autopoiese e subjetividade

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AUTOPOIESE E SUBJETIVIDADE - SOBRE O USO DA NOO DE AUTOPOIESE POR G. DELEUZE E F. GUATTARI

Virginia Kastrup*Resumo:O texto analisa algumas transformaes sofridas pela noo de autopoiese quando de sua transposio de um campo cientfico - a biologia do conhecimento - onde foi formulada por H. Maturana e F. Varela, para a filosofia de G. Deleuze e F. Guattari, quando utilizada para pensar o problema da produo da subjetividade.Palavras-chave: autopoiese - subjetividade - auto-criao

Abstracts:The text analysis some changes of the notion of autopoiesis when it crosses over the boundaries of science - the biology of knowledge - where it is formulated by H. Maturana e F. Varela, to be used by G. Deleuze e F. Guattari, in the context of philosophy, to think the problem of the production of subjectivity.Key-words: autopoiesis - subjectivity - auto-creation

O ponto comum: o criacionismo

A noo de autopoiese foi formulada pela primeira vez na dcada de setenta por dois bilogos chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela. Surge, portanto, como uma noo cientfica, apoiada em trabalhos no campo da neurologia e da imunologia. A partir da, extrapola o domnio da biologia e desperta interesse em outros domnios, como o das cincias da cognio em geral, em particular o da psicologia, e o da filosofia contempornea. Neste momento procuraremos analisar o interesse que suscita em G. Deleuze e F. Guattari, que extraem da noo de autopoiese uma dimenso filosfica e dela se utilizam para pensar a questo da produo da subjetividade.Antes de examinar as implicaes de sua introduo no pensamento de Deleuze e Guattari preciso identificar qual a novidade que a noo de autopoiese porta em relao tradio biolgica, pois a encontra-se a chave para o entendimento de sua dimenso filosfica. Em relao a este ponto, verifica-se que a noo de autopoiese formulada por Maturana e Varela frente exigncia que se impem de recolocar o problema primordial da investigao biolgica, ou seja o que define os seres vivos enquanto tais. Recolocar o problema significa suspender, ou melhor, questionar a soluo dominante na poca, que consistia em definir os seres vivos como sistemas de tratamento de informao, como mquinas cibernticas. A novidade de Maturana e Varela propor o entendimento dos seres vivos como estando em constante processo de produo de si, em incessante engendramento de sua prpria estrutura. A concepo do organismo como um sistema de entradas e sadas deixa de fora o aspecto de auto-criao permanente que , para os autores, aquilo que torna o objeto da biologia distinto do das demais disciplinas. certo que a biologia sempre admitiu o carter histrico, de transformao dos organismos. Pode-se constatar que a biologia, que surge no sculo XIX, distinta da taxonomia clssica, que entendia os seres vivos como participando das leis gerais do ser. Foi a criao da noo de vida, bem como a delimitao das grandes funes vitais, que marcou a emergncia da cincia biolgica. Segundo Foucault, "a vida se torna uma fora fundamental que se ope ao ser como o movimento imobilidade, o