrita, através de “histórias em quadrinhos”, nas paredes rochosas (ilustração 7), tornan-do essa região cônscia de um passado caído no esquecimento. Nós nos propomos adescrever aqui estas seis épocas históricas, partindo da última fase para remontar a escaladas idades.

O horizonte mais recente é constituído pelos conjuntos de arte esquemática e geomé-trica devidos a tribos bantos instaladas na região desde 2.000 anos atrás e que foram asprimeiras a introduzir a agricultura e o trabalho em metal. As obras representam majorita-riamente animais domésticos como caprinos e bovídeos e instrumentos como a acha, agoiva e o enxadão. As figuras brancas dos bantos cobrem aquelas dos povos criadores debovídeos que utilizavam sobretudo cores foscas como o castanho-escuro, o cinza e opreto. Esses criadores, provavelmente ancestrais dos massais que ainda habitam a região,eram nômades vindos do norte. São reconhecíveis três fases, sendo a última contemporâ-nea às fases arcaicas dos bantos e, as duas outras, mais antigas. A fase média comportainúmeras figuras de zebu, bovino com corcova originário da Ásia e introduzido na Áfricapor volta de 3.000 anos atrás.

Um outro grupo estilístico representa grandes figuras de animais, principalmente ele-fantes pintados de marrom ou cinza, uniformemente espalhado nas superfícies pelas mãosdos pintores, dos quais às vezes se distingue, com lupa, as impressões digitais. Algumasfiguras medem mais de três metros. A “Stone Bowl Culture”, cultura produtora de gran-des pratos em pedra finamente polida, que remonta ao segundo e começo do primeiromilênio a.C., é particularmente característica desse grupo estilístico. Ela se funda numaeconomia freqüentemente qualificada de “neolítica”.

As grandes figuras de animais, sobretudo o elefante, animal totêmico, parecem estarassociadas ao culto dos mortos e dos ancestrais e pertencer a uma população que coexis-tia, a nessa região, com outras populações de criadores e caçadores, cada uma delasconservando uma autonomia cultural e intelectual suficiente para produzir estilos de arterupestres distintos e característicos.

Anteriormente a esse horizonte da “Stone Bowl Culture”, uma grande série de estilosdiferentes pode ser atribuída aos caçadores evoluídos, que utilizavam arco e flecha. Ascenas descrevem, de maneira episódica, a caça, a dança e os ritos. Em geral, as imagenssão de pequenas dimensões, de cor vermelha, amarela, marrom ou violeta. O principalalvo da caça é o antílope. Salvo exceções, tratam-se de figuras monocromáticas. Emalgumas grutas, as figuras são grandes e estáticas, enquanto que nas fases evoluídas ascenas são dinâmicas, cheias de ação e de movimento. Em várias dessas pequenas grutas,ao lado de pinturas de caçadores evoluídos, os arqueólogos descobriram uma indústrialítica, com prevalência microlítica constituída de objetos em quartzo. Batizada de “culturade Wilton”, ela demonstra uma grande longevidade, estendendo-se entre o primeiro e odécimo milênios a.C. Os caçadores com arco e flecha haviam chegado a viver em harmo-nia com seu meio. Assim eles mantiveram, durante milênios, uma cultura e estilos de umagrande variedade, mas dotados das mesmas características dinâmicas, como o gosto pelacena e o detalhe.

Um pouco mais cedo, encontramos um horizonte figurativo representando, em cenas

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de atividade social, seres monstruosos,imagens antropomórficas com chifres eoutros atributos animais não-realistas.Essas criaturas imaginárias são muitasvezes cercadas de raios, como se difun-dissem ou absorvessem energia. Figurasde frutos e de folhas, de representaçõesde vegetais quase inexistentes em todosos outros períodos, são aqui observá-veis. Mas a presença de animais ébastante rara. Parece que a populaçãona origem desse conjunto artístico de-monstrava mais interesse pela vida ve-getal do que pela vida animal. Pode serque seus membros seguissem uma dieta

predominantemente vegetariana. Sobre a monstruosidade e a deformação das imagens,os psicólogos deduziram o uso freqüente de plantas alucinógenas (ilustrações 8 a 10).

As espessas incrustações calcárias que se formaram entre uma fase e outra dessehorizonte indicam, além do mais, um clima úmido que pode ter coincidido com a grandeexpansão do Lago Tchad e dos outros lagos centro-africanos, acontecida entre 8.000 e10.000 anos atrás. Esse período parece evocar um tempo idílico, uma espécie de “pa-raíso terrestre” no qual os homens se alimentavam dos produtos da terra e degustavamregularmente os frutos proibidos da árvore do “conhecimento do bem e do mal”.

Precedendo esse horizonte figurativo, o período dos caçadores arcaicos – esses caça-dores de animais de grande porte que não conheciam o uso do arco e da flecha – constituia mais antiga seqüência de arte rupestre dessa região e, sem dúvida, do mundo. Vinteestilos diferentes, muitas vezes superpostos uns aos outros e formando uma longa seqüên-cia cronológica, se avizinham. As grandes figuras de animais, como a girafa e o elefante,são aqui onipresentes. Por outro lado, a figura humana é quase ausente, bem como oantílope, o animal mais freqüentemente representado pelos caçadores evoluídos. Ideo-

gramas (ver infra) ou símbolos acompanham as figuras deanimais e formam com elas associações ou seqüências,sem, no entanto, perder a forma de verdadeiras cenas epi-sódicas e descritivas.

Depois de haver traçado esses seis grandes períodospré-históricos, é preciso tentar datá-los. O estilo figurati-vo de uma das fases mais evoluídas desse conjunto podeser aproximado àquele do empregado para a realizaçãode plaquetas pintadas encontradas na gruta Apolo 11 (Na-míbia). Elas teriam sido realizadas 26.000 a 30.000 milanos antes de nossa era (ilustração 11). Ora, no seio daseqüência de figuras rupestres da Tanzânia, muitos estilossão anteriores às criações da gruta Apolo 11.

Além do quê, lápis de ocra foram descobertos numacamada arqueológica da gruta de Kiesese (Tanzânia). Umadatação com carbono 14 revela que eles foram usadospor volta de 30.000 anos atrás. Na gruta Apolo 11, omesmo tipo de lápis foi encontrado numa camada datadaem 47.500 a 50.000 anos. Portanto, é legítimo afirmarque as criações artísticas mais antigas remontam a mais de50.000 anos.

8 – Pintura rupestre decaçadores arcaicos dePahi (Tanzânia).Perfil esquematizadode um quadrúpede,provavelmente umrinoceronte. É acompa-nhado de um ideogra-ma “ramado”, dirigido àregião vulvo-anal, e deum motivo de peque-nos pontos que dese-nham círculos concên-tricos.(Arquivos WARA.)

9 – A identidade daimagem.Pintura rupestre doscoletores arcaicoskundusi (Tanzânia).Para que sejamidentificados, doisseres antropomorfossão representados comideogramas à guisa decabeça. São máscarasmetafóricas. Uma dascabeças é formada porum conjunto de linhasfugentes encimada poruma espécie deemanação ondulada,figurando sem dúvidaum “ramo”. A outracabeça é constituída deum conjunto de pontosformando uma espéciede esfera. A semelhan-ça com a ilustraçãoprecedente é inegável,ainda que esta segun-da date de uma épocamais antiga.(Arquivos WARA.)

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DA UNIDADEARTÍSTICA ÀDIVERSIDADE

Os conjuntos pintados con-sistem em associações de figu-ras de animais e de signos. Estessão repetitivos e presentes naarte dos caçadores arcaicos naEuropa ou no Oriente Próximo.Seqüências análogas se repetemnos cinco continentes (ilustrações11 e 12). As fases mais antigasapresentam uma quase-identida-de figurativa conceitual e asso-ciativa que revela uma unidadeespantosa entre as diferentespartes do mundo.

Os caracteres regionais espe-cíficos acompanham a diversifi-cação dos modos de vida e dosrecursos econômicos. Esse pro-cesso de diferenciação e de es-pecialização regionais na arte vi-sual pode ilustrar um fenômenobem mais vasto: a progressiva di-versificação cultural do homem,cujos efeitos se manifestaram demaneira determinante ao longodos últimos 20.000 anos. Antes,no mundo inteiro, a arte visualcomportava características maisuniformes.

10 – A identidade dogrupo.Pintura rupestre dequatro personagensmascarados do períododos coletores arcaicosna zona de Kondoa(Tanzânia).(Cópia em traço M. Leakey,

1983, Arquivos WARA.)

11. Plaqueta compintura em bicromia.Descoberta por W. E.Wendt na gruta Apolo11 (Namíbia). O animal,sem dúvida um felino,tem patas traseirasantropomórficas. Esteobjeto vem de umacamada arqueológicadatada por carbono 14em cerca de 30 milanos.(Arquivos WARA.)

12 – Pintura rupestrede Itololo (Tanzânia).Um personagem comgrande cabeleira corcastanho-escuro,atribuído às fases doscaçadores evoluídos,superpõe-se a umacomposição de caçado-res arcaicos com doisanimais que se cruzam,um ideograma numéri-co de três linhasparalelas e um psico-grama com uma sériede linhas partindo deum espaço central.(Base da cópia em traço com90 cm, Arquivos WARA.)

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OS TEMAS DA ARTEPRÉ-HISTÓRICA

A ARTE, TESTEMUNHO DAS PREOCUPAÇÕES HUMANAS

A arte das origens testemunha capacidades de abstração do espírito humano. As pre-ocupações do Homo sapiens tinham um caráter existencial e filosófico. Elas consistiamem encontrar respostas às questões relativas à sua identidade e ao mundo que o cercava.A relação com o mundo animal – do qual o homem tirava sua subsistência cotidiana – ecom a natureza deve ter suscitado muitas interrogações no espírito dos nossos ancestrais.

O meio e a natureza tais como os vemos e os definimos atualmente são, no entanto,temas estranhamente ausentes da arte dos povos caçadores. As figuras e os retratospessoais são raros. Até onde sabemos, as paisagens são quase inexistentes na arte dospovos caçadores arcaicos e dos caçadores evoluídos. No entanto, a representação queos aborígenes australianos fazem da natureza é outra. Para eles, cada montanha, forma,

pedra, arbusto, tem paraeles uma significação pro-funda. Por vezes, os luga-res podem ser figuradosatravés dos espíritos antro-pomórficos ou zoomorfosque os freqüentam. Umamontanha batizada “MonteCanguru” tomará a formadesse mamífero. As conste-lações, o sol, a lua, a terrase moldaram ao longo dis-so que os aborígenes cha-mam “época dos sonhos”,o que equivale mais ou me-nos à pré-história na Europa.

