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Geografias do Cerrado: Sociedade, Espaço e Tempo no Brasil Central planejamento território energia agropecuária CERRADO cultura modernização educação identidade região tempo espaço política sociedade economia ideologia turismo Luana Moreira Marques (Org.) A presente obra é resultado de pesqui- sas de professores e pós-graduandos de diferentes universi- dades brasileiras. Trata-se de uma coletânea de textos que contempla distintos temas, tendo como fio condutor o Cerrado. Acreditamos, nessa perspectiva, que a pluralidade de nuances e olhares geográficos sobre tal bioma pode contribu- ir para novos deba- tes sobre a socieda- de, o espaço e o tempo no Brasil Central. ISBN: 978-85-67803-03-6 Na obra Geografias do Cerrado, novos contextos articulam-se principalmente por ser feita por jovens pesquisadores [...] com outras reflexões essenciais para traçar um panorama crítico sobre o Cerrado contemporâneo. São 10 artigos que formam um arcabouço referencial diversificado, um cenário complexo [...] De fato, Cerrados, no plural, seria mais apropriado que o considerar um único cerrado. Os textos são atraentes. O mérito dos autores e da obra em si é compartilhar conhecimentos e unir a pesquisa acadêmica aos interesses sociais, às políticas e às iniciativas empresariais. E, sem dúvida, o propósito dos autores é o de despertar o leitor para um olhar mais atento e comprometido com o Cerrado. É bela nesta sua intenção, gratificante. Que vocês encontrem igual prazer ao lerem os artigos e ao dialogarem com uma obra tão fecunda de promissores pesquisadores.” Maria Geralda de Almeida Luana Moreira Marques (Org.) Geografias do Cerrado Angela Fagna Gomes de Souza Artur Monteiro Leitão Júnior Carlos Rodrigues Brandão Fernando Campos Mesquita Gláucia Carvalho Gomes Jean Carlos Vieira Santos Luana Moreira Marques Maisa França Teixeira Maria das Graças Martins-Bibiano Maria Geralda de Almeida Rene Gonçalves Serafim Silva Rosselvelt José Santos Vagner Limiro Coelho Vicente de Paulo da Silva Autores:

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Geografias do Cerrado: Sociedade, Espaço e Tempo no Brasil Central

planejamentoterritório

energia

agropecuária

CERRADO

cultura

modernização

educação identidade

região

tempo

espaço

política

sociedade

economia

ideologia

turismo

Luana Moreira Marques (Org.)

A presente obra é

resultado de pesqui-

sas de professores e

pós-graduandos de

diferentes universi-

dades brasileiras.

Trata-se de uma

coletânea de textos

q u e c o n t e m p l a

d i s t i n t o s t e m a s ,

t e n d o c o m o fi o

condutor o Cerrado.

Acreditamos, nessa

perspectiva, que a

p l u r a l i d a d e d e

nuances e olhares

geográficos sobre tal

bioma pode contribu-

ir para novos deba-

tes sobre a socieda-

de, o espaço e o

t empo no B ras i l

Central.

ISBN: 978-85-67803-03-6

Na obra Geografias do Cerrado, novos contextos articulam-se principalmente por ser feita por jovens pesquisadores [...] com outras reflexões essenciais para traçar um panorama cr í t ico sobre o Cerrado contemporâneo. São 10 artigos que formam um arcabouço referencial diversificado, um cenário complexo [...] De fato, Cerrados, no plural, seria mais apropriado que o considerar um único cerrado. Os textos são atraentes. O mérito dos autores e da obra em si é compartilhar conhecimentos e unir a pesquisa acadêmica aos interesses sociais, às políticas e às iniciativas empresariais. E, sem dúvida, o propósito dos autores é o de despertar o leitor para um olhar mais atento e comprometido com o Cerrado. É bela nesta sua intenção, gratificante. Que vocês encontrem igual prazer ao lerem os artigos e ao dialogarem com uma obra tão fecunda de promissores pesquisadores.”

Maria Geralda de Almeida

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Angela Fagna Gomes de Souza

Artur Monteiro Leitão Júnior

Carlos Rodrigues Brandão

Fernando CamposMesquita

Gláucia Carvalho Gomes

Jean Carlos Vieira Santos

Luana Moreira Marques

Maisa França Teixeira

Maria das Graças Martins-Bibiano

Maria Geralda de Almeida

Rene Gonçalves Serafim Silva

Rosselvelt José Santos

Vagner Limiro Coelho

Vicente de Paulo da Silva

Autores:

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Geografias do cerrado:sociedade, espaço e tempo no

Brasil central

Fone: (34) 3236-1761contato@grafi caedibras.com.br

Uberlândia - MG - Brasil

2014

1ª Edição

Luana Moreira Marques (org.)

Page 3: Autores: Geografias do Cerrado - UFU · Maria das Graças Martins-Bibiano Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2009). Docente na Faculdade Pedro II. Foi

©2014Luana Moreira Marques (Org.)

Título: Geografi as do cerrado: sociedade, espaço e tempo no Brasil central.Projeto Gráfi co: Ana Flávia Gonçalves

CORPO EDITORIAL:Graziela Giusti Pachane (Doutora em Educação pela UNICAMP)Juraci Lourenço Teixeira (Mestre em Química pela UFU)Kenia Maria de Almeida Pereira (Doutora em Literatura pela UNESP)Mara Rúbia Alves Marques (Doutora em EdWucação pela UNIMEP)Roberto Valdés Pruentes (Doutor em Educação pela UNIMEP)Orlando Fernández Aquino (Doutor em Ciências Pedagógicas pela ISPVC - Cuba)Luiz Bezerra Neto (Doutor em Educação pela UNICAMP)Irley Machado (Doutora pela Université Paris III - Sorbonne Nouvelle)Vitor Ribeiro Filho (Doutor em Geografia pela UFRJ)Lidiane Aparecida Alves (Mestre em Geografia pela UFU)Fernanda Arantes Moreira (Mestre em Educação pela UFU)Bruno Arantes Moreira (Doutor em Engenharia Química pela UFU)

FICHA CATALOGRÁFICAELABORADA PELA EDITORA EDIBRÁS

É proibida a reprodução total ou parcial.Impresso no Brasil / Printed in Brasil

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Angela Fagna Gomes de SouzaProfessora Adjunta da Universidade Federal de Alagoas - Campus do Sertão. Possui Graduação em Geografia pela Unimontes. Mestrado e Doutorado pela Universidade Federal de Uberlândia. Líder do grupo de pesquisa “GEPAR - Grupo de Estudos e Pesquisa em Análise Regional “- vinculado ao curso de Geografia da UFAL Campus do Sertão. Pesquisadora do grupo de pesquisa “Opará: grupo de estudos do rio São Francisco” vinculado ao departamento de Políticas e Ciências Sociais da Unimontes e do grupo de pesquisa “Sociedade e Cultura” vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFS.Contato: [email protected]

Artur Monteiro Leitão JúniorPossui graduação em Geografia - Licenciatura e Bacharelado - e Mestrado em Geografia e Gestão do Território, ambos pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Possui curso técnico em Meio Ambiente pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro (IFTM), em Uberlândia (MG). Atualmente, é Analista de Infraestrutura do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG).Contato: [email protected]

Carlos Rodrigues BrandãoDoutor em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Graduado em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1965) e mestre em antropologia pela Universidade de Brasília (1974). Atualmente é professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professor visitante senior da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É Comendador do Mérito Científico pelo MCT, Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Goiás, Professor Emérito da Universidade Federal de Uberlândia. Contato: www.sitiodarosadosventos.com.br

Os Autores

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Fernando Campos MesquitaDoutorando e mestre em Geografia pela Universidade de Campinas (UNICAMP). Possui bacharelado e licenciatura em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Em 2013 realizou o Doutorado Sanduíche no departamento de Planejamento Urbano da Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA). Tem experiência nas áreas de Geografia Econômica/Industrial, Geografia Agrária e Desenvolvimento Regional.Contato: [email protected]

Gláucia Carvalho GomesGraduada em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2003), mestre em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2006) e doutora em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012). É professora adjunta da Universidade Federal de Uberlândia. Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em Geografia Humana, atuando principalmente nos seguintes temas: expansão urbana, produção do espaço, revalorização urbana, periferia e crescimento demográfico; região e regionalização; geopolítica. Atualmente é Diretora de Extensão da Universidade Federal de Uberlândia.Contato: [email protected]

Jean Carlos Vieira SantosPós-doutorando no Programa de Doutoramento em Turismo, Departamento de Economia da Universidade do Algarve/Portugal. Doutor pelo Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia (IGUFU/MG), foi Bolsista CAPES-PDEE/Universidade do Algarve (Portugal). Professor e Pesquisador do Curso de Geografia da Universidade Estadual Goiás - Campus Quirinópolis (UEG). Lattes: http://lattes.cnpq.br/7542926208646393.E-mail: [email protected].

Luana Moreira MarquesDoutoranda, mestre e bacharel em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia. Bacharel em Turismo e Hotelaria pelo Centro Universitário do Triângulo. Foi professora universitária nos

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cursos de Geografia da Universidade Estadual de Minas Gerais e da Universidade de Uberaba (nesta atuando como professora conteudista e tutora da modalidade EAD). Foi bolsista CAPES durante o mestrado e atualmente é bolsista do CNPq. Tem experiência nas áreas de Geografia e Turismo, com foco na geografia cultural, geografia do turismo, cartografia, eventos e educação.Contato: [email protected]

Maisa França TeixeiraDoutoranda em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais da Universidade Federal de Goiás (UFG). Graduada em Planejamento Turístico.Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em Cultura, Território e Representação. Atualmente estuda Festas e Manifestações Culturais na região centro-oeste, em especial, no estado de Goiás. Faz parte do Núcleo de Estudos em Espaço e Representações (NEER) e é Professora Substituta da Universidade Estadual de Goiás (UEG).Contato: [email protected]

Maria das Graças Martins-BibianoMestre em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2009). Docente na Faculdade Pedro II. Foi professora do ensino superior pela Universidade de Uberaba (UNIUBE), Unicentro Newton Paiva e em escolas de Ensino Básico. Docente no curso de Geografia da Faculdade Pedro II e no curso de Engenharia Ambiental no Centro Universitário UniBH em Belo Horizonte. Atua nas áreas de Organização do Espaço, Educação, Geografia Agrária, e Geologia.Contato: [email protected]

Maria Geralda de AlmeidaPós-doutora em Geografia Humana pela Universidad de Barcelona, em Geografia Cultural pela Université Laval, Universita Degli Studi Di Genova e Universite de Paris IV Paris-Sorbonne. Foi professora visitante na Université Laval – UL, em Montreal, Canadá, e na Universidad Autónoma Metropolitana – UAM, em Xochimilco,

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México. Foi presidente da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Geografia (ANPEGE) de 2009 a 2011. Atualmente é Professora Titular do curso de Geografia do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás, no qual participa do Programa de Pós-Graduação. É diretora do Laboratório de Estudos e Pesquisas das Dinâmicas Territoriais - LABOTER, e do Grupo de Pesquisa “Geografia Cultural, Territórios e Identidade” no CNPq. Dedica-se à pesquisas sobre Geografia do Turismo, Políticas, Geografia Cultural, Manifestações festivas, Patrimônio, Populações Tradicionais, Sertão e Políticas Ambientais. Contato: [email protected]

Rene Gonçalves Serafim Silva Doutorando e Mestre em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) - Bolsista FAPEMIG. Participou de intercâmbio cultural e linguístico em Londres (Inglaterra) no período de fevereiro a dezembro de 2008. Atuou como professor de Geografia da educação básica de 2009 a 2013. Desde 2013 é Geógrafo da Prefeitura Municipal de Uberlândia, lotado na Secretaria de Trânsito e Transportes (SETTRAN), na Diretoria de Planejamento de Trânsito. É integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Efeitos de Grandes Empreendimentos (NEPEGE).Contato: [email protected]

Rosselvelt José SantosCoordenador e Professor Orientador do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Uberlândia. Coordenador do Laboratório de Geografia Cultural – Instituto de Geografia/UFU. Pesquisador da FAPEMIG, UFU e de produtividade do CNPq. Trabalha com projetos de pesquisa e extensão envolvendo os territórios, as territorialidades e os vínculos territoriais das populações tradicionais do bioma Cerrado.Contato: [email protected]

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Vagner Limiro CoelhoMestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia - PPGED/UFU. Especialista em Metodologia do Ensino Superior pela Faculdade Cidade de Coromandel FCC. Licenciado em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia UFU. Docente do curso de Licenciatura em Geografia da Universidade de Uberaba UNIUBE, e professor de Geografia do ensino fundamental na rede pública estadual de Minas Gerais.Contato: [email protected]

Vicente de Paulo da SilvaProfessor Associado I do Instituto de Geografia da UFU; orientador no Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGeo) – UFU. Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Efeitos de Grandes Empreendimentos (NEPEGE). Possui Graduação em Licenciatura Plena em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia (1988), mestrado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (1995) e doutorado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2004). Foi professor no Departamento de Geografia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB (1990-2005).Contato: [email protected]

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SUMÁRIO

PREFÁCIO ...........................................................................11

MODERNIZAÇÃO TÉCNICA E PLANEJAMENTO REGIONAL: reflexões sobre a “geopolítica econômica do Cerrado” os sentidos de sua regionalização no ordenamento territorial brasileiroGláucia Carvalho Gomes ................................................................15

A SUPERAÇÃO DO SERTÃO EM ÁREAS DE CERRADO: o caso da transubstanciação do Sertão da Farinha Podre em Triângulo MineiroArtur Monteiro Leitão Júnior ..........................................................31

O COMPLEXO ENERGÉTICO AMADOR AGUIAR (MG) NO CONTEXTO DO NOVO ORDENAMENTO TERRITORIAL PELOS GRANDES EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOSRene Gonçalves Serafim SilvaVicente de Paulo da Silva ...............................................................57

PRODUÇÃO DE BIODIESEL E RECONFIGURAÇÃO DO COMPLEXO AGROINDUSTRIAL DA SOJA: evidências de um novo elemento na organização produtiva da região Centro-OesteFernando Campos Mesquita ...........................................................77

DA TAPERA AO TAPERA: cultura como garantia da vida camponesaMaria das Graças Martins-Bibiano ...............................................103

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O DESTINO TURÍSTICO LAGOA SANTA NO CERRADO GOIANO: paisagens de águas quentes e conglomerados de beleza cênicaJean Carlos Vieira Santos ..............................................................135

SABERES LOCAIS, IDENTIDADE E DIVERSIDADE CULTURAL: sujeitos e lugares do médio rio São FranciscoAngela Fagna Gomes de SouzaCarlos Rodrigues Brandão ............................................................159

O SER E O SANTO: geografias vividas e narradas pelos sujeitos sociais da Festa de Santos Reis de Martinésia – Uberlândia/MGLuana Moreira MarquesRosselvelt José Santos ..................................................................185

A CATIRA E A PRODUÇÃO DE UMA IDENTIDADE TERRITORIAL NO ESTADO DE GOIÁSMaisa França TeixeiraMaria Geralda de Almeida ............................................................217

DA LEI AO LIVRO: análises sobre a abordagem do Cerrado nos livros didáticos de geografia do Ensino FundamentalVagner Limiro CoelhoLuana Moreira Marques ................................................................243

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É do Cerrado e de recente conhecimento científico sobre ele produzido que trata este livro, organizado por Luana Moreira Marques.

Há quase três séculos que o Cerrado faz parte do nosso imaginário alimentado inicialmente pelas primeiras descrições do espaço do Brasil Central. Um Brasil de mistérios pelos mitos, pelas fantasias e pelos relatos.

Os primeiros autores das descrições da natureza brasileira nem sempre transitaram pelos espaços interiores movidos por razões de cunho científico. Progressivamente, cronistas, religiosos, viajantes, naturalistas, bacharéis, botânicos, zoologos, geólogos, dentre outros, produziram textos, gravuras, desenhos, pinturas e mapas. Eles poderiam ser proprietários ou funcionários do reino português, missionários de ordens religiosas ou integrantes de expedições de guerra, busca de metais e aprisionamento de indígenas.

Foram as descrições que motivaram os viajantes, os aventureiros e naturalistas estrangeiros como ingleses, franceses, alemães, austríacos, suíços, escoceses, etc. a participarem de expedições científicas que percorreram o Brasil durante o século XIX. Nesse sentido, destacam-se nomes como Auguste de Saint-Hilaire, Johann von Spix, Carl von Martius, e também o Johann Emmanuel Pohl. Eles focavam, primordialmente, a natureza e as populações singulares, tão diferente dos europeus, ou seja, do universo humano até então familiar aos viajantes.

Enfim, eles produziram conhecimento sobre os sertões, ou sobre aspectos destes, que circularam inicialmente como parte do Novo Mundo que se dava a conhecer aos conquistadores europeus e, posteriormente, serviram para torná-los menos ignoto aos olhos de um Brasil Central como o planalto de onde se inicia a aventura euclidiana em Os sertões.

PREFÁCIO

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Já Guimarães Rosa, com o seu relato precioso das condições de vegetação, de clima, de recursos hídricos, deu visibilidade a um outro Brasil Central e retratou com seus conflitos, seus valores, sua gente esquecida, os cerradeiros, na expressão forjada por Paulo Bertran. Guimarães Rosa contribuiu para, de forma extraordinária, integrar o Cerrado no contexto nacional.

O Cerrado é rico de surpresas. Frágil e forte na vegetação e recursos hídricos, tem beleza e plasticidade nas floradas de ipês e pequizeiros, tem alimento nos frutos perfumados e saborosos, recurso para a saúde nas fortalezas das raízes e folhas medicinais, uma sobrevivência excepcional ao fogo. Ele revela um Planalto Brasil Central exótico, promissor nas riquezas minerais e vegetais, uma terra na qual a população interiorana, de uma cultura sertaneja e bem estruturada, é saudada como “brava e resistente”.

Na atualidade, é, sobretudo, esta sociedade e este Cerrado que geram outros “cronistas”, novos “viajantes” do Brasil Central do século XXI, como os autores desta obra. Eles se debruçam sobre a sociedade, as formas de produção do espaço do Cerrado, as apropriações e os conflitos ambientais e políticos, sem se esquecer do Cerrado festivo, rico de manifestações culturais singulares.

Na obra Geografias do Cerrado, novos contextos articulam-se principalmente por ser feita por jovens pesquisadores de instituições como: Universidade Federal de Uberlândia, Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Estadual de Campinas, Universidade Estadual de Goiás, Universidade Federal de Goiás, Universidade Federal do Paraná, Universidade Federal de Alagoas e Universidade do Algarve, com outras reflexões essenciais para traçar um panorama crítico sobre o Cerrado contemporâneo. São 10 artigos que formam um arcabouço referencial diversificado, um cenário complexo dos temas: modernização, agronegócio e empreendimentos hidrelétricos, planejamento, ordenamento territorial, políticas, potencialidades, agricultura familiar, saberes locais, turismo, identidades, geografias vividas, festas, lugar, ensino, livro didático, tradições, inovações e outros aspectos que enriquecem e avançam na discussão sobre o Cerrado. De fato, Cerrados, no plural, seria mais apropriado que o considerar um único cerrado.

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Os textos são atraentes. O mérito dos autores e da obra em si é compartilhar conhecimentos e unir a pesquisa acadêmica aos interesses sociais, às políticas e às iniciativas empresariais. E, sem dúvida, o propósito dos autores é o de despertar o leitor para um olhar mais atento e comprometido com o Cerrado. É bela nesta sua intenção, gratificante. Que vocês encontrem igual prazer ao lerem os artigos e ao dialogarem com uma obra tão fecunda de promissores pesquisadores.

Maria Geralda de AlmeidaProfessora Titular no IESA/UFG. Goiânia. GO

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MODERNIZAÇÃO TÉCNICA E PLANEJAMENTO REGIONAL: reflexões

sobre a “geopolítica econômica do Cerrado” os sentidos de sua regionalização

no ordenamento territorial brasileiro

Gláucia Carvalho Gomes

A modernização técnica e o planejamento territorial re-gional engendrados secularmente, e levado à cabo pelo Estado a partir de 1930, explicitam a ação histórica de funcionalizar e ordenar o território. O sentido geral desta ação foi (e ainda é) o de garantir a viabilização da reprodução ampliada da riqueza que, a partir daquele momento, teve na atividade industrial e no espa-ço urbano os núcleos de sua organização. Tal processo implicou o engendramento da regionalização do território brasileiro, bem como sua instrumentalização a partir das novas funções deman-dadas, que se somaram às já existentes. Para o que aqui nos interessa mais diretamente, em ampla medida, esse foi o escopo geral de inserção do “Domínio Cerra-do” no projeto de Estado e de modernização do território brasilei-ro, onde este cumpriu importante papel na e para acumulação de riquezas, principalmente daquelas advindas do que se consolidou como complexo agroindustrial, nos termos definidos por Muller (1989). Neste contexto, esta porção do território brasileiro foi ins-crita como um fragmento, cujo sentido não se explicou ou se justi-ficou pelas necessidades que se vincularam às suas especificidades, mas pelas demandas localizadas alhures e definidas na/pela ins-tância organizadora do território em função da reprodução deste último. Todavia, se a “inserção” da “parte” no “todo” orientou-se pela demanda final da ordenação deste último, ela também se deu/dá em função do que determinada região tinha/tem a oferecer. Assim, no âmbito do planejamento regional como substrato do or-

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denamento territorial, não é desmedido considerar que a inserção regional orienta-se em função do que tal ordenamento demanda da mesma, tendo em conta o que cada região tem a oferecer. Ao refletir sobre os sentidos que envolveram a formação/atuação da Superintendência de Desenvolvimento Regional do Nordeste (SUDENE), Oliveira (1987) considerou que, no âmbi-to da reprodução capitalista do espaço, tendencialmente, a região desapareceria, visto que nela converge também a tendência de ho-mogeneização como necessidade de reprodução do capital. Em que pese a assertividade desta elaboração, a mesma demanda, a meu ver, determinada relativização. Embora em seu processo de reprodução o capital demande a homogeneização do espaço e das relações sociais, as mesmas se dão repondo as condições funda-mentais de sua reprodução. Desta maneira, concomitante à ho-mogeneização em dada região, há a reprodução da diferenciação passível de ser instrumentalizada como desigualdade regional em outra porção do território. Ou, ainda, dentro de uma mesma “ma-cro” região, há subdivisões “micro” regionais que cumprem fun-ções diversas dentro do ordenamento imposto à região em dada escala e, em outra, dentro do próprio território. Assim, ao refletir sobre a porção do território brasileiro em que predominou o bioma Cerrado, procuro estabelecer alguns pressupostos introdutórios que fundamentam o argumento aqui apresentado de que o apoderamento desta pelo Estado compôs, como instância decisiva, seu projeto de des-envolvimento econô-mico como fundamento da reprodução ampliada da riqueza, que, no limite, foi/é o grande orientador deste apoderamento e que teve na modernização técnica do território sua forma de instrumentali-zação. A condição apriorística dada à modernização técnica justifica-se pelo fato de esta ter sido fundamental para redefinir os termos atribuídos à região, sendo estes definidos pelo Estado, que aparece como principal “ente” regionalizador do território. É so-mente desta maneira, com as redefinições estabelecidas, que esta ou qualquer outra região pode cumprir a função atribuída pelo planejamento regional definida no âmbito do ordenado territo-rial engendrado. Neste sentido, o planejamento regional compõe, como substrato, o ordenamento territorial estabelecido. Mas foi

Gláucia Carvalho Gomes

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também sob esta condição que se revelou como fundamental uma ação geopolítica, considerando esta como uma estratégia de Esta-do de apoderamento do território em função de um dado interesse orientado por determinada redefinição, cuja manifestação se dá geograficamente sobre este território. Para o caso brasileiro, verificou-se, neste processo, a im-bricação dos interesses de Estado e do capital, que exigiu em seu processo a reprodução capitalista do espaço. Assim, ao consi-derarmos o apoderamento do Estado da porção de seu território outrora ocupado pelo Cerrado em suas características naturais, é necessário que também consideremos que tal processo ocorreu orientado por determinado interesse que foi além do domínio polí-tico sobre a totalidade de seu território. De fato, tal como apontou Martins (1993), tratou-se, afinal, de um processo cujo objetivo foi o de estender a “fronteira econômica” aos limites da fronteira político-administrativa do Estado, explicitando-se nitidamente a realização da política de Estado no e pelo território, o que justifi-caria a atribuição da concepção de geopolítica que, nesta região, revelou-se como uma “geopolítica do e para o Cerrado”. Desta maneira, o processo de apoderamento do território consubstanciou uma geopolítica que envolveu o Cerrado, não só porque seu território estava no centro geográfico deste processo que explicitou os interesses políticos que o envolveram – tal como demonstrou Vesentini (1986) e outros estudiosos acerca dos sen-tidos que envolveram a transferência da capital Brasília –, mas porque a viabilização do ordenamento territorial brasileiro teve na representação simbólica acerca do Cerrado uma de suas principais estratégias que viabilizou seu apoderamento e, ademais, a de ou-tras regiões inseridas inicialmente como reservas ambientais (ou de valor), como será considerado posteriormente.

Fundamentos da modernização técnica e o planejamento regional como necessidade de organização do território brasileiro e como fundamento para a geopolítica

Indubitavelmente, o século XX foi, para o caso brasileiro, o século da modernização do território e das relações que este

MODERNIZAÇÃO TÉCNICA E PLANEJAMENTO REGIONAL

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comportou. Modernização que, entre outros aspectos, justificou-se como fundamento da reprodução do próprio sujeito moderni-zado, condizente com as necessidades deste “novo mundo”. Sobre esse processo, é importante considerar a representação de parcela do povo brasileiro desenvolvida por Monteiro Lobato, consagrada na sua construção de o Jeca Tatu. Entretanto, interessa-me aqui não a caracterização que este autor fez do camponês, que, não raro, aparece como depre-ciativa. Mais que esta, interessa-me a relativização desenvolvida posteriormente por Monteiro Lobato, onde atribui parte significa-tiva das mazelas do sujeito correspondente ao Jeca Tatu às con-dições inóspitas do território. Assim, esse literato, que assumiu quase que como projeto de vida a defesa da modernização socio-espacial brasileira, expressa que o que atribuiu à essência do Jeca Tatu referia-se, de fato, à essência do território arcaico não mo-dernizado. Assim, o fim do que representa o Jeca Tatu dar-se-ia pelo fim do atraso na modernização, tal como expressou Lobato (1968). Ao estabelecer essa relação, o autor apontou para um ca-minho que, em ampla medida, foi o adotado pelo Estado, qual seja: o de modernizar as relações sociais a partir da moderniza-ção do território. Isso porque o espaço produzido, produto das relações sociais, também as reproduz. Assim, sua modernização implicaria também na modernização destas relações, sendo que os que não se modernizam vão sendo alijados destas relações, expropriado destes territórios. E, neste contexto, a porção Oeste do território brasileiro apareceu com a região a ser modernizada, dando sequência à formação territorial do Brasil, tal como refletiu Moraes (2000). Por sua vez, a modernização técnica, engendrada como fundamento do ordenamento do território, demarcou a ruptura com os termos da reprodução social do espaço até então predomi-nantes. E a característica central deste processo foi o deslocamen-to do núcleo central da produção da riqueza da atividade agrária, associada ao atrasado e arcaico, para a atividade industrial e ur-bana, representativas do caminho para o moderno e progresso. O projeto urbano-industrial brasileiro, engendrado como estratégia

Gláucia Carvalho Gomes

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para a reprodução ampliada da riqueza, foi, assim, fundamento e consequência do apoderamento pelo Estado de seu território, processo que produziu a regionalização oficial brasileira, tal como produzida pelo IBGE, ao mesmo tempo em que (re)definiu as fun-ções atribuídas a estas regiões dentro do ordenamento do territo-rial estabelecido. De fato, como demonstrou Oliveira (1984), foi em fun-ção da modernização industrial de São Paulo, até então núcleo da atividade agrícola, que se atribuiu às regiões Sul, Centro-Oeste e Nordeste a função de produção agrícola, fortalecendo esta ativi-dade, ao mesmo tempo em que se inibiam as demais, como, por exemplo, a própria indústria, principalmente no Nordeste brasilei-ro, como este mesmo autor explicitou em Elegia para uma re(li)gião. Considerado nestes termos, o projeto urbano-industrial brasileiro pode ser entendido como uma ruptura em relação aos termos anteriores da reprodução territorial brasileira, fundamen-tada, até então, na agroexportação tradicional, não só porque am-pliou esta função, mas principalmente porque redefiniu as rela-ções socioespaciais que lhe davam sustentação. Assim, mesmo a atividade agroexportadora foi, progressivamente, sendo moderni-zada, expandindo a atividade agrícola para outras regiões, princi-palmente para o Sul e Centro-Oeste brasileiro. Ao assumir como projeto a modernização das relações socioespaciais, a partir de 1930 o Estado foi, progressivamente, rompendo com as relações que bloqueavam as tentativas de mo-dernização da produção, como o mecanismo apontado Oliveira (1984, p. 31), em que o financiamento externo da economia agro-exportadora “bloqueava a produção do valor de mercadorias de realização interna.” Processo que, no limite, levava ao consumo de

Todo o valor da economia agroexportadora, com o que negavam a própria forma de produção; em última análise, o valor gerado pela economia agroexportadora acabou por destinar-se substancialmente a pagar os custos da intermediação comercial e financeira externa, operando-se uma distribuição da mais-valia entre lucros internos e lucros e juros externos completamente desfavoráveis aos

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primeiros. [...] Uma parcela substancial do produto não podia ser reposto senão através dos mesmos mecanismos de financiamento externo. [...] (OLIVEIRA, 1984, p. 31)

A insustentabilidade desta forma de reprodução, que, no limite, impedia a acumulação interna da riqueza nos termos de-mandados, alcançou seu ápice no fim da década de 1920, cuja res-posta a ela materializou-se na chamada “revolução” de 1930 e na forma do que viria a se constituir no planejamento e ordenamento territorial brasileiro. De fato, o que se explicitou em 1930 foi o esgotamento da capacidade de acumulação da riqueza nos termos em que esta se dava até então, delineando-se uma intensa crise que expôs a necessidade de redefinição dos termos desta acumulação. O que se explicitou, então, foi que o bloqueio formado pela burguesia agrária, nos termos de Francisco de Oliveira, precisava ser rompi-do para que a reestruturação demandada pela e para a reprodução ampliada do capital pudesse se estabelecer. Porém, também se esclarecia que tal ruptura somente seria possível como um projeto de Estado, o que demandou, por sua vez, a interrupção do poder político das oligarquias agrárias conservadoras, que buscavam a permanência dos termos postos pela e para a sua reprodução como grupo dominante. Como também bem afirmou Francisco de Oliveira, não foi por acaso que o movimento que culminou com o Tenentismo e a “Revolução” de 1930, que deu início ao governo Vargas, tenha sido gestado nas e pelas oligarquias agrárias alijadas do controle político e econômico que as oligarquias dominantes exerciam so-bre o Estado. Assim, se, por um lado, tal fato se consubstanciou na luta pela reestruturação política, a mesma só ocorreu com o so-lapamento do poder econômico destas oligarquias, processo que, entre outros, contribuiu para o desencadeamento, como projeto de Estado, da industrialização no Brasil. Porém, é importante destacar que o projeto industrial bra-sileiro não se deu apenas em função de disputas internas de poder que ocorreram ao longo de todo o período da chamada República Velha. Foi apenas no final dos anos de 1920 que a crise de acu-

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mulação do capital em âmbito mundial explicitou a autofagia e a insustentabilidade do modelo de reprodução brasileira, enfraque-cendo econômica e, portanto, politicamente os grupos dominan-tes, o que abriu caminho para os enfrentamentos da “Revolução” de 1930. Ao mesmo tempo, também se explicitou o esgotamento da capacidade de acumulação dos países então centrais na repro-dução capitalista do espaço, o que interrompeu o fluxo de expor-tações de produtos industrializados para os países periféricos do “sistema” capitalista. Assim, foi também pressionado pela con-juntura mundial que o Brasil assumiu seu projeto de moderniza-ção industrial. Embora a oligarquia agrária derrotada neste período te-nha sido a paulista, foi o estado de São Paulo que se constituiu no centro do projeto industrial brasileiro. Entre diversos aspectos importantes, tal fato se deu em função de uma relativa infraestru-tura já constituída para a viabilização da exportação dos produ-tos agrícolas e, principalmente, devido ao capital acumulado na atividade agrícola/espaço rural que se deslocou para a atividade industrial/espaço urbano. Neste sentido, como bem observou Fer-nando Novais no prefácio de “Caminhos e Fronteiras” de Sérgio Buarque de Holanda, São Paulo foi o polo modernizador do qual se irradiou a modernização técnica do território brasileiro. A consequência quase imediata da modernização indus-trial para São Paulo e, de resto, para todo o território brasileiro, foi a redefinição de sua produção e de sua organização territorial. Se até então este estado destacava-se como o principal produtor agro-exportador, paulatinamente, a atividade agrícola foi se deslocando para outras regiões brasileiras. É neste contexto que não é desca-bido afirmar que o momento da adoção pelo Estado da atividade industrial como projeto, foi também o da apropriação das regiões brasileiras, que, mais que “unidades regionais”, foram apropriadas como fragmentos do “todo” Brasil, abrindo caminho para o futuro ordenamento territorial, que também se orientou pela atividade agrícola. Porém, nesta outra fase, esta atividade apareceu subordi-nada à indústria, estabelecendo-se a partir dos anos de 1960 já no âmbito da modernização técnica do território brasileiro. Foi este e neste contexto que a porção do território brasileiro ocupada pelo

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Cerrado foi apoderada, tornando-se um dos lócus privilegiados não apenas da expansão agroindustrial brasileira, mas também de seu ordenamento territorial, como será considerado adiante. Tal como afirmou Oliveira (1984, p. 51-52), essa redefi-nição promoveu alterações significativas na organização socioe-conômica brasileira. Ao mesmo tempo em que, devido a este pro-cesso, o Sul e Nordeste brasileiros elevaram significativamente sua participação na atividade agrícola, essa atividade decaiu no Sudeste. Em contrapartida, esta região elevou exponencialmente sua participação na atividade industrial, que, por sua vez, decaiu progressivamente nas duas regiões anteriores. Porém, foi na chamada região de Cerrado, que correspon-de à porção oeste brasileira, que ocorreu uma das principais trans-formações decorrentes desse processo. Em poucas décadas, São Paulo “integrou”, produtivamente, a porção oeste do território mineiro e os estados da região Centro-Oeste brasileira, áreas que viriam a se constituir, já nas últimas décadas do século passado, comandadas por São Paulo, como a principal “região” do comple-xo agroindustrial brasileiro.

A modernização técnica do território como fundamento de sua apropriação e sua condição para a reprodução capita-lista do espaço

Conforme já dito, a expansão agroindustrial no sentido oeste do território brasileiro foi, em grande medida, decorrente da modernização industrial que se expandiu a partir de São Paulo. Esta expansão também foi decorrente, entre diversos aspectos, da elevação do preço da terra, ocorrida devido à demanda e atributos integrados a partir da modernização técnica do território. Simultâneo à elevação do preço da terra na então chamada região Centro-Sul (que tem São Paulo como seu núcleo e alcança porções do território mineiro, fluminense e paranaense), o Estado engendrou diversos projetos destinados à modernização da porção oeste do território, tais como o Programa de Desenvolvimento dos Cerrados (POLOCENTRO); o Programa de Crédito Integrado e Incorporação dos Cerrados (PCI) e o Programa de Cooperação

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Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento do Cerrado (PRODE-CER), entre outros específicos de cada região. Estes programas, elaborados e executados pelo Estado, destinaram-se, como objetivo geral, à modernização do Cerrado, inserindo-o como parte fundamental não apenas do complexo agroindustrial brasileiro em si, mas como importante componen-te do desenvolvimento regional, que se materializou também por uma complexa urbanização da região em questão. Um dos aspectos que denotam a intrínseca relação destes programas elaborados para o desenvolvimento do Cerrado com o ordenamento territorial brasileiro, superando sua condição frag-mentária, é que sua elaboração fez cumprir os pressupostos polí-tico-econômicos definidos para o desenvolvimento agrícola esta-belecidos no I e II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), o que, por sua vez, também os reforça como uma geopolítica do e para região de cerrados, fundamentado no complexo agroindus-trial. Entretanto, o que é essencial considerar é que os mesmos cumpriram a importante função de modernizar porções estraté-gicas da região do Cerrado, que, por sua vez, funcionaram/fun-cionam, devido à urbanização engendrada, como mediação entre o local da produção e os centros decisórios em escala nacional e mundial. Como ponto em comum, programas como estes citados anteriormente apresentaram o objetivo de intervir nas condições naturais presentes nas regiões ocupadas pelo Cerrado. Embora, em geral, essa região apresente condições bastante favoráveis à meca-nização da atividade agrícola, bem como à conformação de grandes propriedades rurais – tais como seu caráter plano e o fato de serem terras devolutas em grande parte –, os limites apresentados apare-ciam como um grande entrave à sua incorporação no ordenamento territorial engendrado pelo Estado. Foi neste contexto que progra-mas como o PRODECER e o POLOCENTRO foram essenciais não apenas à modernização territorial demandada, como também à geopolítica que se estabeleceu no e sobre a região de cerrados, já que estes projetaram sobre o território as políticas econômicas elaboradas no âmbito do Estado para a reprodução capitalista do espaço, atribuindo-lhes um caráter geográfico.

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Conforme já afirmado, estes programas, PRODECER e POLOCENTRO, visaram garantir o financiamento estatal para a atividade agrícola. Contudo, para além desta condição, o que es-sencialmente produziram foram os novos termos, estabelecidos de antemão, definindo, assim, quais os sujeitos poderiam recorrer às vantagens oferecidas, como as linhas de crédito e financiamento, apontando para a clara substituição dos agricultores tradicionais para os empreendedores rurais que se constituiriam no substrato do complexo agroindustrial brasileiro desenvolvido na região. Além dos financiamentos e incentivos implantados via pro-gramas de desenvolvimento da região de Cerrado, o Estado também atuou fortemente no sentido de garantir a modernização necessária ao território, sendo que esta se deu por duas vias principais. A primeira dela ocorreu por meio de “políticas” de desen-volvimento de polos regionais urbanos. O objetivo deste incentivo foi o de instalar na região polos estratégicos que pudessem sub-sidiar o desenvolvimento que se demandava. Neste sentido, não causa estranheza que grande parte dos espaços urbanos localiza-dos na região de modernização do Cerrado consubstancie-se em mediadores entre os locais de desenvolvimento direto da ativida-de e os centros de controle. Foi também em função deste processo que estes espaços urbanos vivenciaram um intenso processo de crescimento e desenvolvimento socioeconômico, além da comple-xificação de sua urbanização, que, entre outros aspectos, também se materializa pela estratificação e aprofundamento da segregação socioespacial. Outra característica essencial desse processo de ur-banização foi o aprofundamento da relação de dependência que se estabeleceu entre os núcleos urbanos menores em função da “ci-dade polarizadora”. Processo em que esta, ao mesmo tempo em que se constitui em solução para as demandas dos núcleos urbanos menores, também se torna um entrave ao desenvolvimento das ci-dades sobre as quais exerce sua influência como polo regional. O ordenamento territorial brasileiro, em cujo planejamento regional estabeleceu para o Cerrado o “lugar” da atividade agroindustrial, teve como fundamento o necessário desenvolvimento urbano em pontos estratégicos, que cumpririam a função de mediar as mo-dernas e modernizadoras relações socioespaciais que se estabele-

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ceriam, principalmente a partir dos anos de 1960, como explicitou Vainer (2000) ao refletir sobre as políticas migratórias no Brasil. A segunda estratégia adotada é a que se refere às condi-ções necessárias para a modernização técnica do território. Esta foi, sem dúvida, uma das principais formas de transferências de recursos do Estado, via empreendimentos estruturais, como os eixos viários, hidrelétricas, armazéns etc. Somados a estes inves-timentos estruturais diretos, os investimentos em conhecimento técnico-científico também desempenharam importante papel. Em princípio, investimentos específicos e direcionados, tal como se é possível observar na criação de empresas como a Empresa Bra-sileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA). Posteriormente, a estes também se somaram investimentos mais gerais no desen-volvimento técnico-científico, que se traduziram na criação e/ou ampliação de universidades federais ou estaduais, bem como nos centros de educação técnica e tecnológicos. Associadas, estas estratégias adotadas pelo Estado consti-tuíram-se em fortes indutoras da urbanização e modernização ne-cessárias, conformando a ocupação e apropriação direta da região, inserindo-a diretamente no “setor” produtivo, ao mesmo tempo em que esta se tornava escala para a continuidade da extensão da fronteira econômica no sentido do extremo oeste/norte do território.

A geopolítica do Cerrado como etapa da geopolítica territo-rial brasileira: da ocupação do Cerrado à “última fronteira”

Concomitante aos investimentos direcionados para a difusão da modernização técnica da porção Oeste do território brasileiro – em grande parte correspondente à região de Cerrado –, desenvol-veu-se também, principalmente via educação, uma determinada representação acerca dos biomas brasileiros característicos, que, em princípio, orientou a regionalização brasileira. As formações vegetacionais características das regiões Sul, Sudeste e Nordeste, em função do longo e acentuado pro-cesso de desenvolvimento, foram, já em meados do século pas-sado, quase que figurativas. Desta maneira, a partir das décadas de 1970/80, quando se consubstanciou determinada preocupação

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ambiental, nestas regiões houve um movimento predominante de criação de áreas de proteção ambiental na forma de Unidades de Conservação (UCs), como forma de se garantir reservas ambien-tais. Por sua vez, três grandes biomas brasileiros apareciam bastante preservados ambientalmente nos anos de 1960/70: o Pan-tanal, a Amazônia e o Cerrado. Aos dois primeiros foi associada determinada representação, cujo argumento orientou pela necessi-dade de preservação de suas características naturais, processo que garantiu que os mesmos configurassem-se como reservas ambien-tais que, posteriormente, viriam a ser normatizadas. Porém, enquanto os biomas Pantanal e Amazônia eram exaltados em função de suas riquezas naturais e sua importância para o equilíbrio ambiental brasileiro, quiçá mundial – principal-mente em relação à Amazônia –, o bioma Cerrado recebeu outra representação. De fato, na descrição tradicional que lhe foi atri-buída, o mesmo foi representado como um bioma de baixa biodi-versidade, caracterizado por um solo pobre e por uma vegetação também pobre, retorcida e de baixa estatura. Representada nestes termos, ao mesmo tempo em que o escopo ambiental não a reco-nhecia como lugar a ser preservado, a região de Cerrado brasileira foi, em poucas décadas, amplamente transformada, o que resultou das funções atribuídas a esta região devido ao lugar que esta ocu-pou/ocupa no ordenamento territorial brasileiro, o que definiu sua apropriação. Tendo sido considerada nestes termos, a região de predo-minância do bioma Cerrado foi quase que integralmente moder-nizada nas últimas décadas. Todavia, essa modernização não se restringiu – como de fato não poderia restringir-se – ao território. Ela alcançou e redefiniu as relações sociais, impondo a estas a mesma modernização ou o total alijamento daquelas que não pu-deram se adequar. Estabelecida desta maneira, a modernização que redefiniu o lugar e o sentido atribuído à região do Cerrado contribuiu, em ampla medida, para o estabelecimento do que pode ser considerado como uma geopolítica do Cerrado, se considerar-mos a geopolítica como o apoderamento efetivo do território pelo Estado, cuja apropriação se expressa geograficamente.

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Ao promover a modernização da região Oeste, da qual a produção de Brasília foi um dos marcos essenciais, o Estado (re)produziu nesta porção de seu território as condições de apropria-ção do mesmo, redefinindo os termos de sua reprodução. E foi a partir de sua ação incisiva que as formas tradicionais de reprodu-ção socioespacial foram/são completamente rompidas para a ins-talação do novo modelo de reprodução social do espaço. Porém, tal ação não permitiu apenas ao Estado apropriar-se decisiva e incisivamente de seu território, a partir das diver-sas estratégias engendradas, tais como apresentadas por Martins (1984). Ela permitiu também que o Estado redefinisse os prota-gonistas desta modernização, processo que revelou a imbricada relação das classes dirigentes e dominantes. Foi neste contexto que estas últimas tornaram-se as grandes proprietárias dos territó-rios em questão, até outrora pertencentes ao Estado e usados para a reprodução da vida pelas populações tradicionais que viriam a ser expropriadas como efeito desta modernização, a qual preparou a região para (re)inseri-la no ordenamento territorial engendrado. Assim, a região, supostamente caracterizada pela vegetação pobre e retorcida, tornou-se não apenas lócus da pujança da atividade agrícola moderna, mas também importante lócus da reprodução capitalista do espaço. Como resultado deste intenso processo de modernização, que significou, indubitavelmente, a destruição das características naturais do Cerrado, deste bioma resta, segundo dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), na atualidade, algo em torno de 20% de sua área original que ainda não foi substituída pela atividade agrícola modernizada ou pela urbanização que a sustenta em uma relação de indissociabilidade. É diante deste novo quadro que a representação acerca do Cerrado (e também da Amazônia e do Pantanal) é reelaborada. Outrora considerado como pobre, o que hoje resta deste bioma é re-conhecido como um bioma rico, complexo e de importância fundamental para o equilíbrio ambiental brasileiro, o que exige, então, a preservação/conservação do que resta deste bioma em forma de unidades de conservação, a fim de manter o equilíbrio necessário.

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Contudo, opera-se aí, pelo discurso responsável pela nova representação, uma importante e estratégica reapropriação das re-servas que, se aparentemente foram ambientais, mas que se ex-plicitam hoje que foram, de fato, reservas de valor no âmbito da geopolítica que orientou/orienta o ordenamento territorial brasi-leiro. Isto porque as regiões que outrora deveriam ser preserva-das – Amazônia e Pantanal – enquanto o Cerrado era o lócus da expansão produtiva, configuram-se como as novas (apesar de não tão novas assim) fronteiras da expansão econômica engendrada pelo Estado. Novamente, tal processo também ocorre em associa-ção com os grupos privados que se apoderam não só do território, mas, por meio dele, também dos investimentos (e valorização cor-respondentes) para a modernização dos mesmos, empreendidos pelo Estado. Mas se o que se configura atualmente aparece como uma repetição do que se constituiu como uma “geopolítica” sobre o Cerrado, nestas regiões o processo incorpora novos elementos. É neste sentido que, a meu ver, o modelo de unidades de conserva-ção tem sido estendido para estes biomas. Se, supostamente, para garantir os benefícios ambientais que o Cerrado oferece basta a manutenção de reservas ambientais do que foi este bioma, por fato dado, o que impede que a importância e benefícios que Ama-zônia e Pantanal têm hoje sejam mantidos também pelo modelo de reservas ambientais? E, se assim o for, bastaria então garantir a preservação necessária nas unidades de conservação, liberando, assim, para a modernização necessária ao ordenamento engendra-do pela geopolítica do território, as demais áreas, que, por esta lógica, não necessitariam ser protegidas. Sob tal premissa, o Estado garante não apenas a elevação de sua capacidade produtiva pela inserção de todas as regiões no ordenamento territorial engendrado, mas também garante a ocu-pação das áreas situadas mais a Oeste e Norte, vistas com preo-cupação pelo Estado como áreas de baixa densidade demográfica. Ainda sob esta lógica, se estas áreas forem mais densamente po-voadas e mais produtivas, a população residente se constituiria, então, em importante defesa de seus recursos investidos, o que, no limite, significa a defesa e vigília do próprio território.

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Ao operar desta maneira, o objetivo central que compõe o projeto de Estado, engendrado há mais de cem anos, realiza-se na medida em que o ordenamento territorial que re-atribuiu novas funções ao planejamento regional parece garantir as condições que o fundamentam como o necessário à reprodução capitalista do espaço.

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A SUPERAÇÃO DO SERTÃO EM ÁREAS DE CERRADO: o caso da transubstanciação

do Sertão da Farinha Podre em Triângulo Mineiro1

Artur Monteiro Leitão Júnior

Considerações iniciais: a questão sertaneja na formação ter-ritorial brasileira

A formação territorial brasileira é, por excelência, um processo histórico que não foi concluído com a Independência e, tampouco, em nossa história colonial, estando em curso ainda nos dias de hoje quando se considera, por exemplo, a legitimação e o “aproveitamento” socioeconômico e político do território defini-do juridicamente sob a soberania do Estado brasileiro. Isso porque a formação territorial não se refere tão somente à integração de porções territoriais aos domínios legitimados de um Estado nacio-nal, mas também às efetivas inclusões de tais porções no escopo das lógicas socioculturais e político-econômicas hegemônicas da macroestrutura organizacional estatal. Sob esse pressuposto, as representações cartográficas da dinâmica urbana do território brasileiro também podem ser li-das enquanto representações da manifestação candente de uma marcha civilizatória/modernizadora, em que os nós urbanos da hinterlândia nacional configuram-se, na condição de importantes interseções de nossa emaranhada rede urbana, como pontos de

1Adaptação de parte do primeiro capítulo – intitulado Modernidade em marcha e superação dos sertões: uma saga histórica e literária – da disserta-ção de mestrado As Imagens do Sertão na Literatura Nacional: O projeto da modernização na formação territorial brasileira a partir dos Romances Regionalistas da Geração de 1930, sob a orientação da Profa. Dra. Rita de Cássia Martins de Souza Anselmo, defendida em junho de 2012 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia (IG-UFU).

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não-sertão – isto é, pontos invocadores da superação dos sertões. Isso porque a condição não-sertaneja evoca, contemporaneamen-te, uma associação relacional bastante estreita com o modus vi-vendi urbano, sintonizado ou referenciado em padrões de vida ali-nhados aos estatutos da modernidade hegemônica: é sob o modo de vida urbano, pretensamente ubíquo nas cidades e mesmo nos campos, que a modernidade é “experimentada”, fazendo rever-berar – ainda que respeitando-se, obviamente, as idiossincrasias locais/regionais – a sensação de “participação no mundo”. Assim, sob o panorama genérico do não-sertão, relacio-na-se a interiorização da urbanização com a interiorização da (experiência da) civilidade/modernidade, em que se ressalta o caráter histórico da urbanidade moderna: historicamente, no âm-bito da concertação mundial dos países, o Brasil constantemente se “percebeu” em atraso, pleiteando, segundo uma necessidade continuamente reatualizada conforme parâmetros e insígnias mu-táveis, uma sintonia da nação brasileira aos principais centros político-econômicos do cenário mundial; a essencialidade dessa necessidade ensejou a transformação das urbes em ovacionados monumentos, calcados em aspectos materiais (as infraestruturas técnicas) e ideais (os ditos códigos civilizatórios). Com essa sinonímia reclamada entre o “espalhamento ter-ritorial” do não-sertão e a (experiência da) civilidade/modernida-de, tem-se um processo histórico complexo em que as pretéritas interiorizações (ou “continentalizações”) da produção e reprodu-ção do espaço luso-brasileiro se processaram enquanto interessan-tes capítulos da história de nossa formação territorial. Um caso emblemático dessa relação foi a transubstanciação, na “história oficial” regional, do Sertão da Farinha Podre em um não-sertão (o atual Triângulo Mineiro). A inclusão, a partir da segunda me-tade do século XVIII, dessa “borda oriental” do Cerrado às lógi-cas hegemônicas da Coroa lusa – e, posteriormente, do Império brasileiro – foi de suma importância para que a soberania sobre a extensa porção Oeste do território fosse assegurada. Por isso, este artigo tenciona apresentar um panorama geral da “história oficial” da formação territorial dessa região, encarando-a como um capítulo particular do contínuo processo

Artur Monteiro Leitão Júnior

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dialógico de atualização/renovação e necessidade de superação dos sertões nacionais, a partir do qual a transformação das lógi-cas hegemônicas convida à permanente saga de transubstanciação do Sertão em não-sertão. Esse é o pano de fundo que norteia a apresentação dos fatores que deram origem ao Sertão da Farinha Podre, no extremo oeste do atual Estado de Minas Gerais, con-siderando as estratégias geopolíticas de ocupação e colonização dessas paragens, conectando-as aos anseios do Estado – conjuga-dos com as vontades das elites locais – de transformação desses espaços em áreas integradas aos domínios efetivos luso-brasilei-ros: ou seja, em locais destinados a terem a sua condição sertane-ja superada. Foi esse anseio que norteou o Estado e a elite local – com a contribuição dos migrantes geralistas – a transformar Uberaba (no século XIX) e depois Uberlândia (sobretudo a partir de meados do século XX) em centros catalisadores da moderniza-ção do interior brasileiro e, portanto, de transubstanciação desse sertão que ora se apresentava em um não-sertão. Esse processo de transubstanciação tem a sua magna im-portância por, a partir de múltiplos casos particulares, se confi-gurar como um mote estatal básico, uma recorrência essencial da formação territorial brasileira – chave interpretativa crucial no deslindamento das reflexões e interpretações acerca da natureza existencial brasílica.

Sobre a noção de Sertão: reflexões primárias

Antes de proceder com o decurso histórico propriamente dito, faz-se necessária a caracterização do que aqui se entende por Sertão: é uma noção (ou, formalmente, um conceito), conceben-do-o como uma representação mental de um objeto, destacando-se o seu aspecto informante, sob uma perspectiva abstrata. Dessa forma, mais do que uma dada referencialidade material – ou, em outras palavras, uma categoria geográfica –, o Sertão designa uma essencialidade mais abstrata que pode referir-se a um conjunto mais amplo e concreto de localidades, sendo estas caracterizadas, a partir da perspectiva assumida, como uma ou mais categorias geográficas (território, ambiente, paisagem, região).