tempo ao espao, o querer secreto manifestao visvel" . Embora na poca no exista ainda uma histria dos seres vivos como a teoria da evoluo vir apresentar, o organismo entendido por Cuvier a partir das condies de vida, que so, ao mesmo tempo, as condies que lhe permitem ter uma histria. Para Foucault, a teoria darwinista da evoluo apenas desenvolver esta relao indissocivel entre o ser vivo e a histria que j se encontra presente nas formulaes de Cuvier.Diferentemente da fsica, que teve que esperar tres sculos para que a questo do tempo fosse incorporada atravs dos estudos da termodinmica, a biologia sempre trabalhou com a dimenso temporal de seu objeto. No entanto, o que torna inovadora a obra de Maturana e Varela o fato dela conceber um processo de transformao do vivo muito mais radical, do qual o evolucionismo no d conta. Isto porque a teoria da evoluo teoria da evoluo das espcies, operada atravs de seus representantes, os organismos concretos. O que estes autores pem em questo a noo mesma de um organismo dado, sobre o qual incidiriam transformaes. A recusa de todo dado, organismo ou meio, que funcione como fundamento da transformao.Maturana e Varela restauram o criacionismo, inimigo mortal que o evolucionismo pretendia ter para sempre eliminado da biologia. Atravs destes autores o criacionismo ressurge, mas trata-se agora de um criacionismo ateu, sem instncia criadora: auto-criao, auto-posio, autopoiese. justamente esta modalidade de criacionismo que desperta o interesse de Deleuze e Guattari. No entanto, Maturana e Varela pensam a criao a partir do ponto de vista da cincia biolgica. Ainda que inovando, seu estudo incide sobre os seres vivos, limitados por condies de sobrevivncia. Afirmam que ela ocorre sem qualquer sistema prvio, sem nada que lhe sirva de fundamento, sem o primado do organismo, do meio ou do cdigo, mas ela ter sempre na sobrevivncia o seu limite. Tal processo pode ser dito incessante, mas no infinito, posto que relativo vida de cada sistema autopoitico. O fato de suspenderem qualquer origem ou fundamento do vivo torna sua sobrevivncia precria, sem garantia, incerta, mas no elimina sua condio de limite da criao, da autopoiese.Tomando como eixo de anlise a distino entre cincia e filosofia proposta por Deleuze e Guattari, procuraremos mostrar que o uso que fazem da noo de autopoiese significa um salto, uma mudana de plano, posto que cincia e filosofia constituem duas formas distintas e independentes de pensamento, irredutveis uma outra. Nosso objetivo analisar de que maneira ocorreu a intercesso entre estas duas formas de pensamento. Interessa apontar quais as transformaes sofridas pela noo de autopoiese quando de sua passagem de um plano cientfico de referncias para um plano filosfico. Importa apontar ainda sua utilizao na expresso do conceito de subjetividade e alguns de seus efeitos sobre a clnica. Enfim, trata-se de um exame do devir filosfico de uma noo cientfica e de algumas consideraes acerca dos efeitos entre a filosofia e a cincia. Mas para isto preciso, em primeiro lugar, identificar o que justifica denominar cientfico o trabalho de Maturana e Varela.