As formas, as cores, oslugares encontram uma res-sonância nos mitos de ori-gem. Todavia, se a paisa-gem, as montanhas, os ar-bustos, o céu e a terra nãosão objetos de representa-ção artística – salvo entre osaborígenes que sofreram ainfluência dos europeus —,eles podem ser evocadospor metáforas. A floresta,assim, será simbolizada porfolhas (ilustração 13); umabaía, pelo peixe baramundique nela é pescado; o pân-tano, por um dos pássarosque o habitam.

Quase ausentes das re-

13 – Pintura em cascade árvore.Atribuída a povoscaçadores atuais,aborígenes australia-nos da Terra de Arnhem(cerca de 1940).Evocação de um mitoda época dos sonhos.Um casal de espíritosMimi deambula nafloresta (folhas) embusca de alimento (dilly

bags nos ombros).Eles têm consigo osinstrumentos necessá-rios em sua busca:acha de pedra, bastãopara extração detubérculos de inhame,dardo e lança-dardo.(E. Anati, 74-113, Arquivos

WARA.)

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presentações artísticas dos caçadores arcaicos e evoluídos, as paisagens são, por outrolado, figuradas, ainda que quase sempre sem plantas, nem horizonte, entre os povos cria-dores. A arte rupestre destes últimos reproduz cenas episódicas da vida pastoril cotidianaou do culto. Os desenhos de cercados para o gado são particularmente significativos.Considerando-se o interesse particular pelos bovinos, esses cercados tinham, sem dúvida,funções rituais.

São observáveis paisagens com definições topográficas entre alguns grupos de econo-mia complexa. Encontra-se um afresco com o “plano” da aldeia e da montanha situadapor perto no sítio neolítico Çatal Huyuk, na Anatólia, bem como planos de aldeias, habi-tações e campos na arte rupestre de populações de economia complexa de Valcamonia(Itália), da Mongólia e da Sibéria. A maior parte dessas representações parece preencherfunções comemorativas. Nada disso aparece entre os caçadores arcaicos. Os vegetais –plantas, flores, frutos, folhas – são, por outro lado, totalmente ausentes na grande maioriados conjuntos de arte pré-histórica.

OS LUGARES E OS SUPORTES DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA

A escolha do espaço a ser decorarado – gruta, abrigo, superfície rochosa ao ar livre –é deixada à apreciação do artista. No interior da gruta, é preciso ainda aplainar umasuperfície horizontal, oblíqua ou vertical. Além do ângulo e da posição, a própria formados suportes deve ter um sentido. Muitas vezes, a pintura ou gravura completa acentua ouutiliza as formas naturais.

Independentemente do espaço a ser decorado, o Homo sapiens artista deve aindaescolher precisamente o lugar onde ele executará sua pintura ou sua gravura. Pode-se,assim, identificar preferências em matéria de forma e de cor das paredes. Parece quehavia um elo conceitual entre a obra de arte e o suporte escolhido para sua realização. Assuperfícies rochosas, que correspondiam a critérios precisos, eram muitas vezes preferi-das. Tais critérios nos parecem de ordem estética, e, comparados a escolhas análogas depovos caçadores de hoje – como os aranta australianos, por exemplo –, pode-se suporque eles correspondem a motivações conceituais. Outras condições deviam ser preenchidaspara obter o resultado esperado, como os artistas seguindo as mensagens da natureza quelhes indicava os sítios mais propícios.

AS TÉCNICAS UTILIZADAS

As técnicas de realização – pintura, incisão, grafito, gravura por punção, diversos mé-todos de polimento – eram igualmente objetos de escolha cuidadosa. Se alguns elementossão recorrentes, eles não parecem decorrer de fenômenos de aculturação ou de difusão.Por vezes, o tipo de execução parece simplesmente resultar de um certo nível tecnológicoou de uma certa maneira de pensar. Por outro lado, em outros casos, o tipo de execuçãotraduz indubitavelmente preceitos conceituais, ou mesmo um caráter ritual.

Se as populações não comunicavam suas técnicas entre si, elas muitas vezes faziamescolhas semelhantes, mesmo em lugares bastante distantes e diferentes uns dos outros.Esse paralelismo de desenvolvimento não poderia depender unicamente de influênciasexteriores. Inclusive em relação a épocas longamente posteriores àquela da expansãooriginal do Homo sapiens, pode-se supor a existência de matrizes comuns que teriamproduzido “ressonâncias” análogas em milhares de quilômetros e milênios de distância.Esses paradigmas nos levam aos caracteres universais de nossa memória e ao funciona-mento elementar do processo de associação de idéias.

A temática é bastante restrita e repetitiva. Entre povos caçadores, é encontrada amesma gama de figuras na Europa, na Ásia, na África, na América e na Austrália, e asassociações parecem seguir sintaxes semelhantes. Na mentalidade dessas populações,

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alguns aspectos do meio ambiente, da economia e da vida social não entram manifesta-mente nas preocupações e interesses expressos pela gama figurativa. No mais das vezes,são fatos que passam por comemoração ou glorificação. Os artistas, quer pertençam aoscaçadores ou a outros grupos, efetuaram escolhas bastante precisas na representaçãodos assuntos. Os grupos que dizem respeito a uma sociedade complexa e de economiamista, habitualmente mais tardios que os povos caçadores, são aqueles entre os quais seencontram mais freqüentemente temáticas de tipo regional ou local que permitem definircaracterísticas geograficamente circunscritas.

Afora a superfície, as técnicas de realização, a temática e a tipologia e os volumestambém têm importância. Alguns modelos culturais apresentam dimensões recorrentes.Por exemplo, as grandes representações de animais, em escala natural ou de mais de 1,50metro de altura ou comprimento, se encontram exclusivamente entre populações de caça-dores, com exceção de alguns grupos de pastores arcaicos na Arábia e na área saariana.Ao contrário, entre os caçadores arcaicos e os caçadores evoluídos, as figuras animaissão em dimensões modestas, a ponto de se tornarem miniaturas. Aliás, é bastante curiosonotar que, nos grupos em que as figuras animais são de grandes dimensões, as represen-tações humanas são ausentes ou raras. Ao contrário, em grupos nos quais as figurasanimais são reduzidas, a porcentagem de figuras antropomorfas é claramente mais ele-vada. Pode-se supor que esse fenômeno recorrente reflete, também aqui, conteúdosconceituais.

A ONIPRESENÇA DAS FIGURAS ANIMAIS

Em todos os conjuntos de arte visual, alguns temas ocupam lugar mais importante queoutros. Trata-se de uma escolha primária fundamental, no interior da qual o Homo sapi-ens artista opera outras escolhas. A sintaxe da arte reflete uma “lógica” bastante comple-xa, mesmo que ela seja definida como elementar. Ela revela uma estrutura mental queinfluenciou outros aspectos da bagagem conceitual.

É uma constatação simplista dizer, como o fizeram alguns pesquisadores, que as figu-ras animais constituem, na arte paleolítica européia, a representação dominante. E não é

menos aproximativoafirmar que no mun-do inteiro, entre oscaçadores arcaicos,os animais sãos oni-presentes e eclip-sam qualquer outrafiguração. Contrari-amente ao que sepode pensar, rara-mente se encontramfiguras de animaisisoladas. Elas quasesempre são acom-panhadas deelementos repetiti-vos, de ideogramase de grafemas,muitas vezes maisnumerosos que elaspróprias e demaiores dimensões.

14 – Painel pintado emvermelho no centro deuma gruta de El Pindal(Espanha).Arte de caçadoresarcaicos, paleolíticosuperior. Elefante comuma grande marcavermelha no corpo;cabeça de cavalo e doisconjuntos de cincosignos verticais.

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No passado, alguns autores insistiram bastante sobre o papel que a arte teria desem-penhado em atos ou cerimônias para assegurar o sucesso da caça. Esse gênero de ritoexiste ainda entre algumas tribos de caçadores australianos, bem como entre os bosquí-manos da África do Sul (Vinnicombe, 1976). Mas apenas uma ínfima parte da criatividadeartística pré-histórica refletiu esse costume. Em vários momentos, avançou-se a hipótesede xamanismo como motivação da arte (Clottes e Lewis-Williams, 1996). Uma parte daarte magdaleniana confirma essa hipótese.

Em todas as obras dos caçadores arcaicos existem constantes associativas entre pic-togramas e ideogramas (ver infra), ou ainda entre os temas figurativos e grafemas repeti-tivos cujo signo não é imediatamente traduzível em imagens. A leitura das mensagens queeles contêm está subordinada à compreensão das associações que dependem, por suavez, daquela dos ideogramas.

Como demonstrou André Leroi-Gourhan (1965), duas espécies animais, o bisão e ocavalo, muitas vezes representados face a face ou um ao lado do outro e acompanhadosde diversos ideogramas recorrentes, aparecem freqüentemente nas grandes representa-ções da arte dos caçadores arcaicos na Europa. No interior de um tema privilegiado – odos animais selvagens de grande porte –, eles retornam mais vezes que outros e parecemrevestir-se de uma significação específica na dialética associativa. Claro, subsistem dife-renças de uma zona a outra, mas esses dados gerais estão presentes através de toda a arteparietal franco-cantábrica. Na Tanzânia, na arte rupestre dos caçadores arcaicos, o ele-fante e a girafa desempenham papel análogo àquele do cavalo e do bisão na Europa. Defato, eles são mais representados que outras espécies e são freqüentemente associados.

Temos aqui as primícias de um paradigma: a presença, em diferentes meios de caçado-res arcaicos, de espécies animais predominantes ligadas entre elas por uma relação dialé-tica. O mesmo modelo existe pelo menos em duas regiões, a Europa ocidental e a Tanzâ-nia – regiões entre as quais não se imagina que possam ter havido, à época desse fenôme-no, relações diretas, mas pelas quais se pode emitir a hipótese de uma matriz conceitualcomum (ilustrações 14 e 15).

As associações, as composições e as cenas, isto é, os tipos de relação entre uma figurae uma outra num mesmo contexto, constituem o reflexo visual de uma dinâmica conceitual.Identificar modelos e constantes permite colocar os termos de uma fenomenologia. Resta,em seguida, decifrar as mensagens que essa arte veicula.

15 – Cópiaesquemática em traçode uma composiçãopintada em vermelhona gruta de MongoniWa Kolo (Tanzânia).Arte dos caçadoresarcaicos, fase evoluída.Girafa e elefante seenfrentam. Aos pés dagirafa vê-se um signoserpentiforme e ao ladoda tromba do elefanteum signo em forma de“paleta”; em seu corpo,nota-se duas séries depontos.(Cópia em traço de E. Anati,Arquivos WARA.)