A SUPERAÇÃO DO SERTÃO EM ÁREAS DE CERRADO

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Imbuída geneticamente de uma essência política, Amado (1995) coloca que, desde o século XII (ou, certamente, desde o século XIV), o Sertão2 (ou “certão”) referia-se a áreas situadas no interior de Portugal, mas distantes de Lisboa. A partir do século XV, o uso desse termo se alastrou para designar espaços vazios, interiores, dentro dos limites das áreas conquistadas recentemente ou contíguas a elas, mas sobre as quais pouco ou nada se sabiam. No âmbito da formação do Império Colonial Português, as colô-nias portuguesas (como o Brasil) assumiram, além da concepção original lusitana – de espaços vazios, pouco habitados, longín-quos e incógnitos – uma nova concepção: eram “terras ‘sem fé, lei ou rei’, áreas extensas afastadas do litoral, de natureza indomada, habitadas por índios ‘selvagens’ e animais bravios, sobre os quais as autoridades portuguesas, legais ou religiosas, detinham pouca informação e controle insuficiente.” (AMADO, 1995, p.148). Em Portugal, à medida que o império colonial foi ruindo, o aspecto sertanejo passou a conter, em termos oficiais semânticos, apenas a noção generalista de “interior”; no Brasil (e demais colônias), no entanto, o Sertão não se esvaziou de seu significado político. A perspectiva de relação entre a noção de Sertão e uma base constitutiva política se coaduna com as reflexões de Mora-es (2009), para o qual os espaços sertanejos não se caracterizam como uma materialidade que resulta de processos naturais de mo-delagem de uma porção da superfície terrestre (como um bioma, um ecossistema, um compartimento geomorfológico etc.), nem, tampouco, como um espaço produzido pela sociedade (como uma plantação, vila, cidade etc.): isso significa que o Sertão não é um compartimento fisiográfico – ainda que predominem o ritmo e a força naturais – ou uma paisagem culturalmente elaborada, sendo mais apropriada a correlação desses espaços com os dos “vazios

2Amado (1995) procura estabelecer uma origem etimológica para o sertão: “Segundo alguns estudiosos (Nunes, 1784:428), “sertão” ou “certão” seria corruptela de “desertão”; segundo outros (Teles, 1991), proviria do latim clássico serere, sertanum (trançado, entrelaçado, embrulhado), desertum (desertor, aquele que sai da fileira e da ordem) e desertanum (lugar descon-hecido para onde foi o desertor).” (AMADO, 1995, p.147).

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demográficos” ou “terras desocupadas” (MACHADO, 1995). Ante tantas negações apriorísticas, o que se coloca como susten-táculo, então, é a concepção de que o Sertão não é um lugar (no sentido de designar uma materialidade terrestre localizável, passí-vel de ser delimitada e cartografada a priori), mas uma condição (um qualificativo básico imposto, implicando no processo de atri-buição de valor de determinadas condições locacionais). Desse modo, o Sertão configura-se como uma representa-ção acerca do espaço (e de todos os seus conteúdos) que alimenta, genericamente, ações, pensamentos, projeções e novas represen-tações; é, pois, uma ideologia geográfica, geralmente negativa:

Trata-se de um discurso valorativo referente ao espaço, que qualifica os lugares segundo a mentalidade reinante e os interesses vigentes nesse processo. O objeto empírico desta qualificação varia espacialmente, assim como va-riam as áreas sobre as quais incide tal denominação. Em todos os casos, trata-se da construção de uma imagem, à qual se associam valores culturais geralmente – mas não necessariamente – negativos, os quais introduzem objeti-vos práticos de ocupação ou reocupação dos espaços en-focados. Nesse sentido, a adjetivação sertaneja expressa uma forma preliminar de apropriação simbólica de um dado lugar (MORAES, 2009, p.89).

Por conseguinte, o que se tem é a construção de um imagi-nário do Sertão, adaptado, de modo conveniente, a diferentes re-alidades, congregando juízos e projetos político-espaciais distin-tos. Assim, no âmbito desse imaginário podem ser identificadas recorrências que permitem encetar uma determinada essência a esta noção: ao qualificativo de Sertão aparece “colada” a ideia de uma localidade com projetos de valoração futura em moldes dife-rentes dos vigentes até então3, e, não desvinculado a esta acepção,

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3“Nesse sentido, pode-se dizer que os lugares tornam-se sertões ao atraí-rem o interesse de agentes sociais que visam estabelecer novas formas de ocupação e exploração daquelas paragens. A noção pode, então, ser equa-cionada como elemento de argumentação no processo de hegemonização de políticas e práticas territoriais do Estado ou de segmentos da sociedade.” (MORAES, 2009, p.90).

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tal qualificativo aparece como uma valoração aplicável a novos lugares ou para novas “ondas colonizadoras”:

O sertão é comumente concebido como um espaço para a expansão, como o objeto de um movimento expansionista que busca incorporar aquele novo espaço, assim denominado, a fluxos econômicos ou a uma órbita de poder que lhe escapa naquele momento. Por isso, tal denominação geralmente é utilizada na caracterização de áreas de soberania incerta, imprecisa ou meramente formal. No geral, utiliza-se o termo sertão para qualificar porções que se quer apropriar dos fundos ainda existentes no território nacional em cada época considerada. (MORAES, 2009, p.90-91).

Nesse contexto, o Sertão só existe a partir da alteridade, quando contraposto à noção de não-sertão – isto é, ele assume-se como parte de uma realidade cindida e dual, adquirindo uma identidade pela ausência, a partir de sua antípoda (o não-sertão), que, em grande parte do pensamento social brasileiro, foi identifi-cado sob a condição genérica de Litoral4. Genericamente dotado de positividade, o não-sertão atribui aos espaços sertanejos uma sensibilidade estrangeira e de interesses exógenos, tencionando

4Das retóricas narrativas do pensamento social brasileiro que qualificam o espaço físico e social da nação emergem representações nacionais cunha-das no dialogismo Sertão/Litoral, reconhecendo tais porções territoriais en-quanto classificações aptas a comunicar o processo permanente de formação nacional, configurando-se como recursos nominadores capazes de ajudar na apreensão da estruturação do país. (SOUZA, 1997). Tem-se, pois, uma tra-dição temática e uma perspectiva de interpretação social brasileira a partir das imagens de Sertão e Litoral. Nesse sentido, duas perspectivas opostas conviveram na sanha interpretativa/explicativa da brasilidade a partir dessas porções territoriais: a ideia de um país moderno no Litoral em contraposi-ção a um país refratário aos ditames da modernização no interior, espaço da “barbárie” ou do “atraso” cultural; e a concepção de autenticidade do Sertão contrastante ao “parasitismo” e “superficialidade” litorâneos. (LIMA, 1999). Assim, enquanto matriz do pensamento e da interpretação de Brasil, a visão dualista das representações geográfico-sociais calcadas no par Litoral/Sertão transformou-se em eixo central do processo de nation-building.

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transformá-lo – intenção, é preciso destacar, que perpassa inclu-sive as concepções positivas dos espaços sertanejos, pois, em tais posturas, a condição positiva aparece latente, adormecida, sendo necessária despertá-la (efetivá-la em realidade) por intermédio de ações intervencionistas5. Enquanto espaço-alvo de projetos vindos do Litoral, aos espaços sertanejos cabe, a princípio, a sua apropriação simbólica: faz-se reverberar, portanto, o projeto de conhecimento e divul-gação, donde se destacam as práticas corográficas e cartográfi-cas enquanto resposta ao Sertão caracterizado como uma terra de domínio do incógnito, pouco ou nada conhecida. Ademais, por ser o espaço do “outro” e da alteridade, ao imaginário qualifica-tivo de Sertão se junta a caracterização de ser um lugar isolado e distante – referenciais culturalmente variados –, lugar das dife-renças (paisagísticas e, sobretudo, de cunho cultural) e território de perfil não-urbanizado, habitat das “populações tradicionais” (DIEGUES, 1996), tais como caipiras, “bugres”, quilombolas, ca-boclos, ribeirinhos, caiçaras etc.6 O universo sertanejo é, destarte, marcado pelo modus vivendi rural, distinto por sua dispersão e pela vida agrária, pecuarista e/ou extrativa; por ser estranho ao mundo da urbe, impelido cada vez mais para as áreas marginais economicamente, o Sertão aproxima-se da noção de fronteira, configurando-se como um sertão-fronteira. (NOGUEIRA, 2008).

5Moraes (2009), pautando-se nas argumentações de Velloso (1983) e de Di-niz Filho (1994), coloca que esta foi a postura, por exemplo, dos intelectuais do Estado Novo, os quais buscavam enfatizar a autenticidade e a originali-dade da vida sertaneja. Estas características deveriam guiar um novo projeto nacional para o país, tendo como eixo central a incorporação das suas terras e de seus recursos (riquezas).6Os sertões configuram-se como espaços cujos habitantes são cultural ou ra-cialmente distintos na classificação dos tipos nacionais: conforme Schwarcz (1993), tratam-se, pois, de localidades povoadas por seres descendentes de outra época ou de outra origem em relação ao padrão-tipo formador da nacionalidade. Mesmo quando identificado como um tipo genuinamente nacional, o sertanejo é definido como um segmento diferente, exótico ou arcaico, dotado ou não de alguma positividade (de acordo com o discurso considerado).

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No escopo do imaginário popular, portanto, a noção de Sertão ratifica a concepção do “país em construção”7. A tarefa épica permanentemente atualizada de construção da nação se pro-cessaria por uma volta a si mesma, para o seu interior, a partir de um aproveitamento de suas próprias potencialidades, sendo uma espécie de atualização histórica dos movimentos de bandeirantis-mo. Dessa forma, por conta desses densos “revestimentos” e sig-nificações políticas, esta noção não é nada ingênua, designando, pois, um qualificativo dos lugares (e, consequentemente, de seus habitantes), sempre acompanhada de projetos (sejam eles circuns-critos aos ideais de povoação, civilização ou modernização), com vistas à incorporação na economia nacional – ou, em outras pala-vras, à integração à lógica do capital. De Sertão a não-sertão: o caso da transubstanciação do Ser-tão da Farinha Podre em Triângulo Mineiro

Voltando-se para a questão histórica regional, tem-se, contemporaneamente, que o município de Uberlândia, localizado na porção oeste do Estado de Minas Gerais, ostenta uma posição de destaque no cenário nacional, cuja importância talvez possa ser aferida simbolicamente pela alcunha que a classe hegemônica uberlandense pretende fazer com que a urbe ostente e pela qual seja reconhecida: a de Capital Nacional da Logística. Distante do litoral atlântico – palco para o qual foram, historicamente, direcionados os maiores fluxos econômicos brasileiros –, Uberlândia floresceu em meio aos projetos e práticas estatais de interiorização da

7Moraes (2008) coloca que, na formação brasileira, todos os condicionantes da conquista espacial mantêm-se ativos desde o processo de Independên-cia, pois o país foi, geneticamente, marcado pelo domínio de vastos fundos territoriais. Essa particularidade empresta ao Brasil um projeto estatal que, mesmo que fora constantemente renovado, assentou-se constitutivamente sobre bases geopolíticas: “Construir o país é o mote ideológico que orien-ta um projeto nacional que, atravessando diferentes conjunturas e distintos atores políticos, firma-se como uma das metas hegemônicas na história do império brasileiro. A eficácia de tal ideologia advém do fato de agregar num mesmo enunciado um conjunto de valores caros às elites, entre eles a sacra-lização do princípio da manutenção da integridade do território nacional, valor supremo justificador de qualquer ação estatal.” (MORAES, 2008, p.93, grifo do autor).

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colonização, tendo no interesse próprio dos geralistas de ocupação e posse das novas terras, mais férteis, e nas diretrizes geopolíticas do Estado luso-brasileiro de efetiva ocupação e colonização do imenso território brasileiro as “válvulas de escape” para que os sertões do oeste mineiro entrassem no cenário das porções territoriais incluídas na lógica de poder dominante. No século XIX, quando as primeiras famílias luso-bra-sileiras se estabeleceram no atual Triângulo Mineiro, essa porção do território já havia se transformado em um dos principais pontos de passagem para os viajantes, sobretudo aqueles que iam das ca-pitanias (depois províncias) de São Paulo e Minas Gerais para a Fronteira Oeste, nos atuais estados de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Oficialmente fundada no ano de 1888, a cidade de Uberlândia, segundo a laudatória retórica oficial, cresceu e desen-volveu-se em virtude de sua privilegiada localização, ainda mais destacada com a chegada de uma linha da Ferrovia Mogiana (1895) e, posteriormente, com a interiorização da capital federal a partir da construção de Brasília (inaugurada em 1960), solidificando a es-trutura de Uberlândia para se tornar a capital logística do Brasil (PREFEITURA MUNICIPAL DE UBERLÂNDIA, 2007/8, p.3) e oficializar a sua vocação para o dito turismo de negócios. A sua comentada mentalidade progressista e voltada para os negócios, alicerçada em tons marcadamente competitivos, transformou em obsessão o crescimento econômico e a busca pela atração de investidores8. A polaridade da urbe uberlandense no

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8Nesse sentido, o poder executivo local lançou a publicação Uberlândia, ca-pital nacional da logística, a qual compila, a partir de uma heterogênea base institucional e temporal de pesquisa, uma série de dados que buscam legitimar as posições de destaque deste centro urbano no que se refere, por exemplo, à dimensão demográfica, ao tamanho do mercado consumidor, à disponibili-dade de infraestrutura para investimentos, ao recolhimento de receitas, à ca-pacidade de sediar eventos internacionais, à dimensão da rede hoteleira e à dimensão da frota de veículos (PREFEITURA MUNICIPAL DE UBERLÂN-DIA, 2007/8, p.9). Portanto, a retórica oficial do governo municipal pauta-se em dados estatísticos bem selecionados: são dados de um universo limitado, alicerçado em tópicos mercadológicos e financeiros que sobrelevam a impor-tância da capacidade produtiva e do furor de consumo no âmbito da urbe uberlandense. O estatuto de “terra de negócios” torna-se, assim, emblemático, de modo que outras variáveis – como indicadores relacionados à educação, à saúde, à cultura, ao desenvolvimento social em geral etc. – não se tornam tão interessantes quanto os dados econômicos para a argumentação e consolida-ção da imagem de polo econômico com a qual se pretende revestir a cidade.

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interior brasileiro, em que pesa a negação do seu caráter sertanejo – relegado ao pretérito –, indica uma necessidade de superação da condição sertaneja – algo emblemático para o polo da atual região do Triângulo Mineiro, outrora conhecida como Sertão da Farinha Podre. O princípio da “história oficial” da região do atual Tri-ângulo Mineiro9 está atrelado a um legítimo estado de “área de passagem” a partir do estabelecimento, em 1730, da Estrada dos Goiases, caminho régio exclusivo de ligação entre a Capitania de São Paulo e a região mineradora recém-descoberta na fronteira ocidental. Nesse momento histórico dos primórdios da “coloni-

9A “história oficial” da atual região do Triângulo Mineiro, no extremo oeste de Minas Gerais, será abordada superficialmente a partir dos trabalhos de Lourenço (2005; 2010): assim, tal análise histórica regional será, consciente e intencionalmente, delineada a partir de eventos ou matrizes estruturais primazes, suscitando possivelmente uma impressão de linearidade histórica, de simples justaposição de eventos ou fatos históricos; no entanto, reconhe-ce-se que a realidade do processo histórico se desenvolve de modo bem mais complexo, enovelando-se em relações causais e desenvolturas de universos variados de opções e escolhas socialmente assumidas, de modo que o mo-delo histórico aqui apresentado é fruto de (intencionais) simplificações e generalizações – em que pesam a recorrência a hiatos históricos canden-tes. Acerca de um esboço ampliado da história regional à luz do caso de transubstanciação do Sertão da Farinha Podre em Triângulo Mineiro, ver LEITÃO JÚNIOR, Artur Monteiro; ANSELMO, Rita de Cássia Martins de Souza. Uberaba e Uberlândia: o Sertão transubstanciado em Não-Sertão – um estudo de caso da modernização do interior no Sertão da Farinha Podre. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM GEOGRAFIA, 9., 2011, Goiânia. Anais... Goiânia, 2011. Para um estudo mais aprofundado da história regional, ver, entre outros: TEIXEIRA, Tito. Bandeirantes e Pioneiros do Brasil Central: his-tória da criação do município de Uberlândia. Uberlândia: Uberlândia Gráfi-ca, 1970. 2v.; ARANTES, Jerônimo. Corografia do Município de Uberlândia. Uberlândia: Pavan, 1938; SOARES, Beatriz Ribeiro. Uberlândia: da “Cidade Jardim” ao “Portal do Cerrado” – Imagens e Representações no Triângulo Mi-neiro. 1995. 347f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universi-dade de São Paulo, São Paulo; PONTES, Hildebrando. História de Uberaba e a Civilização do Brasil Central. Uberaba: Academia de Letras do Triângulo Mineiro, 1978; MENDONÇA, José. História de Uberaba. Uberaba: Academia de Letras do Triângulo Mineiro, 1974; MATOS, Raimundo José da Cunha. Corografia histórica da Província de Minas Gerais (1837) – Volume II. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 1981.

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zação oficial” da Capitania de Goiás – destacando-se que a atual região do Triângulo Mineiro integrava a Capitania de Goiás até 1816, quando foi transferida para a Capitania de Minas Gerais –, diversas incursões dos índios caiapós ameaçaram a estabilidade dos arraiais auríferos, sobretudo no tráfego pela estrada régia, prova-velmente atuando de modo decisivo para a ausência de povoados e fazendas nas faixas de terra do baixo Paranaíba e baixo rio Gran-de (atual sul de Goiás, noroeste de São Paulo, pontal do Triângulo Mineiro e leste de Mato Grosso do Sul) – região conhecida, no início do século XIX, por Caiapônia. (LOURENÇO, 2005). Essa resistência indígena atribuía a esta região, pois, o estatuto do que aqui se entende por Sertão, ao impedir a definitiva instauração da soberania do Estado Colonial. Motivada pela insegurança gerada por tais “bárbaros”, a Coroa portuguesa declarou, em meados do século XVIII, guerra aos índios caiapós, incentivando campanhas de extermínio e apre-samento desses “gentios”; assim, os caiapós foram repelidos em grande parte da porção territorial compreendida pelos rios Parana-íba e Grande, região mesopotâmica que, a partir do final do século XVIII, ficou conhecida e foi nomeada, na “cartografia oficial” do Estado, de Sertão da Farinha Podre. Os índios bororos que aju-daram na campanha de extermínio dos caiapós foram instalados em aldeamentos constituídos às margens da Estrada dos Goiases, tornando-se os responsáveis pela defesa do tráfego nesta estrada régia e configurando-se, portanto, como uma espécie de “mura-lhas do sertão”: esses indígenas aldeados passaram a representar legítimos agentes dos limites da soberania estatal, formando um “corredor de proteção” e apoio logístico às tropas que transitavam de São Paulo aos arraiais goianos. Destarte, a região ficou, até o início do Oitocentos, mar-cada por um padrão territorial dual: por um lado, tinha-se um “es-paço de penumbra” da cartografia estatal, definido pelo Sertão da Farinha Podre, ocupado por “gentios domesticados” (bororos) no jogo político do governo luso-brasileiro; por outro lado, tinha-se os “espaços incógnitos” da cartografia, definidos genericamente pela Caiapônia, em que predominava a ocupação dos “gentios selvagens” (caiapós), arredios à soberania da Coroa portuguesa.

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A condição regional sertaneja ficou, pois, assentada sobre um pa-drão territorial de aglomerações de povoados, isolados uns dos outros, segundo um modelo de “arquipélago”, por zonas inter-mediárias não colonizadas (os sertões), ligados entre si por meio de caminhos de trânsito obrigatório, de modo que estes “espaços vazios” ou sertões, colonizados pelos “bárbaros”, eram, de fato, grandes barreiras naturais aos fluxos clandestinos, desestimulan-do os contrabandos e permitindo à Coroa um maior controle do território (LOURENÇO, 2005). Enfim, notava-se uma ocupação – ainda que não contígua e sim fragmentada – pela hinterlândia, engendrando um mosaico de territórios “ilhados”, isolados e cer-cados por áreas de “ocupação proibida”. As mudanças, na segunda metade do século XVIII, das concepções geopolíticas do Reino de Portugal a partir da ascen-são do ministro Sebastião José de Carvalho Melo, o Marquês de Pombal, tiveram nítidos reflexos na postura da Coroa frente à va-lorização da hinterlândia da colônia luso-brasileira10. Incorporan-do princípios da Ilustração na política lusitana, a ampla reforma pombalina do Estado português buscou empreender uma enge-nharia político-econômica que encampasse um projeto de moder-nização institucional do Estado absolutista português, dirimindo resistências conservadoras, encarnadas, sobretudo, por famílias nobres e pela Companhia de Jesus.

10No âmbito dessa valorização da hinterlândia luso-brasileira durante o pe-ríodo pombalino, tem-se que o governador de Minas Gerais, Gomes Freire, declarou guerra aos quilombos do então oeste mineiro – porção territorial correspondente, hoje, ao centro-oeste do estado, uma vez que o atual Tri-ângulo Mineiro compunha ainda a Capitania de Goiás – sob o objetivo de alimpar aquela região com vistas à colonização. Esta política teve prossegui-mento no período mariano-joanino (1778-1822) com a declaração de guer-ra aos índios botocudos do vale do rio Doce, para a “liberação” de tal região – sertão até então conhecido e mapeado sob a alcunha de Área Proibida – para as investidas de povoamento/colonização. Como ainda restavam, no território da Capitania de Minas, áreas esparsamente povoadas no Leste (Zona da Mata e vales do rio Doce e Mucuri), no Noroeste (termo da Vila de Paracatu) e no recém Extremo Oeste (atual Triângulo Mineiro), o governo da capitania valeu-se, durante o período joanino, de dois instrumentos para a ocupação dessas regiões de fronteira: as isenções fiscais e a concessão de sesmarias. (LOURENÇO, 2005).

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Assim, no que tange à colônia brasileira, dentre os principais corolários das novas orientações político-econômicas podem ser cita-dos: (i) o enrijecimento do monopólio comercial sobre o Brasil; (ii) a expulsão e confisco das propriedades da ordem jesuítica de Portugal e, consequentemente, de todas as colônias, em 1759, a partir do recrudescimento das tensões entre os jesuítas e a elite estatal lu-sitana, preocupada em laicizar as instituições; (iii) a demarcação e o povoamento da fronteira ocidental11, a fim de garantir e legi-timar a posse portuguesa sobre o vasto território colonial; e (iv) a afirmação de uma presença mais ativa de Portugal na colônia luso-brasileira por meio de um reforço do povoamento dos princi-pais eixos de defesa do território, inclusive com a transformação do indígena em “agente povoador” e a partir do estabelecimento de dois centros internos de poder – Belém e Rio de Janeiro – com a criação do Estado do Grão-Pará e Maranhão separado do Estado do Brasil. A valorização estratégica do interior no período pombali-no refletiu-se nos projetos de povoamento/colonização dos sertões luso-brasileiros. Sob esse propósito, foram os geralistas (roceiros e criadores luso-brasileiros) que, vindos da região aurífera de Mi-nas, povoaram “oficialmente” o então Sertão da Farinha Podre no final do Setecentos e durante os primeiros anos do Oitocentos. Apesar dos fatores centrífugos migratórios estarem assentados em questões de natureza demográfica, tecnológica a ambiental – no que concerne, sobretudo, ao esgotamento das terras disponíveis para o cultivo e à impossibilidade de crescimento da produtivida-de por conta das rudimentares técnicas de produção empregadas –, o Estado foi imprescindível para este processo de colonização das fronteiras mineiras: realizou campanhas contra os quilombos ao longo do século XVIII; concedeu sesmarias; estruturou polí-ticas indigenistas; e abriu estradas e picadas a fim de facilitar a comunicação entre as novas localidades e os principais centros político-econômicos do território. (LOURENÇO, 2005).

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11Para uma abordagem do processo histórico de construção das fronteiras de Goiás e Mato Grosso entre o final do século XVIII e o início do século XIX, avançando no entendimento das influências que a espacialidade da co-lonização portuguesa teve na formação territorial brasileira, ver Nogueira (2008).

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Portanto, essas migrações geralistas – frutos de uma com-binação entre os movimentos populacionais espontâneos decorren-tes das condições socioeconômicas saturadas da região central mi-neira e as orientações e diretrizes estatais – passaram a esboçar um novo caráter ao Sertão da Farinha Podre: com os adventícios ge-ralistas, inaugurava-se um claro esforço de “ocupação oficial” das fronteiras – sem desconsiderar, contudo, a ocupação pretérita pelos índios aldeados, sendo tal ocupação elencada como um evento his-tórico dos “primórdios” da história regional sistemática e “oficial” – e superação (cuja diretriz ou palavra de ordem estava assentada, à época, sob os princípios civilizatórios) desta condição sertaneja. A ocupação territorial pelos geralistas iniciou um proces-so histórico que culminou, a partir de uma confluência de fatores no âmbito da história regional, com a transformação de Uberaba, ao final da primeira metade do século XIX, em um dos principais centros urbanos do oeste brasileiro. Concorreram para tal desta-que: a localização privilegiada entre as províncias de Goiás, Mato Grosso, São Paulo e Minas Gerais; a fertilidade dos solos, aprovei-tada pelos adventícios; e as iniciativas particulares – devidamente contextualizadas ao panorama amplo das diretrizes do poder real – do sargento-mor Antônio Eustáquio Silva Oliveira12. Como resul-tado das novas ligações de transporte – inclusive com a formação de uma rede tentacular de estradas salineiras, cujos caminhos con-vergiam em Uberaba –, das concessões de sesmarias aos geralistas recém-chegados e da política colonizadora regional, surgiram, entre 1820 e 1850, oito novos arraiais entre os rios Paranaíba e Grande, fa-zendo com que a vila de Uberaba se transformasse, em meados do

12 Segundo Lourenço (2005), Antônio Eustáquio obteve a sua liderança a partir da influência pessoal e das relações de parentesco, que lhe permitiram a posse de terras devolutas e de um grande plantel de escravos, além de cen-tralidade em relações de dependência e autoridade sobre uma coletividade de colonos livres, investindo-lhe, como corolário, de um grande prestígio, principal marco da deferência social, significando poder sobre homens e terras. Em termos de atitudes político-econômicas regionais, este potenta-do abriu uma nova estrada para Goiás, a Estrada Real, a qual se tornou a principal via de acesso das províncias de Goiás e Mato Grosso a São Paulo, encurtando em várias léguas o caminho até Cuiabá, centro político-econô-mico importante da fronteira oeste; além disso, ele promoveu a criação de um novo porto fluvial no rio Grande, o porto de Ponte Alta (atual Delta), o qual facilitava o acesso a São Paulo pela navegação fluvial.

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século XIX, em um polo político-econômico caracterizado como boca do sertão13. Em outras palavras, Uberaba se constituiu, pois, em ponto de convergência dos principais caminhos da atual região do Triângulo Mineiro e num dos mais importantes núcleos urba-nos do interior durante o Império. Essa condição de centralidade no âmbito da hinterlândia favoreceu a reverberação regional, encampada por Uberaba, das transformações estruturais brasileiras em termos de transição para uma formação socioespacial dominada pelo modo de produção capitalista: essa transição foi vivenciada nos planos de configura-ção territorial, das técnicas e das paisagens urbana e rural, sendo percebida pela população coeva como um ingresso ao mundo da civilização (LOURENÇO, 2010) e uma experimentação de autên-ticos “ares” de urbanidade, sobretudo na vila de Uberaba. Assim, a partir da década de 1870, as mudanças nas estruturas socioe-conômicas nacionais14 abalaram o arranjo tradicional da região: ainda segundo Lourenço (2010), a expansão da cafeicultura na

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13As bocas de sertão, segundo Aroldo de Azevedo (1957 apud LOUREN-ÇO, 2010, p.36), constituíam-se, a princípio, em pontos de partida para os movimentos migratórios destinados às zonas fronteiriças e, posteriormente, em núcleos de abastecimento e acesso ao mercado para os colonos que se encontravam assentados além dessas paragens. Consoante Lourenço (2005), com a transformação da região, a partir da década de 1830, em ponto nodal para a colonização – ou, em outras palavras, em zona de difusão da coloni-zação, valendo-se dos termos de Moraes (2000) – das terras situadas mais a ocidente, tendo na agropecuária o seu sustentáculo, Uberaba se firmou como centro regional no Império: “Graças à sua situação de intersecção entre dois sistemas dendríticos, Uberaba consolidou-se como boca do sertão, com características muito especiais: era intermediária entre duas cidades prima-zes – Rio de Janeiro e São Paulo –, e três regiões – Triângulo Mineiro, Goiás e Mato Grosso. Daí seu excepcional crescimento, a ponto de se transformar numa das principais cidades do interior do Império do Brasil.” (LOURENÇO, 2005, p.339-40, grifos do autor).14Consoante Machado (1995), entre as três últimas décadas do século XIX e as três primeiras do século XX ocorreu uma redefinição da identidade nacional brasileira: os sessenta anos transcorridos desde a promulgação da “Lei do Ventre Livre” (1871) e a dita Revolução de 1930 marcam, segundo a tradição dos historiadores, a ascensão do “projeto de modernização” do Brasil; esse projeto é caracterizado pela transição do trabalho escravo para o trabalho livre, a acentuação das diferenças sociais e econômicas entre as regiões brasileiras, a sucessão da monarquia pela república e o deslocamento do eixo principal do comércio brasileiro da Europa para os Estados Unidos.

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província de São Paulo criou um novo mercado para o Triângulo Mineiro, de modo que as diversificadas estruturas das fazendas locais foram alteradas, sobretudo com uma especialização na pe-cuária bovina, em favor do abastecimento das zonas cafeicultoras. Além disso, a extensão dos trilhos da Companhia Mogiana de Es-tradas de Ferro15 recrudesceu a produção alimentícia, inserindo decisivamente a região na divisão regional do trabalho comanda-da por São Paulo. O cenário apontava, então, para novos espaços citadinos, corolários do fortalecimento da elite mercantil, dos investimentos em indústrias e nas técnicas cientificistas de produção e da imi-gração estrangeira: os espaços urbanos, sobretudo na tríade Ube-raba-Uberabinha (atual Uberlândia)-Araguari, abandonaram a aparência tipicamente colonial, em que predominavam os prédios eclesiásticos na paisagem, em favor da aparência valorizada na Belle Époque, típicas das cidades republicanas que vivenciavam o processo de modernização técnica. Desse modo, essas cidades afas-taram-se dos seus núcleos primordiais ao estenderem o traçado do espaço urbano rumo às estações ferroviárias e aos trilhos por meio de amplas avenidas ajardinadas, em linha reta, interrompidas por praças ladeadas por suntuosos edifícios públicos16. Nesse período, a valorização dos imóveis urbanos significou, parcialmente, a trans-ferência de fortunas rentistas do campo para a cidade; por outro lado, próximo à Abolição (1888), encaminhou-se uma mudança nas relações de trabalho, em que o regime escravocrata passou a ceder lugar, cada vez mais, para regimes de trabalho calcados nas parce-rias e no assalariamento temporário. (LOURENÇO, 2010).

15A Companhia Mogiana de Estradas de Ferro ingressou na região em 1889, a partir de um ramal ferroviário até a cidade de Uberaba. Posteriormente, os trilhos foram estendidos a outras duas cidades ao norte: Uberabinha (atual Uberlândia), em 1895, e Araguari, em 1896, ocasionando, nessas cidades, uma guinada decisiva em prol da modernização das estruturas socioeconô-micas. (LOURENÇO, 2010).16A respeito da modernização da urbe uberlandense, ver SOARES, Beatriz Ribeiro. Uberlândia: da “Cidade Jardim” ao “Portal do Cerrado” – Imagens e Representações no Triângulo Mineiro. 1995. 347f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

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Como as mudanças não se restringiram a Uberaba – mas atingiram, em intensidades distintas, toda a região do Triângulo Mineiro –, a supremacia uberabense começou a esfacelar-se de-vido à concorrência de outros centros urbanos próximos, o que despontou, no tempo presente, para a preponderância – como já assinalada – de Uberlândia no cenário regional. Destarte, a rede urbana regional foi, ao longo do século XX, sofrendo uma trans-ferência paulatina no papel de centralidade político-econômica, passando de Uberaba para Uberlândia, até que, a partir da segun-da metade do Novecentos, esta cidade despontasse como o polo na hierarquia urbana do Triângulo Mineiro. O que se estabeleceu foi, portanto, uma re-hierarquização, contextualizada espaço-tem-poralmente, decorrente das práticas das elites locais, das grandes corporações e do Estado, constituindo-se em resultado de trans-formações teleológicas, de escolhas intencionalmente assumidas. Discorrendo acerca da mudança hierárquica urbana trian-gulina – em que pesa, grosso modo, a sucessão de três fases, indo da primazia urbana de Uberaba até a preponderância de Uberlân-dia, passando pela paridade entre estas referidas urbes – Bessa (2007) resume o panorama histórico dessa rede urbana regional:

Em cada um desses espaços-tempos, determinadas ra-cionalidades sociais, econômicas e políticas foram pre-dominantes e indicaram a existência de fatores de estan-camento e regressão para Uberaba e de ascensão para Uberlândia e, por conseguinte, os movimentos de mudan-ça da rede urbana regional. Valendo enfatizar que a tran-sição de um para outro significou a imposição de novas racionalidades e a redefinição dos atores, que, por sua vez, promoveram a recombinação dos elementos carac-terísticos às redes urbanas, re-atualizando o seu padrão espacial. Num primeiro momento, observou-se o predo-mínio de uma racionalidade local, definida pela atividade pastoril, período em que se destacou a elite uberabense e uma espacialidade gestada a partir desse centro; em seguida, observou-se o momento dos embates entre ra-cionalidades regionais, uma ainda associada à atividade pastoril e outra relacionada com as atividades mercantis,

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marcados pelos conflitos entre a elite tradicional ubera-bense e a elite comercial uberlandense, resultando numa espacialidade marcada pela relativa paridade e simetria funcional, bem como pelo revezamento dos comandos; e, finalmente, o momento de diversificação das racionali-dades, no qual passaram a atuar fatores de escalas dis-tintas, locais, nacionais e internacionais, expresso por uma espacialidade com múltiplos circuitos, orientada por complementaridades e competitividades, bem como por coerências e rupturas, cujos benefícios foram mais bem aproveitados por Uberlândia, que alargou sua importân-cia tanto em escala regional, quanto em escala nacional, uma vez que sua elite mostrou-se muito mais apta a aco-lher os imperativos das subsequentes divisões territoriais do trabalho. (BESSA, 2007, p.322-3).

Por conseguinte, a sucessão do processo histórico ence-tou um relativo declínio de uma elite tradicional (uberabense) em favor da consolidação efetiva de uma elite emergente (uberlan-dense), mais adaptada e adequada frente às mudanças impostas por novas divisões territoriais do trabalho. Nesse processo de con-tinuidades e descontinuidades, convergências e divergências, as organizações socioespaciais modificaram-se (ou conservaram-se) à luz do contexto e das escolhas assumidas, resultando na diferen-ciação dinâmica do espaço enquanto reflexo (e, dialeticamente, também enquanto causa) das ideias e práticas econômicas, políti-cas e socioculturais17. Em suma, mais importante do que as particularidades em si das discussões e deslindamentos dos eventos e das escolhas so-cialmente assumidas que transferiram a primazia regional da elite uberabense18 para a elite uberlandense é o fato de que, independen-temente da localização da liderança regional, o Triângulo Mineiro

17“Nesse processo de mudança contínua, os contornos regionais foram ra-pidamente transformados, também no sentido de adaptação, como conse-qüência das imposições das intencionalidades dos agentes hegemônicos, atribuindo novos significados às áreas de cerrado. Trata-se, diante da espes-sura das sucessivas divisões territoriais do trabalho, da cristalização de uma fronteira de modernização.” (BESSA, 2007, p.324, grifo meu).18A respeito desse processo, ocorrido ao longo do século XX, ver Bessa (2007).

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experimentou a superação da condição sertaneja, sustentada outrora pela própria denominação regional de Sertão da Farinha Podre. A respeito dessa transformação do Sertão da Farinha Podre em Triângulo Mineiro, Ribeiro (2008) comenta que a identidade re-gional renovada – fazendo uma alusão à forma geográfica esta-belecida pelos médios e baixos cursos convergentes da margem direita do rio Grande e da margem esquerda do rio Paranaíba – foi promovida pelo Dr. Henrique Raimundo Des Genettes, fundador de importantes jornais de circulação regional, como O Paranaíba (1874) e o Eco do Sertão (1875), sendo este veículo favorável à campanha de anexação da região à província de São Paulo; mais do que uma mera troca de designações, a mudança da nomencla-tura, ocorrida no final do Oitocentos, expressa simbolicamente o coroamento de um processo que vinha se desenvolvendo desde, no mínimo, o final do primeiro terço do século XIX: a alteração nominal configura-se, pois, como um símbolo da transubstancia-ção pela qual passara (e, a bem dizer, ainda vinha passando) a região, tencionando abandonar o seu passado sertanejo:

[...] da geração presente poucos fazem referencia á anti-ga [denominação]: só d’ella se lembra ainda um ou outro habitante que, como eu aprecie recordações antiquadas. Em todo caso, o Triângulo Mineiro vê a ‘Farinha Podre’ transformada por continuado progresso.Não é mais Sertão. A Estrada de Ferro Mogyana, a cargo de uma empreza laboriosa e honrada, o atravessa desde Jaraguá até Araguary, Antigo Brejo alegre, com um per-curso de 266 Kilometros, 14 estações e brevemente ella transporá o rio Paranahyba para Catalão. Diversas de rodagem e muitas pontes são transito activo entre seus diversos povoados, bem como para importação e expor-tação, commutando suas cousas com os Municípios e Es-tados visinhos. A linha telegraphica da União o atravessa desde a margem direita do Rio Grande, á margem esquer-da do Paranahyba, em distância de cerca de 400 Kilome-tros, pondo em relação imediata com Goyaz e Cuiabá no centro, e com todo o mundo civilisado pelo litoral, além do serviço que presta ao público o telegrapho da Compa-nhia Mogyana. (BORGES, 1905, p.823-419 apud RIBEI-RO, 2008, p.28, grifo meu).

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19BORGES, Antonio Sampaio. Triângulo Mineiro. Revista do Arquivo Público Mineiro, fasc. III e IV, ano X, 1905, p.823-4. A grafia original foi mantida.

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Assim, o “sertão” foi convertido em “triângulo”, processo emblemático da mudança regional dos “espaços obsoletos” em “espaços da modernidade”: a nova identidade passava a ser sim-bolizada por uma figura geométrica, insígnia da racionalidade e exatidão matemática. Essa mudança nominal – nada ingênua – estava em consonância, nos albores republicanos, com os anseios das elites ilustradas em civilizar o país, substituindo generaliza-damente as toponímias religiosas ou rústicas por outras que evo-cassem as noções de ordem e progresso. (LOURENÇO, 2010). Como já mencionado, esse “território geometrizado”, outrora “sertão”, constitui-se, portanto, no ápice ou coroamento de um processo histórico de integração regional a um “circuito oficial” do Estado, entrando definitivamente no universo espacial efetiva-mente comandado pela soberania estatal. Se até o início do século XIX ainda existia uma duali-dade regional marcada pelo estatuo sertanejo – e, portanto, por espaços que escapavam à órbita da soberania estatal –, pode-se aventar a hipótese, no entanto, que os “espaços de penumbra” (o Sertão da Farinha Podre) e os “espaços incógnitos” (a Caiapô-nia) constituíam-se, de certo modo, em “cálculos geopolíticos” diferenciados, na nova lógica de transformação regional operada ao longo do Oitocentos, pela maior ou menor resistência frente ao poder estatal, uma vez que a região seria integralmente – a despeito das resistências – incorporada ao escopo da soberania do Estado, transformando-se em não-sertão. Portanto, esses espaços sertanejos, derivados de supostos “cálculos geopolíticos”, repre-sentam verdadeiros “espaços de reserva” ou fundos territoriais (MORAES, 2000) para os projetos político-econômicos de incor-poração regional – independentemente se na condição central ou periférica – à autoridade da Coroa portuguesa/ Estado nacional, continuamente impetrados, sobretudo desde o século XIX, sob os signos da civilização e da modernidade. Destarte, a cristalização dos “ares” de urbanidade para a atual região do Triângulo Mineiro torna-se o estatuto da inequí-voca sensação de (experimentação da) modernidade e consequen-te superação da condição sertaneja, agora limitada a um suposto qualificativo pretérito, de um passado “heroico” regional, fazendo

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emergir a imagem de força e pujança nascidas, pela vontade e determinação, dos sertões outrora dominantes. Aos “espaços ru-des” do passado se imputaram a sintonia aos ideais civilizatórios e, posteriormente, aos ideais de modernização, os quais foram al-çados à condição de desejos nacionais – dos quais as práticas e iniciativas regionais eram meros reflexos ou repercussões – para a construção do país e para a ambição elitista de grandiosidade pátria, a partir da conquista permanente e diuturna de nossos pró-prios territórios internos. Vale enfatizar que essa interiorização da urbanidade – a qual parece indicar, de fato, uma interiorização da (experiência da) civilização/modernidade, ainda em curso – foi responsável pela transformação da região triangulina, a partir da conjugação das ações do Estado com os agentes locais, em um local mais do que meramente uma “área de passagem” ou uma “fronteira da so-berania e da civilização”. Foram o Estado e os agentes locais que metamorfosearam definitivamente o Sertão da Farinha Podre – o qual, a exemplo dos outros sertões brasileiros, foi assim qualifi-cado por abrigar projetos ou realidades distintas dos projetos so-cioculturais, políticos e econômicos hegemônicos “oficiais”, em determinado contexto espaço-temporal – em uma área importante e atrelada aos circuitos político-econômicos nacionais: primeiro, a elite uberabense, com o auxílio do Estado a partir de estratégias de ocupação e colonização, fez de Uberaba um grande centro do interior durante o Império; posteriormente, Uberlândia reverteu, a partir da segunda metade do século XX, a centralidade uberaben-se em seu favor, adaptando-se, por meio de sua elite, aos novos cenários da divisão internacional do trabalho. De Uberaba a Uberlândia, a condição sertaneja foi, pois, superada. Em outras palavras: para o Estado, esses fundos terri-toriais, verdadeiros “espaços de penumbra”, passaram a ser “ilu-minados” sob a ótica hegemônica do poder (político, econômico, social e cultural), tendo como motes históricos palavras de ordem como civilização e modernização, pilares da ideologia estatal. O que aqui nos interessa, mais do que propriamente a “história oficial” da atual região do Triângulo Mineiro, é o fato desta mesma “história oficial” se configurar como um caso, no

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âmbito da formação territorial brasileira, de transubstanciação de um sertão em não-sertão. Essa transubstanciação, ocorrida ao longo do Oitocentos, é um estudo de caso, um recorte singular de um processo histórico genérico, universal, na formação histórica do Brasil; assim, considerando as idiossincrasias contextuais – em termos espaço-temporais –, a transformação e a incorporação de porções territoriais da hinterlândia ao escopo da soberania estatal constitui-se em um fenômeno ubíquo no forjamento da naciona-lidade brasileira, desde o período colonial, de modo que o caso do Triângulo Mineiro pode ser, à luz das diretrizes mais gerais, multiplicado por diversos outros estudos de casos regionais, em vários pontos da hinterlândia nacional e em diversos momentos históricos. Em todo caso, os eventos de transubstanciação dos sertões em não-sertão seguiram, desde a época colonial até a atualidade, palavras de ordem primazes: o povoamento, a instauração de uma ordem civilizatória ou ainda a dotação de infraestruturas e insti-tuições modernas – que, nos albores do século XXI, é ornada sob a retórica da globalização. Sob esse “receituário” programático, a “borda oriental” do Cerrado foi incluída paulatinamente ao esco-po da “cartografia oficial” das instâncias de poder hegemônico, advogando, ao longo do tempo, novas “ondas civilizatórias/mo-dernizadoras” conforme a lógica político-econômica e sociocul-tural dominante. Iniciada, a princípio, com o bandeirantismo (a partir da região vicentina) e com as migrações internas agropecuárias (a partir do atual Nordeste), e, posteriormente, com a formação de núcleos auríferos nas áreas do Oeste brasileiro, a história do Cer-rado foi se adensando espaço-temporalmente ao longo do século XIX, incluindo essa “borda oriental” (o atual Triângulo Mineiro) na “história oficial”: no âmbito desse processo, o outrora Sertão da Farinha Podre ingressou na ordem de eventos mais ou menos bem direcionados que ainda hoje sublinham a necessidade cons-tante de sintonia dessas paragens cerradeiras aos estatutos da mo-dernização produtiva e espacial consoante as lógicas hegemôni-cas. A identidade essencial da história de “superação dos atrasos” – que pode ser bem equacionada como uma necessidade constante

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de “superação dos sertões” – ainda permanece e constitui-se como força motriz de fundo para as políticas de planejamento e práticas de desenvolvimento das áreas de Cerrado brasileiro.

Considerações finais: o Cerrado como alvo de projetos de superação sertaneja

Contemporaneamente, o oeste do Estado de Minas Gerais é pontuado por cidades que engendram um cenário, grosso modo, assentado no agronegócio, no qual palavras como inovação, em-preendedorismo, tecnologia e gerência encontram-se constante-mente em voga, atestando a inclusão de tal região à lógica do capital. Assim, por mais que esteja assentada em atividades do campo, a região comunga e “vive a vida” dos grandes centros urbanos do país, configurando-se como um espaço conectado à esfera da soberania nacional, abandonando, pois, o qualificativo de sertão, que outrora possuía. Com a possível replicação desse estudo de caso para diversos pontos da hinterlândia nacional, as-sentados na diretriz da superação das condições sertanejas, ratifi-ca-se permanentemente o imaginário do Brasil como um país em construção – ou, em outros termos e sob a mesma lógica, de país do futuro. A alcunha que Uberlândia pleiteia a si mesma – a de Capi-tal Nacional da Logística – denota a existência de uma propagan-da citadina que alimenta o seu “ego” de espaço da modernidade. A modernização suscitada desse outrora espaço “do outro” – por-tanto, desse outrora sertão, convertido em território integrado à lógica política e socioeconômica hegemônica – é representada e celebrada, constituindo-se em um fenômeno imposto e, ao mesmo tempo, desejado, uma vez que, em geral, responde a uma projeção da elite dirigente, a qual tende a universalizar as suas concepções de mundo (ou seja, as suas ideologias) particulares para a esfera social como um todo. No entanto, essa alcunha “conquistada” e ovacionada não é um efeito de um processo “liso”, sem contraposições, e não se constitui propriamente como um desejo unânime: ao contrário, por dizer respeito ao campo ideológico, é uma construção e re-

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presentação mental e concreta que ganha força na medida em que se legitima, tanto no imaginário quanto nas organizações e dis-posições materiais do espaço. Assim, tal título e rótulo tende a “apagar” outros projetos, tornados “vencidos”, bem como tende a dirimir as contradições às “verdades” que se impõem. O resultado desse processo é o sentimento de sincronia com o tempo coetâ-neo, integrando – por meio, por exemplo, de uma especialização produtiva, de um qualificativo econômico ou de uma polarização territorialmente marcada – o amplo e complexo sistema de divisão do trabalho, nas mais diferentes escalas. O Cerrado entra nesse jogo ideológico-geográfico ao en-campar e abrigar os projetos de modernização (superação) dos atrasos – assim qualificados a partir das hegemonias – que aí se apresentam continuamente; em outras palavras, com a renovação constante dos sertões, o Cerrado, desde sua origem, é palco de “lutas intermináveis” para a transubstanciação do caráter regional (de sertão a não-sertão) e, depois, para a sustentação do estatuto não-sertanejo, mantendo a região incluída no universo da lógica hegemônica. Destarte, os conflitos que ora são candentes nas áre-as de Cerrado – como, por um lado, as disputas ideológicas en-tre o desenvolvimento e a preservação natural-biológica, ou, por outro, o quimérico embate entre a preservação de uma “pureza” ou autenticidade cultural e a incorporação da cultura dominan-te “rasa” – são frutos ou facetas de uma história territorial que, iniciada com a vocação dos luso-brasileiros em se constituírem em um “povo andejo”, passa pela fundação de núcleos auríferos na “borda ocidental” e pela transubstanciação em não-sertão da “borda oriental”; é esse fundamento histórico e territorial que vai substantivar a saga da Marcha para o Oeste na era varguista e adiante, ou mesmo os projetos de “recuperação” (ou, a bem dizer, “aproveitamento” econômico) dos cerrados a partir de sua capita-lização por meio das políticas do agronegócio. Portanto, as áreas de nosso Cerrado apresentam fácies de conflitos que reverberam uma identidade mais ou menos uni-versal na formação territorial brasileira: são capítulos à parte da necessidade de superação dos sertões, essência estatal-nacional de responder e participar dos ditames político-econômicos e so-

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cioculturais hegemônicos. Os eventos e processos históricos cer-radeiros parecem responder, em última instância, a essa “certidão identitária” brasileira, marca motivadora de nossa formação e or-ganização territorial: a transubstanciação do Sertão em não-ser-tão.

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O COMPLEXO ENERGÉTICO AMADOR AGUIAR (MG) NO CONTEXTO DO NOVO ORDENAMENTO TERRITORIAL PELOS

GRANDES EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS

Rene Gonçalves Serafim Silva Vicente de Paulo da Silva

O modelo de produção energética adotado pelo Brasil, pautado prioritariamente no uso do potencial hidráulico para construção de usinas hidrelétricas, tem refletido, ao longo da his-tória, em significativas alterações no/do espaço geográfico brasi-leiro. Isso impõe à sociedade uma reflexão de aspectos variados, como a questão dos atingidos pelos empreendimentos, os efeitos ambientais e socioespaciais, a destruição e formação de novos ter-ritórios e, consequentemente, o ordenamento territorial. Compreender a complexidade da implantação de um grande empreendimento hidrelétrico requer pensar nas estratégias de uso e ordenamento territorial brasileiro, sendo, portanto, algo construído a partir de uma concepção regional e nacional, e não apenas num fator isolado ou local. Desse modo, objetivou-se no presente trabalho analisar a questão das hidrelétricas no Brasil, inferindo algumas preocupa-ções com a matriz energética brasileira voltada quase que exclu-sivamente aos projetos hidrelétricos e, neste contexto, busca-se discutir o Complexo Energético Amador Aguiar, no baixo curso do rio Araguari-MG. Esse empreendimento constitui mais um fato a ilustrar o significado das tomadas de decisões de agentes no poder, os quais se apropriam de forma contraditória dos bens naturais e, em con-sequência, alteram paisagens, culturas, vidas cotidianas, símbolos dentre uma série de outros aspectos que são transformados, no campo ou na cidade, no Cerrado ou em diferentes biomas brasi-leiros.

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Os grandes projetos hidrelétricos: uma revisão do conceito

Os grandes empreendimentos hidrelétricos também são conhecidos a partir da concepção de Grandes Projetos de Inves-timento (GPI), pois “procura caracterizar projetos que mobilizam em grande intensidade elementos como capital, força de trabalho, recursos naturais, energia e território” (VAINER; ARAÚJO, 1992, p.29, grifo nosso). Embora os autores chamem a atenção para a falta de precisão do termo, convém destacar que os ele-mentos caracterizados vêm ao encontro da proposta deste traba-lho, uma vez que a construção e operação de usinas hidrelétricas requerem todas as variáveis citadas e destacadas. Em perspectiva semelhante, mas demonstrando a preo-cupação com o aspecto social tendo em vista a mobilização de grandes contingentes populacionais, Martins (1993, p. 61-62, gri-fo nosso) afirma, em relação aos grandes empreendimentos, que “trata de projetos econômicos de envergadura, como hidrelétri-cas, rodovias, planos de colonização, de grande impacto social e ambiental, mas que não têm por destinatárias as populações lo-cais”. Observa-se que nesse caso, o autor já delimita quais tipos de projetos poderiam se enquadrar dentro de um Grande Projeto de Investimento, informando que o termo gera conflitos, ao passo que os atingidos não são encarados como tal e, nesse sentido, não são beneficiados como propagam os discursos oficiais; ao con-trário, são vistos como entraves à implantação desses empreendi-mentos. Ainda seguindo a linha de pensamento de Vainer e Araújo (1992), pode-se dizer que:

São empreendimentos que consolidam o processo de apropriação de recursos naturais e humanos em determi-nados pontos do território, sob lógica estritamente econô-mica, respondendo a decisões e definições configuradas em espaços relacionais exógenos aos das populações/re-giões das proximidades dos empreendimentos. (VAINER; ARAÚJO, 1992, p.34).

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Desse modo, são empreendimentos que visam à apropria-ção e reprodução do espaço sob a lógica economicista, desenvol-vimentista e exploratória de recursos naturais, desconsiderando as populações que vivem e possuem algum vínculo material ou imaterial com o local que sofrerá a ação. Em muitos casos são populações que jamais saíram de seus lugares de origem e que possuem uma relação histórica com os territórios que ocupam, sendo palco de suas manifestações culturais, sociais e de trabalho, nem sempre imperando a lógica do capital industrial-financeiro do mundo contemporâneo. Embora utilizem termos diferentes, tanto Vainer e Araújo (1992) quanto Martins (1993) concordam em questões essenciais sobre os grandes projetos: as hidrelétricas se encaixam como um grande projeto devido ao elevado capital investido, e as popula-ções que sofrem diretamente os efeitos socioespaciais não são as “destinatárias” dos mesmos, como afirmam os autores. O termo GPI, ou Grandes Empreendimentos, começou a ser utilizado quando o Brasil passou a investir sobremaneira em políticas públicas voltadas à infraestrutura básica para o desenvol-vimento nacional, principalmente na questão energética, confor-me destaca Bortoleto (2001, p.53):

Por meio desses investimentos, surgiram as políticas seto-riais e os planos de investimentos, como os grandes proje-tos que comportavam empreendimentos de grande porte e que foram elaborados como meio para a implementação da infra-estrutura necessária para a industrialização e, ainda, como uma forma de levar o “desenvolvimento” às regiões em que foram instalados.

Com base nisso, pode-se refletir e inferir que um Gran-de Projeto de Investimento (GPI) é, antes de qualquer coisa, um projeto nacional de desenvolvimento de um país. É, também, uma “política setorial”, como afirma a autora, demonstrando que a premissa e finalidade dos grandes empreendimentos é o desen-volvimento regional e, consequentemente, nacional de setores da economia. Estes setores, em um primeiro plano, é o setor elétrico regional/nacional e, posteriormente, setores industriais diversos.

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Isso nos faz reportar a uma questão que foi título da obra de Chomsky (2002), “O Lucro ou as Pessoas?” Ou seja, ao anali-sarmos a opção por uma grande hidrelétrica fica patente que seu objetivo é o do lucro proveniente do alto investimento que de-mandam essas obras. Por seu turno, vê-se uma população local cada vez mais abandonada à própria sorte de reconstruir suas vi-das em locais outros que não aqueles a que estavam acostumados. Sob a alegação do desenvolvimento econômico, ou do progresso econômico, essas pessoas são tratadas com descaso e suas reivin-dicações são traduzidas por atraso de vida, reducionismos e os mesmos são ainda acusados de serem contra o progresso.