Biologia do conhecimento: a autopoiese como funo

Quando a finalidade analisar o que caracteriza como cientfico o trabalho de Maturana e Varela, preciso dizer que no nossa preteno avaliar seus resultados ou seu xito cientfico, mas destacar aquilo que, em seu projeto de pesquisa e na rede conceitual que forjam para empreend-lo, constitui a marca de sua inscrio no campo cientfico.Tomando Deleuze e Guattari como eixo de anlise, devemos em primeiro lugar situar a cincia como uma entre trs formas de pensamento, sendo as outras duas a filosofia e a arte. O pensamento, de modo geral, caracteriza-se por um duplo movimento: contra o senso comum e de afrontamento do caos, definido menos como desordem ou acaso do que como velocidade infinita. A cincia, enquanto forma de pensamento, distingue-se por uma maneira particular de abordar o caos. Em primeiro lugar, por lhe impor limites, renunciando ao caos infinito e traando um plano de referncias a partir do qual ele ser pensado. Em segundo lugar, e como desdobramento do primeiro ponto, trabalha com variveis independentes que ela busca coordenar. Em terceiro lugar, ela estuda mistos espao-temporais e determina estados de coisas sobre os quais incide sua investigao. Por fim, o conhecimento gerado sempre a partir de um observador parcial, o que significa dizer que o conhecimento cientfico sempre busca de uma verdade em certas condies de observao, verdade do relativo e no do absoluto. Todas estas caractersticas remontam primeira, ou seja, ao fato da cincia impor limites ao caos. Citamos Deleuze e Guattari: a cincia "procura dar referncias ao caos, com a condio de renunciar aos movimentos e velocidades infinitas, e de operar, de sada, uma limitao da velocidade" . O que caracteriza a filosofia, ao contrrio, buscar conceitos consistentes sem abrir mo da velocidade infinita.Quando examinamos a noo de autopoiese tal como formulada por Maturana e Varela, verificamos que ela uma funo cientfica e no um conceito filosfico. Evidencia-se logo de incio que, embora os seres vivos caracterizem-se pela incessante produo de si mesmos e pelo contnuo engendramento de suas fronteiras, tal movimento no pode ser concebido dissociado de uma contrapartida, a sobrevivncia do organismo. A biologia da autopoiese trabalha, assim, com dois eixos: o eixo da criao e o eixo da sobrevivncia. na coordenao destes dois eixos que encontramos a chave de sua localizao no domnio cientfico.H uma novidade nesta coordenao, ou seja, na introduo de um eixo de criao. Em trabalho anterior analisamos a crtica desenvolvida por Maturana e Varela ao modelo computacional, apresentado como prottipo da concepo estruturalista da cognio. A via da argumentao foi a distino entre mquina ciberntica e mquina autopoitica. Naquele momento o acento recaiu sobre as diferenas entre as mquinas, a primeira funcionando como sistema fechado e a segunda funcionando como sistema auto-produtivo. A diferena anteriormente destacada situa-se no interior de uma problemtica epistemolgica, por tratarem-se de modelos cientficos concorrentes. S a partir desta situao parece justificado falar em ultrapassamento da concepo ciberntica pela concepo autopoitica.Dando continuidade comparao anterior, preciso sublinhar que ultrapassamento no implica relao de excluso mas, ao contrrio, de incluso. num sentido prximo, mas no idntico, que G. Bachelard fala em "generalizao dialtica" ao tratar da relao entre a mecnica no newtoniana e a mecnica newtoniana, a geometria no euclidiana e a geometria euclidiana. Bachelard mostra que no h contradio entre as duas, mas que a primeira envolve a segunda, que passa a ser dela um caso particular. Para Bachelard, com a evoluo da cincia h um alargamento de sua base e esta passa a dar conta de um nmero maior de problemas. A evoluo ocorre no sentido da formao de uma nova estrutura de saber ou, como diz Bachelard, no sentido da unificao. Parece, entretanto, que a relao entre as teorias ciberntica e autopoitica da cognio no permite que se fale em unificao. Melhor seria denominar acoplamento ou encaixamento de mquinas, sem totalizao. A cincia atual, ao contrrio daquela tematizada por Bachelard, abandonou definitivamente o sonho de unificao, da busca de leis universais, mas aceita a existncia de diferentes ordens no interior de uma mesma realidade. A biologia do conhecimento assemelha-se a uma cincia do complexo, posto que no faz reduo a uma ordem mais fundamental, mas sustenta a diferena mesmo quando encontra um lugar para a dimenso ciberntica.Podemos afirmar, mais acertadamente, que o interesse cientfico do trabalho de Maturana