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AS CONSTANTESCaracterísticas dominantes nas diferentes categorias de arte rupestre

Categorias Temas Associações Estilos Técnicas Localizações

Ideogramas,psicogramas,pictogramas,figuras degrandes animaisselvagens.Muitas vezes, afigura antropo-morfa estámascarada.

Pictogramas.Figuras huma-nas e de ani-mais selvagens.Ideogramaslimitados e rarospsicogramas.Presençaconstante deseres imagi-nários.

Pictogramas:animais domés-ticos e figurasantropomorfas.Representaçãode cabanas e deestruturas.Ideogramasesporádicos.Psicogramasausentes.

Pictogramasmais variadosque nas fasesprecedentes:figuras huma-nas, animais,estruturas,instrumentos earmas; esque-mas e ideogra-mas. Psicogra-mas apenasem algumasculturas.

Associaçõessimples.Existem compo-sições comple-xas, mas sãoraras.Sintaxe herméti-ca e sintética.

Cenas descriti-vas e circuns-tanciais. Sintaxesimples definidapelas associa-ções nas cenase nas compo-sições.

Cenas e compo-sições. Predo-minância deassociaçõesdescritivas.

Composição ecenas. Sintaxecomplexaapresentandocaracterísticasvernaculares.

Associação defiguras natu-ralistas e deideogramas.

Conjuntosnaturalistas erealistas.

Conjuntosrealistas comfreqüentestendências àgeneralização eà idealização deformas.

Grafemasesquemáticos eabstratos.Interesseparticular pelosdetalhes.

Predominânciada pintura sobrea gravura.Conjuntosmonocromáti-cos. A policro-mia é rara ehabitualmentelimitada afenômenoslocais e par-ticulares.

Predominânciade pinturas, masas gravuras sãoigualmentenumerosas. Agrande maioriadas pinturas émonocromática.

Tanto pinturas,quanto gravuras.As preferênciasvariam de umazona a outra.Policromialimitada aalgumasregiões.

Predominânciade gravuras,mas as pinturaspodem serigualmentepreferenciaiserm algumaszonas.

Principalmenteem paredesverticais, salvoexceção.

Principalmenteem paredesverticais.

Superfíciesverticais eoblíquas.

Superfícieshorizontais,oblíquas everticais.

Caçadoresarcaicos

Caçadoresevoluídos

Pastores-criadores

Economiacomplexa

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ESTRUTURA ELEMENTARDA ARTE

Essas proposições preliminares sobre a evolução dos caracteres da arte pré-históricanos fornecem um quadro para interrogarmo-nos sobre o conteúdo intelectual e ideológicodesta. Antes de ir mais adiante, é preciso ainda precisar o contexto da criação artística.Alguns elementos comuns a todos os continentes e a todas as épocas nos permitem esta-belecer a estrutura de base da obra de arte.

O CONTEXTO DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA

O espaço, as formas naturais, o ponto escolhido na parede ou na rocha resultavam deuma escolha precisa, quer consciente, quer subconsciente. Então, a matéria-prima sele-cionada, sua forma natural e a escolha do lugar é que constituem a associação primária.

O artista responsável por tal escolha tinha uma identidade. Ele podia ser jovem ouvelho, homem ou mulher, xamã ou profano. É possível que a arte não fosse praticada portodos, sem discriminação. Uma segunda espécie de associação existiria, então, entre otestemunho que nos chegou e o indivíduo que está na sua origem.

O quadro temporal também importa. O signo pode ter sido traçado de dia ou de noite,no inverno ou no verão, e isso num certo momento da vida do autor. Ele está inserido numdeterminado contexto dinâmico, antes, durante ou depois de outras atividades e outraspreocupações do artista: antes ou depois da caça, a comida ou o sono, por exemplo. Aobra pôde ser realizada num momento de solidão ou de socialização, durante uma ceri-mônia ou uma meditação, num ambiente barulhento ou silencioso. Nós temos, então, aqui,um terceiro tipo de associação: entre obra e tempo.

O tipo de signo é variável e as associações se fazem tanto entre signos análogos quantoentre signos diferentes. A sintaxe e a gramática estão necessariamente presentes. Porsintaxe, é preciso entender o sistema das associações e, por gramática, a forma específicado signo. O caráter de um conjunto de arte visual pode então ser definido de acordo comsua gramática e sua sintaxe.

Para os conjuntos do período arcaico, definido na Europa como aurignaciano, sintaxee gramática parecem simples, ainda que não possamos conhecê-las plenamente. Ao lon-go do período magdaleniano europeu, como em outras fases superiores da arte dos caça-dores arcaicos da Tanzânia ou do Oriente Próximo, a sintaxe se revela muito mais com-plexa. Todavia, em todos os casos os signos representados são de três tipos gramatical-mente diferentes: pictogramas, ideogramas e psicogramas. Esses três tipos são recorren-tes em inúmeros conjuntos de arte pré-histórica e etnológica, em todos os continentes.São encontrados mesmo na arte rupestre paleolítica de Valcamonica ou da Escandinávia,bem como de outras regiões rupestres neolíticas e das idades dos metais em vários con-tinentes. Gramática e sintaxe variam segundo os quatro principais tipos de arte – caçado-res arcaicos, caçadores evoluídos, pastores-criadores, populações de economia comple-xa –, mas as três categorias gramaticais dos signos são constantes.

DO SIGNO AO SENTIDO

Pictogramas, ideogramas e psicogramas constituem as três grandes categorias designos.

Os pictogramas ou imagens se dividem em quatro tipos: antropomorfas, zoomorfas,topográficas e objetos. Eles refletem quatro preocupações principais: a identidade dohomem; a significação das características e das especificidades dos diversos modos de

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vida conhecida pelo homem no mundo animal; a significação do território; a capacidadeexclusiva do homem em produzir instrumentos para reforçar suas próprias capacidadesfísicas. Ao lado deles se encontram muitas vezes ideogramas, por vezes intencionalmenteassociados às figuras. Sua significação é objeto de estudos e de discussão entre os pes-quisadores. Diversas teorias foram formuladas a propósito disso. Por outro lado, nãooferece lugar para debates o fato de que essas associações seguem, durante 40.000 anos,a mesma lógica que as primeiras escrituras ideográficas (ilustração 16).

Os ideogramas são signos repetitivos e sintéticos evocados por discos, retângulos,triângulos, flechas ou bastonetes, ou ainda signos em forma de árvore ou arboriformes –“signos fálicos” ou “signos vulvares”. Existem duas dezenas de signos distribuídos mundi-almente. Sua repetição e a maneira pela qual eles estão associados parecem indicar apresença de conceitos induzidos e convencionais. Os ideogramas se dividem em três tiposque, por falta de uma terminologia melhor, são qualificados de “anatômicos”, “numéricos”e “conceituais”. Eles refletem três preocupações de um outro gênero: a função real ousimbólica dos órgãos do corpo humano, como a mão ou os órgãos genitais; a “aritmética”original, a quantificação do real, do hipotético e do imaginário; a materialização das idéias.Uma recente análise estrutural mostrou que esses tipos esgotam a quase totalidade dosgrafemas identificados tanto na arte rupestre quanto na arte mobiliária do mundo inteiro, eisso ao longo de todos os períodos que precedem a aparição da escrita.

Enfim, os psicogramas, sobretudo presentes na arte dos caçadores arcaicos, são sig-nos que visam a transmitir as sensações daquele que os desenha àquele que os observa,as expressões visuais de sensações e de conceitos. O nível é mais abstrato ainda queaquele do símbolo. Se pudesse ser visualizado, o psicograma tomaria a forma de umespanto, uma violenta descarga de energia, exprimindo sensações como o calor ou o frio,

Análise gramatical

Pictogramas

Dois signos marculinos(ramo e flecha)

Ideogramas

Duas figuras de animais(cavalos)

Dois signos femininos(lábios e olho)

Psicogramas

Feixes de linhassinuosas

Animal vertical comideograma masculino

Animal horizontal comideograma feminino

União de umideograma femino

(lábios) e masculino(flecha)

Psicograma de linhassinuosas: exclamação ou

alegria. Associaçãometafórica: o leitor é

convidado a ler a mensagem

16 – A mensagem doscavalos de Altamira(Espanha).Duas figuras animais,uma vertical, outrahorizontal, associadasa dois ideogramas detipo repetitivo com valormasculino (ramo) efeminino (olho). Acimadas figuras, a união deum ideograma masculi-no (flecha) e de umideograma feminino(lábios). Arte de caça-dores arcaicos, cercade 25.000 anos.(Arquivos WARA.)

Análise sintática

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a vida ou a morte, o amor ou o ódio, e mesmo percepções mais sutis ainda. Mesmoque não encontremos sequer dois deles idênticos, alguns dentre eles são recorrentesem pequenas grutas pintadas na Tanzânia central (ilustração 17), em grutas ornadasna região franco-cantábrica (ilustração 18) e nas pinturas dos aborígenes aus-tralianos.

Pensemos, por exemplo, nos signos vermelhos da galeria chamada “dos tectifor-mes” em Altamira, ou ainda no conjunto de signos abstratos descobertos na grutado Castillo, que Henri Breuil chama “grandes signos”. Para quem teve a ocasião derecolher-se por um momento diante deles, no silêncio daqueles estreitos desvãos, o con-ceito de psicograma é perfeitamente claro. Aqui, não se trata de intelectualizações, mas designos que têm o poder de fazer vibrar o coração e o espírito, sem comportar associaçãoespecífica. Eles representam a quintessência de alguma coisa que, ainda que difícil de serdefinida, está profundamente ancorada em nós. Eles formam uma parte viva e reativa donosso subconsciente – e nos revelam o poder criativo da arte que continua a nos falar20.000 anos depois.

TRAÇOS DE UMA LINGUAGEM UNIVERSAL

A leitura de uma pintura reclama a compreensão do sistema metafórico empregado.Para os pintores da Renascença, a pomba era um pássaro, mas quando Fra Angelico arepresenta em Florença, na cena da Anunciação, já não basta reconhecer uma pomba natela para compreender sua significação. Mas, desde que o tema que inspira o artista sejaconhecido, a pomba adquire uma significação simbólica, materializando, naquele caso, oEspírito Santo.