Procedimentos Metodológicos

O desenvolvimento da pesquisa pautou-se numa investi-gação sobre a retomada do processo histórico de formação das usinas hidrelétricas no Brasil de forma geral, além de analisar a conjuntura atual da questão energética e, principalmente, a im-plantação das hidrelétricas em território nacional. Ademais, foi feito um estudo de caracterização e localização do Complexo Energético Amador Aguiar, objeto de estudo princi-pal deste trabalho. Realizou-se uma caracterização geral da área de influência do empreendimento, tanto dos aspectos ambientais como dos aspectos socioespaciais e culturais, apresentando um panorama que permite refletir sobre a instalação das duas usinas hidrelétricas que compõem o complexo, visto que a bacia hidro-gráfica do rio Araguari, na região do Triângulo Mineiro, abriga outros empreendimentos hidrelétricos ao longo de seu curso.

Hidrelétricas no Brasil: histórico e panorama atual

Compreender o histórico de instalação e expansão das hi-drelétricas no Brasil é uma questão de compreender a própria his-tória do país, principalmente as (re)configurações socioespaciais ao longo do tempo e a influência dessa infraestrutura no desenvol-vimento econômico nacional, regional e local.

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Segundo Leite (1997), a partir da década de 1950 o Esta-do brasileiro ampliou o modelo de desenvolvimento energético oriundo das usinas hidrelétricas, cujo aumento foi impulsionado pela busca do desenvolvimento econômico e investimento em in-fraestrutura no governo Juscelino Kubitschek. O impulsionador desse processo não surge no governo JK, mas na Era Vargas, pe-ríodo em que o governo federal rompe com a estrutura política vigente, reformulando as prioridades de investimento, principal-mente aquelas vinculadas à infraestrutura que desse suporte às primeiras indústrias de base da época. De acordo com Rosa (1988, p.9), “o Brasil se destaca como um dos que mais investiram em grandes projetos, princi-palmente na década de 70” do século passado. Nesse período, a energia hidrelétrica no país triplicou devido à construção de usi-nas de grande porte (CONANT; GOLD, 1981). Nesse sentido, é possível pensar os fatos históricos em escala nacional e mundial para o aumento da produção de energia advinda das hidrelétricas: o período desenvolvimentista nacional foi iniciado, de fato, pela Era Vargas, quando da necessidade de substituição das importa-ções e a criação das primeiras indústrias de base, consolidadas nos governos seguintes; e as crises mundiais referentes à produção, fornecimento e comércio do petróleo. Aliado a esses fatores, existe também o potencial hídri-co do Brasil em conjunto com as formas de relevo favoráveis ao represamento da água nos vales das grandes e médias bacias hidrográficas. No caso específico de Minas Gerais, o estado já possui um histórico antigo de sua utilização em recursos hidráu-licos para geração de energia elétrica. No Brasil, “os primeiros aproveitamentos hidráulicos foram realizados no estado de Minas Gerais, durante os últimos vinte anos do século XIX” (MIELNIK; NEVES, 1988, p.17). Ainda de acordo com os autores, esses pri-meiros aproveitamentos tiveram origem privada, de empresas de mineração e fábricas têxteis cujo objetivo era a autoprodução. Esse histórico possibilita visualizar como as ações das es-feras governamentais influenciam e (re)configuram o espaço geo-gráfico ao longo da história. As ações políticas e os planos de de-senvolvimento (que no caso quase sempre estão correlacionadas

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estritamente ao desenvolvimento econômico) são determinantes na transformação do território, sendo que as políticas energéticas além de transformar também destroem territórios, os territórios, simbólicos ou não, das populações atingidas, não somente o meio físico e a biodiversidade. A situação energética attual é preocupante, na medida em que os grandes empreendimentos hidrelétricos estão migrando para a região norte do país, principalmente para a bacia amazô-nica, cujos efeitos são ainda maiores devido a um conjunto de fa-tores que, se somados, apresentam um aspecto bastante negativo, como um relevo de planície, grande biodiversidade, áreas de ocu-pação de ribeirinhos e indígenas, ou seja, populações tradicionais, que dificilmente se adaptam aos deslocamentos compulsórios, dentre outros fatores. Em bacias hidrográficas já ocupadas por empreendimen-tos hidrelétricos, principalmente na região Sudeste, estão surgin-do em grande quantidade as Pequenas Centrais Elétricas (PCH’s), utilizando-se de rios menores e da suposta concepção de que esses pequenos empreendimentos hidrelétricos apresentam um impacto menor à sociedade e ao ambiente natural, mas que pode ser con-testado e discutido dependendo do contexto no qual são feitas as instalações dessas centrais. Segundo dados do Ministério de Minas e Energia (MME), no ano de 2009 a Oferta Interna de Energia Elétrica (OIEE) oriun-da da hidroeletricidade, dentre outras fontes disponíveis, era de 77,3% do total, sendo que a segunda maior oferta era de apenas 4,7%, proveniente da biomassa. Estes dois dados apresentados re-velam duas preocupações: a primeira referente à falta de diversifi-cação equilibrada da matriz energética brasileira, sobrecarregando apenas uma fonte; a segunda refere-se aos problemas socioam-bientais que a energia hidrelétrica impõe à sociedade, principal-mente àqueles que moram em regiões onde são construídas bar-ragens para a formação do reservatório que alimentam as turbinas dos geradores de energia elétrica. Analisando o documento, publicado em 2007 pelo Minis-tério de Minas e Energia (MME), denominado “Matriz Energé-tica Nacional 2030”, o qual traça um exaustivo relatório sobre a

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expansão da oferta e demanda de energia no Brasil nas próximas duas décadas, observa-se que quando é abordada a questão das hidrelétricas no Brasil, o MME, recorrendo ao atlas de Energia Elétrica do Brasil divulgado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) em 2002, aponta a região do Triângulo Mineiro-MG e adjacências como sendo a área central dos aproveitamen-tos do potencial hidrelétrico do país, tornando-se um núcleo de geração de energia elétrica por meio das hidrelétricas. A figura 1 ilustra essa evolução na segunda metade do sé-culo XX, claramente despontando a região do Triângulo Mineiro como o núcleo de máximo aproveitamento do potencial hidrelétri-co devido à presença de bacias hidrográficas importantes, como a do rio Grande, do rio Paranaíba e, em maior escala, do rio Paraná. Essa evolução pode estar ligada por dois fatores que, associados, propiciaram essa mudança territorial: o potencial hidráulico das bacias hidrográficas e à mudança da capital federal do país na dé-cada de 1960 do Rio de Janeiro para Brasília. A nova capital foi construída com o propósito de abrigar o centro político nacional, a ocupação territorial do interior do país, dentre outros fatores, pos-sibilitando uma expansão e interiorização tanto da população/ci-dade quanto dos empreendimentos de infraestrutura básica, como a energia.Figura 1 – Evolução Territorial do Aproveitamento do Potencial Hi-drelétrico Brasileiro.

Fonte: Atlas de Energia Elétrica do Brasil ANEEL (2002), retirado do relatório “Matriz Energética Nacional 2030” (2007).

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Desse modo, o panorama da produção de energia elétrica no Brasil se encontra dependente das hidrelétricas, devido ao pro-cesso histórico de investimento nesse setor, sem investimentos, na mesma proporção, em outros setores, principalmente naqueles considerados “limpos”, como a energia eólica e solar, que deman-dam investimentos pesados em pesquisas e tecnologia.

O Complexo Energético Amador Aguiar: formação, im-plantação e operação do empreendimento.

O Complexo Energético Amador Aguiar20 foi criado a partir do Consórcio Capim Branco Energia (CCBE), composto pela associação das seguintes empresas: Vale (Companhia Vale do Rio Doce), Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais), Suzano Papel e Celulose e Votorantim Metais. Até junho de 2002 a empresa Camargo Correia Cimentos também integrava o con-sórcio, porém transferiu suas cotas para as empresas do CCBE, autorizada pela ANEEL. O complexo energético é composto por duas hidrelétricas, citada pelo consórcio como Aproveitamentos Hidrelétricos (AHE’s) Amador Aguiar I e II. Na implantação do empreendimento os AHE’s eram chamados de Capim Branco I e II, sendo posteriormente rebatizados para o nome atual. A concessão de uso do trecho da Bacia Hidrográfica do rio Araguari no qual se encontra o complexo, foi autorizada pela ANEEL em dezembro de 2000 por meio de um leilão, cujo ga-nhador, o CCBE, ficou responsável pela construção e operação do empreendimento. No entanto, os estudos de viabilidade e poten-cialidade energética na região começaram anos antes dessa con-cessão, em meados da década de 1960. Desse período até 1987, foram realizados os primeiros estudos de viabilidade do potencial hidráulico do Rio Araguari.

20As informações referentes ao Complexo Energético Amador Aguiar e o processo de consolidação do empreendimento foram coletadas diretamente do sítio eletrônico do consórcio. Devido à ausência de autoria dos textos cujas informações foram coletadas, utilizamos na forma de citação indireta, sem citação de autoria, das informações obtidas. Os textos na íntegra po-dem ser acessados no seguinte endereço eletrônico: http://www.ccbe.com.br/home/

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A princípio, apenas uma usina hidrelétrica seria cons-truída na área que hoje compreende o complexo. Entretanto, no estudo de viabilidade técnica e econômica, posteriormente, en-tenderam que os impactos seriam menores com a construção de duas usinas, sem perder a capacidade de produção de energia. No segundo semestre de 2003, o complexo energético efetivamente começou a ser construído e entrou em operação parcialmente no dia 21 de fevereiro de 2006, com a primeira unidade geradora em funcionamento do AHE Amador Aguiar I. O primeiro empreendimento do complexo entrou comple-tamente em operação no dia 16 de maio de 2006, quando sua ter-ceira e última unidade geradora entrou em funcionamento. Em 9 de março de 2007, a primeira unidade geradora do AHE Amador Aguiar II entrou em funcionamento, e sua última unidade gerado-ra em 4 de julho do mesmo ano. Desse modo, da primeira unidade geradora da primeira usina até a última unidade da segunda, foram gastos quase 1 ano e meio com as obras, demonstrando a comple-xidade de tais empreendimentos. O Complexo Energético Amador Aguiar foi oficialmente inaugurado em 5 de dezembro de 2006, com a presença de várias autoridades das esferas municipal e estadual, empresários e pessoas da comunidade que, de alguma forma, tiveram relações com a construção do complexo. Nota-se, por meio dos informativos do consórcio, que os “atores hegemônicos” da sociedade, tanto do cenário político como financeiro, fizeram questão de se apresentar como os responsáveis pelo desenvolvimento econômico da região por meio de seus discursos.

Localização do empreendimento e caracterização dos AHE’s Amador Aguiar I e II

A área de influência do Complexo Energético Amador Aguiar localiza-se na Bacia Hidrográfica do rio Araguari, no tre-cho ocupado pelos municípios de Uberlândia, Indianópolis e Ara-guari, região do Triângulo Mineiro, extremo oeste do estado de Minas Gerais. O mapa 1 apresenta a localização dos empreendi-mentos hidrelétricos estudados no presente artigo e de outros em-preendimentos hidrelétricos implantados na bacia hidrográfica,

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demonstrando o processo de ocupação e apropriação do espaço geográfico dos grandes projetos hidrelétricos na região.Mapa 1 – Localização dos Grandes Projetos Hidrelétricos no Rio Araguari-MG.

Fonte: ROSA, et al., 2004.Adaptações: BUENO, G. O.; DAMASCENO, I. A.; VIEIRA, W. A. (2010).Retirado de: DAMASCENO, I. A. (2011).

Além de mostrar no mapa as usinas hidrelétricas, a Pe-quena Central Hidrelétrica (PCH) Pai Joaquim aparece por se in-serir no contexto dos grandes projetos hidrelétricos, embora sua dimensão e área afetada seja de menor proporção. No entanto, os efeitos não devem ser compreendidos apenas no local, mas na região de influência do empreendimento, somados com as demais hidrelétricas. Segundo as informações do CCBE, o AHE Amador Aguiar I possui potência instalada de geração de energia instalada de 240 MW, operando a fio d’água e ocupando uma área de 18 km2, enquanto o AHE Amador Aguiar II apresenta potência ins-talada de 210 MW e ocupando uma área de 46 km2, também ope-rando no mesmo sistema que Amador Aguiar I. Percebe-se que apesar de Amador Aguiar II possuir uma área alagada bem maior

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que Amador Aguiar I, a usina não possui a mesma capacidade de geração de energia, o que acarreta maiores impactos socioambien-tais.

Caracterização ambiental da área de influência do empre-endimento

Caracterizar ambientalmente a área de influência do em-preendimento é um exercício não somente de elencar o tipo de solo, relevo, rochas, vegetação ou clima. É apresentar uma visão holística de como o conjunto dessas características propiciou a escolha desse trecho da Bacia Hidrográfica do Araguari para a instalação de usinas hidrelétricas. Vale ressaltar que outros tre-chos, conforme observado no mapa, também apresentam empre-endimentos hidrelétricos, de maior ou menor magnitude, devido aos condicionantes ambientais semelhantes. De acordo com Baccaro e outros (2004, p.4),

Os rios e córregos da região apresentam várias cachoei-ras e corredeiras. Próxima do Vale do Araguari a paisa-gem possui um relevo fortemente ondulado, com altitude de 800 a 1.000 m e declividades suaves, em torno de 30%. Os solos são muito férteis, do tipo latossolo vermelho e vermelho-escuro. Em todas as suas porções, verifica-se que a vegetação predominante é o cerrado e nas vertentes mais abruptas observa-se a presença de mata mesofítica. Além do abastecimento de água para alguns municípios, o Rio Araguari apresenta um potencial energético que já está sendo explorado, com as Usinas Hidroelétricas de Nova Ponte e Miranda. Está prevista também a constru-ção das Usinas de Capim Branco I e II. [...] As condições climáticas na Bacia do Rio Araguari são caracterizadas com nitidez por duas estações bem definidas, sendo uma seca compreendendo os meses de abril a setembro, e ou-tra úmida, entre os meses de outubro e março.

Observa-se que o conjunto de atributos físicos apresen-tado pela autora revela um potencial energético, conforme cita-do, principalmente pelas condições geomorfológicas, climáticas

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e hidrológicas. Por outro lado, a construção de uma usina impõe a criação de um reservatório que, no caso específico do Rio Ara-guari, alaga terras férteis e matas nativas de Cerrado, modifica o microclima, trazendo consequências ambientais que ultrapassam a questão local. O desnível apresentado pelo relevo é preponderante para potencializar o uso da bacia hidrográfica no seu uso para a instala-ção de empreendimentos hidrelétricos. Embora a região apresente uma estação seca de 06 meses durante o ano, nos outros 06 meses as chuvas conseguem recarregar de forma satisfatória os reserva-tórios de água, impedindo uma possível desativação temporária das usinas hidrelétricas.

Caracterização socioeconômica e cultural da área de influên-cia do empreendimento

Os aspectos relacionados à condição socioeconômica e cultural da área de influência do empreendimento estudado tor-nam a problemática ainda mais interessante para a discussão e de-bate, pois é uma região que apresenta uma importância regional e nacional considerável em vários prismas. Conforme mencionado, os municípios afetados diretamente pelo empreendimento e que tiveram parte de suas terras alagadas foram Uberlândia, Aragua-ri e Indianópolis. Este último apresentou efeitos menores por ter tido apenas um trecho de sua área alagada, enquanto que Uberlân-dia e Araguari sofreram maiores perdas. A população total da área de influência do empreendimen-to é de 716.245 habitantes, segundo o último censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2010. Conforme pode ser observado na tabela 1, a taxa de crescimento populacional dos municípios envolvidos, se somada sua popula-ção, nos últimos 10 anos foi de 17,6%.

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Tabela 1 – População Total e Crescimento Populacional da área de influência.

Município Censo 2000 Censo 2010 Taxa de Crescimento

Uberlândia 501.214 600.285 19,7%Araguari 101.974 109.779 7,6%

Indianópolis 5.387 6.181 14,7%TOTAL 608.575 716.245 17,6%

Fonte: IBGE - Censo Demográfico 2000-2010. Organizado por: SILVA, R.G.S. (2011). De acordo com a taxa de crescimento do Censo Demográ-fico 2000-2010 do IBGE divulgada em seu endereço eletrônico, essa taxa de crescimento populacional dos municípios envolvidos diretamente com o empreendimento foi superior à média nacional de 11,7%, à média regional (Sudeste) de 10,5% e à média estadual de 9,1%. Com exceção de Araguari, os outros dois municípios su-peraram as taxas de crescimento nos três níveis de escala (Brasil, Sudeste e Minas Gerais), o que não sugere que o crescimento po-pulacional implique em desenvolvimento socioeconômico neces-sariamente, mas podem ser feitas correlações sob alguns aspectos, como nível de emprego/desemprego, infraestrutura básica e edu-cacional, dentre outros fatores. Essas correlações podem sugerir se este crescimento traduziu-se em desenvolvimento regional. Embora o crescimento populacional seja um indicativo quantitativo, algumas considerações a partir desses dados podem ser feitas, tais como: aumento do número de pessoas que deman-dam por energia elétrica em mais de 100.000 habitantes, impondo ao setor elétrico uma disponibilidade maior de energia para esse contingente populacional; como consequência, aumenta-se, tam-bém, a necessidade de energia para os demais setores que movi-mentarão a economia da região e, logicamente, do contingente excedente que cresceu nos últimos 10 anos e que estará locado nos setores econômicos dos municípios; impõe-se aos municípios novas linhas de transmissão de energia, que ocasionarão em áreas

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a serem ocupadas e, por conseguinte, investimento em infraestru-tura urbana e rural que dê conta de acompanhar esse crescimento. Outras análises e correlações podem ser feitas com maio-res detalhes, implicando em utilização de outras fontes de dados, tornando a análise mais rica e precisa, com informações e desdo-bramentos. Embora o intuito deste estudo seja apenas fazer uma breve caracterização socioeconômica e cultural, essas reflexões servem como exercício para (re)pensar a Geografia como ferra-menta ao planejamento de setores como o energético, aliado a ou-tros setores de infraestrutura a partir de dados populacionais. Com relação aos setores econômicos, principalmente o setor industrial, por ser o grande consumidor da energia produzida no país, Soares e outros (2004, p.134) apresentam um estudo no qual mostram que:

A bacia do Rio Araguari, por estar situada em área de cer-rado modernizado, possui importante complexo agroin-dustrial, constituído por agroindústrias processadoras de grãos, carnes, frutas, vegetais e laticínios, e também por indústrias relacionadas às demandas do campo, ou seja, indústrias para a agricultura, especialmente aquelas as-sociadas ao segmento da biotecnologia animal e aquelas de insumos e equipamentos agrícolas.

Os municípios da área de influência do empreendimento não estão restritos a somente esses tipos de indústrias, mas con-tam também com outros setores industriais, principalmente Uber-lândia, por ser polo educacional de diversos centros de pesquisa em nível superior de graduação e pós-graduação, papel desem-penhado com destaque pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) em várias áreas do conhecimento. No que tange aos aspectos culturais, a questão religiosa é sempre colocada em evidência pela importância e tradição das festas populares na bacia do Rio Araguari, especialmente nas áre-as rural e urbana de Uberlândia, na sede e nos demais distritos. Essa ênfase em destacar Uberlândia está relacionada à importân-cia socioeconômica e cultural que o município representa.

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Santos e Alves (2004) retratam a importância que as fes-tas de cunho religioso, como a congada e a folia de reis, para citar apenas dois exemplos, representam para a tradição e costumes de um povo, cujo alicerce religioso não está baseado apenas nas ori-gens europeias, mas africanas também. Apresentam a dinâmica dessas festas na região, com suas características que envolvem simbolismo, tradição, metamorfoses, rupturas e outros fatores que tornam a festa em si uma forma de manifestação cultural do anti-go e do novo mesclado no espaço geográfico.

Considerações finais

Pensar no papel que empreendimentos como o Complexo Energético Amador Aguiar representam ao ordenamento territo-rial regional e nacional é de fundamental importância na medida em que são projetos que transformam e reconfiguram novos usos do espaço geográfico. No caso específico estudado, o empreen-dimento insere-se no centro irradiador da nova dinâmica de pro-dução energética brasileira, maciçamente oriunda dos aproveita-mentos hidrelétricos. Apesar dos argumentos e os discursos oficiais tenderem a apresentar estes empreendimentos como a alternativa para o crescimento e desenvolvimento do país, legitimando-os perante a sociedade, é importante destacar que grande parte deste novo ordenamento territorial da produção energética está baseada numa necessidade muitas vezes duvidosa, carente de uma função social verdadeira, atendendo a uma demanda que ultrapassa as fronteiras nacionais e sua população. A construção de grandes empreendimentos hidrelétricos tem se revelado bastante conflituosa em função da forma contra-ditória de apropriação dos bens naturais como se disse anterior-mente. Além de mobilizar grandes contingentes populacionais, quer seja de trabalhadores barrageiros ou mesmo de moradores atingidos pela formação dos lagos artificiais, essas obras têm pro-vocado mudanças na dinâmica dos rios, na vida aquática, nas pai-sagens e no espaço.

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Outros ritmos são impostos. Identidades são desfeitas e territórios são submetidos a verdadeiras usurpações. Para os de-fensores das obras isso significa progresso, crescimento econô-mico, desenvolvimento. Aos atingidos, isso tem significado uma agressão aos seus modos de vida tradicionais, à suas práticas cul-turais e sociais, ao uso de seus territórios. Enfim, entendemos essa prática como um verdadeiro etnocídio, para utilizarmos a expres-são de Clastres (1980), pois há uma verdadeira morte da cultura, do espírito, para significativa parcela de atingidos. Por fim, é necessário repensar as formas de (re)ordenar o território, principalmente nas áreas de Cerrado, utilizando-se de ações participativas e democráticas, e não somente por meio de decisões dos “atores hegemônicos” da sociedade em prol do “pro-gresso” e “desenvolvimento”.

Agradecimento

Este trabalho faz parte do projeto “Efeitos Socioespaciais de Grandes Empreendimentos: Deslocamentos compulsórios e os processos de territorialização/desterritorialização no rio Araguari-MG”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).

Referências

BACCARO, C. A. D. et al. Mapeamento geomorfológico da ba-cia do Rio Araguari (MG). In: LIMA, S. do C.; SANTOS, R. J. (Org.). Gestão ambiental da bacia do Rio Araguari: rumo ao desenvolvimento sustentável. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia/Instituto de Geografia; Brasília: CNPq, 2004. p. 1-19.

BORTOLETO, E. M. A implantação de grandes hidrelétricas: de-senvolvimento, discurso e impactos. Geografares, Vitória, n. 2, p.53-62, jun. 2001.

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PRODUÇÃO DE BIODIESEL E RECONFIGURAÇÃO DO COMPLEXO

AGROINDUSTRIAL DA SOJA: evidências de um novo elemento na organização

produtiva da região Centro-Oeste

Fernando Campos Mesquita

Nos últimos anos, os biocombustíveis têm se tornando um dos principais destaques da economia brasileira. Nesse contex-to, além da já conhecida capacidade produtiva apresentada pela indústria de etanol, que vem se desenvolvendo desde meados de 1970 com o Programa Nacional do Álcool (PROALCOOL), o país também tem se lançado de forma cada vez intensa no merca-do de biodiesel, sobretudo, produzido a partir do óleo de soja. De um volume de apenas 0,7 milhões de metros cúbicos em 2005, a produção nacional salta para 2,4 milhões em 2010, apresentando, neste ano, uma capacidade instalada de 5,8 milhões de metros cúbicos (ANP, 2012). Números, estes, que colocam o país não somente entre os maiores produtores mundiais de bio-diesel, como também, entre aqueles com maiores capacidades de crescimento. O rápido avanço da produção de biodiesel apresenta di-versos impactos na dinâmica de organização da agricultura. Logo, esse setor tende a interferir diretamente na estrutura econômica das regiões de cerrado, as quais, de um lado, tem na atividade agrícola o principal motor de sua economia e, de outro, se constituem como a mais dinâmica produtora de soja. Juntas, essas condições moti-vam um crescimento constante do biodiesel na região. Entre a amplitude de relações que envolvem esse processo, deli-mitamos este artigo à necessidade de explorar como o aumento do volume produtivo de biodiesel está afetando a reconfiguração do Complexo Agroindustrial (CAI) da soja. Nosso ponto de partida está na ideia de que entre meados dos anos de 1980 até o final da década de 1990 na medida em que

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ocorria um crescimento na demanda por farelo proteico, utilizado como insumo para a produção de rações, as empresas esmagado-ras de grãos passaram, cada vez menos, a direcionar sua produção para o consumidor final. Nesse contexto, esse setor passava a se consolidar como um elo entre a produção de soja com os segmen-tos do CAI de carnes. Em outras palavras, o alto dinamismo con-cebido pela agroindústria processadora, associada, especialmente aos rebanhos bovino e avícola, fez com que o CAI da soja se con-figurasse a partir de sua integração com a cadeia de grãos-rações-carnes em detrimento da produção direta de grãos-óleos. Sendo assim, ao se considerar o funcionamento geral des-se CAI, as agroindústrias processadoras de carnes foram aquelas que apresentaram uma atuação a jusante mais intensa. Isso permi-tiu a esse segmento se tornar, juntamente com a demanda externa, os maiores estimuladores da produção de soja no país. No entanto, essa situação muda a partir de 2005, com a implantação do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodie-sel (PNPB). Esse programa, ao estabelecer a obrigatoriedade de que parte do óleo diesel produzido no país utilize um percentual de biodiesel, criou um novo impulso à produção de óleos prove-niente da soja. Essas medidas estão fazendo com que esse setor, tradicionalmente orientado pela produção alimentícia, passe a in-clinar-se, também, para o mercado de combustíveis renováveis. Ou seja, tem-se, no CAI da soja, a inserção de um elemento bas-tante distinto daquele que, até então, havia definido as bases de sua organização. Sabendo que a soja apresenta uma função essencial na di-nâmica socioeconômica dos cerrados, utilizaremos como estudo de caso a região Centro-Oeste – a qual, gradativamente, tem se tornado a principal região produtora de biodiesel no país – para evidenciar alguns pontos referentes à reconfiguração econômica e espacial no CAI da soja. A partir dessas ideias, indagamos até que ponto os impul-sos formados mediante a produção de biodiesel tendem a interferir no funcionamento do CAI da soja? E de que forma esse processe tem capacidade de alterar a configuração que se estabeleceu nesse CAI tendo a produção de farelos como o principal produto?

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Para abordar esse processo dividimos o artigo em três par-tes: i) uma caracterização geral das teorias referentes aos CAIs, com enfoque no complexo da soja, demonstrando os aspectos que definem seu sistema organizacional e deslocamento para o Cen-tro-Oeste; ii) uma análise da dinâmica produtiva da indústria de óleos, estabelecendo a comparação desse setor com a produção carnes e rações, bem como, o papel do Brasil no mercado interna-cional; e iii) a definição do PNPB e dos aspectos que influenciam o crescimento da produção de biodiesel no Centro-Oeste, indi-cando como essas medidas inserem um novo elemento no sistema produto dessa macrorregião.

Configuração do CAI da soja e deslocamento da produção agrícola para o Centro-Oeste

A indústria de óleos e a produção de biodiesel devem ser compreendidas de acordo com suas funções em um amplo sistema produtivo e de relações inter-setoriais associadas ao CAI da soja. A concepção de CAI refere-se a um processo que se inicia no Brasil após a década de 197021 (MULLER, 1982), momento em que as transformações proporcionadas pelos projetos do Re-gime Militar, de acordo com Silva (1996, p. 30), propiciam uma “crescente integração da agricultura no capitalismo industrial, es-pecialmente por meios de mudanças tecnológicas e de ruptura das relações de produção arcaicas e do domínio do capital comercial”. Nesse contexto, como retratam Kageyama et al. (1990), a agricultura deixa de ser um setor isolado e passa a se constituir pelo conjunto formado: i) pela indústria responsável pelo “forne-cimento de bens de produção e insumos para a agricultura (fertili-zantes, defensivos, máquinas e implemtenos)” (KAGEYAMA et al., 1990, p. 129); ii) uma agrícola subordinada à dinâmica indus-trial, funcionando como uma “‘fábrica’ que compra determinados insumos e produz matérias-primas para outros ramos da produ-

21Essa datação vai ser motivo de debate entre Muller (1983) e Szmrecsányi (1983). Sem nos alongar nessas ideias, adotaremos a posição de Muller (1982) com o intuito de associar o CAI ao avanço de uma agricultura moderna moti-vada pelo encadeamento interno com a indústria para a agricultura.

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ção” (KAGEYAMA et al., 1990, p. 113); e iii) pela agroindústria processadora, que se constitui no setor a jusante desse processo, sendo que, é “através do capital industrial processador que se via-biliza a integração nos CAIs” (KAGEYAMA et al., 1990, p. 173). Em relação à soja, é possível identificar esses três seg-mentos formando um CAI completo. Sendo assim, conforme aponta Kageyama et al. (1990, p. 187),

a dinâmica, nesses casos, não pode ser vista unicamente isolando o produto agrícola, mas é o conjunto integra-do de atividades que tem ritmo próprio e estratégias de crescimento combinadas, pois há soldagens específicas da atividade agrícola “para frente” e “para trás”, isto é, com a indústria a montante e a agroindústria proces-sadora.

No caso, sem desconsiderar a importância dos segmentos a montante no CAI da soja, para os propósitos deste artigo, adqui-re uma maior relevância as etapas associados: i) ao crescimento das lavouras de soja no país; e ii) à dinâmica das agroindústrias que interferem diretamente nesse processo. No caso da soja, desde o final da segunda metade do sécu-lo XX essa cultura vem registrando altos índices de crescimento no país. Conforme indicam os dados do Censo Agropecuário, essa cultura passa de 1.893.199 milhão de toneladas produzidas em 1970 para 40.712.683 milhões em 2006 (IBGE. CENSO AGRO-PECUÁRIO, 1970 e 2006). Esse crescimento é acompanhado por uma alteração na di-nâmica regional da produção de soja, que passou a se deslocar da região Sul – onde em 1970 se concentrava 93,7% da quantidade produzida no país e em 2006 passa para 40,7% desse valor – para a região Centro-Oeste – onde em 1970 se encontrava por apenas 1,3% da quantidade produzida no país e em 2006 esse total para 44,7% desse total – que se torna a principal produtora de soja no Brasil (IBGE. CENSO AGROPECUÁRIO, 1970 e 2006). O direcionamento da soja para o Centro-Oeste, conforme demonstra Castro (1996, p. 66), está associado a seis fatores es-senciais: i) a maior produtividade e qualidade da soja no Cerrado em comparação com a região Sul, sendo a maior presença de óleo,

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um desses fatores; ii) “as economias de escalas obtidas até 2.000 ton./dia levaram as fábricas a se instalarem próximas às regiões produtoras”; iii) diminuição nos “custos de movimentação de car-gas associadas à operação industrial – entre a fábrica de esmaga-mento e a área de produção ;iv) “os produtores agrícolas passaram a negociar mais diretamente com a indústria, depositando a soja diretamente nos seus armazéns, reduzindo custos de intermedia-ção comercial; v) o crescimento alcançado pelos mercados re-gionais estimula o deslocamento de agroindústrias processadores interligadas à produção; e vi) “existência de incentivos fiscais e condições especiais de financiamento em algumas regiões serviu de estímulo aos investimentos em regiões de fronteira”. O conjunto desses fatores, segundo a autora, proporcio-nou melhores rendimentos à soja brasileira, possibilitando essa cultura “tornar-se extremamente competitiva em relação ao nos-so mais próximo concorrente – a Argentina” (CASTRO, 1996, p. 66). De forma complementar, o aumento da produtividade na soja, de acordo com a autora, tenderia a fazer com que o Brasil ocupasse “os espaços abertos pelo crescimento internacional de carnes e óleos vegetais, especialmente em mercados emergentes” (CASTRO, 1996, p. 66). Recentemente, esse processo tem refletido no aumento con-tínuo da capacidade de processamento de soja da indústria brasilei-ra, que passa de 107.950 t/dia em 2001 para 165.299 em 2009. Esse crescimento é, em grande parte, o resultado obtido na indústria do Centro-Oeste, cuja capacidade de processamento passa de 26.810 t/dia para 62.075. Comparativamente, no Sul esse crescimento é de 54.630 para 66.686. Em números relativos isso significa demons-trar que do total acrescido à capacidade de processamento da indús-tria brasileira entre 2001 e 2009, 61,5% se deve ao dinamismo da economia do Centro-Oeste (ABIOVE, 2012). Em relação à capacidade de refino, a indústria brasilei-ra passa de 16.168 toneladas/dia para 22.860 entre 2001 e 2009. Nesse caso, a dinâmica regional se diferencia em comparação com a capacidade de processamento, tendo: São Paulo como prin-cipal produtor, responsável por 27,1% do total do país, seguido pelo Paraná, com 16,4%. No entanto, em relação ao incremento

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na capacidade de refino nesses nove anos, esses Estados apresen-tam resultados inferiores ao do Centro-Oeste, que passou de 2.510 toneladas/dia para 7.530. Esses valores demonstram que, também em relação ao refino do óleo, a tendência é o deslocamento para essa região (ABIOVE, 2012). Dessa forma, juntamente com o crescimento da quantida-de produzida e da exportação de soja no Brasil, cresce a quanti-dade dessa cultura que é processada no próprio país. Isso nos faz defender uma visão próxima à de Diniz Filho (2011) de que não é possível ter uma visão dicotômica da agricultura brasileira, divida entre mercado interno e externo, que classifique a soja somente como uma cultura de exportação. É necessário considerar que o mercado interno apresenta uma função essencial para a configura-ção desse setor, conforme pode ser observado nas figuras 01 e 02.

Figura 01. Destino da produção de soja no Brasil nas safras 2003/04 em milhões de toneladas:

Fonte: ABIOVE (2012). Organizado pelo autor

Figura 02. Destino da produção de soja no Brasil nas safras 2011/12 em milhões deeladas:

Fonte: ABIOVE (2012). Organizado pelo autor

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No esquema da figura 01, referente à safra de 2003/04, no-ta-se que do total de 51,9 milhões de toneladas contabilizados na produção de soja, 20,0 milhões, ou seja, 38,5% foram destinadas diretamente para a exportação, enquanto 27,8 milhões, referentes a 53,6%, foram processadas internamente. Nesse caso, por um lado, 77,1% foram destinados à produção de farelo proteico, sendo que, 63,6% foram para o mercado externo, enquanto que, 36,9%, teve como destino o consumo interno. Por outro lado, do total processa-do de soja, 19,1%, foram destinados para a produção de óleos, sen-do no resultado final dessa transformação tem-se 56,6% voltados para a exportação e 45,3%, para o mercado nacional. O segundo esquema, realizado com base na safra de 2011/2012, demonstra mudanças essenciais em algumas etapas. Do total produzido, embora tenha aumentado o percentual de soja in natura destinada ao mercado externo, que passa para 44,9%, o grande aumento da safra permitiu o crescimento, em números ab-solutos, de 9,5 milhões no total de toneladas de soja processadas no próprio país. Desse valor, o percentual destinado à indústria de farelos e de óleos não sofrem alterações significativas, cabendo destacar, então, o aumento da importância do mercado interno em ambos os setores e a queda da quantidade exportada em termos relativos. Nesse sentido, o destino do farelo proteico passa a ser 48,8% o mercado nacional – um aumento de 11,9 pontos percen-tuais (p. p.) em relação à safra de 2003/04 – e, no caso da produ-ção de óleos, essa porcentagem passa a ser de 75,3%, ou seja, um aumento de 30 p. p. em comparação a 2003/04. A partir desses dados fica claro que após o processamento, no decorrer da década de 2000, surgiram elementos relacionados ao mercado interno que passam a ter influência direta na deman-da por soja. Os dados indicam que esse crescimento ocorre tanto em relação ao farelo proteico, associada à indústria de carnes e rações, quanto para a produção de óleos. Esses setores, como pode se observar no esquema apre-sentado na figura 03, embora estejam associados às esmagadoras de soja, se inserem em diferentes segmentos do CAI da soja. No caso, a indústria de óleos se constitui como uma produção interli-gada diretamente às demais parcelas do complexo, ao passo que a

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indústria de carnes e rações se define como um segmento “exter-no” ao CAI da soja.

Figura 03. Configuração do Complexo Agroindustrial da Soja:

Fonte: Organizado pelo autor com base em Celeres/Secex/Conab apud Brasil, 2007.

Sendo assim, ao se constatar que as agroindústrias são as principais responsáveis por viabilizarem a integração dos CAIs, interferências em sua dinâmica de funcionamento provocam efei-tos gerais no conjunto do sistema. Com efeito, a indústria de ra-ções e de carnes, ao apresentarem um maior dinamismo que o setor de derivados de óleos, propiciou no CAI da soja uma inte-gração mais intensa com um segmento à jusante externo. Este, por sua vez, passou a ter maior peso nas decisões da agricultura, do que, propriamente, o segmento interno, associado à produção de óleos. Entretanto, há que se considerar que embora o mercado nacional sempre tenha tido um papel significativo na configura-ção do CAI da soja, seu papel se intensifica no decorrer dos anos 2000. Nesse ponto, mesmo que a demanda interna impulsione

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tanto a produção de óleos quanto a de farelos, a forma de atuação nessas áreas é bastante distinta, pois, de um lado, tem-se uma de-manda que se mantem atrelada ao mercado de alimentos, enquan-to, de outro, passa-se a assumir uma relação mais estreita com os combustíveis renováveis. Desse modo, a intensificação do mercado nacional, a par-tir de 2000, torna-se o elemento crucial para a reconfiguração do CAI da soja. No entanto, antes de focar nas razões que explicam esses fatores, cabe explorar as condições em que se encontravam as agroindústrias de óleos e de carnes no momento do processo de reconfiguração.

A dinâmica industrial e o mercado dos óleos vegetais

Um ponto inicial para compreender o funcionamento das esmagadoras de soja22 é que, conforme aponta Castro (1996, p. 68), existem três tipos de estratégias empresariais capazes de de-finir as empresas desse setor: i) as integradas, são aquelas que “industrializam a soja, quer seja na cadeia de óleos (óleo refinado, margarinas, maionese etc.), quer seja na cadeia de carnes (frango, suíno, e derivados) ou em ambas; ii) as esmagadoras, que “reali-zam apenas a primeira etapa do processamento industrial de óleo e farelo”; e iii) as tradings, que “apenas compram o produto e comercializam no mercado internacional”. A partir dos anos de 1990 as empresas relacionadas à pro-dução de soja passam por uma forte reestruturação que acarreta um processo de centralização e internacionalização nesse setor. Segundo Belik (2001, p.66)

internamente a indústria se reestruturou em busca de produtividade e rebaixamento de custos em um ambiente de escassez de recursos governamentais, que marcou a expansão da soja no Brasil. Para atingir estes objetivos, ocorreu uma concentração e expulsão do mercado de produtos diversificados. Os exemplos mais importantes

22Embora estejamos focando na soja, que representa mais de 90% da maté-ria-prima do óleo (BELIK, 2001), este também pode ser extraído, por exem-plo, do Algodão, Girassol, Canola, Palmiste, Copra, Linhaça e Mamona.

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foram dados pela saída da CEVAL – empresa diversifica-da que trabalhava com carnes e óleos vegetais, adquirida pela Santista Alimentos (Bunge & Born) e pela venda da divisão de grãos da Sadia para a ADM – Archer Daniels Midland – configurando-se assim uma rápida desnacio-nalização de um setor que era dominado pelo capital na-cional.

Nesse contexto, tem-se um domínio da produção de óleos por parte de poucas empresas, conforme pode ser observado na tabela 01.

Tabela 01. Principais esmagadoras de soja no Brasil no ano de 1997

Nome Toneladas de grão/diaBunge & Born 28.130Cargill 7.950Coimbra 6.350ADM 5.000ROB - Refinadora de óleos Brasil 3.200

Total 50.630

Fonte: Abiove apud Belik (2001).

Embora realizada com dados de 1997, essa tabela é im-portante por demonstrar o alto nível de centralização que se for-mou na indústria processadora, e que, por sua vez, se mantém até o período atual. Isso se confirma com as estimativas de que, no início de 2005, essas empresas adquiriram 55% da safra nacional de soja, participaram “com 61% do total das exportações de grãos, farelo e óleo e com 59% do esmagamento interno”23 (Zafalon, 2005). Esse contexto, como pode se observar no gráfico 01, não estimula um avanço do setor de óleos e gorduras vegetais e ani-

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23Existe uma dificuldade em mensurar esses dados no Brasil, pois os valo-res não são revelados. Mas, mesmo desatualizadas, as informações indicam a ideia central referente à concentração da produção nacional em poucas empresas.

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mais24 proporcional aos demais ramos integrados ao CAI da soja. Pelo contrário, esse setor apresentou durante todo o período de 1996 a 2007 um dinamismo inferior ao abate e preparação de pro-dutos de carnes e pescado, sendo a maior diferença em 2007. Em comparação com a indústria de moagem, fabricação de produtos amiláceos e de rações balanceadas para animais25, o VTI da in-dústria de óleos supera esse setor apenas em 1997 e no período de 2003 a 2005.

Gráfico 01. Porcentagem dos segmentos de carnes, grãos e rações no VTI da indústria de alimentos e bebidas no Brasil entre 1996 e 2007

Fonte: IBGE – SIDRA. PIA. Pesquisa Industrial Anual, vários anos.

Entretanto, é necessário contrastar as informações do gráfi-co 01 com as do gráfico 02. Assim, observa-se que essa indústria de fato se manteve com poucas variações até 2007, mas que, a partir desse período, o setor apresenta uma nova fase de crescimento.

24Ao considerar esse setor como um segmento a três dígitos da indústria de alimentos e bebidas, classificado pela CNAE 1.0, cabe ressaltar que a indús-tria de óleos e gorduras vegetais compreende além dos óleos comestíveis, outros produtos como produção de tortas, margarinas, cremes vegetais e óleos de origem animal. Entretanto, a base da geração de valor desse setor está no refino e preparação do óleo de soja.25Cabe destacar que o setor a três dígitos “Moagem, fabricação de produtos amiláceos e de alimento para animais”, onde se inclui a produção de rações, conta com outras indústrias importantes que interferem nos dados do grá-fico 01, como é o caso da fabricação de amido e óleo de milho e do benefi-ciamento de arroz.

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Gráfico 02. Quantidade produzida, exportações e consumo interno do óleo de soja no Brasil entre as safras de 2002/03 e 11/12 por 1000 toneladas.

Fonte: ABIOVE, 2012.

Nesse gráfico é importante observar que a produção de óleos apresenta duas fases entre 2002 e 201226. Conforme já rela-tamos, o principal responsável por estabelecer essa diferenciação é o aumento na demanda interna. Esse fato pode ser identificado ao vermos que esse mercado se manteve com poucas alterações entre a safra de 2002/03 até a safra de 2005/06. Nesse período, a quantidade produzida passa de 5.349 para 5.512 mil toneladas, uma evolução de apenas 3,0% em três anos. No entanto, a partir de então, produção nacional salta para 7.341 na safra de 2011/12, registrando um acréscimo de 24,9%. Nesse momento, o consumo interno aumentou em 41,1% enquanto que a exportação apresen-tou um retrocesso de 28,6%. Cabe destacar que dos principais consumidores de óleo de soja no mundo, o mercado doméstico brasileiro, entre as safras 2005/06 e 2009/10, apresenta índices de crescimento inferiores

26Embora os dados da ABIOVE não façam a distinção da produção de óleos entre os óleos comestíveis e aqueles destinados à produção de biocombustí-veis, fica claro no decorrer da análise quais processos estão associados a cada um desses mercados.

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somente aos da China, que continua sendo o principal mercado (USDA, 2009). Em relação às exportações, o setor de óleos – ainda as-sociado, essencialmente à produção de óleos comestíveis – apre-sentou um dinamismo importante até a safra de 2005/06, como resultado do crescimento da demanda em países como a China e a Índia. Sendo esse motivo, juntamente com um mercado in-terno estável, os principais dinamizadores da indústria de óleos entre 2000 e 2005, fazendo com que esse setor passasse de 6,4 para 15,6% do VTI da indústria de alimentos e bebidas no país no decorrer desses cinco anos27. No entanto, no ano de 2006 o mercado externo apresenta uma forte queda, que interfere direta-mente nesse campo. Segundo relato do IBGE de 2006, essa per-da representa um caso isolado que se registrou na agroindústria brasileira como um todo, devido a fatores, como, por exemplo, a “valorização cambial, aumento dos custos de produção, queda do preço internacional da soja, problemas sanitários na pecuária bovina, queda no consumo mundial de aves” (IBGE, COMEN-TÁRIO AGROINDÚSTRIA, 2006). No ano seguinte, as exportações recuperam a perda da sa-fra de 2005/06, mas a partir de então a quantidade de óleo produzi-da para o mercado externo volta a diminuir nas safras de 2008/09 e 2009/10. Nesse caso, a hipótese que levantamos é que, diferen-temente do ano de 2006, a queda das exportações a partir de 2008 está relacionada a questões estruturais que ocorrem nos principais mercados importadores de óleo de soja: a China e a Índia. No pri-meiro caso, embora a quantidade importada de óleo na China te-nha crescido entre as safras 2005/06 e 2009/10 de 1.516 para 2.400 mil toneladas, a produção interna desse país cresce de forma mais acelerada, passando de 6.149 para 7,709 mil toneladas; no caso da Índia, a quantidade importada cai de 1.727 para 850 mil toneladas, enquanto a quantidade produzida internamente passa de 1.070 para

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27Outro elemento fundamental para o dinamismo desse setor entre 2000 e 2005 é a elevação do preço do óleo de soja no mercado internacional, que ocorre com a influência da China e Índia no preço das commodities agríco-la. Segundo dados da ABIOVE em 2000 esse produto registrou um total de 359,00 US$/t. enquanto em 2005, esse valor passou para 462 US$/t.

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1.552 mil toneladas (USDA, 2009). Esses dados revelam um alto crescimento que está ocorrendo nas agroindústrias processadoras de grãos desses países, que, em partes, vem minimizando as suas demandas externas. Isso propicia uma dificuldade cada vez maior para a exportação de óleos para o continente asiático. Ainda referente ao mercado externo, outras questões re-levantes são: i) a competição com a Argentina, que continua sen-do o maior exportador mundial desse produto28; ii) a queda no consumo doméstico nos Estados Unidos e União Europeia, que, eventualmente, poderiam tornar-se mercados potenciais para a exportação do óleo brasileiro (USDA, 2009); iii) os países nos quais a importação de óleo de soja vem registrando maiores índi-ces, como a Venezuela, Marrocos e Bangladesh, embora impor-tantes, se apresentam como regiões insuficientes para dinamizar esse setor (USDA, 2009); e iv) além do fato de que a Lei Kandir, que entrou em vigor no ano de 1996, segue como um importante incentivo à exportação do grão de soja in natura. Ou seja, a tendência é que o mercado externo tenha sua importância minimizada no dinamismo da indústria de óleos e gorduras vegetais no Brasil, como, de fato, vem ocorrendo, sobre-tudo na produção de óleos comestíveis. Consequentemente, esse setor se direciona cada vez mais para o mercado interno, que, a partir de 2005, passou a se tornar altamente rentável e lucrativo mediante a possibilidade de produzir biodiesel a partir do óleo de soja.

O PNPB e as tendências de crescimento da indústria de óle-os: evidências para a inserção de um novo elemento na or-ganização produtiva do Centro-Oeste

A partir da caracterização: i) do conjunto que forma o CAI da soja; ii) das grandes empresas multinacionais que controlam o esmagamento de soja no Brasil e; iii) da dinâmica da indústria de

28É importante ressaltar que os dados da USDA (2009) também revelam uma estagnação na quantidade exportada pela Argentina entre as safras de 2005/06 a 2009/10, tendo passado de 5,597 para 5,565 mil toneladas.

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óleos e gorduras vegetais, associada às dificuldades impostas no mercado externo; é possível conceber o contexto econômico em que se inseriu o PNPB no país e alguns de seus primeiros impac-tos. Esse programa, implantado pela

lei nº 11.097, de 13 de janeiro de 2005, estabelece a obri-gatoriedade da adição de um percentual mínimo de bio-diesel ao óleo diesel comercializado ao consumidor, em qualquer parte do território nacional. Esse percentual obrigatório será de 5% oito anos após a publicação da referida lei, havendo um percentual obrigatório inter-mediário de 2% três anos após a publicação da mesma (BRASIL, 2005, s/n).

Inicialmente, o objetivo do programa, além das vantagens econômicas e ambientais, envolvia o aspecto social. Defendia-se que

o cultivo de matérias-primas e a produção industrial de biodiesel, ou seja, a cadeia produtiva do biodiesel, tem grande potencial de geração de empregos, promovendo, dessa forma, a inclusão social, especialmente quando se considera o amplo potencial produtivo da agricultura fa-miliar (BRASIL, 2005, s/n).

O PNPB visou fortalecer a inclusão social em regiões do semiárido e na região Norte, criando meios de incentivar à pequena produção de oleaginosas, especialmente da mamona e da palma, que produz o óleo de dendê. Também foram tomadas medidas como, por exemplo, promover uma maior facilidade de financiamento com o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e a desoneração de alguns tribu-tos para a indústria produtora, desde que a mesma possa “garantir a compra da matéria-prima, preços pré-estabelecidos, oferecendo segurança aos agricultores familiares” (BRASIL, 2005, s/n). Esse programa também teve como meta promover “a am-pliação do parque industrial em todo o país, possibilitando o sur-gimento e a evolução de novas empresas no setor e de diversas so-luções inovadoras com padrão de qualidade elevado e tecnologia de ponta” (BRASIL, 2005, s/n).

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No entanto, uma primeira questão referente a esse proces-so, é que, como demonstra Garcia (2007, p. 25), a

inserção dos chamados biocombustíveis foi estimulada, principalmente, pela elevação do preço do barril de pe-tróleo e, em parte pela degradação ambiental decorrente da queima de combustíveis fósseis, que resultou em pres-sões por parte da sociedade civil organizada. Dentro des-sa perspectiva, alguns países estão incorporando ainda a questão social, particularmente os países em desenvol-vimento, por meio da inclusão da agricultura familiar à cadeia produtiva dos biocombustíveis.

Ou seja, no caso do incentivo a produção de biodiesel, a questão social aparece como secundária diante de uma necessida-de maior, essencialmente econômica, de se criar uma alternativa ao consumo de combustíveis fósseis. Como demonstram Wehrmann et. al. (2006, p. 2), “o consumo brasileiro anual de óleo diesel é de 36 bilhões de litros, dos quais 6,4 bilhões são resultado do refino de petróleo importado; importa-se 3,4 bilhões de litros de diesel para satisfazer a demanda nacional”. Nessas circunstancias, “o país fica sempre dependente dos humores do mercado internacio-nal, o que gera um quadro de vulnerabilidade” (WEHRMANN, et al. 2006, p. 2). Dessa forma, naturalmente, alguns dos princípios, sobre-tudo de avanços sociais, traçados pelo PNPB tiveram destinos di-ferentes do que havia sido planejado, pois a produção de biodiesel seguiu os rumos do mercado de combustíveis renováveis e da es-trutura consolidada no CAI da soja. O primeiro desvio no programa refere-se ao potencial que o Governo Federal enxergava em oleaginosas, como a mamona e o dendê, para promover o desenvolvimento regional no Norte e Nordeste, e, a partir dessa produção, incentivar a agricultura fami-liar nessas regiões (DALL’AGNOL, 2007). A ineficácia desse projeto é notável no caso da mamona cuja quantidade produzida no país, de 147.971 mil toneladas, em 1990, passa para 168.802, em 2005, caindo 91.076 para em 2009. Essa queda é registrada, sobretudo, na região Nordeste, a princi-

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pal produtora, que em 1990 atingiu o total de 123.428 mil tone-ladas, passando para 154.018 em 2005 e depois para 78.716, no ano de 2009. Em relação ao dendê, a produção nacional, que está concentrada integralmente nas regiões Nordeste e Norte, concebe um relativo acréscimo, mas ainda pouco significativo. No Norte, principal produtor do país, o dendê que havia passado de 361.656 mil cachos em 1990 para 747.849, em 2005, salta em 2006, pri-meiro ano após a implantação do PNPB, para 1.073.727 milhão de cachos, no entanto, esse número cai para 916.847 em 2009. Em relação ao Nordeste, a produção de dendê que havia caído de 161.227 mil cachos em 1990 para 155.652 em 2005, passa para 205.553 em 2009 (IBGE – PAM, 2010). A soja, mesmo não sendo o insumo mais adequado para a produção de biodiesel (AZEVEDO, 2010), conforme demonstra Magossi (2010, s/n), “representa perto de 80% da matéria-prima utilizada na produção de biodiesel” nacional, ao contrário do dendê e da mamona, recebeu mais um forte impulso em sua produção. Dall’Agnol (2007, s/n) enumera onze razões que não apenas justificam sua escolha frente às demais oleaginosas, como indica a tendência de esta continue como o principal matéria-prima para o biodiesel:

1) A soja tem uma cadeia produtiva bem estruturada, tanto antes quanto depois da depois da porteira; 2) Dentro da porteira, a soja conta com tecnologias de produção bem definidas e modernas; 3) Existe uma ampla rede de pesquisa que assegura pronta solução de qualquer novo problema que possa aparecer na cultura; 4) É um cultivo tradicional e adaptado para produzir com igual eficiência em todo o território nacional; 5) Oferece rápido retorno do investimento: ciclo de 4 a 5 meses; 6) É dos produtos mais fáceis para vender, porque são poucos os produtores mundiais (EUA, Brasil, Argentina, China, Índia e Paraguai), pouquíssimos os exportadores (EUA, Brasil, Argentina e Paraguai), mas muitíssimos os compradores (todos os países), resultando em garantia de comercialização a preços sempre compensadores; 7) A soja pode ser armazenada por longos períodos, aguardando a melhor oportunidade para comercialização; 8) O biodiesel

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feito com óleo de soja não apresenta qualquer restrição para consumo em climas quentes ou frios, embora sua instabilidade oxidativa e seu alto índice de iodo inibam sua comercialização na Europa; 9) É um dos óleos mais baratos: só é mais caro do que o óleo de algodão e da gordura animal; 10) Seu óleo pode ser utilizado tanto para o consumo humano, quanto para produzir biodiesel ou para usos na indústria química e; 11) A soja produz o farelo protéico mais utilizado na formulação de rações para animais produtores de carne: responde por 69% e 94% do farelo consumido em nível mundial e em nível nacional, respectivamente.