e Varela advm do descentramento da dimenso ciberntica da cognio para sua dimenso autopoitica, do fato dele parecer encontrar um lugar para a dimenso ciberntica ou calculatria no interior do sistema cognitivo autopoitico. O inverso no acontece: no h possibilidade se extrair a inveno, a criao cognitiva, de uma mquina que opera com base num programa fechado. No h como pensar a heterognese a partir de um campo limitado de possveis. Assim situada em relao autopoiese, a ciberntica no explica nada, mas deve ser ela mesma explicada.O que Maturana e Varela recusam no a ciberntica, mas o aspecto metafsico ou transcendental da ciberntica, que abole a dimenso temporal da estrutura, sua historicidade, sua abertura, e a toma como condio a priori da cognio. Para estes autores a mquina ciberntica emerge adjacente, como parte da mquina autopoitica. H criao de uma estabilidade, mas subsistem nveis de funcionamento heterogneos e no hieraraquizados. Parece ser esta a idia de Varela quando afirma: "sendo as determinaes to mltiplas, ento, justamente, no h nenhuma que seja fundamental..." O sistema autopoitico porta uma folga, um desarranjo, uma disfuncionalidade que atinge toda regularidade, toda estabilidade momentnea. Se possvel falar em representao simblica somente no sentido de uma correspondncia histrica, de um domnio consensual que emerge da rede autopoitica subjacente, que guarda a abertura para a produo de novas formas de cognio.No parece ser outra a posio de Varela quando, em Autonomie et Connaissance, alinha sua pesquisa ao mecanicismo de Wiener. Ali ele traa uma distino entre duas linhas de investigao no conjunto do mecanicismo contemporneo: a de J. von Neumann e a de N. Wiener. Para Varela a identificao da cognio computao, bem como sua definio como soluo de problemas um trao de von Neumann, no de Wiener. Quanto ao ltimo, evoca sua participao nas Conferncias Macy sobre Ciberntica em 1957, quando Wiener adverte que, frente a um paradoxo matemtico, a mquina de von Neumann entraria em oscilaes sem fim. Para Varela, Wiener destaca o ponto em que as operaes simblicas do computador perdem seu solo firme, seu ponto de ancoragem seguro. Sem falar ainda em mquina auto-produtiva, Wiener estaria, com esta referncia, trazendo cena uma cognio que no se fecha em soluo, restando um pensar, uma repetio infinita que desafia a lgica e os sistemas fechados. Melhor dizendo, Wiener teria chamado ateno para o pensamento enquanto problema, sem que nenhuma soluo paralise seu movimento. V-se que Varela l Wiener a partir de seu trabalho, no encontrando entre os dois qualquer relao de contradio.Em sntese, necessrio esclarecer que no basta opor estas duas concepes de mquina, mas mostrar que, do ponto de vista da autopoiese, elas esto definitivamente encaixadas, visto que o processo ciberntico encontra-se imerso no processo autopoitico. No h oposio, mas duas tendncias simultneas em que cada uma estanca momentneamente a outra. Mas afirmamos: s a abordagem autopoitica pode dar conta de uma cognio que , ao mesmo tempo, clculo e inveno.Voltando ao eixo de anlise fornecido por Deleuze e Guattari, pode-se constatar que a autopoiese, tal como estudada pela biologia do conhecimento, uma funo, ou seja uma relao entre uma varivel criao (tempo) e uma varivel sobrevivncia (espao). A autopoiese a sempre apreendida atualizada, encarnada num sistema vivo concreto e dotado de estabilidade. A noo de organizao autopoitica o indcio mais claro desta posio. Ela forjada para dar conta do problema que impulsiona desde o incio a investigao de Maturana e Varela que, como dissemos, identificar a especificidade do vivo. Varela explicita: "insistimos sobre o fato que um sistema vivo definido por sua organizao e logo pode-se explic-lo como se explica qualquer organizao, quer dizer, em termos de relaes e no em termos das propriedades de seus componentes" . Sustenta assim o primado da organizao em relao a sua encarnao em sistemas materiais especficos, ou seja, que a organizao indiferente sua atualizao concreta e particular. Mas, ao mesmo tempo, a noo no visa dar conta de uma auto-produo qualquer, mas da auto-produo do vivo. Assim sendo, ela j porta uma especificidade, j um misto de tempo e espao, de criao e de sobrevivncia. Ela j definida nos limites da estabilidade, obedecendo a certas constantes, o que j antecipa algo acerca do processo de auto-produo. Autopoiese auto-criao sem instncia criadora, sem finalidade que lhe dirija a trajetria e sem destino previsvel. No entanto, toda transformao do sistema autopoitico s tem sentido enquanto este guarda sua integridade como