O mesmo vale para a “pomba da paz” de Picasso, que não é uma simples pomba.Com efeito, ao pictograma antropomorfo – o pássaro – vem juntar-se o ideograma – oramo de oliveira –, símbolo da “paz”. Dentro de 20.000 anos, talvez alguém possaperguntar-se o que representa esse signo em forma de arbusto ao lado do bico

17 – Pintura rupestrede Pahi (Tanzânia).Dois personagensfiliformes com um arcode cor castanho-escura, atribuídos acaçadores evoluídos,superpõem-se a umacomposição de caçado-res arcaicos. Duasfiguras de animais comcontorno vermelho finoe delicado são acom-panhadas por signos,entre os quais o signoramado. À direita, umpsicograma com raiosque se desenvolvem apartir do espaço central.A cópia esquemática,que tem uma base dedois metros, é umelemento de um grandepainel de cerca de 4,30metros.(Arquivos WARA.)

18 – O psicograma do cavalo de La Pileta(Espanha).Essa pintura de cor marrom escuro,atribuída a caçadores arcaicos, é umpictograma de cavalo cujo corpo é marcadodez vezes pelo mesmo psicograma: doistraços paralelos que se podem interpretarcomo signos de “lábios”, indicando semdúvida o sexo feminino. Os signos foramexecutados em épocas diferentes comvárias cores: vermelho, marrom e preto. Noentanto, o ideograma continua o mesmo.Na parte superior foi traçado umpsicograma: um retângulo radiado, quepode ter sido juntado por outro artista.Trata-se sem dúvida de uma acumulaçãode grafemas feitos entre 15.000 e 10.000anos a.C.(Arquivos WARA.)

Pictogramas

Retângulo radiado

Ideogramas

Dez vezes “lábios”

Psicogramas

Cavalo

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desse estranho animal cubista representando vagamente uma ave.Outros exemplos podem ser citados, como aquele da águia na época romana. O pás-

saro representado parece, mesmo, ser uma águia, mas o que significaria? Quando o pic-tograma está acompanhando dos quatro ideogramas SPQR, o conteúdo conceitual dafigura se apresenta mais claramente. Mas ainda é preciso conhecer a significação dessasquatro letras, que fazem da águia o emblema do senado e do povo romano.

De maneira análoga, sem dúvida, os pictogramas dos caçadores arcaicos, muitas ve-zes acompanhados de seus ideogramas, eram perfeitamente legíveis por aquele que co-nhecia seu conteúdo conceitual. Hoje em dia, com a tradição direta interrompida, o traba-lho do pré-historiador consiste em recolher elementos e observações que permitam umamelhor compreensão dos conteúdos. Observando algumas dessas composições da artepaleolítica européia – por exemplo, a cena do poço de Lascaux (ilustração 19), particu-larmente o personagem mascarado, o bisão, a zagaia e o “estandarte com pássaro” –,percebe-se que uma enorme bagagem conceitual ainda escapa à nossa compreensão.Mas, mesmo que nos interessemos por imagens aparentemente menos complexas – comoo alto-relevo de Laussel representando uma mulher com um chifre na mão (ilustração 20)–, parece evidente que o pictograma acompanhado de seu ideograma requer uma expli-cação detalhada.

O cérebro humano funciona com a ajuda de mecanismos mentais como as associa-ções, as simbolizações, as abstrações e as sublimações. É assim que o Homo sapiensadquiriu os atributos e os meios de saber, ver, sentir, escutar, sentir emoções. Esses meca-nismos cerebrais evoluíram, especializaram-se e dotaram-se de suas características mo-dernas ao longo de um processo de acidentado e único. Essa unicidade do espírito huma-no rende conta das raízes planetárias de nossa cultura e revela, a despeito das rivalidadesque opõem nossas sociedades hoje em dia, que o denominador comum da humanidade ébem mais poderoso do que suas diferenças.

No estudo das expressões primordiais da arte, nós reconhecemos elementos que con-tinuam de grande atualidade. Quanto mais recuamos no tempo, mais as expressões decriatividade artística se assemelham nos diversos continentes. A linguagem visual dos ca-çadores arcaicos é uma linguagem universal, constituída de sistemas de representação ede associação, de estilos, de elementos metafóricos e alegóricos que indicam um mesmotipo de lógica, uma mesma maneira de expressar-se e de pensar.

Um levantamento dos lugares de pesquisas no campo da arte pré-histórica mundial,realizado em 1983-1984 pela Unesco, permitiu reunir uma importante documentaçãosobre a arte rupestre. Em seguida, foi estabelecido um banco de dados reunindo mais de300 mil diapositivos originários de 160 países. Esse projeto, batizado WARA (World

19 – A concepçãoassociativamagdaleniana.Detalhe da composiçãodo poço de Lascaux(França). Um bisãopreste a carregar –sobre o qual se notauma zagaia que não otrespassa – diante deuma figura itifálica comcabeça de pássaro ecorpo de homem; aolado, uma vara ou“standard” encimadapor um pássaro. Ao pédo personagem, vê-seum signo em“bastonete”, indicandoprovavelmente o tipo derelação entre as duasentidades representa-das por aquelesideogramas. À esquer-da, um ideogramanumérico composto deseis pontos colocadosob a cauda de umrinoceronte. Qual amensagem que quertransmitir essa compo-sição? Magdaleniano,paleolítico superior. Artede caçadores arcaicos.(Segundo E. Anati, ArquivosWARA.)

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Archives of Rock Art),atualmente sustentado pelaUnesco e pelo Conselho In-ternacional de Filosofia(CIPH), permite realizarpesquisas comparativas emescala mundial. Uma análiseconduzida nesse quadro re-vela que mais de 80% da arterupestre dos caçadores ar-caicos, em todos os conti-nentes, estão representadospor suportes verticais; quemais de 50% da arte rupes-tre mundial dos povos deeconomia complexa sãorealizados em suportes oblí-quos, sobre os quais, emmuitos casos, pode-se an-dar, e que mais de 80% daspinturas rupestres dos caça-dores arcaicos utilizam co-res na gama do vermelho edo castanho. Por outrolado, o emprego preferen-cial do branco e do negro émanifesto entre os povos de economia complexa, também no mundo inteiro.

A arte dos primeiros homens revela, portanto, não somente o uso de técnicas e coresidênticas, uma mesma temática bastante limitada, um mesmo tipo de sistema associativo,mas ainda uma mesma lógica de base e uma gama de símbolos ou de ideogramas, dentreos quais muitos têm características universais. Enfim, não está excluída que a mesma hipó-tese possa ser ampliada para a música e a dança. Os sons e os movimentos, como asformas, criam, ainda hoje, associações imediatas, intensas, regeneradoras. As seqüênciase as cadências de sons estão, sem dúvida, na origem de uma linguagem musical primordial(ilustrações 21 a 26). Algumas regras universais ainda perduram em parte. Basta conside-rar a difusão global de certos instrumentos: o zunidor, a flauta, o megafone, os caracóis...Encontramos esses instrumentos entre quase todas as tribos dos cinco continentes. Osistema universal da música, com o duplo jogo do ritmo e da melodia, também nos ofere-ce a idéia de uma raiz comum da arte, antes da diáspora do Homo sapiens, portanto noseu núcleo de origem.

20 – Alto-relevo deLausel (França).Uma mulher maduratendo na mão um chifreno qual estão gravadostreze entalhes, feitoscom três instrumentosdiferentes e que estãoreunidos em grupos de6, 4 e 3. Na coxa direitada mulher vê-se umbastonete está gravado.Embaixo do desenho, àesquerda, vê-se queuma parte do relevo foiapagada ou estragadano lugar onde pareceter estado uma figurade animal colocadaverticalmente. Arte decaçadores arcaicos.(Segundo E. Anati, 1989,Arquivos WARA.)

21 – A música. Associ-ação de figuras e desímbolos destacada devárias superposiçõesque a cobriam. Caver-na de Volpe (França).Um personagem-bisãotoca o arco, instrumen-to musical ainda emuso atualmente entrealgumas populaçõesde caçadores. Nocentro, uma figurazoomorfa, metadecervo, metade bisão, éprecedida de uma renae associada a signos,entre os quais umafigura feminina. (Segundo

H. Breuil e H. Begoën, 1958.)

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22 – Fragmentos de “flautas” do paleolítico superior naFrança.Ossos de águia perfurados com motivos rítmicos. Trata-seprovavelmente de partes de instrumentos de música existen-tes ainda hoje entre algumas populações da Ásia Central, daNova Guiné e da Austrália, fabricadas a partir da mesma ave.Trata-se de um instrumento de sopro do qual se tiram sonsagudos. Na Nova Guiné, exemplares recentes apresentamuma decoração semelhante. Segundo os aborígenes, osmotivos representam a música produzida pelos instrumentos.Período magdaleniano, paleolítico superior.Le Placard, Charente, França.(Desenhos M. Rangoni Machiavelli, 1991, Arquivos WARA, LB, 88. SegundoAnati, 1989, p. 38)

23 – Zunidor em chifre de rena da época magdaleniana ,Lalinde (França).Os motivos gravados na superfície apresentam inúme-ras analogias com aqueles que decoram os “churingas”em madeira dos aborígenes australianos.(Segundo E. Anati, 1989a, p. 125, Arquivos WARA.)

25 – Pintura de um tocador deinstrumento de sopro, arte decaçadores evoluídos. Pahi(Tanzânia).A música é representada por umasérie de pequenos pontos que saemdo instrumento. O fato de que amúsica vá para baixo poderia indicaro tipo de música.(Cópia esquemática de M. Leakey, ArquivosWARA.)

24 – A linguagem visual das populações de economiacomplexa. Um homem e três mulheres cantam, tocaminstrumentos musicais ou fazem barulho e sons expres-sos por ideogramas traçados acima de suas cabeças.Seradina, Valcamonica (Itália). O conjunto forma umacena típica de uma população de economia complexa daidade do ferro (1o milênio a.C.). A associação depictogramas e de ideogramas aprece muitas vezes nafiguração desses povos.(Segundo E. Anati, 1989 a, p. 202, Arquivos WARA.)

26 –As artes dos povos no começo da produção dealimentos.Gravura rupestre de Toro Muerto (Peru).Cena de dança e música em que os ritmos e os sons sãorepresentados graficamente sob a forma de pontos e linhasentre dois dançarinos.(Cópia esquemática de M. Leakey, Arquivos WARA.)

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ANÁLISE GRAMATICALDA ARTE PRÉ-HISTÓRICA

A REPRESENTAÇÃO DA ARTE PRÉ-HISTÓRICA

Na arte dos caçadores evoluídos, a temática continua limitada. No mundo inteiro, amesma série restrita de temas se repete. Trata-se geralmente de uma cena de caça, deculto, de dança ou da representação de uma atividade cotidiana. Entre os caçadoresarcaicos, afora algumas raras exceções, não parece que tenham sido representadas ver-dadeiras cenas descritivas de episódios, nem na Europa, nem na Tanzânia, nem em outrosconjuntos de arte rupestre. O que aparece, sobretudo, são associações e composiçõesao conteúdo simbólico e metafórico.