Dessa forma, ao invés de promover uma diversificação nas culturas oleaginosas e incentivar a pequena produção no se-miárido e na região Norte do país, o PNPB tem sido responsável aumentar uma demanda altamente consolidada nas grandes lavou-ras de soja das regiões Centro-Oeste. Esse processo fica evidente ao identificarmos que, em 2005, das oito unidades do país, apenas uma estava localizada no Centro-Oeste, no município de Dom Aquino (MT). Essa empre-sa representou 6,0% da capacidade instalada no país e em nada contribuiu para produção nacional. Em 2010 essa situação trans-forma-se radicalmente. Das 66 unidades produtivas do país, 30 estão no Centro-Oeste, correspondendo a 39,2% da capacidade instalada e a 42,7% da produção nacional nesse ano. O Estado do Mato Grosso é o principal produtor da região com 55,8% do total em 2010 (ANP, 2012). Como é possível de se observar no gráfico 03, além do aumento na importância da produção do Centro-Oeste e do Sul, as regiões Norte e Nordeste chegaram em 2010 representando aque-las com menor percentual no total do país.

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Gráfico 03. Participação das Grandes regiões do país na produção total de biodiesel no Brasil entre 2005 e 2010.

Fonte: ANP (2012).

O segundo desvio é que, diante de uma dificuldade cada vez maior de elevar o dinamismo industrial com base na produ-ção de óleos comestíveis, que, em contrapartida, se tornava um subproduto altamente acessível com o crescimento do processa-mento da soja para rações, as grandes empresas multinacionais viram no biodiesel uma oportunidade de ampliar seu mercado de abrangência, aumentar seu dinamismo econômico e encontrar um destino rentável para a produção de óleo de soja. Isso ocorre devido ao fato de que além de ser um produ-to de maior valor agregado e com potencial de mercado superior aos óleos comestíveis, o biodiesel apresenta uma demanda fixa no próprio país, pois, obrigatoriamente, uma parcela do óleo die-sel consumido deve conter biodiesel. Essa porcentagem, que se iniciou com 2% no início do PNPB, com meta da atingir 5% em 2013, apresenta prazos flexíveis podendo, eventualmente, serem antecipados. Isso indica que pressões das multinacionais atrela-dos à produção de soja podem elevar esse percentual, como de fato vem ocorrendo. Em junho de 2008 essa parcela havia passado para 3% (NACHILUK e FREITAS, 2009) e no ano de 2010 esse valor já chegou aos 5%. Dessa forma, as empresas multinacionais do setor da soja passaram a dominar a produção de biodiesel nos pais. Conforme demonstra Magossi (2010, s/n), recentemente,

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a Cargill anunciou a construção de usina para produção de biodiesel no Mato Grosso do Sul, com investimentos de R$ 130 milhões. A unidade entrará em operação em 2012 e funcionará em anexo à fábrica de esmagamento de soja da empresa, devendo produzir 200 mil toneladas de bio-diesel por ano. O Noble Group vai investir US$ 200 mi-lhões em sua primeira indústria de esmagamento de soja e produção de biodiesel no País. A fábrica será em Mato Grosso e deverá ter produção anual de 200 mil toneladas. Com início das operações também esperado para 2012, a ADM vai construir sua segunda usina de biodiesel no País em Santa Catarina, com produção estimada de 164 mil toneladas.

Há também que se se considerar que a obtenção de bio-diesel a partir do óleo de soja é um processo relativamente simples, realizado mediante a separação da glicerina do óleo vegetal através da transesterificação30. Portanto, é possível que as empresas orien-tadas para o processamento de soja apenas ajustem suas plantas para incluir esse produto, não havendo, assim, a necessidade de novas plantas. Ou seja, a indústria de biodiesel pode se constituir tanto com base nas estratégias integradas, quanto na produção di-reta do esmagamento de soja. Com base nesse processo, consideramos que o incentivo à produção de biodiesel no mercado nacional serviu, principalmen-te, de estímulo para as multinacionais do esmagamento de soja já instaladas, em geral, no Centro-Oeste – que, em praticamente todos os aspectos, é a principal região beneficiada por esse pro-grama – sem alterar o forte processo de centralização do capital presente nesse setor. Pelo contrário, esse programa está aumen-tando a força de grupos como a Cargill e a ADM. Ao levar em consideração que: i) o aumento da parcela obrigatória do biodiesel e a possibilidade desse percentual seguir evoluindo31; e ii) os altos investimentos industriais que estão sendo

30Ver Garcia (2007) ou Azevedo (2010).31A Argentina, por exemplo, que em julho de 2010 tinha 5% como porcen-tagem obrigatória do biodiesel no óleo diesel passou para 7% em setembro desse ano, chegando a 10% em dezembro (BIODIESELBR, 2010).

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realizados nesse setor; é possível identificar que a produção nacional de biodiesel tende a crescer ainda mais dentro de um curto prazo. Sendo assim, a inserção desse produto no CAI da soja é um elemento essencial para o processo de reconfiguração. A in-dústria de biodiesel se integra à jusante, juntamente com o setor de óleos, interferindo em fatores que se situam tanto antes quanto depois da porteira. Essa afirmação se baseia na amplitude de rela-ções que envolvem a produção de biodiesel, como exemplificado na figura 04.

Figura 04. Cadeia produtiva do biodiesel

Fonte: Mendes (2005) apud Garcia (2007)

Assim, pelo seu potencial de crescimento, a tendência é que o biodiesel se torne um dos principais motores da produção de soja no país e, de forma paralela, da produção de insumos. Desse modo, os aspectos que definem o processo de reconfiguração des-se complexo, propiciadas por esse novo elemento, por si só, se ca-racterizam como propícias a alterar a dinâmica de funcionamento de diversas etapas do sistema organizacional da soja.

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Considerações finais Longe de afirmar que esteja ocorrendo uma queda na im-portância da cadeia de grãos-rações-carnes, o que defendemos é que está em voga um avanço conjunto na produção de soja apoia-da por duas agroindústrias altamente dinâmicas. Esses setores, entretanto, não são iguais, sendo esta, a ideia que nos faz defender a existência de um processo de recon-figuração em curso. No caso, ao se considerar a Lei de Engel, em que se afirma “que à medida que cresce a renda, diminui a propor-ção da renda que é gasta com alimentos” (HOFFMANN, 2006, p. 463), uma tendência é que diante de uma situação de maior desenvolvimento econômico, acompanhada de uma elevação da renda, o CAI da soja passe a apresentar uma maior inclinação para a indústria de óleos. Por esse prisma, o biodiesel, por si só, ao se inserir em um CAI essencialmente baseado na produção alimen-tícia, tem capacidade de conduzir a produção direta na cadeia de grãos-óleos para uma dinâmica econômica distinta e mais propí-cia, dado à sua maior diversificação. Nesse sentido, concordamos com a afirmação de Sayeg (apud AGROLINK, 2008, s/n), de que “o óleo de soja estava no pedestal nos anos 70, perdeu seu status de nobreza ao longo dos 80 e dividiu a importância com o farelo na década de 90. Agora, com os programas de biocombustível, voltou a ter peso mais forte”. Desse modo, a compreensão da dinâmica do CAI da soja a partir de 2005, requer, necessariamente, a inclusão da indústria de biodiesel integrada ao seu funcionamento e, paralelamente, de uma revisão sobre o papel da produção de óleos, em partes, des-vinculado dos óleos comestíveis. Ou seja, o PNPB ao promover o desenvolvimento de uma atividade que facilmente poderia se in-tegrar diretamente às estruturas produtivas previamente consoli-dadas no CAI da soja, teve um papel bastante distinto de sua meta inicial, sendo seu principal impacto a reativação na importância da indústria de óleos vegetais no país. Portanto, questões como a inclusão social e o incentivo à agricultura familiar no semiárido nordestino e em comunida-des tradicionais da região Norte, que apareciam como prioridades no programa, tornaram-se secundárias frente a um processo mais abrangente relacionado à reconfiguração do sistema organizacio-

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nal da soja, a partir de uma lógica, que segue, essencialmente, a motivações econômicas e industriais. Em relação à dinâmica espacial do biodiesel, as regiões de cerrado, como é o caso do Centro-Oeste, tem sido as principais beneficiadas. Essas regiões tem se desenvolvido em forte conso-nância com o avanço do agronegócio, sobretudo atrelado à soja, como demonstram estudos como, por exemplo, os de Bernardes (2006), Elias (2007) e Frederico (2008). A partir desses trabalhos é possível afirmar que a relação da soja com a Geografia dos cerrados já é um campo bastante con-solidado. Resta, então, considerar as transformações que biodiesel tende a impor a esse contexto. É certo que existe uma diferença nítida entre, por um lado, transformar a soja em um produto ali-mentício e, por outro, fazer dessa leguminosa um dos insumos responsáveis por movimentar a frota de caminhões no país. Essas mudanças certamente têm significativas implicações territoriais, sociais e econômicas. Argumentamos que tais mudanças podem ser responsáveis por induzir um modelo de reconfiguração do CAI da soja com capacidade de provocar novas influências para a economia dos cerrados e, mais especificamente, da região Centro-Oeste.

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Fernando Campos Mesquita

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DA TAPERA AO TAPERA: cultura como garantia da vida camponesa32

Maria das Graças Martins-Bibiano

Penso que aqui, vive meu pai. Ainda que ele já se foi... e não viu a terra partida.Uma coisa ele viu: essa gente se movimentar do jeito que ele queria um dia. Ele viu a luta.

Dona Dina (filha de Seu Chico da Tapera).

Este texto é fruto de elaborações e pesquisas realizadas no Assentamento Tapera (o Tapera), no Curso de Pós Graduação do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Ge-rais33, como bolsista da Capes entre os anos de 2007 a 2009, sob a orientação da Professora Doutora Maria Aparecida dos Santo Tubaldini. A partir de novas elaborações do grupo de estudos do Laboratório Turismo e Geografia Cultural da Universidade Fede-ral de Uberlândia foi possível compreender que alguns elementos identificados naquele lugar são importantes para compor o con-junto de reflexões acerca dos assentamentos rurais. Nesse sentido,

32Martins-Bibiano, Maria das Graças (2009) - “Há Terras para Plantar neste Verão?” O Assentamento Tapera e a reprodução do espaço (e da vida) na luta pela terra; publicada no ambiente da biblioteca de teses da UFMG inhttp://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/MPBB-85JG2F. Defesa em julho de 2009, sob a orientação da Prof. Dra. Maria Aparecida dos San-tos Tubaldini.33Martins-Bibiano, Maria das Graças (2009). “Há Terras para Plantar neste Verão?” O Assentamento Tapera e a reprodução do espaço (e da vida) na luta pela terra; publicada no ambiente da biblioteca de teses da UFMG in http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/MPBB-85JG2F.

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foi feito um retorno às entrevistas34, fotos e demais registros, rela-tivamente recentes, como uma sequência de do trabalho. Portanto, este artigo tem suas bases em pesquisas diretas e indiretas que discorrem sobre aqueles camponeses e sobre questões de “ordem próxima” e “ordem distante” (LEFEBVRE, 1967) que interferem no seu cotidiano. Objetivou-se com esta pesquisa, contribuir com o estudo sobre as práticas camponesas e compreensão sobre as estratégias e o sentido da luta pela terra para quem esta significa a própria existência. A produção científica se propõe a compreender o co-tidiano e dele se “alimenta”. Portanto o segundo possui a riqueza que contribui para a produção do conhecimento, que se justifica pela apropriação dos sujeitos que a colocam em “teste” e alicer-çam suas elaborações para além da ciência. Assim, durante as reflexões e contato com novas elabora-ções, foi possível perceber um elemento que nutre e que fortalece os sujeitos, da Fazenda Tapera até o que se tornou o Assentamen-to Tapera, de maneira individual e coletiva: a cultura. A cultura, talvez seja o mais forte mote de desenvolvimento daquela estrutu-ra coletiva. Poderemos identificar ao longo desse artigo situações, relatos e reflexões que nos fazem perceber que a luta pelo que veio a se firmar como Assentamento Tapera, não foi simplesmente a luta pela terra. Foi, além disso, uma luta pelo modo de existência naquela terra, naquele lugar, onde suas vidas e suas práticas fazem sentido. A cultura, esta que para Claval, possui suas “raízes num

34Na transcrição das entrevistas, diferentemente do texto da dissertação, op-tei por fazê-la dentro das normas da língua portuguesa no que se refere es-pecialmente à concordância nominal e verbal, a fim de deixar a leitura mais linear, sem, contudo, interferir na integridade “das falas” dos sujeitos e nas mensagens que essas nos trazem. Essa opção não tem a intenção de corrigir os versos dos camponeses entrevistados, mas, de considerar que a comuni-cação coloquial pode contribuir pouco para nosso diálogo e talvez tender a uma desnecessária “caricaturização” da figura do camponês. As entrevistas, bem como os outros registros utilizados neste texto foram realizadas entre os anos de 2006 e 2009.

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passado longínquo” (CLAVAL, 2001 p. 63) não se perde, trans-forma-se e integra-se ao conjunto velhas práticas e sapiências re-novando-se em uma espacialidade contemporânea. A existência do novo não expurga o antigo, o contém a partir da sequência do que se tornou a nova realidade coletiva, composta das individua-lidades trazidas e tempos e espaços diferentes. Esse encontro entre culturas não se ergue sem conflitos, que por vezes, se constituem em elementos desestruturantes das relações entre as famílias assentadas. Como consequência, muitos assentados abandonam o projeto do assentamento rural, colocan-do os lotes recebidos a venda, ou simplesmente deixando-os. Os motivos podem ser muitos, mas, há um elemento que pode indicar os resultados positivos de um determinado assentamento: a con-formação cultural. Nesse sentido, o objetivo desse artigo, é a de propor uma reflexão sobre o arcabouço cultural, o habitus, como elemento de fixação, fortalecimento das condições da (re)existência campone-sa. A existência da condição camponesa pressupõe (ao menos) a posse da terra na qual a família realiza sua reprodução por meio das suas atividades e de seu saber. A necessidade de assentar fa-mílias em espaços rurais denuncia a má distribuição de terras no Brasil. No Assentamento de Nossa Senhora das Oliveiras, mais conhecido como Assentamento Tapera, a dimensão cultural do as-sentado revela-se como um elemento fundamental, especialmente, nos processos produtivos que se desenvolvem no Assentamento. É certo que a cultura, para além da produção material, é a também representação espiritual e mental de um determinado grupo. Con-tudo, tais representações de maneira interligada, correlacionada. O Assentamento Rural Nossa Senhora de Oliveira, mais conhecido como Assentamento Tapera, localiza-se na cidade de Riacho dos Machados no Norte de Minas Gerais. Embora tam-bém esteja inscrito no processo mais geral de luta pela terra, que envolve a questão agrária no Brasil, este assentamento não foi resultado das lutas dos movimentos sociais organizados. Mas de uma articulação local, que se forjou no curso das redefinições que envolveram oNorte de Minas ondeeste se situa.

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Essa articulação encontrou o apoio e a orientação do Sin-dicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha e de Riacho dos Machados. Nesse sentido, esses sindicatos, somados àsCEBs- Co-munidades Eclesiais de Base- participaram ativamente na organi-zação dos moradores para resistir às condições desestruturantes do seu modo de vida e a permanência na terra. E, nesse sentido, os camponeses da Fazenda Tapera passaram a compreender melhor o processo expropriatório do qual estavam sendo submetidos. Nesse contexto, estes camponeses também se apropria-ram de algo que é fora do lugar: aquilo que lhes davam novas compreensões da sua condição camponesa e daquilo que pode-ria instrumentalizar a luta pela terra. A legislação ambiental, que lhes impunha limites às atividades que resultassem na retirada da cobertura vegetal, proibia o arrastão dos“correntões”35: o desma-tamento e derrubada de tudo que havia no lugar. “Por onde aquilo passava, não sobrava nada que fosse vivo... era muito forte, era uma destruição...36 O grupo de camponeses articulados no objeti-vo de luta pela terra apropriara-se dos instrumentos do movimen-to ecológico que, como afirmou Carlos Walter PortoGonçalves (2000) perpassa todos os movimentos sociaisdevido o seu caráter histórico-cultural. Assim, por meio denúncia do descumprimento da lei am-biental, o movimento daqueles agricultores camponeses conse-guiu não apenas interromper a derrubada da vegetação do Cerrado na fazenda, mas ainda, chamar a atenção do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA – que, ao analisar o processo de pedido de assentamento rural, caracterizou a fazenda por improdutiva e passou aos procedimentos de organização de realização assentamento. Desse momento em diante, veio a esco-lha dos camponeses da área de desapropriação, a distribuição dos lotes e a formação do que veio a se tornar o Assentamento Tapera. Parte das terras da Fazenda Tapera passara a ser de propriedade

35Ou “correntão”: uma grande e forte corrente presa em dois tratores (pelas pontas) que puxam-na sobre a vegetação, para desmatar com mais rapidez e eficiência.36Lô de João Franco em entrevista à autora em 2005.

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daqueles que durante décadas viveram dela e nela se reconheciam como seres sociais. A gênese do Tapera está ligada, por um lado, ao orde-namento territorial brasileiro voltado à sua modernização e, por outro, às relações específicas que se materializam no lugar e que tendem a ser desestruturadas no âmbito dessa modernização da produção espacial acentuada a partir dos meados do século XX. Todavia, se a sua gênese está vinculada a estes processos, a con-solidação do Tapera e sua permanência só materializou como possível no curso da mobilização de um conjunto de práticas e saberes moldados na relação estabelecida com um lugar, cujas ca-racterísticas são muito específicas. Especificidades que se forma-ram conforme as peculiaridades de um regime hídrico que impõe uma série de procedimentos segundo o conhecimento acumulado historicamente para a convivência com o semiárido no momento do stress da seca. Segundo as exigências que recaem sobre os sujeitos que vivem naquele lugar, forjou-seo conjunto de saberes:a adaptação necessária do que cultivar e como fazê-lo. Aprendizado que foi constituído no curso da vivência de gerações que acumularam seus saberes sobre os cultivares, que ali se tornavam possíveis, numa delicada relação de equilíbrio elaborada a partir das condi-ções ambientais. Desse contexto, configurou-se uma agricultura, como condição de viver no/do lugar e que, uma vez forjada, fun-damentou a condição de permanência do agricultor do Tapera, após a conquista do acesso seguro à terra. Historicamente, a principal atividade produtiva desenvolvi-da na Fazenda Tapera caracterizou-se pela criação de gado “a solta” nos limites da propriedade de mais de 20.000ha37. Além da criação de gado para corte, também se produzia gêneros alimentícios cuja

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37O lugar, onde é hoje oAssentamento Tapera, é de aproximadamente 3.800 hectares que, anteriormente, faziam parte dos 20.000 ha da fazenda de pro-priedade do Sr. Alcebino dos Santos – o “Major” e que fora vendida à CI-CAFE. Os 17.000 ha restantes pertencem atualmente a esta empresa de side-rurgia, “reflorestamento” e produção de carvão vegetal que, somados ao que empresa incorporou, conforma atualmente uma única propriedade de vinte e um mil hectares.

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principal função não era a comercialização, mas, a deabrir e for-mar os pastos necessários ao desenvolvimento da atividade prin-cipal, além de sustentar a reprodução da força de trabalho para as atividades da fazenda. Associada à pecuária, a produção de culti-vares na fazenda Tapera ocupou uma posição secundária ou mes-mo marginal, visto que a mesma, apesar de estruturante, não era central no processo de realização da riqueza que interessava ao proprietário da terra. Enquanto a atividade pecuária,de gado para corte, carac-terizava-se pelo baixo emprego de força de trabalho, sempre entre quatro ou cinco vaqueiros, a atividade agrícola exigia o grande contingente. Outra diferença significativa refere-se à forma de ocupação da propriedade. Os vaqueiros tendiam a residir nas ime-diações da sede, em alojamentos ou, como ocorreu por determi-nado tempo na Tapera, dentro da própria sede. Já os trabalhadores que cumpriam a função de formar pastos por meio da agricultura ocupavam áreas distantes da sede e cuidavam de áreas de 05 a 10ha, aonde faziam seus roçados e agricultavam a terra para,após alguns anos de plantio, mudarem seus plantios para outras áreas. Nas áreas anteriores, já desmatadas e com a terra preparada, viam-se obrigados a lançarem as sementes de formação de pastagens para a criação de gado. Essa era a condição de permanência e de garantias da vida do camponês e de sua família, também envolvi-da nessas atividades. João Tiú relata que quando se mudou para a Tapera, “tinha pra mais de cinquenta famílias que viviam desse jeito, fazia uma morada aqui, outro dia já estava acolá, eram o gado que mandava; ia depender da demanda para a quantidade de gado que tinha, e era muito...”38

Para os trabalhadores, essa relação sempre apareceu como uma concessão do patrão que lhes permitia ocupar a terra e se reproduzirem nela. Formar os pastos era a principal forma de pa-gamento ao proprietário fundiário pelo direito de permanência naquela terra. Além desta, outras formas de pagamento também

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38João Tiú em entrevista (2007)

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se davam pela “terça parte” da produção entregue ao proprietário da terra, além da obrigação de dar manutenção à estrutura da fa-zenda: tal como a feitura das cercas e do seu conserto; abertura e manutenção de estradas, pontes, limpeza e represamentos provi-sórios de rios e córregos39, entre outros. De acordo com o que se passava na Fazenda Tapera, como observou Oliveira(1986) trata-se de uma aparência, na medida em que, o que se revela é um processo de expropriação da força da força de trabalho que não é remunerada, em termos clássicos, pelo trabalho realizado.Em troca da “autorização” de viver nas terras da fazenda e de cultivar pequenas porções de terra (quintal no entorno da morada), praticando uma agricultura que fosse sufi-ciente para se manterem como força de trabalho, os camponeses preparavam as terras que em anos seguintes eram assimiladas pela atividade do fazendeiro. Após três ou quatro colheitas, os agrega-dos viam-se obrigados a se transferirem para outra área, lançando antes a semente para formação de pastagem para o gado na antiga área cultivada. Estes elementos apontam para a prática de escra-vização por dívida, como analisou José de Souza Martins(1983). Trata-se de uma forma de obtenção do trabalho sem se pagar por ele, extraindo assim, a renda da terra40. Segundo relatos daqueles que foram moradores da fazenda, hoje assentados, os trabalhado-res que viviam nas terras da Fazenda Tapera, subordinados nas relações de produção, ainda eram submetidos à condição de con-sumidores dos produtos do “armazém” que a fazenda mantinha. Se em um primeiro momento, os camponeses estavam subjugados à racionalidade das grandes propriedades onde se desenvolviam a criação extensiva de gado e pouca agricultura, a seguir,o processo de modernização da agricultura baseado no es-tímulo ao reflorestamento por meio do monocultivo do eucalipto e, em menor medida, na pecuária extensiva, contribuiu para uma

39Como afirmou Sr. Alvimar em entrevista à autora em 2008.40MARTINS (1983) Os Camponeses e a Política no Brasil: As Lutas Sociais no Campo e seu Lugar no Processo Político, Petrópolis, Vozes, 2ª ed.

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exclusão ainda maior da agricultura camponesa. Dificuldades im-postas pelo avanço da forma privada da propriedade que limitou as condições de produção material dos agricultores camponeses desarticulando as condições da realização da sua produção imate-rial - a cultura. Apesar da exploração do trabalho dos camponeses pelos proprietários das terras, desenvolveram-se as relações que davam sustentação à reprodução socioespacial ainda que embasadas em formas arcaicas de reprodução da riqueza, já que as relações de trabalho não estavam mediadas pelo salário. Segundo depoimen-tos dos camponeses, em troca das atividades desenvolvidas nas terras do proprietário, o camponês obtinha o “direito” de viver na propriedade com sua família e de cultivar no entorno da moradia em pequenas quantidades. As estratégias de produção se diversi-ficavam para que pudessem ser obtidos os meios de vida durante todo o ano. As famílias que se estabelecidas na fazenda viviam as relações de parentesco e de proximidades entre compadres, por-tanto, de proximidade. Assim, da/na relação com a natureza e seus pares, o camponês da Tapera forjava os meios para suplantar os limites que as condições ambientais e socioeconômicas lhe impu-nham. A reprodução socioespacial assim estruturada manteve-se por longo período. Segundo relato dos então moradores da Fa-zenda Tapera, até a mesma tornar-se propriedade do “Major” (o último criador de gado), foi vendida várias vezes. E em todas elas, os mesmos eram “vendidos” juntos, dando continuidade às rela-ções de trabalho que se realizavam antes, independente do novo proprietário, já que a modo como o norte mineiro estava inserido no ordenamento territorial brasileiro comportava a reposição/ma-nutenção de tais práticas. A nova condição, que impunha a mudança da atividade econômica da fazenda, explica-se pela redefinição da antiga ativi-dade desenvolvida, de criação de gado de corte, para a monocul-tura de eucalipto. No contexto da atividade econômica anterior, os trabalhadores agregados eram necessários ao seu desenvolvimen-

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41No campo, termo parceria significa produto do trabalho dividido entre o proprietário da terra e o trabalhador que aplica sua força de trabalho a ela, repartindo com “dono” da terra os frutos de sua colheita. Essa pode dar-se em regime de meação, quarta, terça, conforme o que previamente as parte combinam sob uma espécie de contrato tácito. No caso estudado, o regime de meação pautou as relações entre os camponeses (agregados) e o proprie-tário da terra.

to, basicamente, no sistema de parceria41. Por outro lado, os novos termos impostos pela modernização do território, com a expansão do plantio de eucalipto, impuseram diferentes condições para toda a região, como refletiu Gonçalves (1994), “desestruturadoras”. Esse processo alcançou a Fazenda Tapera e seus moradores que viviam alihá pelo menos três gerações, impondo-lheso desman-telamento das relações que davam sustentação à sua reprodução. Isso porque, ao contrário dos proprietários fundiários anteriores, a nova proprietária, a empresa CICAFE, não desenvolvia a ativida-de de criação de gado, mas o plantio do eucalipto, principalmente para produção de carvão destinado ao complexo siderúrgico. Após a venda da fazenda Tapera pelo “Major” à CICAFE, os moradores, que até entãoviviam naquele lugar, foram comuni-cados que teriam que desocupá-la, já que a nova proprietária não tinha interesse em sua permanência. Isso porque, diante da nova atividade do plantio do eucalipto que chegava juntamente com a nova proprietária da terra, os antigos trabalhadores tornar-se-iam um entrave, já que esta atividade não demandava toda a força de trabalho existente na fazenda e, ainda exigia que a terra estivesse livre (dos camponeses) para o plantio em grande extensão, como é próprio do plantio eucalipto. Foi esse processo, desencadeado por relações mais gerais e mais amplas que impôs, no nível do vivido, sua completa redefinição: ao se virem na iminência de serem ex-pulsos do lugar de reprodução da vida, os camponeses da Fazenda Tapera, iniciaram um movimento de organização no sentido de resistir à expulsão compulsória que se impunha. Foi também no processo de organização das condições de resistência, na iminência da perda do acesso à terra que,aqueles camponeses puderam se perceber como sujeitos da sua produção.

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Embora se tratasse de uma questão parcial ou de um fragmento daquilo que compõe a questão agrária no Brasil,os camponeses da Taperaestavam envolvidos, era afinal, em uma a questão de um país inteiro: o acirramento da concentração fundiária e da luta pela terra. Assim, o que se mostrou foi que a expropriação im-posta era decorrente da modernização do território que estava sen-do re-ordenado não mais para repor as condições de acumulação, mas para ampliá-las, estabelecendo um novo patamar (OLIVEI-RA, 1986). Nesse contexto, a ameaça de expulsão dos moradores da Tapera despertou o interesse de instituições e grupos mediado-res envolvidos na luta pela terra na defesa daqueles que tendem a ser alijados sumariamente do acesso à terra. O Tapera, na sua condição de assentamento camponês, forjou-se a partir das disputas que se estabeleceram entre a SICA-FE e os camponeses, até então agregados que ali se viam, diante da possibilidade de expulsão. Diante desse contexto, o sindicato rural de Riacho dos Machados e de Porteirinha42, juntamente com segmentos da Igreja Católica ligados à Pastoral da Terra, mobi-lizou-se no sentido de defender os direitos dos moradores, inse-rindo a questão da Tapera no contexto mais amplo de luta contra expulsão dos camponeses. Dessa maneira, o que inicialmente apareceu como um “fato consumado”, qual seja, a venda de todas as terras da fazenda e a saída dos moradores, assumiu a forma e o conteúdo da luta pela permanência na Tapera. No entanto, não mais pelas relações anteriores, visto que os novos termos impediam esta condição, mas agora pela propriedade da terra onde, afinal, ocuparam e re-produziram no curso da reprodução da sua existência. A luta que se fez presentefoi pelo domínio total sobre a terra, detendo a mes-ma inclusive a propriedade. Nas palavras de Dona Dina,

nunca aqui, ninguém tinha pensado em pedir terra, entrar na justiça exigindo terra.Para nós daqui, parecia que não ia ser preciso isso, a gente nunca pensou isso. A gente era

42O Assentamento Tapera situa-se ao sul do município de Riacho dos Ma-chados, enquanto Porteirinha é um município vizinho.

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43João Tiú em entrevistaà autora em 2005.

daqui e vivia na fazenda, desde muito tempo, não achava que a gente ia ter que brigar para não sair da fazenda. Mas lutamos, foi bom porque hoje ninguém tira a gente daqui,né?

A propriedade formalizou, para agricultores do Tapera, o acesso à terra oferecendo-lhes a sensação de segurança para segui-rem suas vidas, como resultado de uma articulação e mobilização de todos os esforços necessários ao sentido da vida camponesa. Todavia, tal processo somente se realizaria por meio de um específico e intenso conflito que, se não chegou ao enfren-tamento militar, esteve bem perto disso, como se revela na fala dos moradores que, por diversas vezes, tiveram que lidar com a presença da polícia militar, acionada para a expulsão dos mesmos.João Tiú (camponês do Assentamento Tapera e antigo vaqueiro da fazenda) afirma:

eles estavam dispostos a matar, mas, aqui também tinha disposição para morrer. Foi em três dias que eu vi essa casinha minha ser levantada, e mais de dezesseis homens aqui vigiando minha vida, porque disseram que iam ma-tar eu e que iam queimar as casas dos agregados todos e que iam acabar com tudo. Plantação, animal, tudo que você pensar. Era de dar medo. Não fosse Seu Chico, mais as meninas dele, D. Dina, Joaninha, dar conta de levan-tar uma casa tão depressa, eu estava era no relento, ou de favor... mas não precisou não... eles deram conta em três dias a casa estava levantada.43

Fica claro que, não fosse pela mobilização dos recursos intelectuais para manipular e construir a partir dos materiais dis-poníveis naquele lugar, os agricultores poderiam mesmo ser ex-pulsos do lugar onde se realizavam como sujeitos sociais. Dian-te dessa perspectiva, toda a movimentação tornou-se importante como estratégia de enfrentamento. No bojo desse enfrentamento, os saberes historicamente construídos por meio das práticas socioespaciais, que assumem a condição de cultura, o habitus, constituíram-se em elemento de

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resistência e fortalecimento das condições da (re)existência cam-ponesa. De fato, segundos os moradores do Assentamento Tapera, por várias vezes, tão logo ficavam sabendo do deslocamento da polícia ou mesmo de agentes da empresa incumbidos da destrui-ção de determinada casa, todos os moradores se movimentavam pelos atalhos que conheciam bem chegando antes, formando um grupo capaz de impedir tal destruição. Segundo Joaninha

era até engraçado, hoje a gente ri: o primeiro que via os carros corria e avisava o outro, daí a pouco estava todo mundo correndo por esses matos, pelas trilhas. Eles tinham que abrir e fechar os colchetes para o carro pas-sar, para eles só tinha as estradas, para nós, os atalhos. Quando eles chegavam a gente brigava mesmo.

Tanto no processo de luta, quanto no momento de re-esta-belecimento,os saberes dos camponeses puderam ser mobilizados como uma estratégia de resistência e, posteriormente, os mesmos se tornaram fundamentais para a permanência dos camponeses da Fazenda Tapera no que se tornou o Assentamento Tapera, nas no-vas condições. De fato, ainda que submetidos numa condição de expropriação com o fazendeiro, os camponeses constituíram ali as estruturas de convivência que lhes propiciavama vida naquele lugar e nele estabelecer suas relações de identificação. A vida que ali se desenvolveu, para além dos vínculos da produção material, que tendiam à subordinação camponesa, trazia em si riqueza mui-to maior do que essas relações podiam comportar. Riqueza que tanto podiam ser reconhecidas nas atividades de produção material, quanto daquelas no plano do imaterial. Se-não, vejamos: “meu pai era cantador de catira, aprendi um pouco com ele, mas era ele que alegrava essa gente. De vez em quando, de noite, reunia todo mundo e aí era uma festa. Era roda, causo risada, milho cozido, pamonha, biscoito... era uma alegria só”.44 Em certo sentido, pode-se mesmo dizer que, nesse âmbito, se for-jou algo não subordinável às imposições contrárias à sua exis-tência: a da condição de camponeses. Assim, emerge aquilo que

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44Dona Dina em entrevista à autora em 2008.45Como é chamado pelos seus moradores e mesmo em documentos do INCRA

permaneceu irredutível, essencial: o resíduo, nos termos refleti-dos por Lefebvre (1967). Resíduo este, que serviu tanto como sus-tentação e suporte para a luta naquele momento de pressão pela perda do acesso à terra, quanto para constituição e permanência dos agricultores da (fazenda) Tapera na condição de camponeses do (assentamento) Tapera. Desde o início, a questão que envolveu os moradores do Tapera a partir da chegada da SICAFE revelou-se bastante favo-rável aos interesses da empresa, visto que esta, não apenas, deti-nha o título de propriedade da terra, como estava em consonância com o projeto modernizador do Estado que incentivava, em ampla medida, a expansão da monocultura do eucalipto sobre o Norte Mineiro.Porém, também no final dos anos de 1980/90 forjou-se e se consolidou em âmbito nacional um aparato jurídico-legal que, progressivamente, passou a interferir no processo de reprodução social do espaço. Para o caso específico das atividades da SICA-FE esse processo materializou-se na forma de restrições da utili-zação da vegetação nativa para a produção de carvão e, ainda, na proibição da prática do “correntão” para desmatar determinada área. Apesar da proibição, a nova proprietária da Fazenda Tapera utilizava-se amplamente deste expediente que, após ser compro-vado pelos moradores da fazenda e por aqueles que os apoiavam, tornou-se um importante elemento para a definição favorável aos moradores do conflito estabelecido. Em 1996 o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) reconheceu a área de 3.800ha como de direito dos moradores, determinando assim, a demarcação dos limites do assentamento e o reconhecimento dos agregados como proprietá-rios da área desapropriada. A área foi dividida em pequenas pro-priedades que, em média, possuem cerca de 60 hectares, sendo cada um distribuído para as 48 famílias. Após a demarcação, os 3.800ha tornaram-se o Assentamento Nossa Senhora das Olivei-ras ou Assentamento Tapera45.

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A definição do Tapera dentro dos 20.000ha da Fazenda Tapera deveu-se ao fato de os moradores estarem nela estabeleci-dos.Segundo João Tiú46, em relação às terras ocupada pelo Assen-tado do Tapera,

esse assentamento, por meu gosto seria lá pras bandas do mandacaru, lá é um lugar de muita beleza, a terra é boa, mas, o que favoreceu que fosse aqui foi a água, lá é mais difícil. Aqui é bem melhor de água, porque é uma terra mais baixa, é uma terra mais fria, boa para a roça... a maior parte das famílias já viviam por aqui e falavam bem do lugar, então nós definimos.

O Assentamento Tapera é drenado pelo Rio Tamanduá e Córrego das Sete Voltas, afluentes da margem esquerda do Rio Vacarias, na bacia do Rio Jequitinhonha. Devido à irregularidade hídrica da região, no norte de Minas Gerais as áreas próximas dos córregos e rios são de grande importância para o desenvolvimento das atividades camponesas. Isso porque, essa irregularidade hídri-ca impõe, como um processo “natural” do lugar, longos períodos de estiagem que podem configurar secas que, às vezes, se prolon-gam e demandam conhecido bastante particular dos camponeses que nela reproduzem sua existência. Foi no lidar cotidianamente com estas condições que os assentados do Tapera forjaram seus saberes que dão suporte à agricultura que desenvolvem, mesmo sob condições que, para quem não é do lugar, podem aparecer como impossíveis. No caso do Tapera essas particularidades são realçadas não apenas em função das condições ambientais, mas também em função do tamanho da terra de cada um, já que a produção fami-liar restringe-se à área recebida. João Franco, em entrevista no ano 2007, afirmou que

se não tomar cuidado, a gente estraga a terra, o lote é pequeno, a área de cultivo, a terra mais fria, é pouca e tem que conservar o carrasco, se quiser produzir, aí fica

46Camponês do Tapera, entrevistado em 2007.

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reduzido. Tanto para plantar quanto para criar animal, tem limite, não pode exagerar e tem que saber aproveitar as águas.

Assim, estes precisam conhecer detalhes que são bem es-pecíficos, capazes de orientar estratégias para ampliar o a capa-cidade de retenção da umidade do solo;períodos mais indicados para o plantio, que variam de ano a ano; o que e como plantar de acordo com as condições dadas,entre outros. Enfim, são elemen-tos que o camponês deve conhecer e estar atento. É nesse sentido que João Franco, afirma que “a cagaita não fica muito tempo na poeira, se a fruta amadurece, logo chove. Pode jogar a semente por minha conta”. Conhecimento que revela pela vivência que não é só sua, mas pela soma de saberes que se acumulam na expe-riência do grupo e que são passados de pai para filho. Nos termos nos quais refletiu Paul Claval

a cultura é a soma dos comportamentos, dos saberes, das técnicas, dos conhecimentos e dos valores acumula-dos pelos indivíduos durante suas vidas e, em uma outra escala, pelo conjunto dos grupos de que fazem parte. A cultura é herança transmitida de uma geração a outra (CLAVAL, 2001, p.63).

É também dessa cultura que advém importantes estraté-gias adotadas, que se revelam nos relatos dos camponeses: “aqui você deixa a palha da roça do ano passado, porque além de adu-bar, a palha segura a umidade. Ali você faz uma linha de terra para estancar a água que inunda, se não for assim, ela volta rápido para o rio e aí o arroz não sai. Tem que segurar a água. Isso a gente foi aprendendo com o tempo, desde os tempos dos nossos avós... a gente vai é melhorando.”47. De acordo com a defesa de Claval

Os membros de uma civilização compartilham códigos de comunicação. Seus hábitos cotidianos são similares. Eles têm em comum um estoque de técnicas de produção

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47João Franco em entrevista à autora em 2008.

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e de procedimentos de regulação social que asseguram a sobrevivência e a reprodução do grupo. Eles aderem aos mesmos valores, justificados por uma filosofia, uma ideologia ou uma religião compartilhadas (CLAVAL, 2001, p. 63).

Na relação com o ambiente e com o grupo com o qual convive o sujeito, tanto na condição individual quanto coletiva, propõe-se ao desenvolvimento de suas atividades buscando melhorar e enriquecer as técnicas socialmente construídas dentro dos códigos de conduta do grupo no qual está inserido. É no âmbito dessa relação que o camponês do Taperaapropriou-se daquilo que conhecia da natureza: das condições dadas, adaptou-se, ao mesmo tempo em que a modificou conforme suas necessidades. Em uma relação que se fundamentou e fundamenta na busca do equilíbrio, diante das condições que lhes são específicas; o que se revela como um processo de constante aprendizado. Assim, no curso da reprodução social do espaço do Tapera, pode-se perceber que as práticas que se revelam e se manifestam no Tapera, foram forjadas anteriormente ao movimento de luta pela terra, mas também a partir daquela experiência. Tonho de Jovita, também morador do assentamento, ao relembrar sobre o que os manteve unidos na luta pela terra afirma:

A gente usa é o que a gente sabe. Então a gente pensava – se sempre soubemos fazer pelo fazendeiro, porque não de-fender o que era para nós mesmos? A gente não deixava a turma desanimar. A gente ouvia e dizia: sabemos fazer. O que um sabia, o outro sabia também, mas, às vezes um era melhor, a gente aprende um com o outro. Aquilo, aquela conversa, dava pra gente uma energia nova, era hora de reunir: que fosse para rezar, que fosse para plantar as roças, ou para as cantigas de roda, de catira, a gente tava todo mundo junto ali. Era tudo parte de uma luta só, não dava para saber se ia dar certo, mas era o que a gente tinha: a gente mesmo, as nossas forças. O que eu sei é que deu certo, está todo mundo aí, em segurança, cada um tocando sua vida, todo mundo junto, assim, como você sabe como é? A luta nunca acabou...’48

48Tonho em entrevista à autora / 2008.

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Conforme já dito, todos os camponeses que foram assen-tados no Tapera são oriundos das famílias que, historicamente, se reproduziam nas relações naquele lugar. De fato, esta condi-ção não impediu que houvesse divergências entre os moradores que ocuparam aquele território. No Tapera existem aqueles que se dedicam à colheita/cultivo de plantas medicinais; aqueles que se dedicam à criação de gado; ao plantio e beneficiamento da cana; à produção de cultivares, etc.As decisões coletivas são postas em discussão; no entanto, diante da tamanha diversidade da produção e que esta diversidade, por vezes se materialize como divergência entre os camponeses do Tapera. Porém, diantedo fato dessas ativi-dades terem sido forjadas no lugar possibilita-se que estas práticas sejam exercidas com certo equilíbrio com as características da re-gião em que está inserido. Contudo, os conflitos que se erguem no encontro entre culturas diferentes, ou quando o camponês é deslocado para uma região que lhe seja totalmente estranha, revelam-se bem delica-dos; diferentemente do que se pode observar no Tapera. Muitas vezes, tais conflitos se constituem em elementos desestruturantes das relações entre as famílias assentadas nos diversos assenta-mentos rurais existentes no Brasil.É possível afirmar que um dos entraves ao êxito de todos os assentamentos rurais se materiali-zam é a desconsideração dos saberes culturais do camponês que muitas vezes é assentado em uma região totalmente distinta em relação à sua de origem. Ou ainda, conforme os elementos identificadosMarcelo Cervo Chelotti (2007, p. 3), apesar de, em alguns casos, o encontro da diversidade ser positiva no relacionamento entre os campone-ses assentados, estes podem enfrentar um desencontro entre a sua composição cultural em relação ao “entorno” e as relações que se encontram externas ao assentamento:

Os assentados, sendo provenientes de outras regiões, trouxeram uma outra racionalidade no uso da terra, in-corporando novos cultivos e fortalecendo a expressão da produção familiar/camponesa em âmbito regional. A

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nova racionalidade é visível na medida em que nos lotes são desenvolvidas atividades como cultivos agroecológi-cos, pecuária leiteira, dentre outras, formando núcleos de produção familiar em territórios do latifúndio agro-pastoril. No entanto, também se observa que essa nova racionalidade enfrenta problemas, como a comercializa-ção dos produtos, uma vez que,tradicionalmente a região não tem infraestrutura voltada para a produção familiar. Portanto, está posto um desafio para os assentados da Campanha Gaúcha: como se reproduzirem numa região onde o espaço latifundiário é sua própria identidade?

Como consequência, há um número significativo de cam-poneses que se veem diante da impossibilidade de se reproduzi-rem nos seus lotes e acabam por se desistirem do projeto: seja pelo simples “abandono” ou comercialização do lote, situação pela qual estes são responsabilizados fora do contexto mais geral que envolve essa condição. Embora haja motivos diversos, den-tre eles, é bastante relevante a dificuldade de adaptar-se às novas condições, pois, como já dito,em muitos casos um camponês é expropriado em uma região e reconstitui essa condição em outra sob condições totalmente diversas. Condição em que se encon-tram impedidos de mobilizar seus saberes no restabelecimento de seu modo de vida anterior. E, na medida em que não podem mo-bilizá-los, veem-se obrigados a recorrer às práticas conservadoras de produção no campo que, invariavelmente, leva o camponês ao endividamento, já que sua condição de produção está diretamente associada à utilização dos recursos oferecidos pela agroindústria. Assim, mesmo aqueles que conseguem manter-se na terra ficam presos a um “sistema” produtivo que os subordina e, no limite, impedem sua realização autônoma como camponês. Desta maneira, o que se revela é que o acesso à terra, em-bora se constitua em condição fundamental, não é suficiente para garantir as condições de reprodução do camponês e sua perma-nência na propriedade. O que se explicita é a necessidade de criar condições de apoio para que os mesmos possam viver com digni-dade de seu trabalho que é, afinal, a reivindicação do camponês envolvido no movimento de luta pela propriedade da terra. Embo-

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ra não se trate de um processo de fácil solução, alguns aspectos se revelam como importantes alternativas para que o camponês não seja transformado em um mero trabalhador rural que, no limite, se subordine ao complexo agroindustrial pelo seu endividamento. No caso do Tapera, o fator cultural, aqui considerado como um conjunto de saberes que resulta e alimenta as práticas cotidianas, revelou-se como um aspecto de grande importância ou mesmo o principal fator de êxito dos camponeses que foram nele assentados. O fato de terem sido assentados na terra em que já viviam oportunizou que pudessem mobilizar esse conjunto de saberes, o que lhes permitiu (re)existirem como agricultores cam-poneses, construindo ali sua reprodução de forma relativamente autônoma. Assim, o sentido emerge como residual que, para Le-febvre (1967) trata-se daquilo que permanece, do que é essência que, diante das transformações sociais, perpassa a história e se manifesta adiante. Nessa perspectiva, ainda que estivesse na con-dição de potencialidade, a cultura, como resíduo pôde ser mobi-lizada como fundamento da reprodução socioespacial do Tapera. Foi a partir de seus conhecimentos e experiências secularesque os camponeses deste assentamentopuderam efetivamente apropriar-se da terra, nos termos mais amplos, para, afinal,definirem o curso de suas vidas a partir daquilo que mais conheciam: a capacidade do trabalho na terra. No entanto, a opção da forma de produção a partir de seus saberes e práticasque tendem a se colocarem à margem da agroindústria49 não foi bem aceita inicialmente e teve, como custo,

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49Técnicas como a rotatividade culturas para o “descanso” da terra; como deixar a palha da planta na terra para alimentar e manter a umidade da terra por mais tempo, o plantio associado entre culturas, a conservação de espécies originárias da vegetação do entorno, e diversidade de cultivos no mesmo ambiente dá ao camponês, agricultor do Tapera, a condição da não utilização do adubo químico, entre outros insumos. Essa realidade o favore-ce tanto no que diz respeito à qualidade do alimento que consome, quanto à maior autonomia econômica que este alcança, por se livrar de adquirir tais insumos no mercado. O que, segundo os camponeses, não compromete a produtividade e ainda repõe “as forças da terra” (João Franco em entrevista em 2008)

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a retirada daslinhas de crédito bancário destinados a “agricultores familiares50”, quando estes declararam sua opção pela orientação de práticas que se qualificam como agroecológicas51. Segundo re-latos dos camponeses do Tapera, em princípio, tiveram que provar que era possível produzir gêneros alimentícios sem a introdução das sementes híbridas e insumos químicos, conforme o banco exi-gia para a aprovação dos projetos de desenvolvimento dos lotes. Sobre isso Tonho da Jovita relatou:

não aprovavam de jeito nenhum; o projeto só seria apro-vado se a gente colocasse o adubo e as sementes da co-operativa, mas a gente queria usar as nossas sementes e adubar a terra com a palha, tivemos que pegar sacas de

50Este é o termo utilizado pelas instâncias do Estado para definir aqueles que produzem no campo em “pequenas propriedades” explorando especial-mente a força de trabalho família, tal termo instituído em 1996 com a cria-ção do PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura familiar e reforçado com a Lei Nº 11.326, de 24 de julho 2006.51A agroecologia tem como princípio a diversidade e a adequação de cul-turas com as condições e com as espécies naturais de cada espaço. Conceito que muitos tratam como algo novo, mas tem suas raízes no conhecimento local e cumulativo das populações chamadas tradicionais. Para Gliessman (2000) o conceito Agroecologia deriva de um longo período de tensão en-tre as ciências disciplinares: a ecologia e a agronomia. A partir dos anos de 1970, um novo paradigma – o dos a Agroecossistemas – dá início a uma orientação no entendimento de se perceber que as áreas agrícolas poderiam ser tratadas como “sistemas” merecedores de estudo da ecologia. Contudo, os conceitos têm suas bases e fundamentos na realidade. As ciências ou dis-ciplinas não surgem para criar uma realidade e sim para entendê-la e con-trolá-la, portanto o primeiro passo é reconhecer que há um legítimo conhe-cimento, uma ciência pertencente à uma construção histérica dos povos das florestas e dos camponeses. José de Souza Martins (2001) registra que o que se aventa construir como um conceito novo é parte da milenar cultura dos povos indígenas da região amazônica, onde a diversidade comporta tanto o que é natural da região, quanto que foi introduzido por grupos indígenas. Da mesma forma, os camponeses que lidaram/lidam com a agricultura ba-seados nas técnicas e saberes recebidos de seus ancestrais fundamentam as práticas desse conceito. (MARTINS-BIBIANO, 2009, p. 29)

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colheita aqui e levar para provar dava para produzir sem depender de comprar da cooperativa.52

A fim de garantir a segurança à reprodução da família,ape-sar das dificuldades iniciais, os camponeses do Tapera optaram por desenvolver suas atividades suportadas em seus conhecimen-tos tradicionais.Com o apoio do Centro de Agricultura Alternati-va – CAA53 do Norte de Minas, o conjunto do saberes e práticas conformou-se em um banco de conhecimento. A troca e o enrique-cimento desses saberes e práticas entre as famíliasde camponeses, tornou-se rotineira. É nesse sentido, que a reprodução, pautada especialmente pela agricultura, garante-lhes as condições de vida entre uma safra e outra. Ao final da primeira década do terceiro milênio, mais de uma década depois da realização do Assentamento Tapera, os as-sentados conseguiram alcançar uma produção que lhes permite comercializar o excedente, obtendo recursos necessários para a melhoria material de suas vidas, garantindo sua reprodução como camponeses. É nesse sentido, que os mesmos comercializam a “so-bra” ou desenvolvem atividades cujos produtos são destinados dire-tamente para a comercialização. Assim, juntamente com atividades como o cultivo de feijão, milho, arroz, mandioca, além da criação de animais de pequeno porte para consumo, há também o desen-volvimento de outras atividades como a produção de rapadura, criação de bovinos, e frutos do Cerrado para a produção de suco, polvilho e farinha de mandioca, entre outros, que são desenvol-vidas para que seja possível adquirir aquilo que as famílias não produzem em seus lotes. Nessa perspectiva, para o êxito do Assentamento Tapera, a mobilização da cultura camponesa revelou-se como elemento estratégico de resistência às pressões impostas pela racionalidade

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52Tonho em entrevista à autora em 2006.53Organização não governamental - criada por iniciativa de lideranças dos pequenosagricultores, com participação técnicos e sindicalistasque se reuni-ramem encontro promovido pela Casa Pastoral no ano de 1985, e que deram início à sua criação em 1987, formalizada em 1989, membro participante da Rede Cerrado. (informações do CAA/NM – 2007).

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de mercado. Racionalidade esta, que tende a aprisionar o campo-nês em uma teia de relações que tende a fazê-lo refém das coope-rativas patronais e, portanto, das técnicas cada vez mais exigentes de recursos financeiros. Ao optarem pelo que contemporaneamente se denomina de agroecologia, mas que já era parte da cultura dos agricultores conhecedoresdaquela terra, os camponeses do Tapera demonstraram, de certa maneira, que têm consciência do processo no qual vivem e, percebem que na sua práxis podem encontrar os elementos que os fortalecem. E que, portanto, os possibilitam na sua reprodução material e, para além disso, sua conformação cul-tural. As transformações sociais, em lugar de desestruturar essa cultura que, como já afirmamos, se realiza a partir do conjunto de saberes re-elaborados pelos sujeitos do lugar, servem à sua recon-figuração e enriquecimento. O arcabouço cultural constituído no Tapera, ligado espe-cialmente à agricultura, torna-se muito importante na relação com as instituições de promoção e controle do desenvolvimento das relações no campo.Ao mobilizarem sua cultura, seus costumes tradicionais, o camponês desenvolveu-se a partir de suas “raízes num passado longínquo” (CLAVAL, 2001, p. 63). Os sujeitos puderam (e podem) se apropriar do conjunto de práticas e conhe-cimento que resultam da/na cultura, no sentido de (re)definir os termos de sua existência. Uma existência que não nega a anterior, ainda que esta submetida às relações cerceadoras, nas quais onovo expurga o antigo. Constitui um novo modo de se reproduzir, que se alimenta do “antigo”, se renova a partir dele e se transforma para atender às necessidades de uma novaconjuntura que, apesar de coletiva, é composta das individualidades trazidas de diferen-tes tempos e espaços. Desse modo, o conhecimento acumulado define o sujeito do Tapera e se põe como um dos mais fortes ele-mentos da reprodução daqueles camponeses. Assim, é possível afirmar que aquilo que qualifica o Tape-ra, que o coloca como importante exemplo,é o lugar que a cultura ocupa na dinâmica de sua reprodução, garantindo seu êxito. Apesar

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de se tratar de um fragmento do que seja a questão agrária no Brasil, que é bem mais complexa, o processo de luta na Tapera (a fazenda) resultou no Tapera (o Assentamento) ou, naquilo que dá sentido à territorialização da luta pela terra (FERNANDES,1999, p.86). O êxito do Tapera está na capacidade de cada um se re-conhecer naquilo que realiza; cada um daqueles agricultores que historicamente estiveram envolvidos individual e coletivamente na reprodução do lugar. Não é incomum encontrar nas “moradas”54 dos campone-ses do Tapera sinais de que, em última instância, eles são aquilo que produzem e o ambiente com oqual se relacionam. A colheita ocupa lugar de destaque no lar do camponês: em uma casa pode-se observar que o arroz, o feijão, o milho, entre outroselementos frutos do trabalho na terra, guardados em um quarto da casa, exclu-sivamente, para sua armazenagem. Tem-se a clara certeza que al-gunsprodutos possuem status análogo à vida do próprio camponês: a carne seca pendurada em um varal no mesmo quarto onde dorme o dono da casa, asemente do capim de pastagem ao lado da cama, ou o milho - separado para a semente - debaixo da sua cama, as gar-rafas pets cheias de feijão no chão da sala, a imagem do camponês no espantalho do meio da roça, revelam o quanto esse camponês se reconhece na sua obra. Demonstra a intimidade daquele camponês com o ambiente onde vive e o quanto a existência da condição camponesa está intrincada, inter-relacionada com o lugar.