sistema vivo. formulada tambm a noo de estrutura autopoitica. Ela refere-se encarnao da organizao numa matria, que lhe d forma concreta, atualizada num corpo biolgico determinado. esta estrutura concreta que entra em relao com o meio e tambm neste nvel que tornam-se visveis os fenmenos de estabilidade ou de homeostase, que respondem pela desacelerao das perturbaes que a mquina sofre e que impedem sua desintegrao. Articulando, afirmamos com Varela que "uma mquina autopoitica um sistema homeosttico (ou melhor ainda, de relaes estveis) cujo invariante fundamental sua prpria organizao (a rede de relaes que a produz)" . ao nvel da mquina concreta que a deriva do sistema autopoitico testada em relao com a sobrevivncia. S sobrevive o sistema cujo movimento criador no destri a organizao autopoitica, ou seja, a condio de continuar auto-produtivo.A noo de clausura operacional tambm merece destaque, pois nela que encontramos o indcio mais claro do que denominamos dimenso ciberntica da mquina autopoitica. Ela aparece como uma noo tipicamente cientfica mas aponta, ao mesmo tempo, para o fato que pensar sob a forma da cincia no significa necessriamente conceber seu objeto nos limites de uma estrutura fechada. A complexidade da noo descrita por Varela: "Numa unidade munida de uma clausura operacional, um comportamento coerente e bem distinto apresenta, de fato, uma natureza particular: de um lado aparece como uma operao da unidade; de outro lado, quando tenta-se examinar a origem de uma tal operao, no se encontra nada alm de uma operao infinita dessa operao; ela no comea em nenhuma parte e no acaba em nenhuma parte. A coerncia no localizada, mas distribuda atravs de um crculo sempre recomeado, infinito em sua circulao, mas entretanto finito desde que se olhe seus efeitos ou resultados como uma propriedade da unidade.A noo de clausura operacional guarda ento uma complexidade. Sob um primeiro aspecto ela d conta da operao de uma unidade autnoma, coerente e distinta. Neste sentido ela generaliza a noo clssica de estabilidade de um sistema e a que encontramos a dimenso ciberntica dos sistemas autopoiticos. Mas sob um segundo aspecto, e a marcada sua diferena, trata-se de uma unidade emergente a partir de uma rede de relaes, ela mesma autopoitica. Neste caso, torna-se histrico o que a ciberntica considera dado. O nico invariante a prpria organizao autopoitica, ou seja, a rede de relaes da qual emerge a clausura operacional.Este processo sem comeo nem fim determinveis indica uma abertura que explicitada por Varela, quando adverte: "clausura no fechamento" .O termo clausura refere-se ao fato de que o resultado de uma operao situa-se no interior das fronteiras do sistema e no que o sistema no tenha relaes com o exterior. Os sistemas so auto-referentes, auto-produzidos, mas no so sistemas isolados. Ao contrrio, a abertura sua marca maior, tanto porque aparece desde o momento de sua definio como unidade e sobretudo porque tal modo de constituio no jamais ultrapassado, mantendo-se a unidade em constante processo de redefinio de suas fronteiras, estando o interior em contnua relao de osmose com o exterior.Pretendemos demonstrar que a noo de autopoiese possui, na obra de Maturana e Varela, o estatuto de uma funo cientfica. Mas estes autores fazem biologia nos moldes da cincia contempornea, cuja metamorfose em relao cincia clssica ocorreu justamente em virtude da tomada em considerao do problema do tempo, no sentido de criao, inveno da natureza, tal como foi concebido por H. Bergson. A cincia contempornea, da qual Varela e Maturana fazem parte , ela prpria, neste sentido, efeito da filosofia bergsoniana.A cincia passa a abordar, sua maneira, o tempo, tornando-o varivel independente, elemento de uma funo. Trata-se agora de uma funo que responde pela criao, que porta a potncia de transformao, diferente das funes da cincia clssica definidas como relao invariante entre variveis independentes. Maturana e Varela definiram um eixo da criao independente e chegaram a uma funo autopoitica caracterizada por uma organizao minimal, destituda de previsibilidade. Atingiram assim o limite at onde pode ir a cincia cognitiva ou mesmo a cincia da subjetividade. Mas sua caracterizao como modo de pensamento cientfico inequvoca, aparecendo atravs de sua preocupao em estabelecer a relao do sistema com o equilbrio, da inveno com a estabilidade, da criao com a sobrevivncia, do tempo com o espao. Veremos que o uso filosfico que Deleuze e Guattari fazem da noo de autopoiese implicar na eliminao, de sada, deste plano de referncias da cincia biolgica.