A sintaxe da arte visual é a ilustração de um mecanismo de lógica associativa queestabelece ligações de causa e efeito e critérios de validação a fim de explicar os fenôme-nos que intervêm no mundo ambiente e na maneira de apreendê-lo. A presença ou não dacena e de associações simbólicas reflete mecanismos cognitivos díspares e implica tiposdistintos de lógica associativa. Na evolução da arte, as associações simbólicas antecipamamplamente o uso da cena.

Entre os caçadores arcaicos, a localização de um animal no espaço em meio a outrasfiguras associadas não reflete a realidade naturalista, como poderia pretender nossa ima-ginação de hoje; as figurações animais se situam no espaço de paredes, muitas vezes demaneira repetitiva, segundo posicionamentos que tinham certamente um sentido em seuconjunto. mas não remetem ao tipo de composição e de visão próprias à nossa culturacontemporânea. Assim, o conceito de “base” ou de plano de pateadura parece poucopresente: raras exceções à parte, os grandes animais são representados em paredes degrutas ou rochas, tanto na Europa quanto na Tanzânia e em outros lugares, como selevitassem ou estivessem suspensos no ar. Muitas vezes nos perguntamos se as figurasrepresentariam os próprios animais ou seu “espírito”, ou, ainda, se elas se revestiriam deuma significação metafórica mais profunda.

A associação entre animais e ideogramas apresenta analogias específicas entre todosos povos caçadores arcaicos produtores de arte rupestre. A figura animal intervém naqualidade de motivo, enquanto que os ideogramas –que Henri Breuil e André Leroi-Gourhan chamam“símbolos” – propõem elementos de reflexão. En-contramos, entre os caçadores evoluídos, elementoscênicos que atestam uma mentalidade totalmente di-ferente. Para o nosso espírito contemporâneo, suasassociações são mais narrativas, mais realistas, me-nos “abstratas”. Em nossa lógica, o abstrato inter-vém depois do realista: esse é o processo evolutivode inúmeros pintores do século XX. No entanto, naarte pré-histórica, o abstrato precede o realista. Atransição entre as duas formas é, às vezes, imprevisí-vel: num dado momento, a prática costumeira é aban-donada em proveito de um novo gênero. Inversa-mente, parece ter havido, às vezes, em outros con-textos, uma evolução progressiva: as fases de transi-ção são então identificáveis. Pode-se entrever, nesseprocesso, as mudanças que afetam o mecanismocognitivo e o raciocínio conceitual (ilustração 27).

27 – Origem da cena .Gruta de Addaura,Sicília (Itália).Paleolítico final. Cenacom personagensmascaradas em atitudede dança, cercandodois personagens quese exibem ou sobre osquais, pelo menos, seconcentram as aten-ções. É, talvez, a maisantiga cena, no sentidopróprio do termo, queconhecemos, e tam-bém a mais antigarepresentação em queo homem apareceenquanto verdadeiroprotagonista. Esta cenase superpõe a umafase precedente dedesenhos em quepredomina a figuraanimal; não existemimagens antropomor-fas e a associação dasfiguras não representauma cena. Fase detransição entre caçado-res arcaicos e caçado-res evoluídos.(Cópia esquemática de E.Anati, Arquivos WARA.)

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DE UM PENSAMENTO ANALÍTICO A UM PENSAMENTO DESCRITIVO

Os signos absolutos compreendendo valores ideográficos cedem lugar a cenas descri-tivas. As associações e as seqüências com valor conceitual são substituídas por cenascom valor contingente e vernacular. Uma tal transição parece refletir a passagem de umpensamento essencialmente analítico para um pensamento descritivo. A análise temáticafaz aparecer tipologias de figuras, de signos, de grafemas que constituem o “vocabulário”da arte. Eles intervêm como que palavras numa frase composta do agrupamento ou daseqüência dos grafemas. É aqui que se encontra a chave de leitura de uma ideografiarevelando caracteres universais, ou de uma série de associações constantes que ultrapas-sam ou precedem limites étnicos e lingüisticos. Pode-se, então, supor a presença de mo-delos arquetípicos de lógica, base essencial para decifrar os códigos não apenas da artepré-histórica, mas também dos elementos fundamentais da dinâmica cognitiva da nossaespécie (ilustrações 28 a 30).

Entre os ideogramas arquetípicos existem aqueles bem simples, alguns universalmenteespalhados em todas as épocas: o círculo, o ponto, os dois pontos, o círculo com o pontocentral, a linha e o ponto, os lábios ou duas linhas paralelas, a cruz, o bastonete, a flecha,a acha, o propulsor, o olho, o signo em V, o triângulo, o quadrado, o signo fálico, o signovulvar, os cinco dedos de uma mão, a série de linhas paralelas, a série de pontos, o par decírculos. Nesse primeiro grupo já temos signos suficientes para constituir um “alfabeto”.Vários dentre eles, utilizados durante milênios sob forma de ideogramas na arte pré-histó-rica, farão parte das primeiras escritas ideográficas, antes de serem retomados comoemblemas de conceitos religiosos, filosóficos ou ideológicos em diferentes regiões domundo. Esses signos nos fornecem igualmente informações sobre o contexto social eemocional no qual se inscreve toda criação artística.

28 – Gravura em dáliada La Ferrassie.Dordonha (França). Artede caçadores arcaicos(paleolítico superior,cerca de 27.000 –30.000 anos). Perfilesquematizado de umquadrúpede acompa-nhado de ideogramas.O modo de associaçãodos grafemas lembraaquele das representa-ções encontradas entreantípodas, comoaquela da imagemseguinte.(Arquivos WARA.)

Pictogramas

Seqüência de pontos

Ideogramas

Esquema de umavulva

Esquema dequadrúpede

Associação depontos e linhas

Conjugação de umponto e deuma linha

Junção ponto-linha

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29 – Gravura rupestre decaçadores arcaicos,região de Murray River(Austrália meridional).Perfil esquematizado deum quadrúpede acompa-nhado de um certonúmero de ideogramas.Encontram-se aí, ainda,seqüências de pontos,linhas, grupos de linhas eo ideograma ponto-linhaque se repete váriasvezes. Essa associaçãode grafemas denota umasintaxe repetitiva quecaracteriza um certo tipode horizonte cognitivo nomundo inteiro.(Cópia esquematizada de E. Anati,

Arquivos WARA.)

30 Gravura rupestre dovale do rio Lena(Sibéria).Fase tardia dos caça-dores arcaicos (cercade 8.000 mil anos a.C.).Perfil esquematizadode um quadrúpedeassociado aideogramas. Um signovulvar traçado perto dopênis do animal.Notam-se associaçõesde linhas e de pontos,incluída a presença deum motivo em zigueza-gue. Num estilodiferente, a estruturaassociativa mostra apersistência no tempode certas tipologiasarcaicas.(Arquivos WARA.)

Pictogramas

Seqüência de pontos

Ideogramas

Esquema de umavulva

Esquema dequadrúpede

Associação depontos e linhas

Junção ponto-linha

Pictogramas

Ziguezague

Ideogramas

Esquema vulvarEsquema dequadrúpede

Associação depontos e linhas

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CONTEXTOS SOCIAISE EMOTIVOS DA

CRIATIVIDADE ARTÍSTICAO contexto social e emocional das mais antigas manifestações artísticas continua um

enigma. Nós podemos pelo menos fazer suposições quanto ao estado de alma do artistae à atmosfera na qual ele produziu obras magníficas. Com efeito, as comparações etno-gráficas entre povos caçadores de ontem e de hoje – na medida em que algumas popula-ções ainda vivem na idade da pedra – tornam possíveis algumas analogias. A observaçãode uma tribo australiana, de um lado, e de esquimós do norte canadense, de outro, permi-te ilustrar a maneira pela qual a criação artística se inscreve num contexto social e emoci-onal particular.

O EXEMPLO DE UMA TRIBO AUSTRALIANA

Algumas tribos australianas que mantiveram uma economia de caçadores-coletoresrealizam pinturas rupestres em lugares sagrados e em alguns momentos precisos. Cria-seuma atmosfera particular quando de encontros entre diferentes clãs de uma mesma triboque vive separadamente durante o resto do ano. Nessas ocasiões acontecem ritos deiniciação e casamentos arranjados, problemas de interesse comum são discutidos e osterritórios de caça redistribuídos.

Ayers Rock, a famosa montanha sagrada da tribo aranta, é um dos lugares de encontromais famosos. Hill Cave (a “gruta da Colina”), gruta pintada no coração da Austráliacentral nos flancos de Cave Hill (a “colina da Gruta”), é outro lugar sagrado, da tribowangara. As datas são estabelecidas vários meses de antecedência com base no ciclolunar. Ninguém parecer ter dificuldade de lembrar-se disso.

No dia aprazado, chegam os clãs, grupos de oito ou dez pessoas em fila indiana. Ascrianças brincam correndo. Alguns homens, os iniciados, portam bandas feitas de cabelosem torno da cabeça. A maioria usa um cinturão vegetal, que às vezes é a única vestimenta.Ele é usado para pendurar pequenos animais caçados destinados ao jantar. Nestes últimosanos, os iniciados também penduram dólares oferecidos por colonos em troca de pequenostrabalhos. As mulheres carregam cestos de casca de árvore na cabeça. Os mais idososenvolvem a cintura com uma pele de animal cuja principal função é de evitar sujar-sequando sentam-se na terra. As mães carregam as crianças mais jovens nos ombros. Oshomens seguram lanças usadas na caça ou como instrumentos para espicaçar e fazer sairas presas de suas tocas.

Cada grupo escolhe um lugar de bivaque, senta-se e acende o fogo com uma tocha outição. Lagartos, coelhos, serpentes, iguanas, mortos durante o caminho, são postos paraassar no braseiro. Outros grupos chegam. As crianças estão excitadas, pulam e gritam emtorno dos pais, mas não se juntam entre elas. Só depois de algumas horas é que elas vãobrincar juntas.

Quando os clãs estão reunidos, os primeiros ritmos de música se fazem ouvir e a festacomeça. Durante vários dias, os participantes aprendem a se conhecer decorando mutu-amente seus corpos e desenhando na areia. A elaboração e a comida em comum contri-buem igualmente para uma melhor familiarização. Os grupos cantam, tocam com instru-mentos em madeira, em fibras, em caracóis coletados usados sem sofrerem transformação.Alguns grupos dançam, e todos os indivíduos presentes são juntados pelo ritmo, a cadên-cia, os movimentos. Esses encontros são ocasião de renovar a memória coletiva e astradições, de reafirmar a identidade social dos clãs.