54É como os camponeses do Tapera se referem à suas casas.

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Figura 1: Quarto transformado em despensa para armazenagem do arroz.

Despensa da Casa de João Franco e Lô, com destaque para os sacos de arroz colhidos no primeiro semestre do ano de 2007 - do arquivo da autora dez/2007

Figura 2: Carne dependurada varas de madeira no quarto.

Peças de carne penduradas no quarto da casa do Sr. Juvenato 2008.

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Se a cultura daqueles camponeses se revela nas práticas cotidianas que fundamentam a produção material, a mesma tam-bém se explicita nas histórias acontecidas einventadas, cantadas, contadas nos encontros com quem vem de fora, nos casos e de-bates de fins de tardes, na receptividade que, apesar de simpáti-ca, é ressabiada. Histórias e casos que, ao se associarem com o cuidado com a água, com o plantio, a compreensão do tempo e do clima, revela-nos como os saberes acumulados são repassados entre gerações. Mas que tambémdesvelam o quanto e como as práticas culturais também comportam ou se associam ao exercício da política: pois é também por meio dos encontros que se dão as reuniões para as decisões coletivas, as quais se misturamàs tantas manifestações culturais e acabam por se conformar também como elemento novo na cultura do grupo. É nesse sentido, que antigas práticas se misturam àquelas produzidas para as recentes demandas que se põem aos campone-ses do Tapera: o que é velho se modifica e renova transforman-do-se em componente de existência naquilo que dá sentido à vida daquele camponês. Na conversa com o estranho, ao mesmo tempo em que ressabiados se protegem, também se revelam,explicitam algumas de suas estratégias: “a gente fica preparado: arruma a terra, separa a semente e fica de olho, a natureza dá o sinal dela, é uma flor... um canto de pássaro, o vento... a gente arrisca que vai invernar e planta a roça. Depois é cuidar com fé em Deus”55. Revelam parte do processo de produção como a seleção das se-mentes, o preparo da terra, os sinais da natureza. Tais sujeitos demonstram quediscutem e experimentam-novos conteúdos e formas que permitem garantir a permanência da diversidade eprocuram fazê-lo como um dever coletivo. Para além do que possa parecer, essa é uma atitude de cunho político, pois possui o caráter estruturador do coletivo tanto no que se refe-re às relações internas, quanto nas relações com aqueles exteriores ao Assentamento.

55 João Franco, camponês do Tapera em entrevista de outubro de 2007.

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Assim, as reuniões, que acontecem no galpão da Associa-ção do Tapera, onde são colocadas as questões relacionadas ao coletivo,constituem-se em um novo elemento de uma cultura re-novada, como experiência vivida a partir do processo que resultou na realização do assentamento. Elementos como este se explicitam juntamente com aqueles que perpassaram a luta para formação do Tapera. Esse conjunto de elementosmanifestou-senãoapenas no movimento para a formação, mas que, principalmente,traduziu no sentido de permanência, como revela o camponês Chicão56, nas-cido e criado em terras da/do Tapera:

Aqui nasci e me criei, aqui ei de morrer e ei de ser enter-rada ao lado de meu pai e minha mãe. Os que se foram antes, não viram isso aqui. Nunca me vi vivendo em ou-tro lugar, acho que foi isso que fez com a gente lutasse: nós aqui da Tapera não imaginávamos outra vida que não fosse aqui. Quando não tá bom, a gente dá um jeito, mas é todo mundo aqui57. Tem muita coisa que a gente já tinha, já sabia... quem não sabia plantar uma roça? Trabalhava muito, mas, depois tinha suas compensações, era todo mundo em volta da roda e vinha as cantigas. Depois quando veio o assentamento, o CAA, foi que fi-cou melhor... a gente aprendeu muita coisa, coisa até que a gente já sabia, mas não praticava mais, o mando era do fazendeiro, tinha que fazer do jeito dele. Agora não, a gente faz como quer, aprende coisa nova...58

Revela-se assim, a importância dos saberes, no caso espe-cífico, o saber construído a partir da cultura camponesa, como es-tratégia de resistência no lugar,sem que suas vidas se tornassem en-viáveis em termos mais autônomos, sem necessariamente, precisar

56 Chicão : camponês do Tapera, neto de Seu Chico, em entrevista em 2008. 57 Essas palavras não vieram sem emoção. As lágrimas de uma senhora que já está pelos seus sessenta anos complementam o desvendamento do que significou permanecer na fração das terras da Fazenda Tapera.58 Dona Dina em entrevista à autora em 2007.

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ceder à pressão de trabalharem nas carvoarias que se instalaram naquela região a partir de uma nova territorialização do capital na região Norte de Minas. Pressão esta que até em tempos atuais os aborda a partir do discurso sedutor da segurança do assalaria-mento da mesma maneira como ocorre com outros agricultores da região que acabam por sucumbirem à sedução. Certa autonomia só é possível por não se endividarem no desenvolvimento de suas atividades produtivas. E, por outro lado, a maneira como produ-zem, por conhecerem as condições ambientais e, pelo estabele-cimento de relações muito especificas com a natureza, pelo con-junto e diversidade dos saberes, é o que viabiliza uma agricultura que se mantém, sem a necessidade de recorrer aos financiamentos bancários, ou de deixar grande parte da renda na compra das se-mentes e insumos. Ou seja, a cultura camponesa torna-se base e fundamento para produção que passa pelo econômico, mas que, para além dele, trata-seda produção das condições do que está no âmbito do vivido, da cotidianidade (LEFEBRE, 1967). Em suma, seu arcabouço cultural permite-lhe a produção, no sentido am-plo do termo, o sentido da vida com todas as suas implicações, sem o comprometimento da renda da família camponesa e, por meio dessa condição um tanto mais autônoma, se permitem existir como camponeses. Ainda que não fosse possível compreender (mesmo que parcialmente) o Tapera nos termos até então elaborados, os cam-poneses que compõem aquela realidade não se eximem de fazê-lo. Nas palavras de Chicão59:

Ninguém acreditava que essa terra ia produzir do jeito que a gente queria (sem agrotóxico, sem semente híbrida, essas coisas). Nem o Banco do Brasil queria liberar cré-dito para a gente plantar assim. Mas a gente sabia que dava, a vida inteira esse povo plantava e colhia, era pou-co, mas todo sabia como que fazia para dar certo, aqui a

59 Chicão, neto de Seu Chico, em entrevista à autora em 2008.

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gente, sem saber já trabalhava com agroecologia60”. Às vezes dava até medo na gente, eu pensava: será que es-tamos errados? Mais era trem demais, não tinha como... Aqui, ninguém nunca tinha usado adubo e a gente vivia era do que plantava. Hoje, pode ver aí tem gente colhendo é até arroz. Quem ia apostar que essas terras dava arroz? É só plantar certo...

Nas palavras de João Franco61:

Quando falaram que não dava, nós batemos o pé que ti-nha que ser do nosso jeito. A gente não ia ficar devendo para cooperativa todo ano. A cooperativa leva seu ga-nho e, aqui a gente trabalha é com semente crioula, é tudo adaptado (à condições ambientais), tem aqui para mais de oito tipo de feijão, tem uns três tipos de milho, é mandioca, é arroz... nada aqui precisa de adubo químico, porque a gente sabre fazer a cobertura da terra com a

60 A agroecologia tem como princípio a diversidade e a adequação de cul-turas com as condições e com as espécies naturais de cada espaço. Conceito que, muitos tratam como algo novo, tem suas raízes no conhecimento local e cumulativo das populações chamadas tradicionais. Para Gliessman (2000) o conceito Agroecologia deriva de um longo período de tensão entre as ci-ências disciplinares: a ecologia e a agronomia. A partir dos anos de 1970, um novo paradigma – o dos a Agroecossistemas – dá início a uma orientação no entendimento de se perceber que as áreas agrícolas poderiam ser tratadas como “sistemas” merecedores de estudo da ecologia. Contudo, os conceitos têm suas bases e fundamentos na realidade. As ciências ou disciplinas não surgem para criar uma realidade e sim para entendê-la e controlá-la, por-tanto o primeiro passo é reconhecer que há um legítimo conhecimento, uma ciência pertencente à uma construção dos povos das florestas e dos campo-neses. José de Souza Martins (2001) registra que o que se aventa construir como um conceito novo é parte da milenar cultura dos povos indígenas da região amazônica, onde a diversidade comporta tanto o que é natural da região, quanto que foi introduzido por grupos indígenas. Da mesma forma, os camponeses que lidaram/lidam com a agricultura baseados nas técnicas e saberes recebidos de seus ancestrais fundamentam as práticas desse conceito. MARTINS-BIBIANO (2009, p. 30).61 Em entrevista à autora / 2008.

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palha da própria planta. É isso que faz com a gente viva bem aqui, mais independente de cooperativa, banco62...

Ao mesmo tempo em que a conformação cultural tem sua gênese em todas as atividades humanas, incluindo aquelas que provêm sua condição material de existência, a cultura torna-se fundante no desenvolvimento de tais atividades. É impossível considerar um contexto desatrelado do outro: para se pensar a cul-tura é preciso considerar que, tanto a produção material, quanto a imaterial são partes intrínsecas à realização do sujeito, conferin-do-lhe identidade. É sabido que as dificuldades encontradas em assentamen-tos em todo território brasileiro (falta de planejamento, de habi-lidades, desconhecimento da terra, de investimento, entre outros) fazem com que as famílias assentadas, muitas vezes, não consi-gam se reproduzir nos assentamentos por meio de atividades de-senvolvidas na terra. Alguns anacronismos podem ser observados como no exemplo registrado por (SOUZA e CLEPES JUNIOR, 2008, p. 965) quanto ao arrendamento de terras de assentamen-tos para cultivo da cana-de-açúcar.Em alguns casos ainda se tem a exclusão da família assentada pelo INCRA, sob a alegação de irregularidades entre outras motivações. Esse é um problema que tanto pode estar ligado aos critérios de avaliação, quanto pode estar ligado à dificuldade de adaptação do camponês.

De janeiro de 2001 a julho deste ano, 103.543 beneficiá-rios foram excluídos do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) por irregularidades - sendo 36.592 ex-clusões motivadas por negociações ilegais da terra nua ou das benfeitorias. Uma vez fora do Programa por ir-regularidades, os trabalhadores rurais não terão outra chance de se tornarem beneficiários da reforma agrária. Em todo o Brasil quase um milhão de famílias vive em 8,7 mil assentamentos atendidos pelo INCRA” (INCRA63).

62Grifos nossos63 Fonte: www.incra.gov.br, acesso em 27/11/2011.

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No caso do Tapera, os “assentados” avaliam que poderia ter acontecido algo parecido, caso os camponeses não tivessem insistido em manter suas atividades de plantiodentro dos seus pa-drões culturais, entre outras atitudes. Aqueles camponeses afir-mam que essa foi uma etapa de negociação muito difícil e que, quando já não tinham mais argumentos com o banco (que libe-raria o financiamento de acordo com um projeto que se impu-nha sob as bases “modernas” de produção por meio de insumos químicos), estes recolheram amostras consideráveis da produção de cada família e levaram para a sala do gerente. Era necessário provar de que seria possível alcançar boa produtividade nas bases produtivas que estes conheciam e “dominavam”. Em Riacho dos Machados/MG, município no qual boa parte da produção atual econômica está ligada ao cultivo do eu-calipto; em que os pequenos produtores são assediados para ocu-parem suas terras produtivas com esta espécie,o agricultor do Ta-pera vem conseguindo preservar-se como camponês produtor de gêneros estruturantes para sua vida. Esta é uma realidade possibilitada pelo emprego do co-nhecimento do camponês, a partir da conservação e desenvolvi-mento de seus saberes culturais que, são afinal, aqueles que orien-tam suas práticas cotidianas no processo de reprodução de suas vidas. Cabe destacar, neste sentido e por último, as sábias pala-vras de Dona Joaninha que traz luz a todo o debate feito até aqui:

A terra é pequena, mas, nunca foi pouca. A gen-te viveu dessa terra, quando ela nem era nossa, agora ela é muito maior porque é nossa, do nos-so jeito, se tudo isso foi possível hoje, foi pela foi pela luta.Joaninha - filha de Seu Chico da Tapera.

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Referências:

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CLAVAL, Paul, Geografia Cultural, Florianópolis, Ed UFSC, 2001.

FERNANDES, Bernardo Mançano -Contribuição ao estudo do campesinato brasileiro formação e territorialização do movimento dos trabalhadores rurais sem terra - MST (1979 –1999),Tese de Doutorado apresentada no Curso de Pós-Gradu-ação Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. Disponível inhttp://docs.fct.unesp.br/nera/ltd/Tese_BMF.pdf - acesso em 26/11/2011.

GONÇALVES, Múcio T. - Pau que nasce certo e entorta a vida dos outros. Monocultura de eucalipto e produção de celulose no vale do aço. Belo Horizonte: CPTMG/PARC-JATAN/CEME-PAF, 1994. Belo Horizonte: maio 1994

INCRA http://www.incra.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=16853:campanha-contra-a-venda-de-lotes-da-reforma-agraria-comeca-a-ser-veiculada-neste-domin-go-2711&catid=1:ultimas&Itemid=278 - acesso: 27/11/2011

LEFEBVRE, Henri – Metaphilosofia, Trad. Roland Corbisier, Civilização Brasileira,1967

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MARTINS-BIBIANO, Maria das Graças. “Há Terras para Plan-tar neste Verão?” O Assentamento Tapera e a reprodução do espaço (e da vida) na luta pela terra; 2009, publicada no ambiente da biblioteca de teses da UFMG. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/MPBB-85JG2F>.

MAZZINI, Eliane J. T.; MARTIN, Encarnita S. e FERNANDES, Bernardo M. Assentamentos rurais no pontal do paranapane-ma - SP: uma política de desenvolvimento regional, Revista For-mação, nº14 volume 1 – p. 56-66, - 2007, inhttp://www4.fct.unesp.br/pos/geo/revista/formacaon14v1.php (Acesso: 06/11/2011)

OLIVEIRA, Ariovaldo U. “O Campo Brasileiro no Final dos Anos 80”. In: Boletim Paulista de Geografia, nº66, Associação dos Geógrafos Brasileiros, São Paulo, 1988.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter (2000), As Minas e os Gerais: Breve Ensaio sobre Desenvolvimento e Sustentabilidade a partir da Geografia do Norte de Minas, in Cláudia Luz e Carlos Dayrell (org.),Cerrado e Desenvolvimento: Tradição e Atuali-dade,Montes Claros, Imprensa Universitária da Unimontes, pág. 19-45.

SOUZA, A. G. e CLEPS JÚNIOR - A expansão da agroindústria canavieira no triângulo mineiro e seus efeitos sobre a produção fa-miliarl. 4º ENCONTRO NACIONAL DE GRUPOS DE PES-QUISA – ENGRUP, p. 952-973, 2008.In http://w3.ufsm.br/gpet/engrup/ivengrup/pdf/souza_a_g.pdf, acesso:27/11/2011

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O DESTINO TURÍSTICO LAGOA SANTA NO CERRADO GOIANO: paisagens de águas quentes e conglomerados de beleza

cênicaJean Carlos Vieira Santos

Este texto apresenta parcialmente as discussões acer-ca do lazer e turismo no município de Lagoa Santa (GO), de-senvolvidas na Tese “Políticas de Regionalização e Criação de Destinos Turísticos entre o Lago de São Simão e a Lagoa Santa no Baixo Paranaíba Goiano64”. O objetivo principal é compre-ender o surgimento do lazer e o desenvolvimento da atividade turística local, mostrando o comportamento sociocultural, eco-nômico e organizacional de uma pequena cidade goiana que utiliza os lugares e paisagens turísticas como espaço produtivo e da vida. Por isso, realizamos uma incursão ao tempo e ao es-paço de Lagoa Santa para apresentar os arranjos econômicos, as especificidades sócio-territoriais e particularidades culturais expressas no lugar, bem como os sujeitos sensibilizados que agrupam diferentes saberes e fazeres turísticos, com suas sedu-ções e possibilidades de valorização da cultura local. Quanto aos aspectos metodológicos este foi dividido em duas fases: pesquisa documental (levantamento das referências) e trabalho de campo e, por meio, deste foi construído o mate-rial fotográfico, a obtenção dos relatos dos pesquisados, ou seja, antigos moradores e frequentadores da área de lazer. Marques (2011, p.24) destaca que o trabalho in loco, além de enriquecer a pesquisa com material ilustrativo e fontes primárias, permite

64 Investigação Desenvolvida (2007-2010) pelo autor no Instituto de Geo-grafia da Universidade Federal de Uberlândia – IGUFU (Brasil) e orientado por Rosselvelt José Santos.

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ler a paisagem, espacializar a investigação e decifrar/desvendar a problemática, desenvolvendo o trabalho e buscando respos-tas aos questionamentos levantados. Em alguns momentos do campo, o inesperado se impõe, fazendo nos reavaliar o cenário posto, superando as barreiras da observação. Portanto, o município de Lagoa Santa é o recorte de estudo deste capítulo, paisagem localizada na microrregião ge-ográfica de Quirinópolis (Mapa 01/Município 01) no Estado de Goiás. De acordo com Santos (2010, p. 132) essa cidade tem sua origem vinculada aos desbravadores sertanistas que, no início do século XIX, penetraram a região em busca de novas terras nos Cerrados. Entre 1880 e 1890, o pioneiro responsável por desbravar e fixar morada nesse território foi o fazendeiro Virgílio Martins Ferraz. A primeira capela nessa paisagem foi erguida no início dos anos de 1960. Em 1971, foi construído o Salão Paroquial da Capela de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do municí-pio. Lagoa Santa foi elevada a distrito pela lei estadual número 10.446 em 14 de janeiro de 1888, com o nome de “Termas do Itajá”, lei sancionada pelo então Governador Henrique San-tillo. Tornou-se município denominado Lagoa Santa pela lei número 13.134 em julho de 1997, sancionada pelo Governador Luiz Alberto Maguito Vilela (PREFEITURA MUNICIPAL DE LAGOA SANTA, 2005-2008).

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Mapa 01: Mapa Microrregião de Quirinópolis – 2008:

Fonte: SANTOS, J. C. V. Políticas de Regionalização e Criação de Destinos Turísticos entre o Lago de São Simão e a Lagoa Santa no Baixo Paranaíba Goiano – Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia, IGUFU/Uberlândia (Minas Gerais), 2010.

Em Lagoa Santa, localiza-se a Lagoa de Águas Quentes (Foto 01), considerada o principal atrativo natural da microrregião de Quirinópolis, com suas águas termais de 31°C e fontes natu-rais sulfurosas, com vazão de 3.600.000 metros cúbicos hora. No lugar é possível visualizar conglomerados de belezas cênicas, que de acordo com Guerra (1978, p.103) são:

[...] seixos rolados, agrupados por um cimento, formando um depósito consolidado. A natureza do cimento pode ser muito variada: ferruginosa, calcária, silicosa, argilosa, etc. Os conglomerados são geralmente formados de ro-chas muito heterogêneas [...]. Os conglomerados são en-contrados com mais freqüência próximo as áreas litorâ-neas e na margem dos rios [...]. (GUERRA, 1978, p. 103).

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Portanto, uma particularidade dessa paisagem são as águas termais associadas aos conglomerados que formam uma beleza e exuberância cênica, e juntas agregam valor e desperta o interesse do visitante que chega a esse destino turístico. Nasci-mento, Ruschkys e Mantesso-Neto (2008, p.8-9) destacam que o “turismo (usando o segmento geoturismo) nestas áreas pode fun-cionar como opção de lazer, educação, recreação e contemplação da beleza cênica, além de promover a divulgação, preservação e conservação de forma eficiente e interessante”.

Foto 01: Águas Termais de Lagoa Santa e seus conglomerados cê-nicos. Essas águas captadas por poços tubulares profundos ou lago-as naturais como mostra a fotografia, são exploradas turisticamente como balneareoterapia, estando entre os principais atrativos turísti-cos da microrregião, principalmente no município de Lagoa Santa, onde o mercado hoteleiro já privatizou uma de suas nascentes.

Fonte: Vieira Santos, J. C. 2010.

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Para Medina e Santamarina (2004, p. 61) águas termais e conglomerados de beleza cênica são considerados patrimônios naturais, pois são “[..] formaciones físicas, biológicas y geológi-cas extraordinarias”. Desse modo, a escolha do estudo de caso Lagoa Santa, neste capítulo, permitirá refletir sobre a atividade turística de base local e comunitária associada às paisagens físi-cas, apresentando outros contextos que interferem no campo da discussão geográfica. No entanto, ao estudar esse segmento observa-se “ser uma atividade ambivalente que tanto pode gerar riquezas, valorizar es-paços, promover novas relações entre os povos e culturas como, simultaneamente, tornar-se predador cultural, degradador ecoló-gico e explorador econômico (QUEIROZ, 2006, p.80)”. Cabe, em decorrência dessa consideração, a necessidade de compreender a concepção pretérita e a contemporaneidade da organização turísti-ca, bem como seus usos, apropriações e contemplações no interior do Estado de Goiás.

Gênese do Lazer e Turismo no Destino Lagoa Santa

A paisagem, território ou espaço definido como destino, para a Geografia, não perde a sua dimensão espacial humana. É também um espaço fundamental à vida dos homens e onde ocor-rem as sensibilizações e sociabilidades dos sujeitos, por meio de práticas cotidianas, redes sociais diversas e formas de vidas que são componentes primordiais no ordenamento regional, uma vez que os destinos turísticos se organizam de acordo com as infra-estruturas e atrativos oferecidos pelos lugares (SANTOS, 2010, p.244). Assim, para Timón (2004, p.56) e Santos (2013, p.54), o conceito de destino turístico participa ao mesmo tempo de aspec-tos setoriais (exemplos: desenho de produtos, marketing, legisla-ção) e aspectos geográficos (exemplos: infraestruturas turísticas, equipamentos turísticos), e para o autor:

El destino, ni es solo territorio ni es todo el territorio. Se trata de un sistema de relaciones de independencia pero

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que deben producirse en un ámbito espacial determinado, dado que no es posible trasladar los recursos y los pro-ductos. Y si el destino es en parte territorial habrá que ad-mitir que está sometido a procesos geográficos, algunos generales y otros exclusivos de la producción y consumo turístico (TIMÓN, 2004, p.56).

Os Estados com suas políticas públicas de turismo encon-tram, no destino, a unidade básica de gestão, sendo esse definido, como um espaço geográfico, com características comuns, capaz de suportar objetivos de planejamento. A esse pode-se associar qualquer unidade territorial que tenha vocação de planejamento e possa dispor de certa capacidade administrativa para desenvolvê-la (TIMÓN, 2004, p.56, tradução nossa). Nesse debate, Vaz (2003, p.265) concebe o destino como um “lugar em que os vários agentes, em conjunto, concorrem para a produção de um produto total que corresponda às expectativas que os turistas têm sobre a experiência total que esperam viver no destino”. No caso do destino Lagoa Santa em Goiás, por exemplo, os descendentes dos Ferraz e Moraes foram os responsáveis por construir o primeiro empreendimento de hospedagem nas proxi-midades da Lagoa de Água Termal, ou seja, um estabelecimento nomeado de Pensão Goiana, considerada o primeiro comércio e patrimônio edificado no adro do atrativo na margem esquerda do rio Aporé65 que divide os Estados de Goiás e Mato Grosso do Sul. De acordo com os relatos dos antigos moradores (SAN-TOS, 2010, p.132-133), as visitas ao lugar se iniciaram por volta da década de 1940, quando foi construída essa primeira casa de taboa no entorno do atrativo. Surgiu ali o primeiro hotel que tam-bém era de taboa e telhado de cavaco de madeira. Com o passar dos anos, a cobertura da habitação foi substituída por telhas comuns

65 Na margem direita do rio Aporé, encontra-se o distrito de São João do Aporé, pertencente ao município de Paranaíba (Mato Grosso do Sul), cidade sede que inspirou o Visconde de Taunay a escrever o romance “Inocência”. Neste lugar estão localizados vários meios de hospedagem que também re-cebem os turistas presentes em Lagoa Santa.

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e depois, por francesas, mas as paredes continuaram de madeira, até surgir novos meios de hospedagens. Nesse contexto, as ativi-dades de lazer e turismo vão se tornando fundantes no lugar, o que provocará mudanças significativas nessa paisagem cerradeira nas últimas décadas do século XX. Embora seja possível afirmar que as primeiras buscas pelo lazer e turismo não possuíam um significado relevantes de que es-tavam constituindo um espaço turístico e sim “era mais um fazer sem um compromisso maior (MÜLLER, 2002, p.09)”; é inegável que esses momentos constituíram-se em passos importantes para que lugares, como Lagoa Santa no interior de Goiás, se firmassem como turísticos. Pois segundo, Müller (2002, p.12) o lazer “acon-tece no tempo disponível das pessoas e dentro de uma experiência de acordo com a atitude adotada de forma gratuita e rica em ludi-cidade”. Nesse contexto, Dumazedier (1976, p. 27-32) define o la-zer como oposição ao conjunto das necessidades e obrigações da vida cotidiana. Deve-se, ainda, salientar que o lazer só é praticado e compreendido pelas pessoas que o praticam, segundo uma dialé-tica da vida cotidiana, na qual todos os elementos se ligam entre si e reagem uns sobre os outros. Para o autor “alguns estudiosos negam” que seria possível estabelecer uma distinção das ativida-des no meio rural entre o trabalho e lazer, pois, em certas regiões, o trabalho nunca acaba. No geral, as primeiras buscas pelo lazer nas águas quentes de Lagoa Santa foram proporcionadas pelos pequenos desloca-mentos. Essas pequenas viagens esboçavam regionalmente um movimento de organização familiar em busca de algumas horas de lazer e diversão, processadas em espaços sem ou com pouca infraestrutura, mas que possibilitavam o desenvolvimento de mo-mentos de entretenimento entre as diversas classes sociais rurais e urbanas do Cerrado goiano.

Os principais meios de transporte utilizados na época eram cavalos e carros de boi, devido à escassez de veícu-los motorizados e às dificuldades de acesso, poucos visi-tantes chegavam ao lugar. Um visitante do lugar construiu

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uma pequena Capela nas rochas que ficam no centro da lagoa, onde as pessoas que ali chegavam depositavam sua fé, fazendo do lugar turístico um espaço de religiosi-dade (SANTOS, 2010, p.132-133).

De acordo com Dumazedier (1976, p. 34-35) esse tipo de lazer é:

[...] um conjunto de ocupações às quais o indivíduo que pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda para desenvolver sua informação ou formação desinte-ressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais (DU-MAZEDIER, 1976).

As relações entre o lazer e as obrigações da vida cotidia-na e as existentes entre as funções do lazer determinam, de certo modo, uma participação crescente e ativa na vida social e cultural dos habitantes dos lugares. Essas relações são de grande impor-tância para o modo de vida das pessoas e muitas foram respon-sáveis por semear o desenvolvimento do turismo, elaborando e despertando transformações em lugares e paisagens com novas formas econômicas e de sociabilidade, desconhecidas até as úl-timas décadas do século XX no município de Lagoa Santa. Nes-se caso, “o lazer não pode ser considerado unicamente como um tempo liberado, um quadro temporal, um espaço no qual se dá o desenvolvimento do humano. Compreende-se o lazer como sendo um conjunto de atividades ambíguas, ligadas a modelos e valores (DUMAZEDIER, 1976, p.141)”, formando um conjunto de rela-ções sociais e econômicas. Desse modo é possível considerar que o lazer e turismo vão apropriando da paisagem Lagoa Santa, porém não se pode falar que houve entre as décadas de 1940 e 1970, uma mudança estrutural profunda nesse lugar, com um movimento de abandono “das práticas agrícolas e pecuárias visando a uma nova organi-zação em torno da atividade turística, pois, na realidade, o que

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ocorreu foi a possibilidade de empreender um novo negócio e o capital necessário para criação da primeira infraestrutura veio de fontes rurais (SANTOS, 2010, p.152-153)”. Pois o dono do pri-meiro hotel era o proprietário da fazenda Jaborandi (atual Fazenda Caçula), distante 5 quilômetros da lagoa. De acordo com a filha do antigo proprietário, o pai:

“Tomou conta de uma gleba aqui, que hoje é o hotel termas, só que ele que tomava conta, mais isso não era dentro da fazenda, era anexo à fazenda dele, mais nunca pertenceu a ele. Só que ele que disfrutava, ele que zela-va, cuidava. Era dum doutor de São José do Rio Preto. Aí foi começando, ele foi fazendo mais casa, fez barzi-nho tudo muito simples né? [...] Na pensão tinha muito quarto, era tudo muito humilde, muito simples né? Mais tinha bastante quarto igual hotel mesmo. Só que naquele tempo num tinha esse negócio de água encanada, tinha alguns banheiros, mais eram poucos. Esses banheiros era lá fora, aqueles banheiros de buraco no chão. A água pe-gava assim, pra lavá roupa, louça a aguada era na bei-ra do rio, era bem pertinho da casa. Agora pra cozinhá pegava num poço de água da lagoa mesmo, mais só que nesse ninguém entrava pra tomá banho, era um lugar que todo mundo, turista pegava água dali pra tomar, pra cozi-nhar, era água potável, né? (Relato pesquisa informal de campo, com antiga moradora da cidade de Lagoa Santa, setembro de 2009)”.

Assim, o proprietário do primeiro estabelecimento de hos-pedagem conciliou os serviços de receptividade com o trabalho desenvolvido na sua propriedade rural, fazendo gerar no lugar uma fonte de renda paralela às atividades praticadas no campo. Tiradentes (2012, p.11-12) lembra que essa lógica pode ser enten-dida como uma pluriatividade, ou seja, uma mescla de atividades agrícolas e urbanas. Nessa trajetória a lagoa de águas quentes e seus conglomerados de beleza cênica foram se tornando uma mer-cadoria inserida na lógica de consumo dos hóspedes que ocupa-vam os quartos da Pensão Goiana.

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Constatou-se nos relatos obtidos junto à população local, que no século XX existia uma ponte com estrutura de madeira no lugar, conhecida regionalmente por “pinguela66” (Foto 02) que tinha a finalidade de facilitar o acesso dos visitantes à lagoa. Vale ressaltar que o movimento de construção da pinguela, nes-se período, foi organizado pelos poucos moradores que existiam no lugar, como uma forma de ocupação do atrativo, que acabou possibilitando o acesso dos visitantes e integração à comunidade. Desse modo, seus antigos habitantes foram deixando suas signifi-cativas contribuições para os usos de lazer nesse lugar e estabele-cendo cotidianamente suas relações com esse espaço de visitação. Na construção dos equipamentos, utilizaram antigas técnicas e madeiras extraídas do Cerrado.

Foto 02: Antiga “pinguela”. Infraestrutura pretérita, que era utiliza-da para facilitar o acesso de moradores e turistas, a foto foi tirada em 1984. Pela fotografia é possível visualizar a proximidade das resi-dências com o atrativo.

Fonte: Foto (1984) cedida por Kamilla Ferreira Bueno, 2008.

66 Segundo Bueno (1996, p.505), “Pinguela é uma viga ou prancha que, atra-vessada sobre um rio”, serve de caminho para as pessoas.

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Como já salientado, sabe-se que os primeiros turistas que chegaram ao lugar tinham a sua disposição uma pequena infraes-trutura de acolhimento, porém outras informações vão surgindo, como por exemplo, a energia produzida por motores (diesel). A limitação do uso do atrativo pode ser percebida no relato da turista da cidade goiana de Quirinópolis que frequentava o lugar, na dé-cada de 1970:

“Lagoa Santa era um Paraíso. Nos finais de semana ia à tarde dormia lá, aí voltava no outro dia de tarde. Nem sempre ficava na Pousada, tinha umas casinhas a gente tinha que levar colchonete, era tudo muito rústico. Não ti-nha luz elétrica, tinha luz de motor, então na lagoa ficava acesa até certa hora. Depois de certo horário apagava lá, fechava porque tinha as entradas né? Fechava aí ninguém não entrava na lagoa. Mas a gente não pagava nada pra frequentar, né?(Relato pesquisa informal de campo, com antiga turista que frequentava Lagoa Santa e moradora da cidade de Quirinópolis, outubro de 2009)”.

A produção de energia por meio de um motor, por exem-plo, adentrava nos pequenos lugarejos do Cerrado, principalmen-te, em Estados como Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul na região Centro Oeste brasileira. Isso explica que, no caso da antiga Lagoa Santa, já existiam sensibilizações para colocar alguma in-fraestrutura na paisagem que ao se tornar turística, diferenciava-se da economia regional, fortemente marcada pela agropecuária extensiva. Também foi citado pelos entrevistados que os banhos de homens e mulheres eram separados no período da noite, mas du-rante o dia, eram permitidos alguns horários mistos. O responsá-vel por controlar esses momentos de lazer era o dono da Pensão Goiana, para isso usava um sinal emitido por um sino67. No entanto, os entrevistados também relataram a falta de infraestrutura e as

67 Segundo alguns antigos visitantes da lagoa de águas quentes, não era um sino e sim uma peça de trator que era utilizada para fazer o sinal ou barulho (Fala colhida na Lagoa em agosto de 2010).

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dificuldades enfrentadas pelos turistas, no deslocamento de seus destinos emissores ao antigo distrito de Itajá:

“Naquele tempo médico aqui não existia de jeito nenhum, né? Aqui era a custa de chá, de banho de raízes, era aque-le tratamento natural mesmo né? [...]. Antes o povo vinha aqui há 20 anos, 30 anos atrás era em busca de cura. E muita coisa a gente presenciou mesmo. Nisso o povo foi descobrindo, a conversa foi espalhando, as curas né? Que o povo achava maravilhoso, recebia milagre mes-mo. O povo vinha de caminhão, vinha mais era de cami-nhão naquele tempo, caminhãozinho antigo né? Porque vinha de turmas grande, fazia lá uma excursãozinha de três família, vinha bastante gente 20, 25 pessoas. Vinha encima da carroceria, fazia aquele toldo né? E trazia de tudo e aqui ficava 15 dias, 20 dias, um mês, e assim foi progredindo. Aqui foi muito frequentado pelos mineiros. Quem vinha muito aqui era família mineira de Ituiutaba, de Gurinhatã, de Santa Vitória. O pessoal vinha de todos os lugares (Relato pesquisa informal de campo, com an-tiga moradora da cidade de Lagoa Santa, setembro de 2009)”.

Os moradores mais antigos destacaram as formas coleti-vas com que foram chegando os primeiros turistas e os meios de transporte utilizados. Eles iam para o lugar induzidos pela cura, por acreditar no poder milagroso das águas quentes. Outro fato marcante é que alguns antigos moradores tinham por tradição, aos domingos, fazer em suas residências um prato que atualmente é tradicional na microrregião de Quirinópolis, a galinha caipira com arroz no fogão a lenha, pois antes não existiam restaurantes no lugarejo:

“A gente ia nas fazenda pra comprar galinha, pra fazer galinhada de galinha caipira para os turistas, né? Anti-gamente era tradição no domingo fazer a galinhada prus turistas, era a galinhada do domingo e não sobrava nem a rapa da panela, eles comia tudo. A galinhada era muito boa né? (Relato pesquisa informal de campo, com antiga moradora da cidade de Lagoa Santa, setembro de 2009)”.

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Esse núcleo urbano, a partir de seu principal atrativo, pas-sava a se enquadrar em torno de serviços vinculados aos cidadãos exógenos à localidade. Essas atividades eram incorporadas ao co-tidiano como opção de complemento de renda e trabalho, visto que a refeição era ofertada apenas aos domingos. A ruralidade local proporcionou a apropriação do prato típico “galinhada” e a sua comercialização para os turistas, pois segundo os moradores, essas aves eram adquiridas a baixo custo no meio rural. Nessa trajetória histórica de formação do lugar turístico, existiam outras relações de subsistência com o espaço, mas os relatos, já citados, apontam que o principal sentido de uso do lu-gar estava voltado especificamente para religiosidade e encanta-mentos com as curas recebidas. Como resultado dessas práticas religiosas, foi construído, no local, uma capela para homenagear Nossa Senhora Aparecida, fato que reforçou a fé entre os visitan-tes, chegando até ocorrer casamentos e procissões que aproveita-vam a estrutura de madeira (pinguela) para ter acesso também à capela. Com a apropriação do atrativo pelas lógicas mercantilis-tas, o patrimônio religioso foi destruído com a finalidade de reva-lorização do local, privilegiando-o apenas como produto turístico, capaz de oferecer descanso, turismo e lazer. Se por um lado, essa mudança estrutural processou a ex-pansão das atividades turísticas no município de Lagoa Santa, por outro, antigas tarefas desempenhadas pelos primeiros habitantes e que foram relevantes na consolidação da arquitetura e religiosida-de, nessa paisagem de águas quentes, foram perdidas com a ocu-pação capitalista do atrativo nas últimas décadas do século XX. Com as transformações, Lagoa Santa foi se tornando um espaço de vivência, sobrevivência e de interação de seus moradores com as atividades de turismo e lazer.

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Apropriação Mercantilista do Destino Turístico e suas Pai-sagens de Águas Quentes e Conglomerados de Beleza Cênica

Diante das observações anteriores, pode se dizer que as características do lugar construído pelo homem não se restringem apenas ao ambiente da lagoa de águas quentes e seus conglome-rados de beleza cênica, mas ao povoado que acompanhava as transformações sociais, econômicas e culturais da época. Nesse contexto, as mutações do atrativo não se compartimentam apenas ao local e ao alcance visual, pois identificam-se, nos relatos dos antigos moradores, a expansão e propagação do poder medicinal das águas termais pelas regiões próximas aos Estados goiano e mineiro. Pode-se afirmar que houve um movimento de divulgação que integrou o atrativo ao contexto regional. Durante essa fase inicial de apropriação do lugar pelas iniciativas de turismo, o po-voado pertencia ao município de Itajá, mas o poder público se manteve ausente do desenvolvimento e da chegada do turismo no lugar. Como apresentado neste capítulo, às primeiras iniciativas turísticas partiram de ações dos moradores locais, chamados aqui de sujeitos sensibilizados. Com a construção da “Pensão Goiana” e com ações dos moradores locais, como a “galinhada de domingo” e a “pinguela para facilitar o acesso à lagoa”, as atividades de lazer e turismo desenvolvidas no espaço urbano do distrito de Itajá foram se tor-nando uma prática comum na vida dos seus habitantes, contri-buindo para a emancipação política do lugar, para o surgimento de novas oportunidades e ampliação das atividades de receptivi-dade praticadas atualmente nesse município. Nesse contexto, Chastan (1996, p.165) traz em sua obra que o primeiro passo para a apropriação mercantilista contem-porânea da lagoa de águas quentes no distrito de Termas do Ita-já, deu-se quando o proprietário e presidente da INDAIATUR (Indaiá Turismo LTDA), empresa turística sediada na cidade do Rio de Janeiro, conheceu o atrativo turístico nas margens do rio

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Aporé. Posteriormente, apresentou um projeto para construção de um complexo turístico no local, que foi aprovado pelo Governo Federal da época, o senhor Emílio Médici. Após essa aprovação, no ano de 1970, o Presidente da IN-DAIATUR adquiriu os direitos de Antônio Luiz de Moraes e as áreas dos demais moradores que ocupavam o entorno da lagoa de águas quentes. Porém, as obras do hotel só iniciaram no ano de 1983, e essa foi a primeira ação do empreendedor para dar uma (re)significação ao atrativo. Em 1987, foi realizada a remoção das casas dos morado-res da área entre a lagoa e o rio Aporé (Foto 03), onde foi recu-perada a vegetação nativa e foi construída uma lanchonete. Essa ação colocou a população para fora do entorno do tradicional lo-cal de visitação e lazer, e o lugar foi apropriado para fins mercan-tis. Esses antigos residentes que foram considerados posseiros, para facilitar o processo de desapropriação, passaram a ocupar os novos loteamentos dentro do atual núcleo urbano. Os relatos obtidos durante os trabalhos de campo indicam que atualmente não há como quantificar as cifras recebidas pelos antigos donos das residências que cercavam o atrativo até 1987. Segundo os entrevistados, não ocorreram focos de resistências perante as mudanças territoriais, apenas algumas insatisfações perceptíveis na época, mas que foram administradas pelos novos empresários e praticamente sem um envolvimento direto dos ges-tores responsáveis pela Prefeitura Municipal de Itajá. Para que ocorresse essa “pacífica desapropriação”, foi utilizada pelos com-pradores do atrativo a ideologia do “desenvolvimento” que estava chegando à Lagoa Santa. De acordo com Santos (2010, p.159):

As pessoas que, durante décadas, foram estabelecendo suas relações culturais e sociais com o espaço vivido, fo-ram visualizadas pelo capital como posseiros, sem direito a terra. Assim, seus valores humanos repletos de repre-sentações e conteúdos concretos e simbólicos não foram respeitados (SANTOS, 2010, p.159).

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Foto 03: Remoções das casas no entorno da Lagoa de Águas Quen-tes. Esse patrimônio edificado de madeira ainda é possível ser visua-lizado na paisagem da atual cidade.

Fonte: Hotel Termas Lagoa Santa em agosto de 2010. Material or-ganizado por Vieira Santos, J. C. & Wanderléia das Graças Silva.

De sua urbanidade inicial e existente até a década de 1980, no entorno da paisagem de atração regional, encontramos, na me-mória e em fotografias dos habitantes pretéritos, alguns fragmen-tos de um modo de vida que se estabeleceu no entorno da lagoa. Com a desapropriação, compreendemos que todos os habitantes considerados posseiros, sem exceção, foram obrigados a sair da área. Provavelmente suas propriedades foram adquiridas por um baixo custo, principalmente por esses pioneiros não terem sidos enquadrados como verdadeiros donos do lugar. Em termos de organização espacial, foi a paisagem que sofreu e ainda tem mutações resultantes dessa atividade. A pri-vatização do espaço que compõe o atrativo foi responsável por várias metamorfoses, entre elas, o mapa urbano fazendo surgir um espaço funcional ao turismo (Figura 01). Efetivamente, a constru-ção do hotel foi finalizada e inaugurada no mês de julho de 1990.

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68 Compreende uma área de 370.000 metros quadrados, com a lagoa de águas quentes, piscinas, bares/lanchonetes, mata de cerrado onde se pra-ticam caminhadas em trilhas, toboáguas, sauna, campo de futebol society, quadra de areia, área de pesca no rio Aporé, boutique, restaurante servindo pratos regionais e nacionais, parque infantil, passeio de barco no rio Aporé, american bar e salão de convenções para até 120 pessoas. (www.thermasla-goasanta.com.br).

Esse Hotel denominado atualmente de Termas Lagoa Santa68, pode ser considerado o principal empreendimento turístico da cidade de Lagoa Santa e da microrregião de Quirinópolis, local privado (Foto 04) onde a presença dos turistas é vista com maior frequência, principalmente na lagoa de águas quentes na área do hotel.

Figura 01: Imagem retratando as mudanças no espaço urbano e en-torno da lagoa de águas quentes no município de Lagoa Santa.

Fonte: SANTOS, J. C. V. Políticas de Regionalização e Criação de Destinos Turísticos entre o Lago de São Simão e a Lagoa Santa no Baixo Paranaíba Goiano – Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia, IGUFU/Uberlândia (Minas Gerais), 2010.

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Foto 04: Hotel Termas Lagoa Santa. Passarela de Madeira moderna que substituiu a antiga pinguela. Estrutura utilizada por turistas para chegar à lagoa de águas quentes, construída pelos gestores do Hotel. Vieira Santos, J. C. 2010.

Outro empreendimento que surgiu no espaço urbano de Lagoa Santa foi o Balneário e Pousada Kin Gin, que teve sua construção iniciada em 1996. Assim, pôde-se constatar, duran-te o trabalho empírico, que as mudanças espaciais processadas pela privatização do principal atrativo natural local, efetivaram um novo processo de ocupações comerciais e hoteleiras, especial-mente ao longo da “praça central” da cidade. Em 1997, cria-se a secretaria municipal de turismo e o Centro Integrado de Apoio ao Turista (CIAT), ambos localizados na Praça Central dessa urbanidade, onde ocorrem os principais eventos, como carnaval, festa do peão e festas de natal e ano novo. Segundo os entrevistados, as principais regiões emissoras de turistas à Lagoa Santa, são das cidades goianas como Itumbia-ra, Rio Verde, Quirinópolis, Goiânia, Chapadão do Céu, Santa Helena e Jataí. Do Estado de Minas Gerais, os turistas vêm prin-cipalmente de Uberlândia, Uberaba, Iturama, Gurinhatã, Campina

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Verde, Frutal e Ituiutaba; do Estado de São Paulo vêm de São José do Rio Preto, Jales e Santa Fé do Sul e do Estado do Mato Grosso do Sul, dos espaços urbanos de Paranaíba, Aparecida do Taboado e Cassilândia. Todas as cidades responsáveis pela emissão dos principais visitantes estão localizadas em torno de trezentos e quatrocentos quilômetros do destino de águas quentes e conglomerados de be-leza cênica, por outro lado, não se pode duvidar que é possível encontrar turistas de outras partes do Brasil. A figura 02 mostra essa área emissora de turistas para cidade de Lagoa Santa.

Figura 02: Imagem retratando as cidades emissoras de turistas ao município de Lagoa Santa.

Fonte: SANTOS, J. C. V. Políticas de Regionalização e Criação de Destinos Turísticos entre o Lago de São Simão e a Lagoa Santa no Baixo Paranaíba Goiano – Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia, IGUFU/Uberlândia (Minas Gerais), 2010.

Segundo relatos de antigos e atuais moradores, a chegada de turistas, ou seja, do visitante que tem uma relação de consumi-dor com o lugar, ocasionou o aumento comercial em hotéis, bares, restaurantes, lojas de vestimentas, de banhos e artesanato. Essas ações foram resultadas da vontade e sensibilização de sujeitos que

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procuraram alternativas de renda nas atividades de atendimento e receptividade, enquadradas na nova realidade vivida pelo lugar.

Considerações Finais

Não se pode negar que as práticas de lazer foram altera-das, principalmente, pela propriedade daquilo que era usado pelas pessoas de Lagoa Santa. A propriedade privada criou, na muni-cipalidade apresentada neste capítulo, uma outra realidade, a do lucro, pois o que passa a interessar é vender aquilo que se oferece nos locais e não os lugares. É interessante observar, que peran-te essa nova realidade, os proprietários dos espaços de hospeda-gem e visitação terão que remunerar os capitais investidos, desse modo, não há mais os usuários e sim os compradores. Deve-se salientar que, no caso desse espaço urbano do in-terior de Goiás, esses grupos de empresários atribuíram ao lugar um novo significado por meio da implementação de empreendi-mentos turísticos diferentes da organização regional predominante em torno da agricultura e pecuária, embora parte desses negócios vinculados ao atendimento de visitantes sejam de propriedade de empresários rurais e também de políticos locais, como prefeitos e vereadores. Esses espaços foram ordenados também a partir das primeiras práticas sociais, culturais e econômicas surgidas ao lon-go do processo de ocupação do Cerrado goiano. Há que se ressaltar, ainda, que no município e nas regiões próximas a sinalização turística no padrão exigido pelo Ministério do Turismo é praticamente inexistente, provocando disparates de comunicação, falta de confiabilidade e deficiência na orientação de acesso. Esses problemas são cruciais e podem acarretar a perda de turistas e não integração das iniciativas existentes, pois o que aparece nessa paisagem são ações individuais de divulgação dos lugares turísticos e não são suficientes para atrair pessoas e divul-gar os locais e destinos de visitação. Nos municípios do interior goiano, o poder público se faz presente, mas apenas valorizando os eventos gastronômicos, as festas de peões (agropecuárias) e o carnaval. O que existe é uma

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completa ausência e falta de atenção do Estado para os festejos como o catira, folia de Reis e aquelas marcadas pelos santos de devoção. Nesse contexto, encontram-se também a culinária dos pequenos comércios de alimentação, os patrimônios material e imaterial, principalmente o artesanato de diversas comunidades locais. Isso significa reconhecer, por exemplo, que existe nessas paisagens um saber fazer e uma arte regional expressa em borda-dos, pinturas, crochês, cabaças, madeiras, telhas, vidros e potes de barro, esses últimos produzidos nas olarias do município vizinho de Itajá, visto que em Lagoa Santa não existem áreas de extração de argila. São objetos que retratam a memória e manifestações artísticas dessas populações, incorporando técnicas e saberes que foram aperfeiçoados e adaptados, não valorizados pelo poder pú-blico local. Por fim, cabe dizer que o fortalecimento das atividades turísticas, em cidades interioranas, não é a salvação da economia local, pois este setor depende de infraestruturas que possibilitem às pessoas chegarem ao interior. Os papéis e parcerias do Estado e iniciativa privada são fundamentais nesse modelo de gestão, pois propiciam um (re)ordenamento das atividades e do espaço, no en-tanto, continuará tributário de outros setores e do próprio espaço.

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SABERES LOCAIS, IDENTIDADE E DIVERSIDADE CULTURAL: sujeitos e

lugares do médio rio São FranciscoAngela Fagna Gomes de Souza69

Carlos Rodrigues Brandão

O senhor vê, nos Gerais longe: nuns lugares, en-costando o ouvido no chão, se escuta o barulho de fortes águas ... o senhor dorme sobre um rio? (Rosa, 1970, p. 273)

Tomando como ponto de partida que a proposta desta co-letânea é dar maior densidade as nossas reflexões sobre a “Geo-grafia do Cerrado”, buscamos contribuir trazendo aqui o resultado de algumas de nossas pesquisas geoetnográficas sobre o rio São Francisco. Afinal, a vegetação predominante ao longo do curso do rio é o Cerrado, desde a sua nascente até grande parte de seu médio curso. Neste caso, apresentamos aqui, especificamente, as múltiplas identidades existentes nas comunidades tradicionais norte-mineiras, localizadas nas ilhas e margens do médio rio São Francisco em Minas Gerias - Brasil70. Antes mesmo de iniciarmos, deixamos alguns questio-namentos que servirão de norte para as nossas reflexões futuras,

69 Membro do grupo de pesquisa “Opará: grupo de estudos do rio São Fran-cisco” vinculado ao departamento de Políticas e Ciências Sociais da Unimon-tes e do grupo de pesquisa “Sociedade e Cultura” vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFS.70 Este artigo foi desenvolvido a partir das nossas observações de campo fei-tas durante uma viagem de barco realizada entre os dias 17 a 27 de julho de 2011, pelo curso do médio rio São Francisco desde a cidade de Pirapora/MG até a cidade de Manga, na divisa entre os estados de Minas Gerais e Bahia. A viagem foi fruto da aprovação do projeto “Etno-cartografias do São Francis-co: modos culturais de vida cotidiana, culturas locais e patrimônios culturais em/de comunidades tradicionais no Norte de Minas Gerais” financiado pelo CNPq edital - 02/2009.

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como por exemplo: quais são os tipos de pessoas, culturas e co-munidades que encontramos ao longo rio São Francisco? Quem são os homens e as mulheres que em Minas Gerais vivem do/no rio São Francisco? O que caracteriza as comunidades tradicionais de beira-rio? Quais os reflexos dos processos sociais nas comu-nidades locais? O rio São Francisco é realmente tratado enquanto um símbolo, um divisor de águas, saberes e identidade? Diante destas indagações traçamos o nosso objetivo, vi-sando entender de que forma a paisagem cultural sanfranciscana vem sendo desenhada e retratada, tendo como enfoque as múlti-plas categorias de sujeitos e lugares que encontramos ao longo do rio. Dizemos isto por que apesar do rio São Francisco ser citado e pesquisado por várias áreas do conhecimento, estudos sobre os saberes locais, a identidade e a diversidade cultural sanfrancisca-na ainda são muito insipientes. Ao longo da pesquisa buscamos em um primeiro momento inventariar as comunidades e ilhas que visitamos, possibilitando a sua identificação e localização, contribuindo desta forma para o entendimento da paisagem cultural do médio rio São Francisco. Além disto, almejamos que os resultados alcançados proporcio-nem um diálogo sistêmico com as comunidades tradicionais san-franciscanas. Para tanto, a pesquisa geoetnográfica leva sempre em con-sideração a subjetividade da experiência de campo do pesquisador na percepção da pesquisa. Brandão (2007, p. 12) afirma que por mais que um pesquisador possa se armar de toda a objetividade para a obtenção de dados, “todo o trabalho de produção do conhe-cimento ai se passa através de uma relação subjetiva. A pessoa que fala, fala para uma outra pessoa”. Caminhamos na direção de uma pesquisa participativa, Brandão (1999 e 2007), tendo o olhar, a sensação, a vivência e a experiência como ponto de referência. Observamos as situações do cotidiano, os espaços e lugares, o ir e vir dos sujeitos, os gestos e falas. Captamos saberes, sentidos e singularidades das gentes do rio e beira rio. Nesta perspectiva, buscamos evidenciar, a partir de agora, a apreensão das formas, conteúdos, representações, cenários, ce-

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nas, pessoas e informações de lugares e saberes tradicionais úni-cos, fundamentalmente ancorados nas pesquisas de campo e nos aportes teóricos, na intenção de compreender a identidade cultural dos povos do rio São Francisco.