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O tratamento da gruta sagrada reveste-se de um caráter particular. Antigas pinturassão renovadas e novas obras são feitas por dois ou três adultos iniciados, enquanto que osgrupos os observam de longe e entoam nênias. Os cantos e as pinturas visam garantir apresença dos espíritos nos ritos de iniciação que se preparam e que permitirão introduzirum grupo de jovens na sociedade dos adultos. As vozes e a música, bem como a dança,reproduzem sons e movimentos da natureza – aqueles dos animais, da vegetação ao ven-to, das nuvens – para chamar os espíritos.

Dentro de 20.000 anos, o que restará disso tudo? Essa exuberância criativa, essaexpressão de si, os gestos dos dançarinos, a presença dos homens e dos espíritos, deixampouco traço. À parte os traços dos lares e alguns estilhaços de calcedônia que ficam nolugar do bivaque, talvez os únicos testemunhos serão os traços das pinturas na gruta,desdeque realizadas com cores resistentes. Se o arqueólogo que as estuda não conheceo contexto social e humano no qual aconteceu sua feitura, ele só pode explicar sumaria-mente essas pinturas e deverá contentar-se com suposições que preencham lacunas.

O EXEMPLO DOS ESQUIMÓS DO GRANDE NORTE CANADENSE

A arte dos esquimós do Grande Norte canadense, outro povo de caçadores que semanteve no nível tecnológico da idade da pedra até sua integração ao mundo europeu,inscreve-se num contexto bem diferente (ilustração 31).

Durante a longa noite ártica, enquanto que a temperatura desce até 60o abaixo de zero,o caçador repousa ao calor do iglu. A gordura de foca que queima na lamparina de pedraclareia a cena com uma luz amarelada.Durante meses, o caçador trabalha o osso, omarfim ou a pedra, moldando sem descansoestatuetas e objetos decorados que lembramalgumas realizações do paleolítico superioreuropeu ou siberiano.

Uma ou duas mulheres estão ali, cosendopeles, rodeadas pelas crianças que brincamperto do fogão no qual são cozidos pedaçosde carne ou de peixe. Todos escutam contose lendas contadas pelo caçador, seguem oandamento de sua obra, que às vezes é acom-panhada de canções.

Vimos que as pinturas rupestres dos abo-rígenes australianos eram o resultado de umaação coletiva, que alguns indivíduos cumpriamcom a participação – ativa ou passiva – detodos os clãs que formam a tribo. Realizadanum contexto de cerimônias, por ocasião deencontros, a arte visual se inscrevia num con-junto bem mais vasto: espetáculos de dança emusicais, ritos de passagem, reuniões de ini-ciados, tratativas a propósito de casamentose de distribuição de territórios de caça, o todonuma coreografia que se poderia qualificar demonumental.

No caso dos esquimós, o objeto de arte éa produção individual de um adulto. A famílianuclear constitui o único público, o alvo prin-cipal parece ser aquele de transmitir a memó-

31 – Arte esquimó.As máscaras dosesquimós são portado-ras da memória coletivae da história do grupo.

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ria coletiva, os mitos, e a história dos ancestrais através da linguagem visual. A música, sese pode dizer assim, é um concerto de ruídos naturais. Às vezes, o canto do caçadorharmoniza-se com o fundo musical. O arqueólogo que, dentro de 20.000 anos, talvezvenha a descobrir alguns instrumentos em galhada de rena e uma estatueta em pedra pertode um lar, numa configuração muito próxima daquela dos sítios paleolíticos, terá à dispo-sição poucos elementos para analisar o contexto humano e as motivações conceituais dasobras.

Assim, se muitas vezes é possível identificar o autor da criação artística, os dois exem-plos escolhidos mostram que a arte dos povos caçadores aparece em contextos concei-tuais e sociais diferentes uns dos outros e dificilmente generalizáveis.

Eles ilustram igualmente a maneira pela qual uma obra nasce, emerge na consciência etoma sentido para si ou para o outro (os clãs). Existe, com efeito, uma diferença maiorentre o reconhecimento de uma marca e a ação intencional de produzir uma marca paradeixar uma mensagem. Neste último caso, trata-se de um signo elaborado pelo homem,por vezes se revestindo de uma identidade religiosa ou ideológica.

LUGARES DE ARTEE LUGARES DE CULTO

LUGARES DE CRIATIVIDADE

Os sítios escolhidos pelo homem para executar obras de arte – grutas, abrigos ousuperfícies rochosas – revelam, muitas vezes, uma topografia conceitual em que a partehistoriada se encontra ao mesmo tempo separada e ligada aos espaços que a cercam.Nas grutas escuras, bem como nos sítios de arte rupestre ao ar livre, o acesso à zonaornamentada marca a transição entre dois “mundos”. Ainda hoje, entre grupos humanosprodutores de arte rupestre como os nyau do Malawi, ou os aborígenes da Terra deArnhem, a área historiada é olhada como cerimonial e o acesso a ela é reservado. Ela àsvezes é aberta apenas aos iniciados, a um dos dois sexos ou em ocasiões determinadas.

É provável que esses lugares em que o homem veio, durante séculos e milênios, disporsuas mensagens tenham preenchido funções “sociais” e “mágicas”. O homem buscava aí acomunhão com outros seres humanos ou com espíritos, com o mundo imaginário ou com

32 – Har Karhom(Israel). Os dois cimosda montanha, vistos dosantuário paleolíticoHK/86B, assemelham-se aos seios de umamulher.(Foto E. Anati, Arquivos

WARA.)

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as forças da natureza. As grutas e os abrigos ornamentados, bem como os sítios de arterupestre ao ar livre, geralmente fazem parte dessa categoria. Entre algumas populações daAustrália, da Ásia ou da África, existem santuários em que nada foi tocado pelo homem,sagrados porque habitados pelo espírito dos ancestrais, aos quais os iniciados se dirigempara dialogar com eles.

Algumas dessas características são para o homem o indício das energias que elascontêm ou que delas emanam. Elas se revelam através das cores e das formas, considera-das como mensagens que, uma vez interpretadas, trazem ensinamentos sobre o equilíbriodo cosmo, sobre a vontade e os caprichos das forças da natureza. Muitas vezes, esseslugares são secretos ou escondidos, e as passagens que conduzem a eles são de acessodifícil. São então definidos como “santuários naturais”, diferentemente dos “santuáriosarranjados”, em que as formas e as estruturas são, pelo menos parcialmente, obra dohomem.

DOIS EXEMPLOS DE SANTUÁRIOS ARRUMADOS:HAR KARKOM E EL JUYO

O mais antigo “santuário arranjado” conhecido, datado de 40.000 anos, foi descober-to na montanha de Har Karkom, no deserto israelense de Neguev, ao norte da penínsulado Sinai, diante de um imenso panorama a leste. Do outro lado, a oeste, os picos damontanha se erguem para o céu como dois seios. De mais perto, nota-se uma pequenagruta no extremo de um deles, enquanto que o outro apresenta uma forma natural tipica-mente fálica. Parece, então, que a paisagem do sítio escolhido contém os princípios mas-culino e feminino, bem como o de complementaridade entre terra e céu, montanha eplanície, lugar de habitação e de caça. Um tal escolha não foi fortuita, sem dúvida, eparece que foi a própria paisagem, com suas formas e sua topografia, que determinou alocalização do santuário. Encontra-se ali o mesmo tipo de associação que aquele quecaracteriza os agrupamentos de signos e de figuras na arte dos caçadores arcaicos.

Uma quarentena de grandes nódulos de sílex, dentre os quais alguns com mais de ummetro de altura, apresentam formas naturais lembrando, para alguns, o busto humano,principalmente feminino, e, para outros, lembrando animais. Chegando nesse sítio, espan-ta-se com a energia visual que deles emana: os monólitos sombrios, concentrados numpequeno vale branco, à beira de um precipício, cercados por uma paisagem lunar, criamuma arquitetura de conjunto de cortar o fôlego (ilustrações 32 a 34).

Um outro santuário paleolítico, poste-rior em mais de 15.000 anos àquele deHar Karkom, foi localizado no interior dagruta El Juyo, na área cantábrica espanho-la. Os descobridores, L. Freeman e R.Klein (1983) descrevem o que eles defi-nem como um templo, remontando a cer-ca de 14.000 anos. Eles encontraram ali,numa sala, um monte de pedras batizado“altar”, e uma pedra apresentando umaface antropomorfa e uma face zoomorfa.Essa configuração deve desempenhadoum papel particular. A simbiose homem-animal representava uma sintaxe concei-tual e evocava, talvez, uma história, ummito ou uma referência simbólica.

Esse era um lugar de encontro e de reu-nião, com a pedra de forma natural tendo

33 – Santuáriopaleolítico, Har Karkom(HK/86B, Israel).O santuário estásituado a leste, à bordado precipício, com odeserto Paran emfrente.(Foto E. Anati, Arquivos

WARA.)

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sido recolhida e disposta pelo homem. Ela foi colocada em cima de um punhado depedras, enquanto que em Har Karkom os ortostatos, que são maiores, foram dispostosverticalmente.

Outros sítios do paleolítico foram definidos como santuários, mas seus estado de con-servação deixa lugar a dúvidas quando à exatidão dessa hipótese. Em Gonnesdorf, naAlemanha, no vale do Reno, G. Bosinski (1970) descobriu plaquetas, conservadas emfossos, representando silhuetas femininas e animais gravadas, em parte quebradas e orde-nadas, de tal maneira que parecem inscrever-se num comportamento ritual.

Aqui também existe uma interação entre figuras antropomorfas e figuras zoomorfas.Por outro lado, os simulacros não estavam expostos permanentemente, como nos doiscasos precedentes, mas tinham sido enterrados. Que papel representariam eles? Em di-versas grutas, algumas delas decoradas com arte parietal, níveis arqueológicos com pla-quetas e figurinhas antropomorfas e zoomorfas foram postos à luz, mas sem revelar qual-quer estrutura suscetível de colocá-las em relação.

34 – Santuáriopaleolítico, Har Karkom(HK/86B – Israel).Grandes nódulos desílex com formasnaturalmenteantropomorfas foramcompletados pela mãodo homem comgravuras que indicamolhos e narinas. Maisde quarenta ciposdesse tipo, com ummetro ou mais dealtura, estão concentra-dos numa área restrita.(Foto de E. Anati, ArquivosWARA.)