A paisagem sanfranciscana: do natural ao sociocultural

O rio São Francisco é inserido em um cenário múltiplo de paisagens culturais. De um lado, está a intensa modernização e as transformações socioculturais. De outro, a pausa, o silêncio e o sussurrar das águas calmas e límpidas por onde os sujeitos se entrelaçam e entremeiam suas culturas, reproduzindo saberes, formas de interagir e viver do/no e com o rio. Nesta multiplicidade de lugares, formas, cores, gestos e saberes, há manifestações singulares de cultura. Modos de vida que se fazem junto a um tempo de memória, de tradição da cultura ribeirinha, entrelaçados à modernidade das políticas públicas de desenvolvimento. Do encontro entre estes tempos díspares, um lugar de vida é forjado, cuja paisagem é a memória deste encon-tro. Com efeito, “a paisagem é uma reconstrução, um produto da apropriação e da transformação do ambiente em cultura” (AL-MEIDA, 2008, p. 47). Ora, por este motivo, a paisagem do rio São Francisco possui uma geografia singular entre o vivido, o vivo, o imaginário e o simbólico, entre o espaço natural e o lugar socio-cultural. Um rio. Uma vida, um modo de vida. As pessoas com as quais conversamos vivem no/do rio. Entendem e utilizam o São Francisco enquanto um território de apropriação material e simbólica. Um rio utilizado para o trabalho, para a reprodução da vida. Outro rio, aquele cujas mudanças, “mais fortes” possíveis, forjam. Este, nascido dos interesses de uma prática capitalista, lhe confere o tratamento de fonte inesgotável para a exploração, com suas avançadas técnicas de produção vem, cada vez mais, modifi-cando a paisagem sanfranciscana. Há rios outros, daqueles, que se colocam em contramão de tal “utilização” “racional” dos recursos naturais. Aqueles que se manifestam, lutam pelo uso sustentável

SABERES LOCAIS, IDENTIDADE E DIVERSIDADE CULTURAL

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de territórios pertencentes ao Estado por direito, mas apropriado por famílias ribeirinhas historicamente. Desta apropriação têm-se a única fonte de sobrevivência dos recursos advindos das terras e águas do rio São Francisco. Concordamos com Diegues (2008, p. 187), ao afirmar que “há grande necessidade de se conhecer me-lhor as relações entre a manutenção da diversidade biológica e a conservação da diversidade cultural”. Guimarães Rosa (1986, p. 41), que em outros tempos re-tratou os lugares do rio São Francisco, já afirmava que “o melhor de tudo é a água”. Historicamente a natureza sempre foi o símbolo da fartura, da sobrevivência e das práticas e formas de trabalho tradicionais que representaram e ainda representam o respeito aos recursos naturais. Conforme afirma Almeida (2008, p. 53) “a existência da natureza e da cultura é produto das concepções de mundo e das relações sociais”. Sendo assim, a percepção da cultu-ra e da natureza permeia e faz parte da vida de homens e mulheres acostumados a viverem tendo o rio como um lugar de vida. Almeida (2008, p. 48), citando Claval (1995) nos lembra que “é pela cultura que as populações interagem com a natureza, fazem a sua mediação com o mundo e constroem um modo de vida particular, além de se enraizarem no território. Há, assim, uma herança cultural que permeia a relação com o território”. Agora mais do que em outros tempos, os territórios do rio representam uma dupla riqueza, tanto para aqueles que sempre vi-veram e partilharam com o rio o seu sustento, como para aqueles que chegaram recentemente em busca de novas formas de explo-ração e apropriação da natureza. Citamos neste caso os pescado-res amadores, os turistas de veraneio, os grandes fazendeiros, as indústrias e os órgãos governamentais que restringem ao extremo a utilização dos recursos do rio. Neste sentido, a identidade cultural tem sido um dos aportes que garante a perpetuação de grupos e comunidades tra-dicionais, proporcionando relações sociais capazes de estreitar os laços de solidariedade, sociabilidade e pertencimento entre os seus membros. Assim como Hall (1997) destacou ser a identidade nacional uma “comunidade imaginada”, as comunidades tradicio-nais do médio rio São Francisco vêm sendo, ao longo do tempo,

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também ofuscadas pelas novas formas de produção capitalista, tornando-se cada vez menos perceptíveis. As comunidades e ilhas pesquisadas ao longo do médio rio São Francisco, possuem características próprias de um viver próximo ao território do rio, sejam eles reais ou imaginários. A maioria das pessoas que entrevistamos delimitam seus espaços a favor de suas necessidades reais de plantio, de moradia e até mes-mo de lazer. Além disso, as formas simbólicas e afetivas estão presentes em toda a estrutura do viver. Neste sentido, se torna evidente a necessidade de darmos visibilidade a estas formas específicas de manifestação da iden-tidade cultural sanfranciscana, trazendo, no tópico seguinte, as múltiplas categorias de lugares e sujeitos registradas ao longo de nossa pesquisa.

As múltiplas identidades sanfranciscanas

Habitualmente as comunidades tradicionais das beiras do rio São Francisco são identificadas, assim como os seus povoa-dores, por meio de um lugar-natureza de habitação e de trabalho, exceto os casos de comunidades cujo nome qualificador deriva de um conceito de etnia - comunidade indígena, aldeia xacriabá, comunidade quilombola, quilombo. O tipo de ambiente natural no qual se vive e que rusticamente se transforma, define um lugar: uma ilha do rio, uma beira do rio, uma vazante do rio, um bar-ranco do rio ou uma terra alta longe do rio. Sendo, portanto, um território que pode envolver vários “povos”, vários tipos de povoa-ção, inúmeras comunidades, que segundo Almeida (2008) compõe “signos identitários” específicos de cada comunidade local. O próprio interior líquido e sempre movente do rio São Francisco, assim como o de outros afluentes de sua bacia, pos-suem múltiplos cenários que abrigam, entre as águas, as ilhas e as barrancas, uma grande variedade de pessoas. Um rio-estrada que durante muitos anos foi caminho de canoas, barcas e vapo-res. Neste tempo a figura dos barqueiros, remeiros e, mais tarde – atualmente quase desaparecidos – dos vaporzeiros, descritos por

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Zanoni Neves (1998), predominava na paisagem do rio. Oliveira (2009, p.16) ao trabalhar com a memória dos an-tigos remeiros e vaporzeiros retrata que “seguiam em suas barcas e vapores desenhando o rio, traçando geografias na travessia de Pirapora-MG a Juazeiro-BA”. Um tempo distante em que o traba-lhado, a troca, a navegação e a circulação de pessoas ainda eram feitos pela estrada líquida. Com o passar dos anos o rio perdeu suas barcas de carran-cas em favor dos vapores e, de anos para cá, os seus vapores em favor das estradas de asfalto e terra. O São Francisco deixou de ser um caminho de viagens entre Minas e o Nordeste. Quase todo o movimento de pessoas é realizado por meio de pequenas barcas e canoas com motores ou a remo, entre uma margem e outra. Hoje como ontem, o rio tem como cenário o trabalho. Uma primeira imagem sobre os cenários e sujeitos de nossa pes-quisa voltou-se para aqueles que, vivendo ao lado do rio, exercem o seu ofício dentro dele. Identificamos com grande facilidade a fi-gura do pescador. No entanto, fora os pescadores artesanais e pro-fissionais, que vivem exclusivamente desta prática, basicamente todos os habitantes de rio e beira rio que vivem do trabalho com as águas e terras se identificam como sendo lavradores/agricul-tores, mas que também pescam para garantir a dieta familiar ou para a venda esporádica e local. São em sua maioria homens, res-ponsáveis pela renda familiar. Identificamos poucas mulheres ou grupo de mulheres pescadoras que exercem esta atividade como suplementar. Em algumas comunidades, há casos em que a atividade da fração masculina do grupo doméstico é a pesca, sendo a agri-cultura sazonal secundária. Como a agricultura não é praticada intensamente durante todo o ano, e como a pesca é interrompi-da anualmente por ocasião do defeso, agricultores-pescadores ou pescadores-agricultores, oscilam entre uma atividade prioritária e a outra. Há vários casos ao longo do São Francisco de pescadores profissionais. Pescadores artesanais com licença oficial para a ati-vidade, quase sempre congregados em colônias de pesca. A eles é pago um seguro do governo durante o período do defeso.

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Alguns podem ser pescadores artesanais isolados, isto é, não associados a uma colônia de pesca com reconhecimento ofi-cial. Não possuem carteira de pesca e não recebem o subsídio governamental durante a época da piracema, ou do defeso, quan-do a pesca no rio é suspensa. Identificamos ainda os pescadores amadores locais e os vindos de fora, também chamados de turistas da pesca. A tradição no trabalho coletivo, na partilha e na reciproci-dade, no estar na comunidade, no viver e produzir seus alimentos, no conflito e no confronto com costumes rurais e urbanos que transcorrem a vida de agora, os identificam como homens e mu-lheres que tem a vida ligada a terra e ao rio. Raízes que fazem com que terra e água sejam indissolúveis e responsáveis pela sobre-vivência humana no lugar. Quando dizem: “somos agricultores e depois pescadores”, repetem e confirmam as suas práticas de trabalho realizadas no cotidiano. Pescador é o nome de preferência para dizerem quem eles são. Além disto, eles costumam utilizar algumas outras categorias específicas. Do ponto de vista do lugar onde vivem eles são bar-ranqueiros, ribeirinhos e mais raro, beradeiros. Vivem em sua maioria nas ilhas, vazantes, comunidades ou cidade próximas do rio, como Pirapora, Buritizeiro, Januária dentre outras, ou ainda, em barracas improvisadas montadas no barranco do rio. Identificamos de um lado atividades e profissões já quase desaparecidas no Norte de Minas, ou a caminho de desaparece-rem: remeiros, canoeiros, barqueiros e vaporzeiros e, do outro, os pescadores. Partindo de dentro do rio, palavras locais que definem o lugar em que se vive, estabelecem quem são os seus povoadores do passado ou de agora. Assim, o nome ilheiro (morador em uma das ilhas do São Francisco) não é ainda muito comum nas mais de trinta ilhas que passamos. Embora cresça o seu uso, identificamos que palavras como: beradeiro, barranqueiro, ribeirinho e vazan-teiro, e em alguns casos especiais, quilombolas, são os termos com os quais as pessoas das ilhas e comunidades tradicionais se

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identificam e reconhecem enquanto categorias da terra e do rio onde vivem. Estes mesmos nomes estendem-se aos territórios locais de vida e qualificam tipos de comunidades: comunidade ilheira, comunidade barranqueira, comunidade vazanteira, comunidade ribeirinha e comunidade quilombola (ou quilombo). Em termos mais militantes e políticos, os mesmos nomes derivados do “onde eu vivo e trabalho” começa a designar movimentos e manifestos, como é o caso do grupo “vazanteiros em movimento”71 criado para reivindicar o direito ao uso do território pelos seus membros. O termo barranqueiro é utilizado por vários autores para designar as populações nas margens do Rio São Francisco. Para Mata-Machado (1991, p. 38), significa o “lavrador de vazan-te, conhecido como barranqueiro”. Para Pierson (1972, p. 305), o termo equivale ao lameiro, populações que plantam em áreas de lameiros e que serve para descrever: “pessoas que conhecem bem o rio e outros detalhes físicos da região e estão com eles in-timamente associados”. Barranqueiro é caracterizado por Neves (1998) como termo da linguagem regional da região do Médio São Francisco. Já De Paula (2009) salienta que a partir da década de 1960 o barranqueiro “passou a designar indistintamente todos os habitantes da ribeira, sejam do campo ou das cidades”. Especialmente Diegues e Arruda (2001, p. 51) utilizam o termo varjeiro para designar as populações tradicionais das mar-gens do São Francisco: “Varjeiros ou varzeiros são aquelas po-pulações tradicionais que vivem às margens dos rios e várzeas, sobretudo às margens do rio São Francisco”. Ressaltamos que em nenhum dos relatos, entrevistas ou contato com as comunidades e ilhas pesquisadas foi citado o termo varjeiro. Identificamos ape-nas o termo agricultura de vazante para designar o plantio nas ilhas e beiras do rio. Outros nomes tradicionais empregados na região para quem “lida com a roça” podem aparecer como qualificadores

71 Movimento de vazanteiros das comunidades de Pau Preto, Pau de Légua e Lapinha, município de Matias Cardoso no Norte de Minas Gerais, que rei-vindica a retomada de seus antigos territórios hoje pertencentes aos parques estaduais Verde Grande, Cajueiro e Mata Seca.

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ocupacionais, sendo mais raro a designação de roceiro, em uma direção voltada ao passado e hoje quase pejorativa. Com menos frequência a palavra sitiante é utilizada entre os moradores de pe-quenos sítios localizados a beira do rio e que utilizam a sua pro-priedade para o plantio e a criação de gado. Aplica-se, ao local de moradia ou a um terreno cuja concessão foi feita pela compra individual ou familiar. Podemos analisar que, além dos dois substantivos, agri-cultor e lavrador, que com mais frequência indicam a ocupação principal de um homem adulto e, mais raro, de uma mulher, al-guns outros podem ser também usados. No depoimento de alguns moradores das ilhas e beira rio há, principalmente por aqueles já filiados a associações, o uso da palavra vazanteiro. Voltemos a esta nomenclatura derivada do trabalho que, conforme afirma Luz de Oliveira (2005, p. 16) define os “moradores das margens e ilhas do rio São Francisco”. Nesta paisagem que envolve categorias da vida e do traba-lho - ilhas e beira rio - Araújo (2009) trabalha com dois tipos dis-tintos e complementares, “as comunidades negras vazanteiras”. Neste caso, a autora considera as comunidades estudadas por ela, enquanto duas categorias: quilombolas e vazanteiras. Para Costa (2005) e Almeida (2008, p. 68), “nas ilhas e barrancas do rio São Francisco e nas margens de outros grandes rios que existem nos sertões, existem os barranqueiros ou vazanteiros”, considerando portanto a junção destes dois termos. Souza (2011, p. 81) esclarece alguns pontos desta junção, sobreposição e complementação de palavras e conceitos, chaman-do a atenção para o fato de que “existe uma certa diferença entre ser um morador de beira de rio e ser um morador de ilha”. Neste sentido, afirmamos que generalizar a categoria vazanteiro como sendo todos os moradores das margens e ilhas do rio São Fran-cisco, homogeneíza populações com hábitos e saberes distintos, encobrindo especificidades de cada grupo sociocultural. E, mais ainda, qualificá-los enquanto quilombolas e barranqueiros apenas como uma categoria sobreposta, não reforça seus laços identitários. Podemos sim afirmar que são vazanteiros e quilombolas; vazan-teiros e barranqueiros; vazanteiros e ilheiros; vazanteiros e ribei-rinhos e não um ou outro.

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Neste caso, a autora traz para a discussão um outro con-ceito, os ilheiros. Não tão usual entre todos os moradores de ilhas, mas um termo enfatizado no local de sua pesquisa. Segundo Sou-za (2011, p. 104) existe um modo de vida específico que fazem destes moradores “verdadeiros “ilheiros” que plantam e pescam para garantir o sustento de suas famílias”. Vimos que dois tipos de termos, a sós ou juntos, servem para identificar as diferentes categorias de pessoas do rio e de beira-rio. Um é o que diz em que lugar de natureza socializada se vive. Outro o que qualifica o tipo de trabalho preferencial que se realiza “ali” onde se vive ou, em casos mais raros (mas crescen-tes), fora “dali”. Assim, vemos que um homem é um lavrador, um agricultor, um roceiro, ou um pescador, sendo também um vazanteiro, um ilheiro, um barranqueiro, um ribeirinho ou ainda, um sitiante. De forma especial encontramos nas beiras do rio São Francisco povos e comunidades quilombolas, também auto-desig-nadas em algumas regiões como quilombos. Desde a Barra do Pa-cuí72, - cujos moradores oscilam entre se afirmarem “quilombolas” e rejeitarem este termo, conforme relatos apresentados nas pes-quisas de Santos (2008) e De Paula (2009), - até comunidades em que o “ser quilombola” é o qualificador mais relevante. Alguns de nossos trabalhos de campo foram realizados junto às pessoas, famílias e comunidades em que um qualificador étnico, como in-dicador de uma etnia, de uma cultura e também de uma história própria, soma-se aos outros ou os antecede. Segundo Costa (2005, p. 308) “são comunidades que mantêm aspectos significativos de sua cultura, de sua reprodução social, enraizados na diversidade ecossistêmica presente nas planícies sanfranciscanas”. Em um outro plano, identificamos ainda o “homem rico” da cidade, os agentes do poder, os grandes fazendeiros ou os no-vos empresários do agronegócio. Os agricultores irrigantes das barrancas, sejam de grandes ou de pequenos projetos de irrigação, é o seu melhor exemplo. Entre os dois pólos podemos colocar, ora mais próximos, ora bastante mais distanciados, os neo-ocupantes

72 Comunidade localizada na beira do rio São Francisco, pertencente ao município de Ibiaí, norte de Minas Gerais.

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de terras, como os assentados da reforma agrária, ou os sem-terra e, finalmente, os habitantes e trabalhadores - entre autônomos e empregados - moradores permanentes ou sazonais nas comunida-des tradicionais. Se partirmos de dentro do rio São Francisco, estaremos viajando entre porções mutantes de terras dentro do rio; as ilhas, entre as vazantes alagadas e a terra firme das barrancas, até o alto de chapadas que delimita o vale. Viajamos entre as terras mais molhadas e inundáveis das barrancas, beiras, várzeas - onde exis-tiam no passado e hoje secam as “lagoas criadeiras” - até as terras mais altas e crescentemente ocupadas unicamente pelas grandes fazendas. De suas margens, entre águas e matas fechadas, conhe-cemos as culturas sanfranciscanas. Pessoas das comunidades tra-dicionais que disseram quem são desde o lugar em que vivem as suas vidas até as formas identitárias como são auto denominados. Neste cenário sempre existiu uma profunda e rotineira relação das pessoas com o rio e a terra firme, fazendo com que a identidade cultural se manifeste no estar no rio e na dependência com a mata. Neste viver de águas, o rio São Francisco e o Cerrado se articulam permanentemente para criar espaços e condições de vida e de re-produção cultural e social. Este exercício de classificação de acordo com a geografia dos lugares de vida e dos nomes atribuídos a eles, às pessoas e às comunidades nas quais vivem salienta ainda mais as suas identi-dades, tanto territorial quando cultural. Almeida (2008, p. 49) ao trabalhar com a identidade do sertanejo aponta que “tem-se clare-za de que as identidades imbricam-se, mesclam-se e apresentam dinamicidade, construindo uma diversidade identitária”. No caso do rio São Francisco esta heterogeneidade também se faz presente por meio de suas gentes, sendo, portanto uma “etnoterritorialida-de” com dimensões paisagísticas e culturais múltiplas. Após uma breve referência às diversas denominações das pessoas e lugares do rio São Francisco elaboramos um quadro com as principais categorias lá encontradas. Nele estão sintetiza-das algumas características das diversas “gentes do rio”.

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AS GENTES E OS LUGARES SANFRANCISCANOS

As gentes Os lugares Características

Os barqueiros, remeiros e vaporzeiros

Nas águas do rio

Do passado. Vi-viam e trabalhavam transportando pes-soas e mercadorias em todo o trecho navegável do rio.

Os pescadores

Praticam a pesca e a agricultura.

Divididos em três categorias: profis-

sionais, amadores e pesca esportiva.

Os lavradores/agricultores

Nas ilhas, vazantes e terras altas pró-ximas ou distantes

do rio

A agricultura é a atividade principal e a pesca a ativi-dade secundária.

Plantam nas ilhas, vazantes e nas

terras altas longe do rio.

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Os sitiantes Nas terras altas próximas ao rio

Pessoas de maior renda e com médias extensões de terra

na beira do rio, utilizada tanto para a agricultura como

para a pecuária.

Os ribeirinhos

Em todas as mar-gens do rio São Francisco e de

outros rios

Vivem perto do rio e podem exer-cer qualquer tipo de atividade e em lugares variados. Moram tanto na

zona rural quanto urbana.

Os barranqueiros

Nas cidades, po-voados e pequenas

comunidades da beira do rio

Possuem as suas relações simbólicas e afetivas ligadas ao rio. Exercem

atividades variadas.

Os vazanteiros Nas vazantes e ilhas do rio

Prática da agricul-tura de vazante e

sequeiro intercala-do com a pesca e

criação de animais. Conhecem bem os ciclos das águas.

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Os ilheiros Nas ilhas

Plantam apenas nas ilhas, em época di-ferenciada da terra firme. Criam códi-gos próprios para

lidar com a fluidez de seus territórios.

Os quilombolas

Nas margens do rio e em outras regiões. Pequenas e médias

comunidades

Convívio com o grupo familiar.

Articulação entre agricultura, criação

de gado, pesca e extrativismo.

Os assentados Nas terras altas longe do rio

Moram, plantam e criam animais em lotes distribuídos pelo programa de reforma agrária.

Os fazendeirosNas chapadas e/

ou terras próximas ao rio

Grandes produtores de soja, banana,

eucaliptos e criado-res de gado. Utili-

zam alta tecnologia e não possuem

nenhum vínculo identitário com o

rio.

QUADRO 1: As gentes e os lugares Sanfranciscanos.Org.: SOUZA, A. F. G. (Mai./2013), adaptado de CUNHA, M. G. C. (2013, p. 111).

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Na leitura deste quadro observamos modos de vida, luga-res e sujeitos singulares que ora se mesclam ora se diferenciam pelas suas especificidades, tanto no viver quanto no morar, plan-tar e pescar. Maura Penna (1992, p. 56) salienta a importância desta “dinâmica de articulação de identidades sociais diferenciadas” afirmando que “é preciso abandonar qualquer enfoque da identi-dade que a conceba necessariamente como monolítica, única ou estável, ou ainda, como dotada de existência própria”. Portanto, os modos de vida e os saberes populares da cultura sanfrancisca-na são múltiplos.

Culturas diversas: vínculos territoriais, saberes, fazeres e ex-pressões simbólicas

Até aqui identificamos “entre-lugares” que desdobram a cultura do rio São Francisco em diferentes categorias de seus sujeitos reais, a partir da maneira como eles se auto-referenciam e identificam outros povoadores de um mesmo território e de ou-tros diversos espaços sociais do rio São Francisco. Vimos que ao falarem de si mesmos - habitantes de lugares de vida e trabalho que vão do interior de ilhas ao alto das cidades - entrelaçam estes três critérios de identidade, dando maior ênfase ora a um compo-nente da tessitura ora a outro, de acordo com a circunstância: a) a etnia (neste caso marcada pela presença dos negros que se de-nominam quilombolas, mais do que dos outros negros de modo geral); b) a categoria da ocupação principal do trabalho produtivo (agricultor, lavrador, pescador, etc.); c) o território de moradia, vida e trabalho (ilha, vazante, cidade). Os diferentes territórios do rio criam culturas diversas e próprias. Assim, é usual falarmos em cultura vazanteira ou cultura quilombola. No entanto, tomando no seu todo o amplo território considerado em nossa pesquisa, poderemos configurar o que denominamos de cultura sanfranciscana, por ter em todas

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as suas relações um conjunto de relações intimamente ligadas ao rio. Entretanto, é necessário associar a estes fragmentos de descri-ção das diversas culturas cultura sanfranciscana, indicadores que talvez as caracterizem mais do que o que ainda “está preservado” nelas. De barranqueiros a quilombolas, o que observamos ao longo do curso do rio, são culturas partidas, fragmentadas, deslo-cadas de complexos sistemas de sentidos e de práticas de vida que antes teriam existido. Os ilimitados projetos capitalistas aparece-ram para destruir não apenas os frágeis ecossistemas próximos ao rio, mas também modos de vida e tradições de e entre comunida-des que aos poucos se perdem. O que uma ampla cultura sanfranciscana hibridiza com outras culturas, desde décadas antes e, sobretudo hoje em dia, são frágeis traços resistentes. São partes quebradas ou mesmo frag-mentos do que antes foi uma complexa forma de vida que resta apenas um traço como: uma dança, uma reza de terço, uma forma de fazer, uma memória entre os mais velhos. Mais do que repetir o fato de serem elas resistentes culturas subalternas, culturas do-minadas, culturas postas à margem por outras formas sociais de cultura, vale pensar em que condições concretas elas resistem e se reproduzem. Almeida (2008, p. 70) coloca que “as identidades são di-nâmicas”, elas estão relacionadas ao contexto socioespacial, sen-do que, “a existência de identidades híbridas é parte deste proces-so”. Atualmente parece cada vez mais raro haver algo que possa desenhar traços aceitáveis das identidades tradicionais puras, seus modos de vida e suas formas pessoais e coletivas de viver, o que se vê é uma nova cultura híbrida. Posto que, conforme afirma Hall (1997, p. 67) “as nações modernas são, todas, híbridos culturais”. Em um outro patamar, Morley (2005, p. 159) acrescenta que “es necesário reconocer la importancia de las relaciones de poder dentro de las cuales se construyen las identidade híbridas diferenciales”. Este autor nos chama a atenção para as múltiplas

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nuances que envolvem as discussões sobre as identidades, tocan-do em um fato importante de ser analisado: as relações de poder que se formam a partir da construção de identidades híbridas. Quando, em uma pequena comunidade tradicional san-franciscana os seus moradores reclamam “o que antes tinha aqui, hoje não tem mais”, o que se lamenta é justamente o duplo efeito do isolamento, do cercamento e da fragmentação decorrente do amplo processo de fragmentação destas culturas. Algumas comunidades experimentam momentos de esta-bilidade e uma quase garantia de paz e permanência em seu terri-tório entre rio e as cercas das grandes fazendas. Porém, a grande maioria delas enfrenta a reprodução de uma sempre possível e presente ameaça de expropriação parcial ou total de suas terras e do seu trabalho. Outras lutam como podem para judicialmente verem reconhecidos os seus direitos. Resistem mesmo que ilhados ou cercados, no que ao longo dos anos e entre os ancestrais e os descendentes, lhes sobrou de terra e água. É muito rara, quase exemplar, a história de uma comuni-dade tradicional que tenha preservado íntegro ou mesmo quase inteiro um território ancestral de ocupação. Mesmo dentro das co-munidades e pequenas ilhas, as “gente do lugar” agora se mistu-ram com os turistas, modificando as suas vidas cotidianas, abrindo espaço para a construção de casas de veraneio e clubes de pesca. Os mais velhos reclamam de tantas e tão repentinas mudanças que depressa roubam do lugar a memória das raízes e os modos de ser do presente que até pouco tempo ainda os faziam ser “tradicio-nal”. Se nos colocarmos tanto quanto possível desde o ponto de vista de povoadores que vão de ilhas a chapadas, veremos que o que eles reclamam não é do progresso “que não veio”. Reclamam a perda do que havia antes. Reclamam da quebra de um equilíbrio característico da vida simples, do sossego e da calmaria do lugar. Para além da comunidade, na beira do rio e no alto das chapadas, há predomínio dos grandes propriedades do agronegó-cio, extensões de terras e de monoculturas vazias de gente e de vida comunitária. O que fora antes uma espécie de “cultura de

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todos”, dividiu-se cada vez mais e deixou entre “os fracos” o que ainda hoje conseguimos identificar e estudar, mas que daqui a al-guns anos pode vir a não existir mais. Ao escrever sobre as populações sertanejas, Almeida (2008, p. 55) afirma que “a natureza converte-se em um patrimô-nio cultural e a biodiversidade desse ecossistema é, na atualida-de, parcialmente de domínio destas populações”. Neste contex-to, evidenciamos um fator positivo de grande importância para a salvaguarda das populações sanfranciscanas. A garantia de que o rio São Francisco possa ser reconhecido e preservado tanto pela sua paisagem natural como também, pelo reconhecimento da sua identidade cultural, dos seus modos de vida e dos saberes popula-res, nele inseridos todas as formas de propagação da vida. Ao se auto-afirmarem como pescadores, lavradores, agricultores ribeirinhos, barranqueiros, ilheiros, vazanteiros, e quilombolas, estas comunidades de ilhas e beira rio, estão se dife-renciando de outros povos e comunidades. Isto porque reafirmam seus laços de pertencimento e de enraizamento ao território e o seu desdobramento social, o processo de territorialização e a sua identidade cultural. Para Almeida (2008, p. 58) o território é “objeto de opera-ções simbólicas e é nele que os sujeitos projetam suas concepções de mundo”. A autora afirma ainda que “o território é, antes de tudo, uma convivialidade, uma espécie de relação social, políti-ca e simbólica que liga o homem à sua terra e, simultaneamente, estabelece sua identidade cultural”. Esta relação de dependência destas pessoas com o território e o rio cria laços identitários que mantém viva as heranças culturais, os vínculos com o lugar de vida e trabalho. Lugar este que Massey (2000, p. 184-185) aborda a partir de três noções. Primeiro, “ele é absolutamente não estático”, fruto de interações e processos. Segundo, ele não deve “ter fronteiras no sentido de divisão demarcatórias”, os lugares estão interco-nectados, integrando o global com o local, articulando “redes de relações e entendimentos sociais” independente de fronteiras e

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pontos fixos. Terceiro, “os lugares não tem ‘identidades’ únicas ou singulares: eles estão cheios de conflitos internos”. Isso não significa dizer que não devemos tratar com importância as espe-cificidades, mesmo porque a história acumulada e as interações sociais reafirmam suas singularidades. A partir das reflexões desta autora, devemos pensar os lu-gares do rio não mais sobre uma perspectiva estática, imóvel e enraizada. O lugar é também um campo de disputas, onde as re-lações são móveis, conflitivas e em constante mudança. Devemos lembrar ainda que os lugares são formados de acordo com suas necessidades e usos. No caso do rio São Francisco esta afirmativa é visivelmente evidente. Sendo assim, o lugar está no global, mas o lugar não é o global. Almeida (2008, p. 59) acrescenta que “é inevitável a conclusão de que muitos laços de identidade se manifestam na convivência com o lugar, com o território”. Portanto, a afirmação identitária ressalta os vínculos territoriais e culturais com o lugar, expressos na forma como os sujeitos se identificam perante os “seus” e os “outros”. Neste sentido, Diegues e Arruda (2001), evidenciam ser a partir da afirmação da identidade que um determinado grupo ou comunidade passa a reivindicar o domínio sobre determinado território. Esta afirmação enlaça os sentimentos de pertencimento, bem como as relações simbólicas-culturais, definido por Almeida (2008, p. 59) como sendo a territorialidade, que “considera tanto as questões de ordem simbólico-cultural como também o senti-mento de pertencimento a um dado território”. Esta afirmação faz com que as suas singularidades e diferenças sejam postas em evi-dência, propiciando aos seus membros territorialidades próprias. Para Castells (1999, p. 22), tais singularidades podem ser percebidas pelos laços identitários, “fonte de significados e ex-periências de um povo”. A identidade é entendida por este autor como sendo “o processo de construção de significados com base em um atributo cultural”. Neste caso, as instituições dominantes, a resistência e a reconstrução de identidades compõem o que o

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autor classifica como sendo as três formas e origens de construção de identidades, são elas: legitimadora, de resistência e de projeto. Maura Penna (1992) ao trabalhar com a identidade nor-destina cita quatro fatores importantes para a sua identificação, sendo: a naturalidade, a vivência, a cultura e a auto-atribuição. Segundo a autora, devemos deixar de lado o enfoque da identida-de enquanto “monolítica, única ou estável, ou ainda como dotada de existência própria”, (PENNA, 1992, 56). Devemos, portanto, assumi-la em suas múltiplas formas. Para tanto, é no território e a partir do território que todas as relações materiais, sociais e simbólicas se propagam, sendo que a identidade, a cultura e o território estão intimamente relacio-nados, perpassando todas as relações de poder existentes. Neste sentido, Claval (1999, p.16), afirma que “os problemas do terri-tório e a questão da identidade estão indissociavelmente ligados”. Assim como coloca Haesbaert (2007, p. 35), “devemos começar por destrinchar o elo, ao nosso ver indissociável, entre território e cultura ou, mais especificamente, entre território e identidade”. Diante do exposto, podemos afirmar que a cultura san-franciscana envolve um complexo e dinâmico mosaico de formas próprias de manifestação da cultura e da identidade local, refletida em seus vínculos territoriais, culturais, nos seus saberes, fazeres e expressão simbólicas.

Considerações Finais

Nas comunidades e ilhas do rio São Francisco que rea-lizamos a nossa pesquisa, foi possível encontrar características culturais, modos de vida e saberes populares que configuram uma identidade cultural sanfranciscana. Rica e diversificada, que com-põe um patrimônio cultural construído pelos seus saberes e faze-res. Vivenciamos a realidade vivida por homens e mulheres que por meio da cultura às margens do rio, representam dimensões do concreto, do materializado, do percebido, dos ciclos de vida e de águas, de um rio com significados materiais e simbólicos, que

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existe, persiste, resiste e preserva a esperança na vida. O rio, suas paisagens, suas culturas e sua identidade cultu-ral. Pessoas, rio e vivências que se mesclam em um viver peculiar e característico de quem cria nele relações e símbolos, memórias e esperanças, alegrias e angústias. Simbologias e significados que identificamos, estudamos e procuramos aqui de alguma forma re-tratar. Para além das formas, expressões e símbolos, verifica-moa que no atual contexto vivido pelas populações tradicionais localizadas ao longo do médio rio São Francisco, parece-nos ser urgente ações que fortaleçam iniciativas locais que evidenciem a cultura sanfranciscana, revitalizadas por meio do pertencimento, da valorização dos saberes, da apropriação dos territórios e no respeito às tradições, aos costumes, aos credos, às partilhas e às expressões simbólicas e que resultem numa promoção da identi-dade cultural e sua patrimonialização. É bem possível prever que aconteça com as pessoas que vivem do rio São Francisco o mesmo que já vem ocorrendo em outras regiões do país. Pessoas ocupadas produtivamente em via-jar pelo rio ou em obter dele o alimento e o produto de venda desaparecem aos poucos e são substituídas por outras, vindas de fora e com outros poderes, usos e sentidos para as suas práticas. A promoção das comunidades e ilhas sanfranciscanas re-quer ações concretas de valorização e salvaguarda de seus modos de vida e suas formas identitárias. Buscamos evidenciar as múl-tiplas categorias de sujeitos e lugares como forma de autonomia cultural de grupos sociais diferenciados que moram, trabalham e partilham saberes a partir de suas vivências com o rio São Fran-cisco. Procuramos citar todas as categorias encontradas ao longo de nossa pesquisa, a fim de ressaltar a diversidade étnica, cultural e identitária presente na paisagem do rio. Encontramos em nossa pesquisa diversas pessoas e comu-nidades com características diferenciadas, tanto pelas suas formas de vida quanto de trabalho: pescadores, vazanteiros, barranquei-ros, ilheiros, ribeirinhos, quilombolas. Como outros mais raros e ainda presente na memória dos mais velhos como os remeiros,

SABERES LOCAIS, IDENTIDADE E DIVERSIDADE CULTURAL

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barqueiros e vaporzeiros. No meio caminho temos os assentados que, independente do lugar de vida, buscam no trabalho com a terra o meio essencial de sobrevivência. E ainda, gentes vindas de outras partes e que se inseriram no cenário do rio a fim de obter ganhos capitalistas com os seus recursos, alguns sitiantes e os tão temidos grandes fazendeiros. Neste universo tão dinâmico e diverso que é o rio São Francisco, há que se salientar a importância do resgate de práti-cas, saberes e manifestações culturais, evidenciando a afirmação destas identidades, que move a vida e a memória de pessoas liga-das fisicamente e simbolicamente às águas do rio e às terras do Cerrado. Todas estas formas de vida e trabalho tipicamente tra-dicionais têm sido uma das principais estratégias de identificação da identidade cultural sanfranciscana, manifestada por diferentes categorias sociais e culturais dos diversos povos tradicionais do médio rio São Francisco.

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O SER E O SANTO: geografias vividas e narradas pelos sujeitos sociais da Festa de Santos Reis de Martinésia – Uberlândia/

MGLuana Moreira Marques

Rosselvelt José Santos

A geografia é uma área do conhecimento que estuda o es-paço e suas relações. Ela interliga elementos ambientais, sociais, econômicos, culturais, entre outros. Considerando que os indiví-duos se relacionam entre si e com o meio, esta ciência incita a realização de amplas análises e interpretações das práticas sociais no espaço, ou seja, permite que se teçam discussões contextua-lizadas no espaço e no tempo. Partindo de categorias de análise como lugar, território, redes, espaço e paisagem, a geografia bus-ca entender as relações do homem com o meio, assim como seus fenômenos, elementos e interações procedentes. É possível afirmar que a geografia está em todas as re-lações. Ela se ocupa do espaço perpassado pelo tempo, pelas relações e técnicas. Massey (2000, p. 178) destaca que “[...] A compreensão do tempo-espaço refere-se ao movimento e à co-municação através do espaço, à extensão geográfica das relações sociais e a nossa experiência de tudo isso. [...]” Diante disso, o estudo da festa no contexto espaço-tempo pode ser feito por meio da observação das relações entre sujeitos sociais, espaço, lugar, território e redes, sendo que a paisagem se torna testemunha das modificações históricas que dá movimento e permite a continui-dade da manifestação. O coletivo festeja; se sociabiliza pelo encontro e reforça os seus vínculos territoriais. Sagrado e profano, fluxos e fixos, tradição e modernidade, trabalho e lazer... Elementos que juntos compõe a festa e modificam o espaço. Trata-se do contraditório, complementar e antagônico que permitem a realização do homem enquanto sujeito social, cujo qual cria redes, estabelece territórios

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e vive sua humanidade no lugar. A festa é, portanto, criação e realização do humano. Como produção social, ela permite uma infinidade de estudos e abordagens. Pensando nessa multiplicida-de, estabelecemos um recorte têmporo-espacial para o desenvol-vimento desse trabalho. Optamos por investigar a Festa de Santos Reis realizada no distrito de Martinésia, município de Uberlândia (mapa 1), Minas Gerais, entre os anos de 2009 e 2010.

Mapa 1: Localização do município de Uberlândia e de seus distritos.

Fonte: MARQUES, L. M.; QUEIROZ, A. T., 2011.

As Festas de Santos Reis são manifestações sacro-profa-nas que representam a peregrinação dos Três Reis Magos até o menino Jesus. Conta a Bíblia Sagrada – livro norteador da religião Cristã – que três homens (interpretados como reis e/ou sábios) sa-íram de suas terras e empreenderam uma viagem até Nazaré, onde Jesus Cristo nascera. Lá eles presentearam o recém nascido com ouro, mirra e incenso. Apesar dos Três Reis não tenham sido ofi-cialmente canonizados pela Igreja Católica Apostólica Romana, eles são considerados santos por milhares de devotos que todos os anos os dedicam votos, promessas e intenções.

Luana Moreira Marques e Rosselvelt José Santos

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Para entender a festa do lugar, foi necessário ir ao cam-po. A primeira incursão a Martinésia se deu em meados de 2009, com a sondagem da festa do ano, assim como seus responsáveis. Retornamos ao distrito em 24 de dezembro de 2009 para acom-panhar a produção do evento. Foram 17 dias participando da or-ganização da festa de 2010 (entre 24 de dezembro, com a saída da folia, e 09 de janeiro, data de encerramento do evento). Entre 2009 e 2011 voltamos ao distrito dezena de vezes. Foram grava-das entrevistas, vídeos, capturadas imagens, além da incursão e participação de outras festas (em Martinésia e também na cidade de Uberlândia). Tal experiência, aliada às reflexões teóricas nos possi-bilitou desvendar parte do movimento, das práticas e desdobra-mentos da festa a partir do olhar e das narrativas de seus sujeitos sociais. As falas nos mostraram a festa numa perspectiva do “de dentro” e permitiu compreender a transformação do espaço pelo fluxo das manifestações culturais, assim como as relações que se constituem em territorialidades locais.

Os sujeitos sociais da festa

A festa é lugar de sujeitos social e múltiplas territoria-lidades. Nela os voluntários e espectadores se encontram, com-partilhando as práticas e símbolos. Não devemos pensar, ingenu-amente, que tais sociabilidades se dão de forma homogênea ou pacífica. O subterfúgio do poder está nas ações. As coexistências são marcadas pelo embate (e até competição) por espaço, atenção e reconhecimento. Os territórios se fazem e desfazem cotidiana-mente. O território é entendido como um espaço marcado pe-las relações de poder, conforme aponta Raffestin (1993, p. 144): “[...] o território se apóia no espaço, mas não é o espaço. É uma produção, a partir do espaço. Ora, a produção, por causa de todas as relações que envolve, se inscreve num campo de poder.” Por outro lado, não devemos reduzir tal conceito à sua relação com o poder. Antes de tudo, o território pressupõe re-conhecimento, identificação e construção. Desse modo, um es-

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paço onde são observadas diversas relações sociais não pode ser simplesmente submetido ao domínio de um sujeito ou instituição, pois há nele sujeitos que exercem resistências e diálogos entre si e com o lugar. Enquanto o lugar se apresenta como individual, es-paço vivido, o território se constrói como algo coletivo. Ele existe a partir do reconhecimento do outro, pressupondo legitimação. Os sujeitos sociais se observam. No coletivo a individua-lidade é vigiada numa tentativa de controle velado que fracassa mediante as manobras dos sujeitos sociais. Assim se “roubam” almôndegas, cabulam-se os terços e ingere-se bebidas alcoólicas durante os trabalhos de organização da festa. O homo sapiens (homem sábio) transita entre o homo faber (homem trabalhador) e homo ludens (homem que se diverte). Embora todos os indivíduos que de alguma forma transi-tam pela festa sejam direta ou indiretamente sujeitos sociais dela, há uns mais e outros menos envolvidos. Essa característica é vi-vida no cotidiano festivo. A festa para os que a fazem é diferente da festa para aqueles que a consomem. De certa forma, os “de dentro” – voluntários que organizam a festa – vivem a manifes-tação com maior amplitude. Para eles os elementos de formação do evento são tão importantes quanto a festa em si. O trabalho, a doação e as sociabilidades decorrentes da preparação da festa são a própria festa.

[Renan Vieira] A festa nossa, de quem tá ajudando, é do dia a dia, todo dia faz uma janta, todo dia a gente tra-balha, todo dia a gente brinca, todo dia a gente joga um baralhim, e assim vai o dia a dia. Agora o dia da festa é o dia do povão, é o dia do povo de Martinésia, Pontal, de Uberlândia, certo? E ainda da região quase toda, então a participação do povo é uma média de umas 5000 pessoas que eu to esperando nesse dia de hoje.73

[José Adolfo] [...] o trabalho [voluntário] é uma festa já, e na verdade eu entendo que é o melhor da festa, que é quando você conhece melhor as pessoas, você é... conhe-

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73 Entrevista realizada com Renan Vieira, durante os preparativos da festa em janeiro de 2011.

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ce as histórias, há uma convivência entre as gerações. Então tem crianças, tem jovens, adultos e idosos, tudo no mesmo espaço e isso é um diferencial da festa. Então há uma troca mesmo... de gerações, de experiências, então é uma coisa prá mim muito rica.74

[Miralva Calábria] O dia a dia no barracão é uma pré-festa, aí se reúnem as pessoas do local, visitantes que vem trazer prendas, donativos para a festa... é... qualquer es-pécie que chegue de doação a gente recebe, independente de quantidade, de tudo que chega é aceito... de muito bom coração. E no dia a dia a gente faz a comida pra quem tá trabalhando que, em princípio, são feitos os doces que vão ser servidos na festa, depois na semana da festa co-meça a se pensar no cardápio do dia da festa, que já virou tradição. É... [no dia da festa] todo mundo já chega procurando: é almôndega, macarrão com frango, o arroz, a carne mo-ída com batatinha, farofa de carne moída e por aí vai as misturas da comida é essa, em grande quantidade. De-pois do jantar vem a sobremesa que é o doce de leite, o doce de pau de mamão, o doce de casca de laranja, o doce de mamão lavrado e haja estômago porque vai sair mais gordim da festa. [Risos]75

“A festa nossa, de quem tá ajudando é do dia a dia”, “nossa” significa o “de dentro”, quem ajuda, quem faz a festa. Este sujeito vive intensamente o preparo do evento e lá estabelece sua humanidade. As necessidades são suprimidas coletivamente. Come-se, bebe-se, reza-se, tecem-se redes sociais em volta dos tachos de doce e das mesas de desossa de carne. O núcleo da festa se estabelece no barracão76, junto aos su-jeitos sociais que a planejam e a produzem. Trata-se do lugar onde a

74 Entrevista realizada com José Adolfo de Almeida Neto, durante os prepa-rativos da festa em janeiro de 2011.75 Entrevista realizada com Miralva Calábria, durante os preparativos da festa em janeiro de 2011.76 Prédio público cedido anualmente para a realização da Festa de Reis de Martinésia.

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festa é pensada, desenvolvida e vivida. Nos arredores, por sua vez, se estabelecem os espectadores e o comércio. Essa característica não deve ser entendida como segregação, mas como lugares e terri-tórios que compõem a manifestação. Fora do barracão – core festi-vo –, o mito – Santos Reis – é tido como elemento acessório, plano de fundo para algo que é maior. São os lugares do prazer, onde os excessos são permitidos. É tempo e espaço de extravasamento. A partir de uma generalização, é possível se pensar o bar-racão como o lugar de preparo da festa. Já a quadra e as ruas do en-torno são lugares de se desfrutar da festa. Entretanto, no barracão os voluntários também vivenciam a manifestação. Relembrando a fala do Sr. José Adolfo77, o barracão é o lugar do trabalho volun-tário e esse trabalho “é o melhor da festa”. Ao mesmo tempo em que esse espaço é o território do sagrado, onde se reza pelo santo e se adora o presépio, ele também é o território do profano, onde se joga, onde se fofoca, onde são observadas as humanidades. Nele se materializa a mediação entre o santo e o homem pecador. No final, tanto o barracão, quanto a quadra compõem o espaço da festa. Nele há territórios que se fazem e desfazem cotidianamente, assim como lugares identificados pelos sujeitos sociais e pelos espectadores. “O trabalho é uma festa já, e na verdade eu entendo que é o melhor da festa”. Nesse tempo-espaço as pessoas se mostram e permitem as trocas. Trocam-se sorrisos, “farpas”, confidências, trabalho, fé... A troca é parte fundante da festa. Trata-se do esteio que permite a mediação. É o fio que conduz a manifestação cul-tural por intermédio do tempo e do espaço. As trocas permitem as relações que fundamentam o lugar. Nessa perspectiva, Brandão (1989, p. 11) aponta:

Eis um sistema inicial de trocas entre pessoas que confi-gura a própria essência da festa popular no Brasil. Por-que, cheia de falas e gestos de devoção, ruptura e alegria, ela afinal não é mais do que uma seqüência cerimonial-mente obrigatória de atos codificados de dar, receber, re-tribuir, obedecer e cumprir. Troca-se o trabalho por hon-

77 Entrevista realizada durante os preparativos da festa de 2011. Janeiro de 2011.

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rarias, bens de consumo por bênçãos, danças por olhares cativos, o investimento do esforço pelo conhecimento do poder, a fidelidade da devoção pela esperança da bênção celestial. Obedece-se ao mestre, ao festeiro, ao padre, ao chefe da torcida, ao maestro da banda. Cumprem-se pro-messas, votos feitos.” (BRANDÃO, 1989, p. 11)

Durante toda a pesquisa tentamos decifrar a essência da Festa de Santos Reis de Martinésia. Um enigma tão complexo só pode ser entendido a partir da reflexão sobre as práticas, valores e falas dos múltiplos sujeitos sociais. Afirmamos que não há uma resposta única. A princípio pensávamos que o evento girava dava em torno das doações. Mas a essência da festa é imaterial, intan-gível e apesar de imprescindíveis, as doações não teriam poder suficiente para manter as práticas ao longo do tempo e do espaço. Devoção é doar. Doar é se afirmar na troca.

[Francisco Almeida - Calango] A pessoa tem muita devo-ção com Santos Reis, um dá uma vaca, outro dá um porco, outro dá um bezerro, outro da uma galinha, outro da um porco. É assim, é devoção né?! É devoção... andar com os Três Reis Santo é devoção. Porque quando nosso cristo nasceu, os Três Reis Santos foi os primeiro a chegar, onde é que ele tava, levando os presente pra ele, né? Aí ficou essa tradição do povo andar com os Três Reis Santo, né?!78

Percorrendo caminhos subjetivos, fazendo leituras nas entrelinhas de cada depoimento, observando as fotos, cenários e expressões dos sujeitos sociais, percebemos que a festa se dá em torno das trocas. Ao final de cada ação, existem pessoas, elemen-tos e redes mediados pela troca. Sem ela não há festa. A folia troca o canto pela sociabilidade, pela benção do santo e em alguns casos pelo retorno financeiro. Os doadores tro-cam as esmolas e prendas pelo direito à festa – comer, dançar, se deslocar e divertir no evento. Doar é trocar e por mais que essas

78 Entrevista realizada com Francisco Almeida (Calango), em sua residência no distrito de Martinésia, janeiro de 2011.

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práticas não sugiram nenhum tipo de retorno, ele indiscriminada-mente virá. Cada ação gera uma reação. Em relação à dinâmica e remuneração do trabalho, um dos entrevistados destacou:

[José Adolfo] Doação... é voluntário, né?! As pessoas vem e vão ficando. Uns ficam a semana toda, não se paga pra trabalhar. Não é uma coisa remunerada. Ela se man-tém assim, com esse trabalho, com as pessoas que vem mesmo e se dedicam.79

Os interesses, assumidos ou não, permeiam a festa. A do-ação é dada de “bom agrado”, mas pressupõe reconhecimento.

[Luana Marques] O que que eles [voluntários] ganham com isso [trabalhar sem remuneração financeira na fes-ta]?[Miralva Calábria] Ganham reconhecimento de toda a comunidade, porque não existe salário estipulado para nenhum, é gratuito mesmo, eles vão por devoção.80

“Não existe salário estipulado”, mas o trabalhador ganha “reconhecimento de toda a comunidade”. O reconhecimento so-cial é um apelo forte. Ele faz com que o doador se destaque entre a coletividade. Ganha-se o rótulo da dedicação, da generosidade. É importante trabalhar para o santo, pois o retorno vem em forma de graça sobrenatural e de reconhecimento real frente à popu-lação. O sujeito se torna aquele que deixa as próprias obrigações para se doar ao outro. Troca-se trabalho por respeito e prestígio social. Essa é a essência das festas populares brasileiras. O indi-víduo se impõe por sua crença e práticas. Aqueles são os sujeitos sociais de Santos Reis, os sujeitos sociais de Martinésia e, ainda,

79 Entrevista realizada com José Adolfo de Almeida Neto, durante os prepa-rativos da festa, em janeiro de 2011.80 Entrevista realizada com Miralva Calábria, durante os preparativos da festa, em janeiro de 2011.

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os sujeitos sociais da festa. Eles existem e modificam o espaço. São seres que fazem, que transformam, que são. Troca-se também com o santo. Troca que é mediada pela festa. Em suma, a festa surge pela reciprocidade da troca. A pro-messa se torna compromisso do não sagrado para com o sagrado. Nessa perspectiva, o religioso movimenta e alimenta o profano.

[Luzia Borges] A primeira festa de Santos Reis aqui na região, no distrito de Martinésia, foi em 1945. Foi uma família que vieram de Araxá, família Salvador... e a Sra. Maria Antonia tinha a intenção de cumprir a promessa da mãe, né?! Tinha a intenção de cumprir a promessa que a mãe tinha... de fazer uma festa de Santos Reis. Aí eles se organizaram entre famílias, né... e fizeram a festa em 1945. É... a festa foi assim, poucas pessoas, mais ou me-nos de 50 a 80 pessoas porque o povo não conhecia essa festa aqui na região, né?! Depois é que eles passaram a conhecer e começaram a gostar e hoje ela é uma festa que traz de três a cinco mil pessoas pra assistir.81

As promessas mediam as trocas e anunciam outras reci-procidades. Posso fazer a festa, andar com a folia, rezar para o santo, desde que ganhe a graça.

[Luana Marques] O Sr. recebeu graça?[Francisco Almeida - Calango] Uma vez eu fiz um voto pra andá três dias com Santos Reis aqui dentro de Marti-nésia, porque eu sofri da coluna, não tinha jeito de miorá. Aí peguei, fiz um voto pra Santos Reis, fiquei bão. Fica de um dia pro outro sara, conserta.82

A fé se renova na reciprocidade das trocas...

81 Entrevista realizada com Luzia Alves Borges, em sua residência, no Dis-trito de Martinésia, janeiro de 2011.82 Entrevista realizada com Francisco Almeida (Calango), em sua residência no distrito de Martinésia, janeiro de 2011.

O SER E O SANTO

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[Alda Vieira] Eu tive um problema numa válvula do co-ração e... era época da festa de Santos Reis. [...] E che-gando nos dias eu pedi pros Santos Reis: eu não vou estar aqui na época da festa, mas eu quero pedir que Santos Reis me abençoa, me ajuda, que me dê força, proteção pra eu poder trabalhar em muitas outras festas, ficar curada. [...] No dia da festa, Luana, que era 12 de janei-ro – essa época foi dia 12 de janeiro – foi o dia que eu fui operada, e lá à distância, internada na Beneficência Portuguesa, lá na cidade de São Paulo eu não esquecia da festa. Naquele tempo a gente não tinha celular, não tinha telefone, não tinha como comunicar com as pessoas aqui, era só por pensamento e fé. Eu tenho certeza que Santos Reis não me abandonou.83

Mesmo à distância Dona Alda não esquecia a festa, por-que tal manifestação representa a fé. “Eu tenho certeza que San-tos Reis não me abandonou”. O santo intercede pelas causas difí-ceis. Assim, quando o humano encontra o limite, o resta recorrer ao sobrenatural, que transpõe as barreiras do possível.

[Donizete Ferreira] E essa festa fizemo ela, uma que já era... a gente tinha vontade, e outra que nóis fizemo um voto pro nosso filho né, que caiu de um cavalo, quebrou o fêmur e aí ele ficou bom, mas aí ele tinha parece que um medo de pisar e num dá conta, aí a gente fez a intenção de se ele ficasse bom a gente ia fazer a festa e foi no mo-mento que a gente falou que ia fazer a festa ele ficou bom e graças a Deus nunca mais teve mais nada. Quem tem fé com Santos Reis num perde nunca, né?!84

83 Entrevista realizada com Alda de Fátima Vieira, durante os preparativos da festa, em janeiro de 2011.84 Entrevista realizada com Benedito Donizete Ferreira, em sua fazenda lo-calizada no entorno do Distrito de Martinésia, durante o giro da folia, de-zembro de 2010.

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85 Entrevista realizada com Augusto Alves Ferreira, em sua residência no Distrito de Martinésia, janeiro de 2011.86 Entrevista realizada com Benedito Donizete Ferreira, em sua fazenda lo-calizada no entorno do Distrito de Martinésia, durante o giro da folia, de-zembro de 2010.