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UMA CONCEITUALIDADE ARTÍSTICA DUALISTA

Em Har Karkom e em outros santuários, algumas preocupações se expressam demaneira recorrente: a exploração e a compreensão da natureza, o significado das formasnaturais, as relações homem-animal e as relações homem-meio. A visão dualista, presentena concepção religiosa e filosófica dos caçadores arcaicos, aparece igualmente em muitasoutras manifestações da criatividade artística.

Annette Laming-Emperaire e André Leroi-Gourhan já tinham evidenciado alguns as-pectos dessa concepção (1962 e 1965). Eles mostraram que os artistas paleolíticos pro-vavelmente atribuíam um valor masculino e um valor feminino aos diversos animais, obje-tos e símbolos que eles representavam. Ainda que essa teoria tenha sido muito criticada,os fenômenos observados confirmam, hoje em dia, a determinação sexual enquanto modelode representação dualista, que se exprime, aliás, em múltiplas formas.

Uma análise comparada dessas manifestações de arte visual permite formular umateoria geral quanto a uma das estruturas conceituais fundamentais do Homo sapiens fóssil.Na concepção dualista, toda coisa tem sua contrapartida, e a completude é obtida pelaunião de dois elementos complementares que encontram seu protótipo no princípio femi-nino e no princípio masculino. A metade feminina tem necessidade da metade masculinapara funcionar biologicamente e para ser ela própria, e vice-versa: o homem e a mulher, omundo animal e o mundo humano, o céu e a terra, a montanha e a planície, a luz e astrevas, o dia e a noite, a gruta escura e o mundo exterior.

Nessa perspectiva, o santuário paleolítico de Har Karkom toma todos esses sentidos.À beira de um precipício, encontramo-nos suspensos entre o céu e a terra. O santuárioestá num vale que oferece dois panoramas: de um lado, os cimos das montanhas; deoutro, as grandes planícies. Os dois cimos, um abrigando uma gruta, outro apresentandouma forma fálica, exprimem elementos binários do feminino e do masculino. A concepçãodualista parece expressar-se em vários níveis.

Pode-se, igualmente, avançar a hipó-tese segundo a qual aquele homem caça-dor criou para si uma imagem do universoinfluenciada por sua relação funcional como mundo animal. O elemento fundamentalda economia dos caçadores é a relaçãobinária entre homem e animal. A magníficaarte das grutas-santuários exalta essa ex-pressão conceitual e essa espiritualidade.O encontro do bisão e do cavalo nas pin-turas parietais, como também na prada-ria, contém uma mensagem de profundarealidade metafórica simbolizando o uni-verso.

De sua realidade cotidiana, o homemtira um enriquecimento de seu intelecto. Aluta contra os grandes animais – mamu-tes, bisões, cavalos, touros, rinocerontes– que ele representa é exaltada e magnifi-cada. A concepção cosmológica, associ-ada a uma mitologia plena de imaginaçãoe de inventividade, inspirou obras de arteexcepcionais. A partir destas, que seriamo efeito, a arqueologia busca, hoje em dia,remontar a suas causas (ilustração 35).

35 – Símbolos paramacho e fêmea.Gravuras rupestresneolíticas do Gobustão.O bastonete é um signomasculino; as duaslinhas paralelas, oulábios, um signofeminino.(Segundo E. Anati, 1994,

Arquivos WARA.)

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O evidenciamento dessas significações suscita algumas reflexões. De fato, a concep-ção dualista dos povos caçadores perdura nos modos de pensamento. Ela faz parte denossa “lógica” e, a milhares de anos de distância, pode-se apreender como “verdade” osprincípios de conceitualidade paleolítica. Para nós, é “evidente” que a morte é o comple-mento da vida, que o homem é complemento da mulher e vice-versa, ou ainda que a noiteé o complemento do dia.

O que nos transmite a linguagem visual das origens é um mundo conceitual refletindouma forma mentis específica. Especulações intelectuais, crenças e mitos ali se desvelam;hábitos e ritos que marcaram a existência do homem durante milênios ali se escondem. Apermanência das associações através de centenas de gerações permite deduzir a existênciade uma fé absoluta e total nessa visão cosmológica, “fé” que, há 40.000 anos, começou aanimar a humanidade e estendeu-se progressivamente, até há 10.000 anos, mantendo-se,em alguns lugares da terra, entre os povos caçadores recentes e em alguns aspectos denossa bagagem cultural ocidental. A concepção dualista dos povos caçadores se manifestaigualmente através de uma visão verdadeiramente filosófica da existência. A vida e a morte,a relação homem-animal, mas também a relação homem-mulher, são temas presentes naarte parietal e testemunhos de uma conceitualidade pré-histórica.

ARTE E FILOSOFIAComo nos santuários de Har Karkom e de El Juyo, o conceito binário aparece na

parte parietal e na arte rupestre através de inúmeras figuras de animais associadas. Assepulturas, nas quais o corpo está acompanhado de ocra vermelha e outros objetos,testemunham a crença, na conceitualidade pré-histórica, numa complementaridade vida emorte.

A VIDA E A MORTE

As obras de arte, as sepulturas, os lugares de culto, o vestígios de habitações e debivaque, mas também inúmeras ferramentas de uso cotidiano, parecem indicar que, apartir do momento em que o homem desenvolveu suas capacidades de abstração, desíntese e de associação, suas duas preocupações principais foram a vida e a morte. Sema vida, a morte não existe e, sem a morte, a vida não existe. A concepção dualista coloca,primeiro, o postulado da complementaridade da vida e da morte.

As figurações vulvares (símbolos de vida) no corpo de figuras de presas animais (ima-gens de animais mortos e consumidos) em Tito Butillo e em outras cavernas da áreafranco-cantábrica (Beltran, 1988) são emblemáticas dessa representação. Se a morte deum semelhante constitui uma experiência traumatizante para alguns animais, o culto dosmortos parece ter sido inventado pelo homem de Neandertal, primo do Homo sapiens.Em seguida, foi desenvolvido de maneira bem mais elaborado pelo Homo sapiens.

A RELAÇÃO HOMEM-ANIMAL

Uma relação existencial entre o homem e o animal também se instaurou entre os povoscaçadores porque é essencialmente da caça que dependia sua sobrevivência. Através dapartilha da comida, a simbiose dos espíritos, a completude tornava-se possível e se con-cretizava pela integração do espírito e da força do animal no corpo do homem. Essaassociação binária entre corpo e alma é uma outra expressão da concepção dualista.Hoje em dia, ainda, alguns povos caçadores conservam crenças semelhantes, muitas ve-zes impropriamente definidas como “animistas” (Mountford, 1956). Inúmeras representa-ções antropomorfas com máscaras de animais, ou ainda seres híbridos, antropo-zoomor-

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fos, observados na arte dos caçadores arcaicos, atestam de maneira espetacular essabusca de simbiose entre dois temas complementares. Em algumas religiões contemporâ-neas, perduraram até hoje concepções bastante próximas, notadamente nas comidasrituais ou simbólicas.

AS RELAÇÕES HOMEM-MULHER

A relação homem-mulher, assegurando a satisfação das exigências biológicas naturaisalém da continuidade da espécie, constitui um outro elemento fundamental da sobrevivên-cia. O ato de comunhão sexual desempenha papel igualmente revitalizador e fortificanteque contribui para a estabilidade social, para um sentimento de harmonia e de conforto.Nós não sabemos até que ponto esses povos tinham consciência da paternidade. Aindahoje em dia, algumas tribos não fazem uma ligação entre união sexual e gravidez.

A exigência biológica do acasalamento não é, evidentemente, uma invenção do ho-mem, mas a associação dualista homem-mulher continua um elemento fundamental de suaconcepção dual (ilustra-ções 36 a 38).

Diante de exemplos tãoevidentes da união doscomplementários como fa-tor de completude e de uni-dade, não é difícilcompreender como a con-cepção dualista pôde de-senvolver-se estendendo-se a outros aspectos dascrenças e da visão do uni-verso. Uma conceitualida-de semelhante ainda estápresente entre algumas po-pulações australianas estu-dadas por Charles Moun-tford nos anos 1950.

A arte paleolítica parece refletir esse dualismonas formas de uma desconcertante complexidade.Nas grutas decoradas da França e da Espanha, porexemplo, figuras de cavalo e de bisão são associa-das. Segundo André Leroi-Gourhan, o cavalo di-ante do bisão expressaria essa concepção de duali-dade. Para os clãs de caçadores, o cavalo, ágil, vivoe rápido, seria um símbolo masculino, e o bisão, bem nutrido, lento e reflexivo, um símbo-lo feminino. Na Tanzânia, papéis análogos são assimilados à girafa e ao elefante. Assim,pode ser entrevisto um paralelo conceitual entre girafa e cavalo, de um lado, e elefante ebisão, de outro; os primeiros, ágeis e rápidos; os segundos, lentos e pesados.

Na visão cosmogônica que se perpetuou depois, nas filosofias e nas concepções tri-bais recentes, a terra e o céu, o sol e a lua são considerados casais, formados por duasmetades. Inúmeros elementos da representação conceitual paleolítica não apenasperduraram até hoje entre alguns povos caçadores, mas ainda aparecem, de maneiralatente, em nosso inconsciente. O gênero masculino ou feminino atribuído a alguns ele-mentos da lógica, que a nossa época considera como neutros, transmitiu-se nas línguasmodernas, como o italiano ou o francês, e parece constituir o resíduo de uma concepçãoanimista. Assim, a lua é feminina e o sol, masculino; o dia é masculino e a noite, feminina;

36 – Junção repetitivade pictogramas ecomposição deideogramas em trêsfragmentos de objetosem osso, provenientesde três zonas diferentesda região franco-cantábrica. Do alto parabaixo: Mas d’Azil, Ariège(França); Lorthet, AltosPireneus, (França); ElPendo, Santander(Espanha), períodomagdaleniano,paleolítico superior.Encontra-se a associa-ção de um nariz deanimal carnívoro e deum cervo visto desemiperfil, sendo onariz escondido. Ocarnívoro é marcadocom um ideograma em“bastonete” (ideogramade ação masculina?),enquanto que o corpodo cervo está gravadocom pequenos traçosreunidos dois a dois,chamados “lábios”(ideograma feminino?).Em cada dois de trêscasos nota-se apresença, entre os doispictogramas, deideogramas numéricos.Outros ideogramas sejuntam a cada um dostrês conjuntos.(Segundo E. Anati, 1989,Arquivos WARA.)

37 – Metáforas daconcepção dualista.Fragmento de ossoornado do períodomagdaleniano.Paleolítico superior. LaMadeleine, Dordonha(França). Uma cabeçade urso, por trás daqual se encontram doissignos em bastonete,diante de uma figurafálica bastante elabora-da. Esta última insere-se numa composiçãocomplexa.(Segundo E. Anati, 1989,Arquivos WARA.)

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a terra é feminina e o céu, masculino; o amor é mas-culino, mas a raiva é feminina.

A arte pré-histórica nos ensina, então, que, du-rante um período de pelo menos 30.000 anos, per-petuou-se uma ideologia baseada na exaltação épi-ca do dualismo, que encontrava sua expressão naconfrontação cotidiana entre o homem e o animal.Essa confrontação torna-se, em seguida, o critériopara estabelecer outros encontros análogos: entrehomem e mulher, dia e noite, luz e trevas, céu e ter-ra, vida e morte, realidade da vigília e realidade dosonho. O estudo comparativo da arte e dos concei-

tos análogos atesta a existência de um mundo intelectual bastante rico desde o começo dacriação artística e que persiste até hoje entre os povos caçadores de alguns locais distan-tes no planeta. E igualmente revela a unidade essencial da maravilhosa magia do intelectohumano que caracteriza a espécie desde as origens, a unidade das raízes entre irmãos eirmãs de todas as tribos do mundo.

Um grande número de outros conjuntos observável na arte dos caçadores arcaicosreflete parceiragens e agrupamentos aos quais o homem deve ter atribuído um lugar par-ticular em sua visão do mundo e em sua busca de harmonia. Eles traduzem uma consciên-cia cosmológica profunda da qual às vezes encontramos indícios em certos aspectos dasmitologias suméria e indiana, bem como em certas mitologias tribais.

No fim do plistoceno, na Eurásia, acontece uma mudança climática brutal cujacausa não está identificada com certeza. Na Europa, os animais tinham uma dietade tundra e de silvados e estavam adaptados ao clima frio e seco. Com o derre-

timento dos glaciais, as grandes planícies foram invadidas pela água e transformadas emcharcos traiçoeiros e insalubres. Algumas espécies, como o mamute, já se tinham aclima-tado e estavam integradas demais para modificar seus hábitos. Confrontadas com terrenospantanosos, um clima quente e uma nova vegetação, elas se extinguiram. Outras, como ocervo e a camurça, abandonaram as planícies para as regiões montanhosas, onde estãopresentes até hoje.

De sua parte, o homem teve de mudar hábitos alimentares para sobreviver e modificarseu sistema de caça. Em algumas regiões, seu regime alimentar começou a integrar peque-nos animais (como lebres), animais aquáticos (patos ou moluscos). Em outras, ele adotouuma dieta quase que exclusivamente vegetariana. Tal perturbação provocou mudançasconsideráveis tanto na organização social quanto nas concepções intelectuais do homem.Essas mudanças climáticas, perceptíveis em várias zonas da Eurásia, tiveram repercus-sões até na organização dos clãs, que se dividiram em pequenos grupos familiares, cadaum dispondo agora de seu próprio território de caça.

Com o fim dos grandes mamíferos, como o mamute, a relação do homem com anatureza também evoluiu para um novo sentido. A epopéia da luta entre o homem e osgrandes animais perdeu brutalmente todo seu sentido, deixando o homem num verdadeirovazio espiritual que não deixou de afetar a arte parietal. Até então relativamente homogê-nea em seus temas e em seu estilo, a arte dos caçadores arcaicos conheceu uma diversi-ficação progressiva, enquanto que os centros de criatividade se multiplicaram. Os caça-dores arcaicos marcaram com seu selo artístico a Europa ocidental, notadamente a Fran-ça e a Espanha, mas também a Tanzânia ou o norte da Austrália.

Por seu lado, os coletores arcaicos deixaram traços na Tanzânia, no Tassili, ao sul doTexas e na região do Kimberley, na Austrália. Um estilo particular definido como arte doscaçadores criadores manifestou-se nas grandes planícies da América do Norte, na Sibé-

38 – Bastão perfuradoem chifre, períodomagdaleniano; Massat,Ariège (França). Umacabeça de urso, goelaaberta, encontra-sediante de um signo embastonete ramado. Osdois signos visíveis nolado esquerdo – a linhade conotação masculi-na e o ideogramaamendoado deconotação feminina –estão reproduzidos nosdois lados.(Segundo E. Anati, 1989,

Arquivos WARA.)

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ria, no China, no Oriente Próximo, bem como no Magreb. É na Arábia e em certas zonasdo Saara e da Ásia central que os povos pastores se expressaram, e de maneira a maisintensa, no plano artístico.

Assim, a arte mudou de caráter; seus estilos, seus temas e seus lugares de expressão sediversificaram. No entanto, em certas regiões do mundo, povos caçadores continuam aproduzir uma arte rupestre e uma arte mobiliária próxima de nossos ancestrais. Os aborí-genes australianos ou os bosquímanos da África meridional continuam pintando em pare-des de grutas. Os pigmeus da África Central e várias tribos da Amazônia ou da NovaGuiné ainda fabricam tapas. Enfim, a arte mobiliária de alguns grupos de esquimós e desamoiedos continuou bastante próxima das obras do paleolítico eurasiático.

O mundo tribal conhece, no entanto, um certo declínio. As primeiras sociedades vivendode uma economia de produção nasceram no começo do holoceno. Os últimos povoscaçadores estão em extinção. A produção substituiu a caça e a coleta. A criação e aagricultura ocupam uma proporção cada vez menor da população mundial. Os últimosrecantos da terra onde perdurava a pré-história também vão se transformar. O mundotende, sem dúvida, rumo a uma nova unidade conceitual, à qual a arte vai adaptar-se.

No contexto das grandes transformações sociais, econômicas e culturais que caracte-rizam nossa sociedade contemporânea, as mensagens gráficas deixadas por nossos an-cestrais são de uma grande atualidade. Cuidadosamente conservadas durante milênios,elas tornam-se um elemento fundamental de nossa cultura e marca um retorno à visãouniversal do homem.

No que concerne a motivação e a função da arte no seu começo, existem múltiplasteorias, desenvolvidas em inúmeras obras científicas ou de vulgarização para que sejanecessário lembrá-las aqui. No entanto, sublinharemos que as hipóteses sucessivamentelançadas de um século para cá concernem quase que exclusivamente a arte das cavernasda Europa ocidental e muitas vezes ignoram o resto do mundo. Elas refletem, em suamaioria, a mentalidade de seus autores bem mais que a mentalidade dos artistas franco-cantábricas do paleolítico superior, às quais, no entanto, elas se referem.

Do conceito da arte pela arte de H. de Mortillet àquele da magia da caça de H. Breuil,da teoria psicológica de arte infantil de G. H. Luquet a uma visão da arte como expressãode práticas xamanistas, das interpretações de A. Lommel, das interpretações mitológicasde A. Laming-Emperaire à teoria estrutural-sexual de A. Leroi-Gourhan, da criatividadeintuitiva de D. Morris às concepções crono-cognitivas de A. Marshack, cada pesquisadortrouxe a sua contribuição a uma problemática extremamente vasta e complexa. O maiormérito dessa avalanche de teorias é o de colocar questões. Existe uma dentre elas verda-deiramente fundamentada? Elas aportam elementos de verdade? Ou estão todas erradas,ou pelo menos incompletas? Sem dúvida, o próprio problema deve ser posto em outrostermos, como mostram as diversas interpretações da ilustração 39.

Todas as teorias enunciadas apresentam, com efeito, uma falta comum: exagerar umaspecto depois de generalizá-lo. Nós vimos que só havia uma teoria da arte pela arte, maso aporte do gosto da estética, do prazer de harmonia e do belo por parte dos artistas,mesmo quando eles se expressam de maneira extremamente conceitual, sintetizando idéi-as ou mensagens, foi determinante. Se determinadas criações testemunham o prazer do

39 – Fragmento deosso decorado. LesEyzies, Dordonha,França.Período magdaleniano.Paleolítico superior.Nota-se um grupo deoito perfis antropomor-fos, marcados porideogramas embastonete forquilhado;à direita, o perfil de umbisão; enquanto que àdireita e no alto, vêem-se dois conjuntos designos que foramdefinidos como signosarboriformes, comopares de pernas, ouainda como umarepresentação do fogo.Presume-se que todasas partes desta compo-sição são intencionaise que elas queremtransmitir uma mensa-gem. No entanto, sualeitura ainda estábloqueada por causada inadequação dasnoções adquiridassobre a significaçãodos grafemas. Asinterpretações dadasaté o momento a essacomposição sãosuficientes para indicaro estado de incertezaem que se encontra oestudo dessas obras.Para um pesquisador,as hipotéticas árvoresindicariam a estaçãoem que se celebravaum rito em torno dobisão. Segundo umaoutra interpretação, aiconografia descreveriaa migração ou a viagemdas pessoas queteriam deixado umaterra designada peloduplo signo do “fogo”,terra com a qual elasse identificariam(repetição do signosobre os persona-gens), rumo à terra do“bisão”. E não são

apenas estas asleituras possíveis.

(Segundo E. Anati,1988, ArquivosWARA.)

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artista, esse prazer de criar não era o seu fim primeiro.Se a magia da caça teve influência numa parte da arte pré-histórica, isso não é feito de

maneira sistemática, sempre e em todos os lugares. A visão dualista, a dialética binária eos elementos da natureza machos e fêmeas – sombra e luz, céu e terra, o mundo animal eo humano – certamente desempenharam um papel importante na ideologia exprimida pelaarte dos povos caçadores na Europa, na Ásia e na Austrália, mas nunca foi a única razãode ser da arte.

O xamanismo parece igualmente ter tido um papel importante, sobretudo nas fasesevoluídas da arte pré-histórica na Europa e entre alguns grupos de povos caçadores daÁsia e da África. Não se trata, no entanto, de uma preocupação espalhada no mundointeiro e em todas as épocas. Se é razoável dizer que certos grupos de povos caçadores,mesmo nas fases evoluídas, refletem um pensamento e uma função de tipo xamanístico,esse mesmo postulado não pode ser aplicado ao conjunto da arte pré-histórica. Tambéma visão aritmética e geométrica dessa arte reflete apenas um aspecto, uma presençaapenas pontual.

O homem nunca foi muito simples desde que ele é sapiens. A arte é uma exterioriza-ção, uma expressão de si, um meio de comunicação e uma busca de verdade oculta. Nóscontamos, hoje, mais de 40 milhões de imagens de arte pré-histórica espalhadas no mun-do inteiro. Seria muito surpreendente que o conjunto dessa imensa criatividade humanatenha tido apenas um fim. O espírito do homem sempre esteve em movimento: se tivermosde reter apenas um ensinamento da arte pré-histórica, retenhamos este.