[Augusto Ferreira] Esse ano mesmo a minha minininha, minha neta tava muito doente esses tempo pra traz, meu menino ficou mei desesperado com essa minha neta, aí minha muié pegô e fez um voto pra ela, de andá nove casa com ela e no intento das nove casa ela pega dá a oferta dela pra Santos Reis [que é] nóis cantá e a menina cumprí o votim que ela tinha feito. Graças a Deus foi va-lido. E eu também já fiz voto de Santos Reis, já fui aben-çoado, graças a Deus, por isso que eu tenho essa forte fé em Santos Reis, Ele me livrou... e a pessoa quando não acreditar, se ele não acreditar, ele não abusa não porque ele logo logo Santos Reis vinga dele, num dianta, Santos Reis é poderoso, mas é vingativo também.85

[Donizete Ferreira] Santos Reis é milagroso, mas ele é vingativo...86

Que santo é esse que pode curar, mas também pode fazer o mal? “Não abusa não porque logo logo Santos Reis vinga dele, num dianta, Santos Reis é poderoso, mas é vingativo também”. É o santo humano, que se espelha nas relações sociais. É o santo da alteridade, que reage de acordo com o comportamento de cada sujeito. “Santos Reis é milagroso, mas ele é vingativo”. Há um sentimento de identidade que aproxima o santo do imaginário hu-mano. O fiel é representado por uma entidade sagrada que entende suas súplicas, dificuldades e que, como o sujeito, também tem sentimentos negativos, se vinga, reclama, castiga. É o santo do imaginário, da idealização, da proximidade – entidade que carre-ga os embates de seus fieis, que os protege desde que haja mereci-mento. As trocas estão impregnadas nessas relações, embora nem sempre sejam explícitas.

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As sociabilidades, fundadas nas reciprocidades, são fun-damentais para a realização da festa. O crescimento do evento acompanha a necessidade da expansão da rede de relacionamento do festeiro. É essa rede que permite as trocas.

Luana Marques] É difícil fazer a festa?[Renan Vieira] Eu não, eu acho facílimo [risos]. É muito bom, é muito... é... gostoso de tá no meio do pessoal. É muito bom tê amizade, porque se você não tiver amizade hoje em dia você não consegue fazer uma festa dessa.87

Amizade. De acordo com o Dicionário Priberam (online), o termo “amizade” significa “Afeição recíproca entre dois entes.” Já o Dicionário Houaiss (online) define a amizade como um “sen-timento de grande afeição, de simpatia (por alguém não necessa-riamente unido por parentesco ou relacionamento sexual).” Mais que a amizade, a doação para a festa se fundamenta na dívida. O trabalho na festa pressupõe o pagamento de promessas ou inten-ções ao santo e o resgate de dívidas para com os sujeitos sociais, além da possibilidade do encontro. É certo que a amizade deter-mina o momento e a forma da quitação das dívidas. Quanto maior a popularidade e carisma do festeiro, mais facilidade ele terá em organizar um grupo de voluntários. Essa é a amizade citada pelo Sr. Renan Vieira. “Estar no meio do pessoal” é estar fora do cotidiano do trabalho formal – rotina extenuante, obrigatória, que reduz o indi-víduo a um vetor do sistema de produção. Na festa, o sujeito não surge apenas como mais um trabalhador em meio à massa. Lá ele se posiciona como indivíduo, ele existe e, enquanto ser humano, exerce seu direito à festa.

[Luana Marques] Por que que você é festeiro?[Renan Vieira] Eu já fui festeiro há dez anos atrás. É... essa, como se diz, é a... é a doação que a gente dá. É devoção, a gente tem uma devoção a Santos Reis, então a gente gosta... gosta da participação. Eu participo todo

87 Entrevista realizada com Renan Vieira, durante os preparativos da festa em janeiro de 2011.

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88 Entrevista realizada com Renan Vieira, durante os preparativos da festa em janeiro de 2011.

ano, eu ajudo todo ano, corro atrás de alguma coisa, dou prenda todo ano. Então... eu gosto de tá aqui, e é uma confraternização com o povo. Isso não é só uma festa de Santos Reis, é uma confraternização que a gente tem com todo mundo.88

Para o Sr. Renan, a manifestação não deve ser entendida/reduzida apenas a uma festa, mas pensada como confraternização. É o tempo e o espaço das humanidades. Participar, ajudar, correr atrás de alguma coisa, doar... essas ações dão ao sujeito o direito à festa. Na roça há um entendimento que resguarda as benesses da vida. Usufruir delas requer merecimento. Ao que produz, é permi-tido comer. Ao que trabalha, é permitido se divertir. Tratam-se de relações sociais de compromisso, reconhecimento e recompensa que são transmutadas para outros lugares. As práticas permane-cem, mas o lugar não. Elas são transpostas para os novos espaços (como os festivos) e lá devem ser respeitadas. Essa continuidade também concede o direito à festa. A proposição anterior poderia excluir aqueles que não têm vínculo com a festa, como os visitantes que chegam ao distrito no dia do evento em busca de algumas horas de lazer criado pela doação. Todavia, eles também têm direito à festa, mas ela chega fragmentada, tendo em vista que a totalidade só pode ser vivida por aqueles que produzem o evento e vivem o cotidiano festivo por meio das sociabilidades. O sujeito espectador não busca a totalidade da festa. Na verdade ele não conseguiria lidar com as vertentes dessa totalida-de. Suas motivações são múltiplas e se estabelecem em tempora-lidades diferentes dos sujeitos sociais voluntários. O dia da festa é o pior dia para o voluntário, pois é o momento do fim do período festivo. O dia da festa é o melhor dia para o espectador, pois é seu único momento, é o tempo da diversão. Sujeito voluntário e sujeito espectador. O “de dentro” e o “de fora”. Todos participam da festa. Apesar de suas ações e moti-vações serem diferentes, a festa só existe por seus sujeitos sociais.

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Não há devoção sem o devoto, pois é o humano quem rege as relações. Ele é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. Nesse conjunto de seres, a festa aparece como prática multifacetada que envolve devoção, diversão, doação... que permite a multiplicidade do uso. A festa é vivida de tantas formas diferentes quanto suas nuances, melodias e acordes da folia. A festa é feita de invenções. O novo se conjuga ao antigo e imprime personalidade a cada evento. Nessa perspectiva, o fes-teiro se encarrega de reger o formato e as características principais das festividades do ano. A partir dessa definição, a festa ganha vida própria e se desdobra em uma série de ações materiais e imateriais que vão assumido formas e conteúdos, no território, de representa-ções sociais.

[Lindalva Vieira] Uma das grandes... coisas importantes dessa minha festa, dos diferenciais da minha festa é que tive essa intenção de transformar essa festa numa festa religiosa, independente assim de muita alegria, de muita farra, de muito entrosamento, é... colocar a parte religio-sa no meio da festa, por isso todos os dias eu convidei, desde a saída da folia, eu convidei as pessoas pra vir me ajudar a rezar o terço às 8 horas da noite e... eu recebi o chamado, está vindo um grupo grande, né?! pra rezar junto comigo, porque... inclusive até [eu] tinha avisado: ‘vocês não vão deixar eu rezar sozinha’. E... está vindo um grupo muito grande, então eu acho que tô conseguin-do meu objetivo: transformar essa festa de Santos Reis um pouquinho mais uma festa religiosa. Aí depois do terço é o momento de descontração né?! É o jantar, é a farra, é a alegria, o entrosamento com os amigos, é um joguinho, né, de dourada que toda noite eles ficam aí jogando, me atrapalhando pra dormir mais cedo. (Risos).89

A festa é coletiva, mas a fala indica uma propriedade, uma forma de poder neste território: “minha festa”. A festa é minha

89 Entrevista realizada com Lindalva Mendes Vieira, festeira do ano, durante os preparativos da festa em janeiro de 2011.

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porque eu sou a festeira e determino como se dará os festejos esse ano. Não consigo dormir cedo, me doo, trabalho, mas faço a festa de acordo com meu sonho. Sonho em deixar a festa mais religiosa, mas não descarto a diversão. Eu troco: se rezarmos o terço, podemos nos divertir: “Aí depois do terço é o momento de descontração”. Mas “vocês não vão deixar eu rezar sozinha”. A festa é minha, embora não a faça sozinha. Nessa perspectiva, a festa se torna uma realização do humano. Cada grupo de festeiros se esforça para marcar o distrito com a melhor e maior festa da história. Todos buscam a superação e as novidades. O evento realizado no ano de 2010 foi muito co-mentado pela abertura dada à comunidade e pelas pequenas festi-vidades realizadas ao longo dos dias de mutirão. Isso fez com que os organizadores dos anos seguintes se preocupassem em manter o padrão e o alcance da festa de 2010. Por outro lado, o que fica na memória dos sujeitos sociais não é a grandiosidade de cada evento, mas as características que marcam subjetivamente cada pessoa. É uma música, uma paisa-gem, um sabor, um encontro... Às vezes a junção de todos estes elementos. A memória é ativada pelos vínculos. Vínculos do pre-sente e do passado, construção diária dos valores de cada ser.

[Luzia Borges] Eu era muito criança, né... o que eu me lembro bem foi... foi numa fazenda aí bem baixa... na bei-ra do córrego é que foi a casa do festeiro, né... da primei-ra festa, aí então todo mundo ia era de a pé. Os fazen-deiros viam a cavalo e nós aqui de dentro do povoado ia de a pé, né... e a gente ficou... assim... aguardando com aquela sensação da chegada da folia - principalmente a gente que nunca tinha visto - aquela sensação de ver a chegada e ficamos assim encantados de ver eles cantarem a saudação que eles fazem no presépio, muito bonita. Era uma turma assim bem entonadinha, igual está essa turma agora e disso eu me lembro bem, me lembro do jantar que foi muito gostoso (risos).[Luana Marques] O que que tinha?[Luzia Borges] O principal arroz com feijão né... é... fran-go com macarrão, carne de porco que foi feita assim com

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antecedência, guardada na manteiga, né?! Hummmm, deliciosa. E de sobremesa tinha... eles fizeram arroz doce, mas muito bem feito, muito gostoso, tava uma delicia...90

O gosto do jantar ainda vive na memória da Dona Luzia. Ela ia a pé para a festa, mas isso não impedia o deslocamento. Da entonação da folia, ela se lembra bem “era uma turma assim bem entonadinha, igual está essa turma agora”. As comparações do passado com o presente são inevitá-veis. Sobre isso, Gabarra (2006, p. 420), baseada na idéia de me-mória de Aristóteles discutido por Yates (1996), afirma que “A memória é uma coleção de figuras mentais de impressões senti-das, mas que o tempo agrega a outros elementos. Portanto, as ima-gens da memória não dizem respeito somente ao tempo passado, elas buscam no passado, reconhecer o presente.” O reconhecimento do presente a partir do tempo passa-do tece as comparações. Os discursos passam a enaltecer termos como “naquela época”, porque aquela época é diferente do hoje. Diferença que se acentua nas falas das pessoas, principalmente, pe-las carências materiais e imateriais de um espaço e de um tempo:

[Alda Vieira] Naquela época, há 33 anos, as folias che-gavam na casa da gente, pedia janta, você dava janta e o pouso pra todos aqueles homens. Tinha que ser casas grandes, porque senão não cabia dez, doze homens, né. [...] Naquela época ainda não tinha freezer, não tinha nem energia na casa da gente. Que que a gente tinha que fazer? O que tinha no terreiro.91

Naquela época se fazia a festa possível. Não tinha freezer, consumia-se, então, “o que tinha no terreiro”. Hoje as famílias têm acesso aos refrigeradores, mas os pousos são raros, uma vez que as pequenas moradias já não comportam mais as companhias

90 Entrevista realizada com Luzia Alves Borges, em sua residência, no Dis-trito de Martinésia, janeiro de 2011.91 Entrevista realizada com Alda de Fátima Vieira, durante os preparativos da festa, em janeiro de 2011.

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de Reis. Portanto, independente do tempo e do espaço, só se faz a festa possível. A memória também filtra as adversidades. As lembranças positivas junto ao saudosismo tendem a recordar o que era bom ou até a mascarar as dificuldades lendo-as como algo realizador. O trabalho passa a ser visto como satisfação, mesmo que canse ou traga dores ao corpo.

[Telma Ferreira] É muita emoção, né. Passa um filme na cabeça da gente, da festa que a gente fez, como que era né?! O pessoal chegar, trabalhar naqueles dias tudo antes da festa, aquela alegria, todo mundo se doando, porque todo mundo ajuda de graça, todo mundo satisfeito, é mui-to bom.92

A memória define as ações do presente. Ela permite tra-çar as referências do sujeito, pressupõe vivência e construção do modo de vida. O ciclo familiar contribui diretamente com a for-mação do sujeito e de sua memória. As práticas vividas na infân-cia são lembradas (e muitas vezes reproduzidas) na idade adulta.

[Isabel Pereira] Toda bandeira que passa aqui eu coloco uma rosa na bandeira. Essas roseira eu ponho pros Três Reis e dá o ano inteiro. Toda época que você chega aqui tem rosa, direto, eu gosto de... É um agrado pros Três Reis, desde o tempo de criança, minha mãe falava que eu gostava de pôr flor na bandeira, então eu cresci, casei e continuei... [Luana Marques] A senhora anda com a bandeira pra benzer a casa?[Isabel Pereira] É, eu gosto de abençoar a casa e a minha mãe fazia isso também, andar com a bandeira em todos os quartos, na casa inteira e em deus de criança minha mãe fazia. Então minha mãe passou pra mim e eu faço todas as vezes.93

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92 Entrevista realizada com Telma Donizete Ferreira, em sua fazenda localizada no entorno do Distrito de Martinésia, durante o giro da folia, dezembro de 2010. 93 Entrevista realizada com Isabel de Lourdes Dias Pereira, em sua fazenda localizada no entorno do Distrito de Martinésia, durante o giro da folia, de-zembro de 2010.

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Assim como a cultura, a memória está em constante for-mação e transformação. Ela não é fixa, mas se constrói diariamen-te no imaginário de cada indivíduo que, direta ou indiretamente, seleciona o que quer lembrar e como quer lembrar. Nessa perspec-tiva, Gabarra afirma:

[...] A memória, pois, não é passado estático: ela é um olhar para o passado que confere sentido ao presente, mutável a cada nova experiência do contador. Aquele passado pode ser lembrado e reinventado, enfatizando outros aspectos antes desvalorizados a cada nova cir-cunstância em que se encontram os indivíduos. (GABAR-RA, 2006, p. 397-8)

O lugar como espaço vivido está diretamente ligado à me-mória. É nele que se constituem as sociabilidades. Isso lembra uma fala do Sr. José Geraldo Pacheco: “Aqui é gostoso, cê co-nhece todo mundo...”. No lugar temos o controle imaginário da situação. Exercemos nosso direito de existir e nos relacionar. É no lugar que a festa se materializa. Que lugar é esse que atrai uma multidão para celebrar? Por que participar da festa de Martinésia e não da festa do centro urbano? O sentimento de pertença está arraigado no interior de cada ser. Pertencemos a um lugar e, consequentemente, o utili-zamos como referência. Martinésia é o lugar da Festa de Santos Reis, mas também é o lugar da Dona Luzia, da Dona Miralva e do Seu José Adolfo. Cada um desses sujeitos sociais possui vínculos distintos com o distrito, e exercem nele o direito à festa.

[Luzia Borges] Onde vou a festa é reconhecida, todo lu-gar que vou e falo que sou de Martinésia, o povo pergunta “É lá que tem uma festa muito boa?” Fico muito orgulho-sa, porque sou daqui! 94

[José Adolfo] [...] Martinésia é um lugar íntimo assim... passei a infância aqui. Meus dois avós tinham fazenda

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94 Entrevista realizada com Luzia Alves Borges, em sua residência, no Dis-trito de Martinésia, janeiro de 2011.

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aqui pra baixo, né. [...] Então a nossa infância era eu e meus primos aqui. Final de semana nessa igreja, brin-cando ao redor da igreja, né?! Então essas festas é uma coisa assim que a gente cresceu meio no meio delas. da folia de Reis... Era um momento muito especial.95

[Miralva Calábria] [...] sou muito bairrista porque gosto de Martinésia, toda solenidade que tem aqui eu estou por dentro, eu quero participar, porque quase todas as fes-tas são festas feitas por voluntários e nós estamos sempre reunidos, a comunidade nunca rejeita nada, sempre tamo participando.96

Somos de um lugar. Pertencemos a ele e nele criamos vín-culos. Cada indivíduo constrói uma relação diferente com o lugar. Dona Luzia, por exemplo, nasceu e viveu toda a vida em Martiné-sia. Ela se desloca no espaço, mas sempre volta para o distrito e se sente parte dele: “porque sou daqui”. Já o Sr. José Adolfo, professor universitário, morou em outros países, leciona em outra região e entende Martinésia como “um lugar íntimo”. Apesar de poder estar em diversos destinos, ele sempre retorna ao distrito e reforça seu vínculo, sua identidade espacial. Lá ainda vivem os parentes, mas também vive a infância guardada na memória. Memória que é vinculada ao lugar – “Então a nossa infância era eu e meus primos aqui. Final de semana nes-sa igreja, brincando ao redor da igreja, né?!” Dona Miralva não nasceu em Martinésia, contudo elegeu o distrito como lugar de moradia, participando ativamente da festa e de outras manifestações sociais. Ela se diz (e é) bairrista. Vive no distrito há 14 anos. Escolheu seu lugar e o defende, participa. Nele, Dona Miralva existe e exerce seu direito à vida, às humanidades. Lá ela sociabiliza, modifica o espaço e é modificada por ele.

95 Entrevista realizada com José Adolfo de Almeida Neto, durante os prepa-rativos da festa, em janeiro de 2011.96 Entrevista realizada com Miralva Calábria, durante os preparativos da festa, em janeiro de 2011.

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É importante destacar que o lugar não é, necessariamente, a cidade natal ou o lócus de origem de cada pessoa. Como dito anteriormente, o lugar pressupõe vínculo, reconhecimento. Pode ser diariamente construído. Nesse caso, o sentimento de pertença se reforça diariamente. No tempo da festa, Martinésia é visitada por diversos gru-pos e pessoas que o entendem como o lugar da festa (e por vezes o lugar de uma festa). Nesse caso, não se cria vínculo com o des-tino. As relações espaciais são superficiais. Se não há vínculo, é possível questionar o porquê da escolha deste distrito como área de lazer. Os sujeitos sociais da festa são plurais. Católicos, espí-ritas, evangélicos, ateus, agnósticos, umbandistas, dentre outras religiões, convivendo e dividindo o mesmo tempo-espaço sagrado e profano. A multiplicidade da festa atrai e, no caso de Martinésia, tem sido progressivo. De acordo com o Sr. José Geraldo Pacheco,

[José Geraldo Pacheco] Ela [a festa] vem crescendo mui-to nos últimos anos viu Luana?! Isso é natural. A cada ano que passa eu acho que esse crescimento também ele vem em razão do nosso próprio município, a nossa cidade é... ela perdeu o controle, né?! Tivemos o Censo agora, não sei exatamente, mas sei que já passamos de 600 mil habitantes em Uberlândia, então isso é natural, conforme a nossa cidade vai crescendo, quer dizer, a cada parti-cipante que vem num ano, normalmente ele traz outras tantas pessoas no ano seguinte, então isso é natural, né?! As pessoas gostam de ver aquela tradição, o que é ofere-cido aqui... a janta, depois o doce, depois o baile, enfim... você sabe que o povo gosta do movimento, aonde tem aglomeração ali, falou que é festa, independe do que é oferecido já tem uma participação grande das pessoas e tem aquelas pessoas que gostam mesmo, vão longe atrás de uma festa de Santos Reis.97

A festa é tempo e espaço das sociabilidades. O Sr. José Geraldo sintetizou a motivação do público quando disse que “As

97 Entrevista realizada com José Geraldo Pacheco, durante os preparativos da festa, em janeiro de 2011.

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pessoas gostam de ver aquela tradição, o que é oferecido aqui... a janta, depois o doce, depois o baile, enfim... você sabe que o povo gosta do movimento [...]”. Movimento. O movimento é atração, é meio, e é também consequência. As humanidades – incipientes e frágeis – estão em constante transformação. Neste contexto, a fes-ta é entendida como tempo e espaço do movimento, elemento que atrai. Enquanto isso, o humano se torna sujeito, objeto e veículo das metamorfoses cotidianas. O direito à festa se dá à medida que ela se torna coletiva. Mas esse direito chega de forma diferente aos diferentes sujeitos sociais. O “de dentro” transita em todo o espaço festivo. Já o “de fora” encontra restrições e recebe a festa fragmentada. Neste caso, os deslocamentos são restritos. Os territórios se mostram por meio dos cercamentos, grades e portões, mas todos participam da cele-bração. Durante as entrevistas era comum ouvir histórias sobre a influência da família nas práticas dos voluntários. Muitos lembra-vam que aquele tipo de trabalho era desenvolvido desde a infân-cia, em companhia dos pais. Claval (2001, p. 65) afirma que “É também primeiramente na família que o adolescente é instruído sobre os rituais e mitos próprios da religião, à ideologia dos seus pais ou àquela que domina na sociedade da qual faz parte. [...]”

[Luana Marques] Tem quantos anos que a Sra. ajuda na festa?[Ualda Januário] Ai, (risos), aí você quer saber minha idade né?! Uns quarenta e... um punhado. Eu sou nas-cida e criada aqui. Deusde que minha mãe tava grávida a gente acumpanha.... é tradição, né?! E aí passou, mas da família a única que sobrou fui eu. Os outros mudou de Uberlândia, eles num gosta muito, eu não, eu toda vida moro aqui, aí eu gosto de ajudá...98

[Benedito Ferreira] Mais vem de família, né... tradição. Lá na de lá [na festa da Capela dos Martins – próximo ao Martinésia] que a minha irmã tá fazendo, dois sobrim

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98 Entrevista realizada com Ualda Martins Januário, durante os preparativos da festa, em janeiro de 2011.

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meus tão... primeiro ano que eles tão andando na folia...[Telma Ferreira] Tão cantando e tocando instrumen-to.99

[Alda Vieira] Olha eu já fiz essa festa, minha irmã já fez, minha outra irmã já fez, o papai já fez, agora minha cunhada já fez, tá fazendo de novo. A gente não mede es-forço pra fazer, você sabe o tanto que Santos Reis é lindo e maravilhoso na vida da gente.100

A maneira de se receber um convidado, de se comportar frente à sociedade, de se reproduzir práticas e rituais são apren-didos/assimiladas a partir do meio em que se vive. A família se torna uma instituição fundamental na constituição dos valores de cada sujeito. De acordo com Claval (2001, p. 63),

A cultura é a soma dos comportamentos, dos saberes, das técnicas, dos conhecimentos e dos valores acumulados pelos indivíduos durante suas vidas e, em uma outra es-cala, pelo conjunto dos grupos de que fazem parte. A cul-tura é herança transmitida de uma geração a outra. Ela tem suas raízes num passado longínquo, que mergulha no território onde seus mortos são enterrados e onde seus deuses se manifestaram. (CLAVAL, 2001, p. 63)

A presença do jovem na festa desperta uma sensação de continuidade. É nesta época que se formam as identidades e reco-nhecimentos. A criança que acompanha/participa do fazer a festa crescerá com aquele conhecimento. Sabe-se que nem todos conti-nuarão reproduzindo tais práticas, mas as conhecerão. A cultura e o modo de vida são, portanto, uma constru-ção social, embora não defina, necessariamente, as condições de reprodução e escolhas de cada sujeito. Um indivíduo pode, por exemplo, crescer em meio católico e, em determinada fase da

99 Entrevista realizada com Telma e Benedito Donizete Ferreira, em sua fazenda localizada no entorno do Distrito de Martinésia, durante o giro da folia, dezem-bro de 2010.100 Entrevista realizada com Alda de Fátima Vieira, durante os preparativos da festa, em janeiro de 2011.

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vida, se converter ao espiritismo. Neste caso, as raízes do sujeito estão fincadas no catolicismo, mas elas não determinam suas op-ções ou preferências. Entendemos que o lugar atua diretamente na continuidade das práticas. “Eu sou nascida e criada aqui. Deusde que minha mãe tava grávida a gente [a família] acumpanha.... é tradição, né?! E aí passou, mas da família a única que sobrou fui eu. Os ou-tros mudou de Uberlândia, eles num gosta muito, eu não, eu toda vida moro aqui, aí eu gosto de ajudá.” Eu ajudo porque sou daqui e moro aqui. Os outros acompanhavam, mas mudaram e não aju-dam. Eles não gostam, por isso não retornam. Nessa perspectiva, a festa só tem significado no lugar e a tradição só sobrevive num contexto específico. Outros sujeitos sociais, por sua vez, poderão crescer na festa e compô-la ativamente, como se consumissem uma herança familiar – caso da Dona Ualda, da dona Alda, do seu Donizete e de diversos foliões.

[Augusto Ferreira] Deusde a idade de 12 anos eu partici-po de folia de reis. Toda vida eu canto mesmo é na respos-ta de Reis... toda vida sempre na resposta e depois passei a ajudar o Dersão de capitão e to até hoje.101

[Paulo Henrique Silva] [Quando criança] Eu comecei a tocá numa sanfona de tijolo, eu quebrava aqueles tijo-lão lá e comecei a tocar nessas folia aqui... nóis tinha uma folia de rapaizim aqui, nóis fazia festa e... comecei a tocar numa folia de tijolo, depois passei pro pandeiro, depois comprei um cavaquim, falei: não, não vou mexer com cavaquim não, vou comprar um acordeom. O finado meu pai comprou uma 48 pra mim, depois comprei essa 80 – que to com ela. Aí fui pelejando, pelejando, pedi San-tos Reis pra me ajudá a aprendê um pouquim, aí aprendi um pouquim.102

101 Entrevista realizada com Augusto Alves Ferreira, em sua residência no Distrito de Martinésia, janeiro de 2011.102 Entrevista realizada com Paulo Henrique Dias da Silva, o Boião, no Distrito de Martinésia, janeiro de 2011.

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A noção do sobrenatural, da fé, do Deus e entidades in-tangíveis são projetadas na juventude. Na infância a criança ob-serva os comportamentos e práticas dos familiares, utilizando-os como referência durante o restante da vida. Isso não significa que o modo de vida será reproduzido, mas é inegável que ele será en-tendido. Durante boa parte das nossas conversas com os sujeitos sociais – tanto a preparação da festa, como em visitas aos mora-dores do distrito – um questionamento sempre aparecia: qual será o futuro da festa? Como o “de dentro” pensa aquela manifestação nos próximos anos e décadas? Dos mais velhos ouvimos constan-temente que o tempo deles está se esgotando. Os mais jovens, por sua vez, faziam promessas de continuidade. Quase todos acredi-tam na permanência.

[Luana Marques] E a Senhora vai [ajudar] até quando?[Ualda Januário]: Ah não, eu to assim.... pra mim des-cansar. Como diz: vou tentá, aí a gente vai fazer assim, o que a gente vê que tá dando conta ainda, só que tá fican-do pesado. Num vai muito tempo mais não. [José Januário]: to pendo demissão já (risos).103

[Augusto Ferreira] E quero ver se consigo também até o fim da minha vida sempre ajudando aqueles que precisam sair na companhia de Santos Reis, eu vou participando até o fim da minha vida, se Deus quiser.104

[Luana Marques] Você é novinho, você acha que conti-nua?[Reyner Rocha] Espero que sim, porque a minha vontade é continuar. Por mais que a gente encontre dificuldades, porque tamo começando agora, tem início de carreira... tudo, o profissionalismo entra em jogo também, mas é... a realidade é que eu quero viver é ser folião também, en-tendeu? Então é unir o útil ao agradável. É uma emoção e eu quero seguir sim. A gente não sabe o dia de amanhã, mas eu pretendo continuar.105

103 Entrevista realizada com Ualda Martins Januário e José Januário (Zequi-nha), durante os preparativos da festa, em janeiro de 2011.104 Entrevista realizada com Augusto Alves Ferreira, em sua residência no Distrito de Martinésia, janeiro de 2011. 105 Entrevista realizada com Reyner Ferreira da Rocha, durante os giros da folia, em dezembro de 2010.

Luana Moreira Marques e Rosselvelt José Santos

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[Luana Marques] Vai manter [a festa]?[Elizângela Pinto]: Se eu tiver viva, mantenho sim, pode ter certeza. [...] Mas são muito poucos, são muito poucos [jovens] que tem essa disponibilidade, mais porque fica lá na cidade e fala: ‘ah, vou pra roça, ficar lá enfurnado, não... vou ficar na cidade divertindo’. São pouco, são ra-ros que qué ter o prazer, porque como ela disse, vai tá se doando, não ganha nada em troca. São muito poucos que tem essa disponibilidade.106

Os voluntários ajudam de acordo com a própria disponibi-lidade. Soube de muitas senhoras que ajudaram até o fim da vida. Anualmente estavam entre os sujeitos sociais da festa, trabalhan-do na cozinha, na decoração, na limpeza, e onde era necessário. Alguns jovens, por sua vez, manifestam a pretensão da con-tinuidade, mas no caminho estão diversas outras opções de utili-zação do tempo livre. Na época dos pais e avós dessas pessoas, as festas eram uma das poucas diversões possíveis, sobretudo no meio rural. Hoje, a comunicação e as redes estimulam que os indivíduos vivenciem o lazer urbano, da moda. “Ah, vou pra roça, ficar lá enfurnado, não... vou ficar na cidade divertindo”. O campo ainda guarda uma conotação da vida pacata, sem diversão, ao contrário da cidade, onde teoricamente residem as grandes possibilidades. Há também aqueles que lembram as dificuldades do per-manecimento.

[Miralva Calábria] Eu... acho que já tá ficando difícil... porque os velhos já passaram por essa festa, já estão até repetindo e... a juventude acha difícil, porque é uma res-ponsabilidade muito grande. Por isso que eu acho difícil, mas eu tenho fé em Deus e em Santos Reis que ela não acabe não, porque é muito bom essa festa. A gente traba-lha mesmo com amor, procurando fazer o melhor e... por aí a fora.107

106 Entrevista realizada com Elizângela Moreira Pinto, na fazenda de seus so-gros (Benedito e Telma Donizete Ferreira) localizada no entorno do Distrito de Martinésia, durante o giro da folia, dezembro de 2010.107 Entrevista realizada com Miralva Calábria, durante os preparativos da festa, em janeiro de 2011.

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[Luana Marques] Como que a senhora vê a festa do fu-turo? [Luzia Borges] É, eu já até comentei isso com a minha irmã, porque todas essas senhoras que ajudam fazendo doce – porque não é fácil fazer um tacho de doce de 50 litro de leite, mexer aquilo uma tarde toda, né?! – e... eu acho que no futuro nós não vamos ter esse número de pessoas pra ajudar não. Porque as cozinheiras, as docei-ras, as filhas delas já não estão ajudando, né? São elas mesmo, então acho que no futuro as pessoas vão ter que alugar um self-service pra fazer a janta pro povo (risos). [Luana Marques] E a religiosidade?[Luzia Borges] A religiosidade continua, só falta o jantar do dia da festa é que vai ser encomendado, (risos) num restaurante. Ai ai, isso é brincadeira, né? Sempre che-ga gente nova pra ajudar. Santos Reis ajuda que sempre aparece.108

É certo que para a festa permanecer ela deverá se adaptar. “[...] eu acho que no futuro nós não vamos ter esse número de pessoas pra ajudar não [...] então acho que no futuro as pessoas vão ter que alugar um self-service pra fazer a janta pro povo.” Para dona Luzia, a forma de preparar o jantar não anularia a essên-cia da festa, apenas modificaria as técnicas utilizadas. Pensando a festa futura, ela acredita que a quantidade de voluntários não será suficiente para a continuidade das práticas culinárias artesanais. Contudo, a essência da festa, pautada na comida e na religiosida-de, se manterá. A adaptação não pressupõe a supressão da essência da festa, cuja qual está guardada junto aos sujeitos sociais que viven-ciam as práticas e manifestações da cultura no cotidiano social. Sobre isso, o Sr. José Adolfo afirmou:

108 Entrevista realizada com Luzia Alves Borges, em sua residência, no Dis-trito de Martinésia, janeiro de 2011.

Luana Moreira Marques e Rosselvelt José Santos

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Eu acho assim... ela [a festa] tá se transformando, mas acho que ela tem uma essência que deve permanecer porque é uma coisa importante para as pessoas, então enquanto isso for importante pras pessoas ela permane-ce. Ela tá modificando... Antes ela... por exemplo a festa na fazenda do meu pai era muito improvisado, você fazia quase com lona de circo, hoje não, tem uma infra-estru-tura... isso é interessante. A festa hoje ela tem um patri-mônio já, tem uma cozinha, ela tem os tachos de cobre. Ela tem um patrimônio que é da festa, foi sendo doado né, enquanto que antes era mais improvisado, mas ela man-tém uma essência.109

A essência permanece porque é importante para o sujeito social. O jantar deve ser garantido, mesmo que seja em parte in-dustrializado. A reza também continua, mesmo que no espaço da Capela e com menor destaque. Tratam-se de algumas das altera-ções e adaptações que permitem a continuidade da festa, cuja qual é vivida pelos sujeitos sociais no tempo-espaço do possível.

Considerações finais

A permanência da festa se condiciona no sujeito social, porque a continuação reside, principalmente, no interior de cada ser. A permanência pressupõe afetividade, identidade, doação e compromissos das próximas gerações. Esses sentidos e suas con-sequentes ações garantem o direito ao território e se manifestam, material e simbolicamente, a partir do lugar que ocupam na festa. Direitos que são usufruídos mediante o reconhecimento de si e dos outros que fazem a festa. Neste movimento contínuo de ela-boração dos festejos, quase tudo é mediado, mas não se resume ao universo das trocas materiais, simples ou complexas, ao contrário, se enriquecem nos simbolismos das representações sociais.

109 Entrevista realizada com José Adolfo de Almeida Neto, durante os prepa-rativos da festa em janeiro de 2011. Martinésia, janeiro de 2011.

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Observar as entrelinhas dos discursos e viver a festa, bem como os territórios que se constituem no lugar Martinésia, foi fun-damental para entender os sujeitos sociais enquanto componentes dessa manifestação. Eles são múltiplos e, em sua multiplicidade produzem o autêntico, mesmo em meio ao esperado. Os cheiros, as cores, os sorrisos e sabores vivenciados nunca se repetem, porque o fluxo das pessoas e das coisas no território da festa não permite que as práticas sociais, expressões e elementos sejam idênticos. Nessa perspectiva, a festa muda cotidianamente, pois o sujeito social é ser de transformação. O efêmero se conjuga com o constante/estável e juntos ou dissociados promovem um movi-mento único e complexo. É o movimento dos fluxos que se mani-festa em torno da essência. Cria-se um corpo único, dinâmico, que mescla o passageiro e a tradição, o fluxo e o fixo. O direito à festa, também é um direito ao território, às territorialidades que os constituem e só se fazem pelo possível presente no lugar. O sujeito “de fora” que chega apenas no dia do evento de encerramento com o intento de ajudar no mutirão, por exemplo, não é aceito pelos “de dentro”, esse direito não foi cons-truído ao longo do tempo. Já aquele que contribuiu com o trabalho ou é um visitante convidado pelos “de dentro” tem acesso livre ao território, podendo circular pelo barracão (core da festa). Essa é a festa possível, que delimita territórios, que discrimina, mas também que acolhe. Na festa (e na vida) as ações, como relações sociais, se fazem territorialidades e geram, no lugar, reações. O direito à festa é, portanto, concedido à medida que o sujeito (espectador ou voluntário) estabelece sua humanidade frente à manifestação. Existir enquanto pessoa e estabelecer tro-cas pressupõem sua existência enquanto ser social. E ser, enquan-to ser social, outorga o direito à festa, ao território, pois ambos existem dentro de um processo que se manifesta e envolve sujei-tos que existem no espaço, modificando e sendo modificado por ele.

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Agradecimento

Agradecemos ao CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pela contribuição à presente investigação por meio da concessão de bolsa de pesquisa.

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A CATIRA E A PRODUÇÃO DE UMA IDENTIDADE TERRITORIAL NO

ESTADO DE GOIÁSMaisa França Teixeira

Maria Geralda de Almeida

O presente estudo compreende o debate de conceitos que subsidiarão a construção teórico-conceitual acerca da hipó-tese da catira como elemento da identidade territorial do estado de Goiás e apresentará argumentos para a hipótese. A ciência geográfica, sobretudo com a abordagem da Geografia Cultural com seu amplo campo metodológico, consente a análise das formas que vinculam a identidade a uma base territorial. A identidade territorial dá-se por uma construção de elementos simbólicos que se cumprem por relações de afeti-vidade e de pertença. Reconhece-se, nessa construção, que a forma espacial pode ser variável e os processos que os grupos constroem, por meio de marcas ou raízes, conferem ao terri-tório o sentido maior, o qual se liga a esse pertencimento do sujeito com seu espaço. Os locais e as relações de vivência, de idealização das práticas sociais e culturais e os processos de enraizamento concedem ao espaço o caráter de território, em que se criam territorialidades culturais: no caso a catira. Neste estudo sobre a catira, a discussão sobre o território e a formação das territorialidades iniciarão o tema; a partir de-les, território e territorialidade, serão apresentadas as formas e processos espaciais para o entendimento das identidades culturais e sociais em Goiás em relação à manifestação da catira. Posterior-mente, buscará descrever e identificar a catira como uma tradição popular. A catira, como possível promotora de uma identidade territorial, reporta-se à impossibilidade de arrazoá-la como algo estático, descontínuo e isolado, uma vez que estabelece uma in-terface entre o passado, o presente e o futuro. Atualmente, ela é

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apresentada com diversas coreografias e transita no território bra-sileiro acentuadamente marcado por uma pluralidade de modos culturais.

Território e Identidades Territoriais: a compreensão do universo da catira

Diversos autores que abordam sobre território, territoria-lidades, cultura e identidade ganharam campo dentro das ciências humanas. Semelhantes discussões têm suscitado um rico cenário de investigações de geógrafos nacionais e internacionais. Entre eles, se ressaltam Raffestin (1993), Bonnemaison (2002), Muñoz (2006), Haesbaert (2007), Saquet (2007), Almeida (2009) nos quais baseamos para esta reflexão. No bojo das contribuições des-ses autores para o estudo das manifestações culturais, analisa-se a identidade em seu elo com o território, destacando-se as chama-das identidades territoriais. As catiras são acontecimentos coletivos voltados para a reunião de parentes e pessoas conhecidas ligados pela dança, sen-do que a coletividade é expressa quando se observam os períodos de ensaios, as escolhas de repertórios e os encontros de confra-ternização, dentre outros. Ela é uma expressão cultural formada no tempo e no espaço simbólico por intermédio de relações me-diadas por símbolos (as roupas para a apresentação, os passos co-reografados, as músicas criadas para a catira). Para os praticantes mais velhos, ela é parte da bagagem da vivência; torna-se um laço identitário. Dançar não é apenas se colocar em movimento, pois significa para os participantes o momento de vivenciar os laços, o sentimento de pertença. Os símbolos que se fazem presentes na dança da catira são inseridos em sua tradição: vestimentas (chapéus, lenços, botas), sapateado, palmas e modas de viola. Os simbolismos que repre-sentam essa manifestação estabelecem-se por meio da influência de outras manifestações culturais, como as folias, a curraleira, a música country, a sertaneja, dentre outras. As apresentações da catira são realizadas durante todo o ano, com datas móveis, e em diversos locais, sendo que, no dia da apresentação, os catireiros

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e os observadores demarcam a área festiva da manifestação e os símbolos supracitados tais como, o canto da dupla, os ensaios e as apresentações, que se fazem presentes nos rituais da “festa da ca-tira” demarcam a dança. Tais símbolos sempre estiveram atuantes na história dos grupos, na sociedade e no município que formam o espaço ao redor dos locais de origem dos grupos, permitindo a notificação de que a catira vem ganhando importância e projeção nas últimas décadas, garantindo a estruturação de elementos da identidade: os encontros, as apresentações, os ritmos, as cantorias, os ensaios e os uniformes. Para Haesbaert (2007), na contemporaneidade emerge a relevância dada à abordagem geográfica da identidade. Na pers-pectiva do autor, a identidade constitui-se de formas múltiplas que envolvem relações temporais ligadas ao passado e ao presente, além de relacionar-se diretamente com os sentidos da memória e da imaginação ela estabelece-se numa dimensão geográfica, ou melhor, numa dimensão territorial. Ainda apoiada na reflexão do autor mencionado, a formação de identidade constitui-se por pro-cessos (2007, p. 34) “múltiplos, híbridos e flexíveis”. Para ele, tanto os territórios quanto as identidades — sejam elas as mais fechadas ou ressignificadas — espacializam-se por processos que dão formas também múltiplas e flexíveis à composição cultural presente nos lugares. Os conceitos de identidade e de território inseridos nos estudos das manifestações culturais, em especial da catira, auto-rizam-nos notar a criação de elementos constituintes da formação de uma identidade territorial. E o território, na análise proposta, passa a ser entendido como produto de relações sociais organiza-das tanto em nível político quanto espacial. Sob tal prisma, Al-meida (2005) compreende o território como produto social, lugar de vida, de relações e de representações simbólicas. Território, na Geografia, para Raffestin (1993) esteve, inicialmente, ligado ao sentido de poder, apropriação/dominação em termos econômicos e políticos. Todavia, após a década de 1960, os estudos feitos por outros geógrafos dedicados ao tema na dimensão da geografia cultural passaram a valorizar as dimen-

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sões sociais e simbólicas do território. Raffestin (1993) considera que o território forma-se a par-tir do espaço, sendo o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático. Para ele, o território é resultante da ação con-duzida por esse ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível; ao apropriar-se do espaço, de forma concreta ou abstrata, o ator o territorializa. Esse ator é designado pelas pró-prias representações espaciais que significam controle, domínio e revelam a imagem do território. Consoante o autor, a apropriação resulta da própria territorialização do espaço. Nesse sentido, ele distingue o espaço e o território como sendo, respectivamente, o “trunfo” e o “campo de ação dos trunfos”. Na prática da catira, os promotores culturais e/ou os agen-tes da cultura representados pelo poder público (prefeitura, órgãos, instituições) e o setor empresarial agem a fim de se aproveitarem das bases locais. Ao estabelecerem essas situações, eles tornam-se os trunfos da cultura, pois são essenciais na composição dos aspectos presentes no espaço estabelecidos por relações de poder em um determinado território. Essa concepção de território na Geografia, em determi-nado aspecto, consente observar que, nesse domínio territorial, as formas culturais não-dominantes emergem também como ele-mentos formadores de territórios. A título de ilustração, citam-se os (as) ciganos (as) e os kalungas/quilombolas. Esses grupos cons-tituem linguagens que permitem identificar formas que marcam o território por modelos regulares e não-regulares culturalmente, modelos que também passam a ser elementos indispensáveis na formação das identidades territoriais. O território, na perspecti-va de Raffestin (1993), é considerado um elemento balizador das identidades que são um conjunto de referenciais comum aos sujei-tos sociais e, também, construídas por representações mutáveis e flexíveis, evidenciadas nos símbolos e significados presentes nos territórios. Outra concepção de território e identidade advém de Al-meida (2009, p. 166) quando diz que o território é “relacional, no sentido de incluir pessoas sociais e espaço material, mas tam-bém é movimento e fluidez”. A autora, em seu texto “A captura

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do cerrado e a precarização dos territórios” (2005, p.109), retrata que “o território é, para aqueles que têm uma identidade territo-rial com ele, o resultado de uma apropriação simbólico-expressiva do espaço, sendo portador de significados e relações simbólicas”. Assim, o território pode ser considerado um espaço de ritos, ex-pressando valores e confrontando crenças. Ela acrescenta que o território possui especificidade relacional que garante a perma-nência e a reprodução dos grupos humanos. Tal concepção de ter-ritório relacional é aplicada ao estudo da catira, como uma prática cultural e esta demarca, no espaço, a identidade daqueles (as) que a praticam. Já Haesbaert (2007, p.78) afirma que o território é cons-tituído “[...] pelo conjunto de nossas experiências ou, em outras palavras, relações de domínio e apropriação, no/com/através do espaço”. Ele (2007, p. 41) acrescenta que

o território deve ser visto na perspectiva não apenas de um domínio ou controle politicamente estruturado, mas também de uma apropriação que incorpora uma dimen-são simbólica, identitária e, porque não dizer, dependen-do do grupo ou classe social a que estivermos nos refe-rindo, afetiva.

Para estes autores, Almeida (2005) e Haesbaert (2007), o território é relacionado com as apropriações do espaço de uma maneira simbólica, de significados. Almeida (2005) ressalta que as relações simbólico-expressiva resultam na formação de identidades territoriais e Haesbaert (2007) contribui com Almeida ao inserir a dimensão afetiva. Consequentemente, estes autores percebem a importância de analisarem não somente as dimensões políticas e econômicas, mas também a dimensão cultural e natural (as rela-ções homem/natureza) no processo de territorialização. No sentido da dimensão cultural, a catira pode ser con-siderada como produtora de uma dimensionalidade espacial que abrange as relações subjetivas representadas por paixões e po-deres, e as relações que constituem e determinam as forças e as fraquezas da humanidade em suas práticas existenciais. O terri-

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tório efetiva-se, então, como locus das ações dos grupos políti-co-simbólico. O território é o espaço de relações de indivíduos estabelecido pelas relações de poder e de pertencimento, além de ser uma dimensionalidade vivida e representada simbolicamente, tratando-se do espaço utilizado para experiência humana. Como base material e imaterial/simbólica das práticas humanas, o terri-tório é formado e partilhado por ações que conformam os desejos, os sonhos, a imaginação e as manifestações que se incorporam ao espaço, constituindo referenciais territorializados por meio de símbolos, ritos, expressões e outros. Ferracini (2006, p. 28), em seu estudo sobre “O espetácu-lo na praça: territorialidades, identidade e rituais negros na Cidade de Goiás”, oferece subsídios para a concepção de que “a territo-rialidade, particularmente, é constituída pelos diversos segmen-tos que dividem o mesmo espaço na cidade, seja nas avenidas, ruas ou praças, nos mesmos ou diferentes horários”. Isso se apli-ca também às catiras que formam, no território goiano, diversas territorialidades por meio das dimensões simbólicas e culturais, tais como, as vestimentas, músicas e expressões corporais, dentre outras. De acordo com Souza (1995, p. 99), a territorialidade é “aquilo que se faz de qualquer território um território”. Para o autor, a territorialidade relaciona-se entre os territórios e essa li-gação existente é o que ele conceitua como territorialidade. Ainda na mesma temática, Saquet (2009, p. 88) assevera que

a territorialidade é um fenômeno social que envolve indi-víduos que fazem parte do mesmo grupo social e de gru-pos distintos. Nas territorialidades, há continuidades e descontinuidades no tempo e no espaço; as territorialida-des estão intimamente ligadas a cada lugar: elas são-lhe identidade e são influenciadas pelas condições históricas e geográficas de cada lugar.

O autor salienta a relação território-território como Sou-za (1995), e igualmente o envolvimento dos indivíduos em seus diversos grupos, bem como o fato de constituírem identidades e

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ligarem-se aos diversos aspectos das localidades em suas práticas sociais, políticas e culturais, e o contexto histórico. A cada perío-do o grupo organiza e ressignifica as marcas que são reveladoras de tradição, de modo que o uso que o grupo estabelece no espaço demarca a formação da territorialidade. Pode-se afirmar, logo, que a catira representa territoriali-dades contínuas e descontínuas. A continuidade é visível na trans-missão familiar ou na formação de grupos de uma mesma locali-dade; esse ponto é marcado pelo repasse das gerações e também pela tradição constituinte pela dança. Na sua relação de descon-tinuidade, é certo inferir os processos de mobilidades espaciais e a morte dos membros dos grupos promovendo descontinuidades do espaço, do território dos catireiros. Semelhante correlação le-va-nos a pensar a territorialidade numa perspectiva mutável em termos de formação, constituição, demarcação, fluidez e de usos e práticas, uma vez que a territorialidade é relacional, histórica, mutável e fluida. Bonnemaison (2002, p. 99) atesta que “a territorialidade engloba, simultaneamente, aquilo que é fixação e aquilo que é mobilidade — dito de outra maneira, os itinerários e os lugares”. De acordo com o autor, entende-se que a territorialidade é dada por relações sociais e culturais estabelecidas por grupos, em uma trama espacial que envolve diversos lugares, constituindo, assim, aquilo que se estabelece por território. A análise do autor é de grande importância para este estudo, porque relaciona a mobilida-de existente nos estudos sobre as territorialidades, o que se asso-cia à dança da catira e à flexibilidade existente em seus aspectos territoriais. A catira é uma manifestação existente em várias loca-lidades, seus estilos são plurais, promovendo várias composições vistas durante as apresentações. E as territorialidades da catira no estado de Goiás são representadas pela dinâmica dos diversos gru-pos existentes. A dança da Catira promove, por intermédio de sua práti-ca tradicional, a transmissão familiar e a espacialização agregada a uma multiplicidade de ritmos e formas culturais. Os catireiros promovem, pela dança, a formação de uma teia de lugares. Por um lado, essa teia é dada pelos locais dos festivais e dos encontros; por outro lado, a dança demarca os espaços familiares, afetivos

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e tradicionais, tais como de um lado, as apresentações realizadas nos eventos e por outro as apresentações nos eventos familiares e de festejos religiosos. Por meio das discussões e análises de alguns geógrafos a respeito da dimensão dos conceitos entre território e territoriali-dade, produziu-se o Quadro 1 relacionando os aspectos principais sobre essas concepções. Para concluir, cabe repetir que a territorialidade é fruto das relações econômicas, políticas e culturais, por isso, figura de diferentes formas, imprimindo heterogeneidade espacial, paisa-gística e cultural. Assim, a territorialidade é uma expressão geo-gráfica do exercício do poder em uma determinada área, a qual é o território. E a dinâmica socioespacial estabelecida pelo indivíduo e/ou grupos sociais atribui ao território uma identidade. Almeida (2003, p. 77), em suas discussões sobre a identidade sertaneja, discerne que os elementos da identidade são “os traços culturais de uma identidade territorial”. Territorialidade e identidade são conceitos que, ligados aos símbolos, às imagens e aos aspectos culturais, conectam-se com o sentido de pertencimento aos lugares. As heranças do pas-sado e suas ressignificações no presente criam identidades incor-poradas não somente por processos cotidianos, mas aos territórios, gerando laços de pertença e de valores pessoais e grupais. A liga-ção existe dadas as relações de parentesco, amizade e irmandade entre os praticantes da catira. Nas conversas com os catireiros, ocorrem exposições de que são esses laços que ainda sustentam suas ligações com o lugar e o grupo.

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TERRITÓRIO E TERITORIALIDADE

Raffestin (1993)

Souza(1995)

Bonnemaison(2002)

* o território se forma a partir do espaço. Ele é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmá-tico.

* Interpreta o ter-ritório como uma forma de aprisionar o espaço.

* O território é considerado um elemento balizador das identidades.

* A territorialidade é aquilo que se faz de qualquer territó-rio um território.

* As territoriali-dades são relações existentes entre territórios.

* A territorialidade engloba, simultane-amente, aquilo que é fixação e aquilo que é mobilidade – dito de outra ma-neira, os itinerários e os lugares.

* A territorialidade é dada por relações sociais e culturais estabelecidas por grupos, em uma trama espacial que envolve diversos lugares, constituin-do assim, aquilo que se estabelece por território.

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TERRITÓRIO E TERITORIALIDADE

Haesbaert (2007)

Saquet(2007)

Almeida(2009)

* Território é cons-tituído “[...] pelo conjunto de nossas experiências ou, em outras palavras, relações de domí-nio e apropriação, no/com/através do espaço”

* O território deve ser visto na pers-pectiva de um do-mínio ou controle politicamente estru-turado, e também de uma apropriação que incorpora uma dimensão simbóli-ca, identitária de-pendendo do grupo ou classe social a que estivermos nos referindo, afetiva.

* Territorialidade é um fenômeno so-cial que envolve in-divíduos que fazem parte do mesmo grupo social e de grupos distintos.

* As territoriali-dades estão inti-mamente ligadas a cada lugar: elas são-lhe identidade e são influenciadas pelas condições históricas e geográ-ficas de cada lugar.

* Território é “re-lacional, no sentido de incluir pessoas, sujeitos sociais e espaço material, mas também é mo-vimento e fluidez”. * O território é para aqueles que têm uma identidade territorial com ele, o resultado de uma apropriação sim-bólico-expressiva do espaço, sendo portador de signi-ficados e relações simbólicas.

Quadro 1: Síntese de território e territorialidades conforme Raffestin (1993), Souza (1995), Bonnemaison (2002), Haesbaert (2007), Saquet (2007) e Almeida (2009). Organização TEIXEIRA, M. F.

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Para o caso da tradição presente, esta demarca a identida-de, que é construída socialmente e desenha escolhas políticas de grupos humanos. Hall (2001) diz que a identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade. Para tanto, o sujeito ainda tem um núcleo ou uma essência interior que é o que ele diz ser o “eu real”, porém modifica-se e forma-se no diálogo contínuo entre os mundos culturais e as identidades que os mundos oferecem. Assim, decorre a necessidade de se conhecer esse território, um espaço territorializado, apropriado e simbolicamente construído, formador de identidades. Gomes (2002, p.118-119) frisa que

a identidade é simultaneamente uma forma de relação social e uma forma de representação espacial que resul-ta num certo tipo de territorialidade. Em outros termos, essa identidade não é um dado irredutível, mas sim uma construção, que associa de maneira vital e orgânica os vínculos entre o grupo e seu território.

Podem-se vincular as identidades como representações marcadas pelo indivíduo ou pelo coletivo, por meio do confronto, do contato, da dominação, enfim, da liberdade. Elas demarcam-se no espaço, territorializam-se de forma a definir as pessoas perten-centes àquele território. Ainda de acordo com Brandão, uma das características mais importantes das identidades é a sua dimensão histórica do imaginário social. Aliás, a identidade serve de referência para a memória do grupo que ali se encontra no território: elas são cole-tivas na perspectiva territorial. Haesbaert (1999, p. 172) comenta a este respeito:

toda identidade territorial é uma identidade social de-finida fundamentalmente através do território, ou seja, dentro de uma relação de apropriação que se dá tanto no campo das ideias quanto no da realidade concreta, o espaço geográfico constituindo assim parte fundamental dos processos de identificação social. […] De forma mui-to genérica, podemos afirmar que não há território sem al-gum tipo de identificação e valoração simbólica (positiva ou negativa) do espaço pelos seus habitantes.

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Os catireiros, mediante seus simbolismos e significados compõem-se nesse território apropriado pelas festas profanas, pe-las sagradas e pelas concentrações de manifestações culturais e territorialidades que garantem sua identidade, sendo que a identi-dade cultural é uma identidade social e territorial. Desta feita, as práticas da catira autorizam a constituição de um território festeiro goiano, que é constituído na relação entre identidade, território e festa. Este último termo ganha aportes teóricos no campo da so-ciologia, antropologia, história e geografia. Citam-se os trabalhos de Amaral (1998), Brandão (1989), Coulanges (1976), Del Priore (1994), Di Méo (2001), Durkheim (1996), Eliade (1999), Guari-nello (2001), Lefebvre (1969), Maia (1999) e Pessoa (2007). Segundo Pessoa (2007), a festa é um momento de aprendi-zagem, é o texto escrito pela memória, constituída pelos valores; é transmissão oral do conhecimento. Festa não é só uma ocasião de descanso, é um momento de aprendizado, de reconstituição ou fortalecimento de laços sociais e da prática do turismo110. A catira, quando associada a uma festa, estabelece-se den-tro de um território festeiro. Para o momento da dança, existe um conjunto de ações que vai desde o ensaio dos passos, das trocas de conhecimento até os encontros entre amigos. Esses momentos geralmente se fazem numa atmosfera de festa, já que são encon-tros cheios de alegria e de prazer. A dança é considerada, nesse momento, uma festa e ainda promove ações, tais como ensaios e coreografias, corporeidades e sons da música. Em tese, a dança assume a síntese do envolvimento entre o ator e o som por via de seu corpo.

110 Almeida (2011, p. 1) retrata o turismo como “um fenômeno social que manifesta um crescimento constante. É considerada uma importante fonte de riqueza econômica e oportunidade para impulsionar áreas deprimidas nos aspectos econômicos e sociais, por isso, ele tem sua importância como fator econômico”. Para a autora, o turismo associa-se à economia e torna-se um importante vetor para o desenvolvimento local. A atividade turística apropria-se dos símbolos e significados oriundos das territorialidades dos indivíduos e dos grupos que podem se transformar em atrações turísticas.

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Para Brandão (1989), as festividades esboçam a constitui-ção do sentido da vida e da ordem do mundo, vivenciada mediante festejos e símbolos, o que se liga à catira ao revelar a possibili-dade de ser ela demarcadora de um território em seus símbolos, compondo o que se designa como território identitário. Nesse contexto, essa festa é a mediadora dos anseios individuais e dos coletivos, visto que revela as contradições impostas à vida hu-mana pela dicotomia natureza/cultura e pelas formas festivas que surgem devido aos encontros culturais. A dança é uma festa dentro da festa, uma vez que se torna uma possibilidade de explicação de valores individuais e coleti-vos. Sob esse aspecto, Maia (1999) ressalta que a festa é uma con-cepção de mundo, uma possibilidade de estar copresente fundada na tradição e na compreensão do mundo festivo. Assim, analisa-se a festa e a catira como representações de identidade, território e tradição.

A Catira forma uma Identidade Territorial?

A cultura catirana edificada historicamente foi transfor-mada no tempo e no espaço e atrela-se à história particular de cada família, grupo ou indivíduo. A cultura também se relaciona com os aspectos econômicos, políticos e sociais, originando diversida-des no seio da sociedade. As identidades disputam seu lugar no espaço e buscam se territorializar, definindo as pessoas pelo seu pertencimento àquele grupo e àquele território, o que os fazem diferentes dos demais. A valorização dessas identidades relacionadas aos saberes e às práticas dos grupos de catira associa-se diretamente à cons-trução de uma identidade territorial. Destacam-se alguns estudos a respeito das identidades territoriais feitos por Penna (1992), Cas-tells (1999), Claval (1999), DaMatta (2000), Bosse (2004), Haes-baert (2007) e Almeida (2008). Hall (2001) concebe a identidade caracterizada por sua formação ao longo do tempo e por processos inconscientes. Apli-cada à festa, a concepção deste autor contribui, em parte, para pensar-se a identidade territorial pelos processos inconscientes de formação das identidades.

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Estudar as identidades criadas pela catira é procurar en-tender que tal manifestação, estabelece um campo de valores identitários associados à cultura que origina um espaço a partir de uma dada dança: a catira. De forma geral, a manifestação da cati-ra carrega, por via de suas formas, identidades específicas e esta-belece relações territoriais distintas com outras manifestações. Os elementos da manifestação da catira floresceram e ex-pandiram-se, inicialmente, no meio rural e, posteriormente, no ur-bano. Caracterizada pela diferenciação em suas palmas e bate-pés (Figura 2), a catira tornou-se uma espécie de sinalização para os festejos profanos, ressignificando parte da tradição e da cultura que marcam essa manifestação. Os grupos de catira, conforme já foi dito, demonstram diferenciações nos passos e ritmos, como o “recortado” presente na dança, os uniformes que se relacionam com o estilo “caipira” e suas modas de viola que retomam suas especificidades do cotidiano e também da vida antiga, dos mo-mentos rurais. De acordo com Andrade (1989), o recortado é o conjunto musical da viola, do coro, dos palmeados e, também, dos sapateados. Ortencio (2004, p. 53) ainda contribui com a temática ao especificar que “o recortado são versos alegres que acompa-nham a dança”. Em suas imagens e relatos, o Grupo dos Irmãos Floriano (Figura 2a) retrata as diferenciações, as especificidades de seu es-tilo em relação aos outros estilos brasileiros de catira, tais como as apresentações que o grupo realiza diferenciando os seguintes estilos: o estilo mineiro, o paulista e o mato-grossense. O Gru-po Aliança (Figura 2b) ainda realiza apresentações no meio rural, local de origem do grupo. Para eles, a área rural demarca me-lhor onde as apresentações iniciaram. O Grupo de Catira da Água Branca (Figura 2c) associa-se ao meio urbano, todavia alguns in-tegrantes ainda residem no meio rural. Os grupos representam sua estrutura e suas formas, as quais os diferenciam de outras mani-festações culturais, principalmente quando relacionadas ao meio rural e urbano.

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Figura 2 – Imagens dos grupos Selecionados para o estudo da dança da Catira A: Grupo Os Irmãos Floriano – Palmas na dança da Catira B: Grupo Aliança – Sapateados na dança da Catira

C: Grupo de Catira da Água Branca – Moda de Viola (inter-valo entre o canto e a dança)

Foto: Maisa França Teixeira e Acervo do Encontro de Culturas Tra-dicionais da Chapada do Veadeiros - Data: 28/05/2011

A espacialização da catira favorece o reconhecimento das tradições e das histórias dos sujeitos sociais que a praticam e a organizam, estabelecendo os elementos simbólicos nos territó-rios onde ela encontra-se presente. Destarte, as singularidades do território, aliadas às especificidades geográficas, constroem um importante elemento cultural de desenvolvimento das tradições locais, regionais e nacionais. A modernidade traz em seu bojo certo desenraizamento dos indivíduos, o que conduz a um processo de deslocamento e distanciamento ou revalorização dos valores culturais. Nesse as-pecto, nota-se que, a despeito de tais modificações, os vínculos de pertencimento, de vivência, os símbolos e significados ali cons-truídos, ali permanecem mesmo em constante dinâmica. Esses, sim, são possíveis elementos formadores da identidade territorial

A

B C

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acerca da manifestação cultural da catira. A análise dos ritos e símbolos, associados à corporeidade, é um dos campos mais férteis da manifestação cultural da catira, principalmente no estudo relacionado à tradição e à constituição do território goiano. As folias presentes em grande parte do território goia-no distinguem-se por variação de apresentação, assim como as inúmeras danças do estado evidentes nas festas populares. Vale salientar que a apropriação desse território pela manifestação da catira é simbólica, compondo uma territorialidade cultural especí-fica e identitária. Almeida (2008, p. 70) assevera que as identidades são “dinâmicas e, se dão em um contexto socioespacial”. No caso da identidade territorial catirana, ela pode ser formada de elementos relacionados às temporalidades passadas e que são reproduzidas e constantemente transformadas no estado de Goiás. Nele as tem-poralidades estão assinaladas pela ruralidade, pela vida no campo e pelas atividades de sobrevivência. As festas e as manifestações culturais demarcavam e demarcam o território de divertimento e de alegria, bem como seus simbolismos sobretudo rurais: o roça-do, os currais, os galpões, as casas pequenas, o caipira. Esses ele-mentos identitários caracterizam um mundo imaginário simbólico que se associa aos goianos. Esses apontamentos esclarecem-se pela análise de Bosse (2004, p. 175) ao propor que um dos méritos principais do modelo de identidade institucionalizada é o caráter construído e contex-tual das identidades territoriais. Para o autor, essa identidade ter-ritorial é “construída e, por conseguinte, contingente e variável”. Consequentemente, as identidades territoriais criadas pela mani-festação da catira no território goiano refletem-se nas paisagens, no modo de vida, nos símbolos e significados criados por seme-lhante manifestação. A catira é parte da formação do território goiano e, por meio dela, identificam-se o fantasmagórico social de uma socie-dade distinguida pelos elementos da ruralidade do sertanejo, uma vez que também é parte dos vínculos que aproximam o sujeito ao seu território. Esses vínculos são oriundos de identidades e a

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identidade territorial é retratada por Penna (1992, p. 55), consta-tando que “os referenciais territoriais instituídos podem ser dife-rentemente apropriados na construção de identidades, em que se evidencia a multiplicidade e flexibilidade”. Já Haesbaert (2007, p. 44) diz que as identidades territo-riais

escolhem-se (ou, concomitantemente, reconstroem-se) es-paços e tempo, geografias e histórias para moldar uma identidade, de modo que os habitantes de um determinado território se reconhecem, de alguma forma, como partici-pantes de um espaço e de uma sociedade comuns.

Assim, a identidade territorial é uma apropriação além do simbolismo, também concreta no espaço, daqueles que nele/dele vivem, ou seja, ao qual pertencem. Os conhecimentos são adquiridos na convivência dos que praticam, dos que exercem. Dessa maneira, a manifestação da catira confirma sua identidade com base na conservação da tradição, dos costumes e dos saberes. Com tais características a catira territorializa-se no estado de Goi-ás (Figura 3).

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Figura 3 – Territorialidades – Municípios com Manifestação da Catira em Goiás

Organização: Maisa França Teixeira, 2012.

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A identidade territorial goiana da catira pode ser ainda as-sociada à visibilidade dos símbolos associados às modas de viola — as quais remontam tanto aos tempos passados quanto aos mo-dernos que caracterizam a vida dos goianos —, e já mencionados como os sapateados, as palmas, as vestimentas e a diversidade na maneira de dançar. A flexibilidade presente nas diversas formas de dançar-se a catira favorece alterações que diferenciam os significados da dança para quem a pratica. Ela possui uma carga simbólica forma-da por uma teia de subjetividade que é socializada pelos pratican-tes. Pode-se falar em uma aproximação dos sujeitos festivos aos eventos e sua construção simbólica da participação e inserção na festa, o que levaria ao “gosto” pela festa como um processo psico-lógico adequado à formação do sentimento de pertencimento. Para Almeida (2008, p. 61), a identidade aduz-se dinâmi-ca, imbricada e diversa, manifestando-se por percepções múltiplas e pelos laços de convivência pelo território. Essa identidade é, an-tes de tudo, uma identidade cultural que “dá sentido ao território e delineia as territorialidades”. Esse entendimento ligado à catira reforça a ideia de que a prática — por ser coletiva e socializada e, ainda, por ser ensinada, numa lógica de transmissão oral de pai para filho — estreita os valores familiares e de grupo, promoven-do, consequentemente, um ambiente carregado de subjetividade que é socializado pelos catireiros. Em face à essa tradição, a iden-tidade territorial criada pela dança demarca a espacialização da catira associada ao território de festividades no País, porquanto ela integra festas sagradas e profanas nas mais diversas regiões brasileiras, atribuindo sentido aos festejos da dança.

Consideraçõs finais

Ao associar a dança da Catira com a categoria geográfi-ca de “Território” apresentou-se o lado teórico-conceitual como apoio para as perguntas iniciais: o estado de Goiás possui uma identidade catirana? Como identificar as bases que garantem a existência de uma identidade territorial da catira? É pertinente afirmar que no estado de Goiás as territorialidades da manifes-

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tação da catira se apresentam sob diferentes formas produzindo símbolos e significados que dão sentido ao espaço e à cultura lo-cal? De que forma essas danças se tornam elementos simbólicos que demarcam uma base territorial? As possibilidades da afirmação da Catira como uma iden-tidade territorial do estado de Goiás estiveram presentes desde o início das indagações. Tal hipótese se justapõe pela análise in-terpretativa dos dados e documentos obtidos no decorrer da pes-quisa. Indagações essas, que caracterizaram a Catira além de ser uma dança composta por músicas, palmas e sapateados é ainda, um misto de coreografia, poemas e cumplicidade que abrange os passos, os ritmos, as poesias, a vivência, a brincadeira e é marcada pela presença nas festas, compondo um espaço-tempo no meio rural-urbano em que se incluíram as apresentações em eventos, bem como, os torneios e campeonatos. Essa abrangência pode ser observada pelas características advindas dos (re) inícios, (re) adaptações, (re) criações e (re) produções. Considera-se que a Catira permite demarcar traços cultu-rais que se vinculam às tradições goianas. Porém, essa dança apre-senta-se em uma perspectiva fragilizada no sentido de apontá-la ou caracterizá-la como um elemento cultural definidor da identi-dade do território goiano, principalmente pela falta de elementos únicos que indiquem como manifestação somente do estado de Goiás. O estudo da Catira também acompanha as construções dos elementos julgados como possíveis identificadores de uma identidade territorial no estado de Goiás. Esse é um caráter di-nâmico em constantes transformações que se coloca como um impeditivo da construção de bases fixas que determinem estilos cristalizados e estáticos da dança. Tal dinâmica pode permitir em uma construção de políticas de valorização de reconhecer a Catira como detentora de bases culturais importantes, vistas por meio de seus rituais, que podem se associar aos processos de valorização e preservação da cultura do estado e ainda impulsionar o desloca-mento para determinadas cidades em que a dança se revela como atrativo. A dança se torna elemento simbólico demarcado por uma

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base territorial com elementos singulares. Ao agregar a Catira a essa concepção, observa-se que no estado de Goiás, ao apresentar elementos únicos, a mesma ainda encontra-se em consolidação identitária e, posteriormente, poderão ser considerados singulares ao estado. No espaço goiano a dança é encontrada largamente no centro do estado e parcialmente nas regiões norte e sul. Goiás ain-da concentra aproximadamente setenta e oito grupos que realizam apresentações nos mais diversos eventos. A Catira se espacializa, cria signos e simbolismos e se territorializa no estado. Ela ele-va-se em possibilidades de ser um elemento do território goiano, bem como um atrativo turístico para a população local e para os visitantes. Por fim, observa-se que a dança catira em Goiás sofreu transformações e deslocou-se para o meio urbano e foi apropria-da como uma manifestação folclórica, podendo ser classificada como uma forma ressignificada que permite permanências numa relação tempo-espacial.

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DA LEI AO LIVRO: análises sobre a abordagem do Cerrado nos livros didáticos

de geografia do Ensino FundamentalVagner Limiro Coelho

Luana Moreira Marques

O Cerrado é um domínio fitogeográfico que detém uma biodiversidade bastante rica. É encontrado no interior brasileiro, abrangendo oito estados. São eles: Bahia, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Minas Gerais, Piauí, Tocantins, além do Distrito Federal. Muitas vezes, tal domínio é menosprezado em relação a outros como a Mata Atlântica e a Amazônia brasileiras, em virtude da diversidade biológica destes últimos. Entretanto, o Cerrado possui diversas característica peculiares que devem ser valorizadas, conservadas e investigadas. A forma como o bioma Cerrado – que está inserido no domínio fitogeográfico de mesmo nome1 – é apresentado nos livros didáticos de geografia brasileiros constitui-se como o cerne da presente reflexão.

Duas perguntas nortearam a investigação:1. Que leitura de Cerrado é feita nos livros didáticos do ensino fundamental? 2. Quais os aspectos desse bioma são mais comumente evidenciados nos livros de geografia?

No intuito de responder a tais questionamentos partimos da legislação brasileira, passando pelas diretrizes de ensino, chegando ao livro didático e, então, buscamos a abordagem do bioma Cerrado. O esquema a seguir sintetiza o caminho percorrido1 Para Coutinho (2014) “A palavra Domínio deve ser entendida como uma área do espaço geográfico, com extensões subcontinentais, de milhões até centenas de milhares de Km2, onde predominam certas características morfoclimáticas e fitogeográficas, distintas daquelas predominantes nas demais áreas. Isto significa dizer que outras feições morfológicas ou condições ecológicas podem ocorrer em um mesmo Domínio, além daquelas predominantes. Assim, no espaço do Domínio do Cerrado, nem tudo que ali se encontra é Bioma de Cerrado. [...] Não se deve, pois, confundir o Domínio com o Bioma. No Domínio do Cerrado predomina o Bioma do Cerrado. Todavia, outros tipos de Biomas também estão ali representados, seja como tipos "dominados" ou "não predominantes" (caso das Matas Mesófilas de Interflúvio), seja como encraves (ilhas ou manchas de caatinga, por exemplo), ou penetrações de Florestas Galeria, de tipo amazônico ou atlântico, ao longo dos vales úmidos dos rios.” Diante disso, reforçamos que na presente investigação o enfoque se dedica ao tratamento dado ao bioma Cerrado nos livros didáticos de geografia brasileiros.

O Cerrado é entendido, de forma ampla, como um domínio fitogeográfico que detém uma biodiversidade bastante rica. É encontrado no interior brasileiro, abrangendo os seguintes estados: Bahia, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Minas Gerais, Piauí, Tocantins, além do Distrito Federal. Muitas vezes, tal domínio é menosprezado em relação a outros como a Mata Atlântica e a Amazônia brasileiras, em virtude da diversidade biológica destes últimos. Entretanto, o Cerrado possui diversas característica peculiares que devem ser valorizadas, conservadas e investigadas. A forma como o bioma Cerrado – que está inserido no domínio fitogeográfico de mesmo nome – é apresentado nos livros didáticos de geografia brasileiros constitui-se como o cerne da presente reflexão. Que leitura de Cerrado é feita nos livros didáticos do ensino fundamental? Quais os aspectos desse bioma são mais comumente evidenciados nos livros de geografia? No intuito de responder a tais questionamentos partimos da legislação brasileira, passando pelas diretrizes de ensino, chegando ao livro didático e, então, buscamos a abordagem do bioma Cerrado. O esquema a seguir sintetiza o caminho percorrido nesse estudo.

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Esquema 1: caminho da pesquisa.

Organizado por: COELHO, V. L.; MARQUES, L. M., 2013.

Acreditamos que o Cerrado deve ser abordado, nos livros de geografia, de forma crítica. Destaca-se que o tema está presen-te nos estudos do ensino fundamental, sobretudo no sétimo ano de escolaridade111, como afirma Bezerril e Faria (2003):

Observa-se que é um tema discutido principalmente em duas séries (5ª e 6ª) e por duas disciplinas (geografia e ciências), sendo tratado de modo descritivo, com redu-zida análise da diversidade biológica e cultural do bio-ma e dos impactos negativos causados por determinadas ações antrópicas. As principais dificuldades enfrentadas são a falta de sensibilização e conhecimento dos profes-sores em relação ao tema e a reduzida comunicação entre os órgãos de pesquisa e as escolas. (BEZERRIL; FARIA, 2003.p.19)

Segundo os autores, o Cerrado é abordado no ensino fun-damental de forma descritiva, tratando principalmente os aspec-

111 O sétimo ano de escolaridade é referente à 6ª série citada por Bezerril e Fa-ria. Está em destaque por ser o ano de escolaridade foco do presente trabalho.

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tos biológicos. Os aspectos culturais referentes ao bioma e aos impactos negativos causados pela ação do homem são tratados de uma maneira superficial. Na citação dos autores, observa-se uma real necessidade de se enxergar o Cerrado com olhos mais críticos, uma vez que nas últimas décadas percebe-se que ações como as queimadas, a redução de habitats naturais, a contamina-ção das águas, a erosão e compactação dos solos, além de ativi-dades agropecuárias, são exemplos do mau uso de seus recursos naturais, e de constantes ameaças de destruição do bioma. As inquietações observadas pelos autores citados servem como força motriz para a investigação proposta. Para realizá-la, utilizamos como metodologia a pesquisa bibliográfica, que tem como metas principais gerar, corroborar e/ou refutar novos conhe-cimentos a partir do pré-existente. Para isso, envolve-se a leitura, análise e interpretação de documentos científicos como livros, pe-riódicos, documentos oficiais, mapas, imagens, manuscritos, etc. Nesse sentido, Oliveira (2007) caracteriza a pesquisa bibliográ-fica como uma modalidade de estudo e análise de documentos de domínio científico. O autor entende a pesquisa bibliográfica como:

Estudo direto de fontes científicas, sem precisar recorrer diretamente aos fatos/fenômenos da realidade empírica. [...] o mais importante para quem faz a opção pela pes-quisa bibliográfica é ter certeza de que as fontes a serem pesquisadas já são reconhecidamente do domínio cientí-fico. (OLIVEIRA, 2007.p.69).

Caracterizada a pesquisa bibliográfica, entendemos que essa seja pertinente aos propósitos do presente trabalho, uma vez que os livros didáticos a serem analisados se encaixam nas reco-mendações da modalidade de pesquisa. Além disso, as análises que pretendemos fazer nos livros didáticos do ensino fundamental buscam provocar possíveis novos conhecimentos sobre tais recur-sos e tentar promover diálogos mais críticos sobre o Cerrado a partir da análise do tema no material utilizado/escolhido.

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Para a análise do Cerrado, primeira parte do trabalho que envolve a análise dos livros didáticos em nossa pesquisa, foram selecionados 6 livros destinados ao 7º ano de escolaridade do ensino fundamental, cujos quais compõem 6 coleções diferentes e foram publicados entre os anos de 2000 e 2009, por distintas editoras e diferentes autores. A escolha do material foi feita com base em nossa experiência em docência no ensino fundamental, inclusive no 7ª ano de escolaridade, além das inquietações quanto às problemáticas do Cerrado e o uso do livro didático. No mais, as coleções escolhidas são muito divulgadas pelas respectivas edito-ras e estão disponíveis nas bibliotecas das escolas estaduais onde já atuamos, o que remete ao entendimento de que esses livros fo-ram utilizados nessas escolas. Os livros selecionados, seguindo a ordem crescente de ano de publicação, estão elencados a seguir:

1. SENE, Eustáquio de.; MOREIRA, João Carlos. A geografia no dia-a-dia: 6ª série. São Paulo: Scipione, 2002. (Coleção Trilhas da Geografia).

2. ADAS, Melhem. Geografia, construção do espaço geográfi-co brasileiro: 7º ano. São Paulo: Moderna, 2006.

3. Projeto Araribá: Geografia. Organizadora: Editora Moderna. Editora responsável: Sônia Cunha de Souza Danelli. 2ª edição – São Paulo: Moderna, 2007.

4. BOLIGIAN, Andressa Turcatel Alves; [et al]. Geografia, es-paço e vivência: a organização do espaço brasileiro, 7ª ano. 3ª ed. Reformada. São Paulo: Atual, 2009.

5. SAMPAIO, Fernando dos Santos; MEDEIROS, Marlon Cló-vis. Para viver juntos: geografia 7ª ano: ensino fundamental. 1 ed. São Paulo: Edições SM, 2009. (Coleção Para Viver Juntos).

6. VESENTINI, José William; VLACH, Vânia. Geografia Críti-ca, o espaço brasileiro: 6ª série. São Paulo: Ática, 2009.

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A escolha das obras contemplou diferentes autores, edito-ras e anos de publicação. Nessa perspectiva, é importante lembrar que no ensino básico – que inclui os anos finais do ensino funda-mental – os livros são substituídos de tempos em tempos, obede-cendo a critérios estabelecidos pelo Governo brasileiro. Diante disso, foram selecionados, respectivamente, livros dos anos de 2000, 2006, 2007, 2009. Essa variedade se deve também ao pro-pósito da busca de uma maior quantidade de dados para análise e diferentes abordagens sobre o tema em questão. Após a seleção dos livros, elaboramos uma ficha com-parativa composta por alguns conteúdos chave. Foram elencados como principais focos de análise comparativa: os autores dos li-vros selecionados, as capas desses livros, e a distribuição de con-teúdos e/ou referências ao Cerrado no desenvolvimento das obras.

Da Lei ao Plano: LDB, PCN, CBC

Nas últimas décadas do século XX houve um aumento nas discussões sobre as mudanças no processo educativo e no siste-ma de ensino para acompanhar o acelerado mundo moderno. No esforço de seguir as exigências e tendências contemporâneas, o governo brasileiro apresentou, naquele período, um conjunto de propostas para atualizar/modernizar nosso sistema educacional (VIEIRA, 2002); (SHEIBE, 2002); (KUENZER, 1999). Sobretu-do a partir da década 1990, as propostas de reformas educacionais acontecem de acordo com as exigências do processo de globali-zação, do mundo do trabalho e das relações sociais. Tal cenário representa novos desafios para a escola, uma vez que as propostas estão pautadas em trazer para o ambiente escolar um ensino me-nos tradicionalista, voltado para a valorização das habilidades e competências, atitudes e valores, ou seja, voltado ao aprender a aprender, a ser e a conviver112.

112 No caso específico do ensino de Geografia, estas reformas estão rela-cionadas às novas relações entre o local e o global, redefinições do Estado Nacional, problemáticas geopolíticas, econômicas e ambientais impostas à sociedade do século XXI.

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As propostas para essa “nova escola” são amparadas por instrumentos legais, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educa-ção Brasileira (LDB), os Currículos Básicos Comuns (CBCs), os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), entre outros, inclusi-ve para o ensino fundamental. Tais instrumentos são elaborados com o objetivo de criar condições que permitam aos jovens terem acesso a um conjunto de conhecimentos socialmente reconheci-dos como necessários à formação escolar e ao exercício da cida-dania. Sobre a temática, o artigo 2º da LDB (Lei 9394/96) aponta:

A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade hu-mana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (Lei de Diretrizes e Ba-ses - LDB, 1996. Art. 2º).

Especificamente para o ensino fundamental, a LDB esta-belece objetivos pertinentes à estruturação do processo educativo, com destaque ao conjunto de conhecimentos necessários à forma-ção de cidadãos, conforme proposto no inciso II e III, do artigo 32º, seção III:

O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação bási-ca do cidadão, mediante:II - a compreensão do ambiente natural e social, do siste-ma político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade;III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilida-des e a formação de atitudes e valores; (Lei de Diretrizes e Bases - LDB, 1996. Art. 32º, itens II, III).

Além da LDB, existem os PCNs - Parâmetros Curricu-lares Nacionais, que de acordo com o ex-ministro da Educação (1995-2003), Paulo Renato Souza, “tem a intenção de ampliar e aprofundar um debate educacional que envolva escolas, pais,

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governos e sociedade e dê origem a uma transformação positiva no sistema educativo brasileiro”. (BRASIL, 1998. p.5). Diante desses apontamentos, destacam-se alguns objeti-vos fundamentais dos PCNs, relacionados às proposições do ex-ministro.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais indicam como ob-jetivos do ensino fundamental que os alunos sejam capa-zes de:• Posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar deci-sões coletivas;• Conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais, materiais e culturais como meio para construir progressivamente a noção de identidade na-cional e pessoal e o sentimento de pertinência ao país;• Perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente, identificando seus elementos e as interações entre eles, contribuindo ativamente para a melhoria do meio ambiente; (BRASIL, 1998. p.7-8).

Dentre os objetivos citados, destacam-se o posicionamen-to crítico a se estimular no aluno quanto a questões como a noção de identidade nacional, a compreensão do território brasileiro e a sua relação com o ambiente no papel de agente dependente e transformador. Todavia, para se buscar esse posicionamento no ensino fundamental, não bastam as intenções, é preciso também ter sub-sídios que garantam o alcance dos objetivos propostos. Para isso, foram elaborados os CBCs, cujo objetivo principal é distribuir os conteúdos estudados no ensino básico em eixos temáticos e tópi-cos, relacionando-os às competências e habilidades necessárias ao desenvolvimento e compreensão dos temas abordados em sala de aula. Quanto aos CBCs, a ex-secretária de Educação do Estado de Minas Gerais (2003-2011), Vanessa Guimarães Pinto, destaca:

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A importância dos CBCs justifica tomá-los como base para a elaboração da avaliação anual do Programa de Avaliação da Educação Básica (PROEB) e para o Pro-grama de Avaliação da Aprendizagem Escolar (PAAE) e para o estabelecimento de um plano de metas para cada escola. O progresso dos alunos, reconhecidos por meio dessas avaliações, constitui a referência básica para o estabelecimento de sistema de responsabilização e pre-miação da escola e de seus servidores. Ao mesmo tempo, a constatação de um domínio cada vez mais satisfatório desses conteúdos pelos alunos gera consequências posi-tivas na carreira docente de todo professor. (MINAS GE-RAIS, s/d, p. 9).

Entretanto, acreditamos que para a constituição desse perfil escolar, de estudantes colaboradores de seu próprio apren-dizado, principalmente no ensino fundamental, seja necessária a revisão de práticas ligadas ao ensino e aprendizado no ambiente escolar. E, mais do que isso, revisões sobre a ordenação dos conte-údos estudados nos recursos didático-pedagógicos, com destaque nos livros didáticos, utilizados nas escolas de ensino fundamental, sobretudo as públicas. É importante notar, nesse contexto, que até 1990 a preo-cupação quanto à qualidade dos livros didáticos era mínima, o que mudou efetivamente a partir de 1993 com a criação uma comis-são de especialistas encarregada de avaliar a qualidade dos livros mais solicitados ao Ministério da Educação e Cultura (MEC), e cujo objetivo é estabelecer critérios gerais para a avaliação das novas aquisições. Essa comissão faz parte do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do Governo Federal, que tem como proposta promover um ensino de qualidade a partir da avaliação do livro didático, apresentando um projeto pedagógico difundido por meio dos PCNs e da elaboração de Guias do Livro Didático. A avaliação dos livros didáticos dos anos finais do ensino fundamental ocorreu apenas a partir de 1999, e, mesmo assim, houveram ressalvas em alguns pontos do processo, como na es-colha da equipe de avaliação, na falta de diálogo entre os avalia-dores, docentes e instituições que utilizavam o material, além da

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113 NReferimo-nos aos livros de 5ª a 8ª séries avaliados a partir de 1999.

falta de critérios científicos e pedagógicos para o processo. Ve-sentini (1999) se pronuncia sobre essas advertências ao ser ques-tionado quanto à avaliação dos livros de 5ª e 8ª113 séries realizadas pelo MEC:

Por um lado sou a favor da avaliação de livros didáticos em geral, por equipes de educadores/geógrafos, com a indispensável participação dos que usam os manuais na sala de aula (pois é no uso que o livro didático revela as suas características fundamentais), com diálogo e aber-tura à pluralidade metodológica. Acho isso indispensável para o aprimoramento desse instrumental tão importan-te em qualquer sistema escolar moderno. Só que nesse processo específico ocorreram verdadeiros absurdos, [...] Não houve transparência, diálogo com autores, com universidades ou centros de pesquisa, nem mesmo com o professorado em geral. [...] essa equipe resolve dar es-trelas para alguns manuais e eliminar outros, a partir de critérios arbitrários e sem fundamentos científicos ou pe-dagógicos. [...] Pois é: se exclui (ou seja, os professores foram proibidos de adotar) uma série de manuais, consi-derados aí praticamente todos os autores inovadores e críticos, que por diferentes caminhos tentaram construir uma geografia escolar preocupada com a cidadania ple-na do aluno. [...] Em suma, foi uma avaliação equivocada e autoritária, que mais atrapalha do que ajuda o profes-sorado na árdua tarefa de melhorar o ensino de geogra-fia. (VESENTINI, 1999. p. 28-30).

Todavia, bom ou ruim, nota-se que o livro ainda é efeti-vamente utilizado nas salas de aula, e de certa forma tem um im-portante papel no processo educativo. Para reforçar essa crença, recorremos a Vlach (1991) que reconhece a suscetibilidade dos recursos didáticos para a interpretação e conhecimento da realida-de pelo estudante. A autora reforça:

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O livro didático tenta homogeneizar a aprendizagem, o que explica a abstração das contradições da sociedade brasileira em suas páginas, de certa maneira também en-frentadas pela população escolar, e em que se encontra amplamente disseminada pelo tecido social uma dada imagem da Geografia (VLACH, 1991, p. 86-87).

Ainda sobre a ampliação do conhecimento por meio do uso do livro didático, Shaffer (1999), acrescenta:

O uso do livro didático está associado a uma função so-cial e pedagógica relevante: a construção do conheci-mento através do trabalho com o texto impresso, o que permite a ampliação deste universo de conhecimento. (SHAFFER, 1999 p.133).

É importante, contudo, relembrar que há divergências de opiniões em relação ao uso desse tipo de material. Apesar de ser o recurso mais utilizado pelos professores em sala de aula como contribuinte para conhecimento, são considerados, por um lado, como único instrumento de aprendizagem amplamente disponí-vel, dispensável com a utilização de outros recursos pedagógicos, e, por outro, como uma ferramenta de auxílio indispensável no processo de ensino, sendo insubstituível. Cabe ressaltar, ainda, que a apresentação de seus conteúdos e significados exige aten-ção, método e disciplina, tanto do docente como do discente.

Do Plano ao Livro: o Cerrado no Livro Didático

Diante de tantas ansiedades quanto a uma nova perspec-tiva de ensino e aprendizagem e tendo os livros didáticos como principal recurso pedagógico disponível, tem-se a seguinte per-gunta: como o Cerrado é abordado nos livros de geografia do En-sino Fundamental? Para a realização das análises das obras escolhidas, inves-tigamos, primeiramente, a formação dos 16 autores que redigiram os conteúdos de geografia. Além disso, pesquisamos as institui-ções de formação desses autores, sua atuação como docentes no ensino básico e os estados brasileiros onde atuavam no período da publicação dos livros. Com finalidade de quantificar e melhor

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visualizar os dados coletados foram elaborados quatro gráficos (dispostos a seguir). É importante lembrar que os dados coletados e utilizados para a elaboração dos gráficos, assim como das de-mais análises, se restringem às informações registradas nos livros analisados. Para iniciar a apreciação dos dados, apresentamos os grá-ficos 1 e 2, sobre a formação acadêmica e as instituições de for-mação dos autores dos livros analisados.

Gráfico 1: formação acadêmica dos autores.Organizado por: COELHO, V. L.; MARQUES, L. M., 2013.

Gráfico 2: instituições acadêmicas de formação dos autores.Organizado por: COELHO, V. L.; MARQUES, L. M., 2013.

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Observamos, no gráfico 1, que a maior parte dos autores que contribuíram para a elaboração dos livros analisados possuem título de Mestre e/ou Doutor. Nota-se, também, que há partici-pação de autores formados em outros cursos (que não a geogra-fia), mas consideramos não ser necessário nomeá-los devido a sua pequena porcentagem. A primeira análise nos leva a crer na boa qualidade do material a produzido por eles, uma vez que a maioria possui cursos de pós-graduação stricto sensu, o que caracteriza, em teoria, um compromisso com pesquisas acadêmicas e a forma-ção continuada. Já no gráfico 2, são apresentadas as instituições onde se especificou, de acordo com o disposto nos livros anali-sados, a formação inicial e/ou continuada dos autores participan-tes. Nota-se, nesse gráfico, que mais de dois terços dos autores tiveram sua formação inicial e/ou continuada em Universidades de São Paulo, e os demais a tiveram em Universidades em Santa Catarina e do Paraná. Tais dados reforçam que a maior parte dos autores possui influências paulistas no que se refere à sua for-mação, e que não foram constatados dados sobre influências de Universidades mineiras sobre essas referências. Tal ponderação se deve ao fato dos livros analisados terem sido usados em esco-las públicas de Minas Gerais, e levando-se em consideração esse fato, acreditamos que seja possível haver o que vamos chamar aqui de “influência regional” na formação desses autores. Ou seja, acreditamos que possa haver, por parte dos autores, um maior de-talhamento do que está mais próximo de sua realidade, como por exemplo, o ambiente de Mata Atlântica, comum no Estado de São Paulo e menor detalhamento daquilo que está mais distante, como por exemplo, o ambiente de Cerrado, predominante no interior central do país. Essas “influências regionais” podem também ser destacadas a partir da análise de outros dados, como os dispostos nos gráficos 3 e 4 sobre a atuação docente desses autores e os Es-tados em que eles atuavam no período da publicação dos livros.

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Gráfico 3: áreas de atuação docente dos autores.Organizado por: COELHO, V. L.; MARQUES, L. M., 2013.

Nota-se, no gráfico 3, que mais de dois terços dos auto-res dos livros analisados atuavam, no período de publicação dos livros, como professores do ensino básico, incluindo os anos fi-nais do ensino fundamental, nas redes de ensino públicas e priva-das. Em contrapartida, menos de um terço dos autores atuavam no ensino superior e/ou em cursos pré-vestibulares. Há também a participação de autores que nesse período não atuavam como professores.

Gráfico 3: Estados de atuação docente dos autores.Organizado por: COELHO, V. L.; MARQUES, L. M., 2013.

Não atua como professor 6%

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Levando-se em consideração a parcela que trabalhava como docente no período indicado, e comparando seus dados com o gráfico 4, notamos que mais da metade dos autores docen-tes compunham a rede de professores do Estado de São Paulo. Apesar de uma grande porcentagem de autores não declarar seu Estado de atuação como docentes, as demais Unidades Federati-vas presentes no gráfico (Paraná e Minas Gerais) apresentam uma participação muito baixa em relação à atuação de autores em São Paulo. De acordo com essas informações, reforçamos a idéia da influência regional, pois, principalmente no ensino fundamental, o processo de ensino, com destaque à Geografia, pode ser mais bem concretizado utilizando-se dos recursos disponíveis, como o livro didático, reforçados por uma leitura do cotidiano e da reali-dade dos estudantes, nesse caso os estudantes do Estado de São Paulo. Tal posicionamento é convalidado quando nos apoiamos na evolução do currículo de geografia, com base nos PCNs. De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais,

A Geografia tem que trabalhar com diferentes noções espaciais e temporais, bem como com os fenômenos so-ciais, culturais e naturais que são característicos de cada paisagem, para permitir uma compreensão processual e dinâmica de sua constituição. Identificar e relacionar aquilo que na paisagem representa as heranças das su-cessivas relações no tempo entre a sociedade e a natureza é um de seus objetivos (BRASIL, 1997, p. 6).

O instrumento reforça ainda para o ensino de geografia que:

Assim, o ensino de Geografia, de forma geral, é realizado através de aulas expositivas ou da leitura dos textos do livro didático na sala de aula, o professor pode planejar essas situações considerando a própria leitura da paisa-gem, a observação e a descrição, a explicação e a intera-ção, a territorialidade e a extensão, a análise e o trabalho com a representação do espaço. (BRASIL, 1997, p. 23).

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Consideramos que há uma relação entre os dados anali-sados sobre os autores e os textos retirados dos PCNs, no sentido de justificar o que caracterizamos anteriormente como “influência regional”. Levando em conta que os PCNs sugerem que o ensino de geografia seja mais bem concretizado com base nas noções ca-racterísticas das paisagens naturais, sociais e culturais, atribuídas ao intermédio do professor e o uso do livro didático, concordamos que essa mediação seja mais bem trabalhada através dessas no-ções, em espaços que compõe a realidades dos estudantes. Com base nos dados analisados, observamos que os autores, de forma geral, em sua formação inicial e/ou continuada, tiveram influên-cias de Universidades de São Paulo como a USP, UNESP, Uni-versidade Paulista e PUC/SP, e a maioria deles atuava, no período de publicação dos livros, como professores do ensino básico em escolas públicas e privadas do mesmo Estado. Dando continuidade ao trabalho, analisamos as capas dos livros selecionados. Para isso, optamos por fazer uma leitura vi-sual dos detalhes que compõe a arte de capa, principalmente no que diz respeito aos textos e imagens. Acreditamos ser muito im-portante observar esses pontos, pois eles representam a “porta de entrada” do recurso em questão, além de chamar a atenção pelas ilustrações e/ou imagens. O conteúdo das capas, na maioria dos casos, remete a alguns dos principais temas a serem estudados nos livros. Após a leitura visual, buscamos detalhar as características apresentadas, tentando expressar, por meio de textos explicativos, nossa visão sobre elas, inclusive para verificar se, de forma subje-tiva, existem nesses exemplares alguma referência ao Cerrado. Apresentamos a seguir as imagens das capas e os textos explicativos para cada uma delas.

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LIVRO OBSERVAÇÕES

LIVRO 1

Autores: SENE, E.; MOREI-RA, J. C.Ano de publicação: 2002Editora: SCIPIONE

Entendemos que as imagens estão bem articuladas ao título do livro “Trilhas da Geogra-fia” e seu subtítulo “o passa-do e o presente na geografia”. As imagens representam bem essa relação. Entretanto, não percebemos nenhuma relação ou referência ao Cerrado.A capa do livro 1 foi elabo-rada a partir da montagem de duas imagens principais, for-mando duas linhas de monta-gem de globos terrestres. Na imagem superior uma produ-ção tradicional, manual, em que funcionárias, todas do gênero feminino, colam e pin-tam os continentes nos globos. Na imagem inferior, a mesma produção de globos, porém num processo modernizado e com pouca presença humana, que parece participar em uma função mecanizada, apenas de empacotamento. Nota-se que nas duas imagens os trabalha-dores são mulheres.

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LIVRO 2

Autor: ADAS, M.Ano de publicação: 2006Editora: Moderna

Ao analisarmos a capa do li-vro 2, notamos uma limpeza e fluidez visual. Há uma boa distribuição dos textos com a imagem, que retrata a ponte JK em Brasília, DF, e o mo-vimento de carros no início da noite. Ao fundo percebem-se as luzes da cidade e do lado direito uma árvore que com-pleta o cenário. O título do livro “Geografia” junto ao subtítulo “Construção do es-paço geográfico brasileiro” é entendido pela interpretação da imagem da capital plane-jada do Brasil. Esse cenário também é típico pela posição geográfica de Brasília, situado no planalto central, onde pre-domina o ambiente de Cerra-do. Com base nisso, podemos considerar que esta capa pode, subjetivamente, remeter o lei-tor ao tema Cerrado, conside-rando importante a atuação do professor para o entendimento dessa interpretação por parte dos estudantes.

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LIVRO 3

Organizadora: Editora Mo-dernaAno de publicação: 2007Editora: Moderna

A capa do livro 3, em nos-sa opinião, é a mais confusa dentre os livros analisados. A imagem traz um artefato egíp-cio sobre um fundo azul e rosa em curvas. Na capa não há um subtítulo específico para cada ano de escolaridade, o que, para nós, dificulta a interpre-tação do que vai ser estudado no livro. Na parte superior, é disposto o nome da coleção, “Projeto Araribá”, mas não se nota a relação do nome do projeto com outros elementos que compõe a arte. Com essa capa, acreditamos que não há nenhuma possibilidade do lei-tor fazer qualquer tipo de rela-ção com o Cerrado.

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LIVRO 4

Autor: BOLIGIAN, L.; et. all.Ano de publicação: 2009Editora: Saraiva

Nas análises do livro 4, obser-vamos que apesar do excesso de informações, ela é muito interes-sante. A articulação dos textos com a imagem é boa, as cores não poluem a arte e os contornos da imagem fazem referência ao formato da Terra. O circulo da imagem é dividido em duas par-tes. No lado esquerdo notam-se vários carros de bois em uma es-trada não pavimentada. Ao fun-do, percebe-se uma paisagem comum nos ambientes de Cer-rado, sobretudo em Minas Ge-rais, com vegetação seca e terra vermelha com poeira (caracte-rístico dos latossolos – bastante observados no bioma Cerrado). No lado direito da imagem, po-demos observar um cruzamen-to entre rodovias pavimentadas suspensas sobre uma ferrovia, paisagens comuns a ambientes urbanos mais desenvolvidos no Brasil, como São Paulo, por exemplo. É interessante obser-var que a linha que separa as duas imagens forma um rosto humano. Ao perceber esse deta-lhe a composição total da ima-gem evidencia fortemente o títu-lo do livro “espaço e vivência”. Dois estilos de vida diferentes, mas que caracterizam a mesma nação. Além disso, nessa capa, assim como na capa do livro 2, pode-se subjetivamente relacio-ná-la a um ambiente típico de Cerrado. Contudo, novamente ressaltamos a importância da mediação do professor para tal interpretação por parte dos estu-dantes.

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LIVRO 5

Autor: SAMPAIO, F. S.; MEDEIROS, M. C.Ano de publicação: 2009Editora: Edições SM

A capa do livro 5 possui di-ferenças consideráveis frente aos outros livros analisados. Primeiro, o conjunto suave das cores branco e rosa bem distribuídos, depois pela ima-gem central desenhada e não em forma de fotografia. Além disso, a disposição vertical do título “geografia” fica menos visível que o nome da cole-ção “Para Viver Juntos” que está no canto superior direito do livro, marcando a padro-nização dos livros didáticos da coleção/editora. Não no-tamos nenhuma relação com o nome da coleção e o con-teúdo proposto para o estu-do no mesmo. Também não há subtítulos distintos a cada ano de escolaridade. Quanto à imagem central, que retrata um tipo de forte com um farol, não percebemos relações sig-nificantes para a compreensão do conteúdo do livro, e nova-mente, não percebemos nada que pudesse relacionar a capa ao tema Cerrado.

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LIVRO 6

Autor: VESENTINI, J. W.; VLACH, V.Ano de publicação: 2009Editora: Ática

No livro 6 tivemos como pri-meira impressão a imagem de uma criança em um ambiente tipicamente pobre, um barra-cão, ou uma casa sem acaba-mento. Entretanto, na segun-da vista, nota-se a nitidez da parte frontal da foto, contendo garrafas e potes com arte em areia colorida. São imagens de paisagens de praia e veleiros. A composição da imagem, com a criança que parece estar montando um pote, e a nitidez de potes já prontos, nos reme-te a pensar na Região Nordes-te, completando o sentido do título “Geografia Crítica” ao subtítulo “o espaço brasilei-ro”. Quanto ao tema Cerra-do, não encontramos nenhum elemento na capa que pudesse levar o leitor a relacioná-la a ele. Aqui há uma quebra do que chamamos de “influências regionais” do eixo Rio-São Paulo. Mostra as contradições de um país que detém belas paisagens e grandes desigual-dades econômicas.

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Feitas as devidas análises nas capas dos livros seleciona-dos, percebemos que nenhum deles faz referências diretas ao Cer-rado, e que, mesmo indiretamente, somente dois dos livros ana-lisados (livro 2 e livro 4) fazem referência ao bioma. Entretanto, notamos também que nas capas onde o Cerrado é percebido, há uma necessidade de mediação do professor para tal percepção. Continuando as análises dos livros selecionados para a apreciação dos dados referentes ao Cerrado, escolhemos três pon-tos-chave em meio a conteúdos comuns em todos os livros. São eles: a formação do território brasileiro e o processo de urba-nização brasileira; a produção agrícola e industrial no Brasil, e a regionalização do espaço geográfico brasileiro. Esses pon-tos-chave foram escolhidos por apresentarem:- textos que fazem referência direta ou indireta ao Cerrado, - imagens e mapas que caracterizam o bioma, - possibilidade de articulação do bioma com as questões ambien-tais. As análises foram feitas por meio de uma leitura detalha-da dos livros selecionados, página a página. Os resultados estão dispostos a seguir. Com relação ao ponto-chave que trata da formação do território brasileiro e do processo de urbanização, a maior parte dos livros dá ênfase ao crescimento das cidades e ao pro-cesso de urbanização brasileiro. É caracterizado, de forma geral, o desenvolvimento das grandes cidades do país, com maior foco em São Paulo e Brasília. Notamos que apesar de haverem refe-rências a outros estados, São Paulo e o Distrito Federal, recebem maior destaque em todos os livros. Nesse sentido, o que mais nos chamou a atenção foram as percepções feitas nas obras sobre a formação de Brasília. De forma geral, eles tratam da importância da construção da capital brasileira e de seu valor econômico e cul-tural, além da simbologia da modernização e desenvolvimento do país. Nota-se uma intensa explanação sobre a transformação do espaço, sobretudo das mudanças na paisagem durante o processo de construção da capital. Todavia, raramente essas alusões fazem

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referências diretas ao Cerrado, o que distancia, de certa forma, as influências dessa construção, sobretudo na modificação da paisa-gem do Cerrado, e suas implicações ambientais. Selecionamos no livro 1 um fragmento da página 18, que retrata bem o foco dado à modificação da paisagem em Brasília. A legenda, que trata do aeroporto de Brasília, cita o Cerrado, no entanto o texto do livro não desenvolve o assunto

Fonte: SENE; MOREIRA, 2002, p. 18.

Outro exemplo está no livro 2, página 124, capítulo 9, onde é destacada uma imagem da cidade de Goiás em 2005. Ob-serva-se que no fundo da imagem o Cerrado é evidente, apesar de não existirem notas sobre ele e nem sê-lo mencionado na legenda da foto.

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Fonte: ADAS, 2006, p. 124.

Quanto ao ponto-chave que trata dos conteúdos referentes à produção agrícola e industrial brasileira, os livros ressaltam a implantação de modernas técnicas de agricultura no país, princi-palmente no Centro-Oeste, onde há predominância de ambientes cerradeiros. Não observamos muitas descrições específicas sobre o bioma, entretanto, notamos grande foco desses livros na carac-terização dos impactos sociais e ambientais relacionados ao Cerra-do. Os impactos sociais, todavia, são caracterizados na maior parte dos livros como positivos, no sentido de qualificação do trabalho e a tecnificação no campo. Os impactos ambientais, por outro lado, recebem mais características negativas, relacionadas à degradação dos solos, desmatamento de áreas naturais do Cerrado para cons-trução de usinas hidrelétricas, carvoarias, entre outros. Percebemos também que a maioria dos livros analisados traz várias relações en-tre a modificação do território e da paisagem pelas atividades de mineração e cafeicultura, sobretudo no Sudeste, onde há presença de ambientes de Cerrado. Além disso, notamos que grande parte dos livros analisados menciona as áreas de Cerrado como produto-ras em potencial do café. Todavia, não encontramos apontamentos sobre a degradação desse bioma em função da atividade.

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Em relação ao ponto-chave que trata da regionalização do espaço geográfico brasileiro, notamos uma maior abordagem sobre o Cerrado. Isso se justifica porque para o ensino fundamen-tal, uma parte dos livros é dedicada somente a estudos sobre as regiões brasileiras, inclusive o Centro-Oeste e o Sudeste, onde os ambientes de Cerrado estão mais evidentes. Mesmo havendo uma maior explanação sobre o Cerrado nessa parte dos livros, observamos que sua exposição é meramen-te fisiográfica, ou seja, os livros dão ênfase à caracterização físi-ca/natural dos ambientes, destacando o clima, fauna, flora, entre outros. As características sociais, culturais, políticas e econômi-cas são deixadas em segundo plano. Notamos, ainda, que em al-guns livros o ponto-chave “regionalização do espaço geográfico brasileiro” evidencia outros biomas como o de Mata Atlântica, destacando-o como uma área de grande potencial turístico, carac-terística ignorada quando se trata do Cerrado. Apesar disso, em al-gumas obras analisadas, percebemos que há citações de vantagens na preservação do Cerrado, com foco em sua biodiversidade. Na maior parte das obras existem imagens que destacam o Cerrado como ambiente natural. Geralmente elas enfocam vege-tação em detrimento da fauna. Como exemplo, selecionamos na página 234, do livro 2, uma imagem sobre o domínio do Cerrado no Parque Nacional das Emas, em Goiás, e no livro 6, página 150, outra representação do Cerrado na Chapada os Guimarães, no Mato Grosso. Essas imagens conseguem caracterizar parte do bioma, mas não demonstram sua diversidade.

Fonte: ADANS, 2006, p. 234; e VESENTINI, 2009, p. 150. (Res-pectivamente).

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Também destacamos no livro 4, página 18, outro exemplo que ilustra bem essa situação. Dentro de um texto complementar sobre a BR 153 (Transbrasiliana), como rota da pluralidade do Brasil, o livro traz uma montagem retratando a rodovia que atra-vessa o Brasil do Rio Grande do Sul ao Pará. Nessa montagem, aparecem fotos de várias paisagens que caracterizam a pluralida-de do país, mas novamente a imagem fica restrita à vegetação (em detrimento da fauna).

Fonte: BOLIGIAN, 2009, p. 18.

Notamos ainda, que em grande parte das imagens onde se percebe o Cerrado, ele é apresentado como plano de fundo, ou em situações que coincidentemente ele apareça, ou seja, não há discussões ou apontamentos diretos sobre o bioma em questão. Além das imagens fotográficas, observamos que em todos

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os livros existem mapas da espacialização do Cerrado. A repre-sentação do bioma a partir de material cartográfico se dá princi-palmente com mapas de vegetação, e em alguns produtos que tra-tam das características morfoclimáticas e ambientais brasileiras. Selecionamos um exemplo no livro 2, páginas 53 e 54, onde são dispostos dois mapas de vegetação natural do Brasil – primitiva ou original e contemporânea.

Fonte: ADAS, 2006, p. 53-4.

Na imagem percebe-se o Cerrado, mas não há notas sobre ele, ou que o caracterize, problema comum a outras imagens por nós analisadas.

Considerações finais

Diante do exposto, consideramos que as análises pro-postas podem contribuir para uma melhor compreensão acerca da percepção do Cerrado nos livros didáticos. Entendemos que há, em todos os livros investigados, conteúdos que possibilitam a percepção do bioma de diversas formas, em meio aos textos, ima-gens, seções complementares e mapas. Entretanto, observamos que mesmo estando dispostos nos conteúdos dos livros, há, em muitos casos, uma subjetividade na interpretação do Cerrado, uma

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vez que nos textos não percebemos explicações mais detalhadas das características do bioma, assim como não observamos uma reflexão mais projetada sobre os impactos sociais e ambientais que o afetam. Nas imagens e mapas onde percebemos o Cerrado, notamos também essa subjetividade, pois, nas suas disposições ele aparece geralmente como plano de fundo sem caracterizações mais detalhadas. Isto se aplica também às capas analisadas. Diante disso, acreditamos que a abordagem sobre o Cer-rado deve ser reforçada nos livros didáticos, dada sua importância e abrangência no território brasileiro. E ainda consideramos que independente do conteúdo, é necessária uma efetiva articulação entre os docentes e os estudantes na utilização dos livros didáti-cos, para que haja um melhor aproveitamento desse recurso, pois ainda são os mais utilizados no processo educativo e um dos prin-cipais aportes para o conhecimento disponível em todas as esco-las.

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