A autopoiese como conceito: a mudana de plano

O interesse que Deleuze e Guattari tem pela obra de Maturana e Varela filosfico e no epistemolgico. Como Bergson e Merleau-Ponty, Deleuze e Guattari no visam avaliar os resultados da cincia, ou mesmo as possibilidades de produo de verdade que seus mtodos comportam, mas tomar a cincia como fenmeno ou discurso que no pode ser ignorado pela filosofia. A cincia, enquanto uma das formas de pensamento, enfrenta o caos sua maneira: procura dar-lhe referncias, produzindo funes que do conta do modo como a velocidade infinita se desacelera e se atualiza em estados de coisas ou, no caso da biologia, em organismos. A filosofia, ao contrrio, cria conceitos que portam a velocidade infinita, o acontecimento que dissipa toda ordem que se esboa, que sobreva toda atualizao, todos os estados de coisas. Embora cincia e filosofia constituam duas formas de pensamento distintas, existem entre elas cruzamentos, inspirao recproca e colaborao eventual.Cabe ressaltar que a novidade da noo de autopoiese e que a torna digna de interesse filosfico o fato dela trazer luz um processo de criao destitudo de qualquer instncia criadora. este criacionismo sem fundamento que faz com que Deleuze e Guattari falem do "carter autopoitico da criao de conceitos". A filosofia essencialmente criao de conceitos, mas o conceito no deve ser referido a quaisquer faculdades de formao e utilizao. O conceito provm de um plano de imanncia. A relao de imanncia entre o plano e o conceito significa duas coisas: em primeiro lugar que o conceito emerge da, no sendo instaurado por uma fora ou instncia exterior, transcendente. O conceito no formado, mas auto-formado; no criado por faculdades de um sujeito nem visa conhecer um objeto ou estado de coisas. No encontra qualquer tipo de fundamento. Em segundo lugar, significa que toda ao imanente se esgota no prprio agente, todo efeito permanece no mbito da causa. O plano causa imanente dos conceitos, e todo efeito criado dobra-se sobre o plano do qual emergiu, participando dele. Alm do mais, o plano tem duas faces: como pensamento e como natureza. No somente os conceitos, mas tambm as coisas so auto-criadas. Todas essas propriedades aproximam imanncia e autopoiese: a inexistncia de uma instncia exterior de produo, a inseparabilidade entre causa e efeito, produto e produo, sujeito e objeto, e sobretudo a ontologia da imanncia, a indissociabilidade entre o pensamento e o ser. O surgimento a partir de um plano que move-se infinitamente (como a rede imunolgica ou a rede neural), faz com que o conceito emergente no cesse o caos virtual que caracteriza seu plano de imanncia. O conceito porta o movimento, a velocidade infinita, o acontecimento. No se fecha num sentido, mas vale pelo mximo de variaes que permite.Todo estado de coisas atualizao de um acontecimento, mas o acontecimento no se resume ao somatrio de todas as atualizaes, pois resta "uma parte obscura e secreta que no cessa de se subtrair ou de se juntar a sua atualizao: contrariamente ao estado de coisas, ele no comea nem termina, mas ganhou ou guardou o movimento infinito ao qual ele d consistncia" . O conceito puro devir, inseparvel de suas infinitas variaes, que sero atualizadas no espao, em estados de coisas estudados pelas cincias. Identificamos a uma diferena irredutvel entre a funo autopoitica, tal como formulada pela biologia, e o conceito autopoitico, tal como definido pela filosofia. Falar num conceito de autopoiese ou mesmo na natureza autopoitica do conceito tomar a idia de autopoiese somente em relao s propridades enumeradas, sem que se faa, em qualquer momento, meno s caracterticas de sobrevivncia e estabilidade dos sistemas autopoiticos, indispensveis biologia.

A subjetividade autopoitica

Maturana e Varela so intercessores de Deleuze e Guattari. Num texto que aborda exatamente este tema, Deleuze no minimiza o papel dos intercessores na construo de sua obra. Afirma que eles podem provir do campo cientifico ou artstico, podem ser pessoas ou coisas e so necessrios expresso de suas idias. Faz tambm uma advertncia da maior importncia para o entendimento de sua relao com o pensamento de Maturana e Varela: preciso fabricar os prprios intercessores. Isto significa que utilizar um intercessor ainda, e sobretudo, um processo de criao. Citamos Deleuze:"uma disciplina que se desse por misso seguir um movimento criador vindo de outro lugar abandonaria ela mesma todo papel criador. O importante nunca foi acompanhar o movimento do vizinho, mas fazer seu prprio movimento. Se ningum comea, ningum se mexe. As interferncias no so trocas: tudo acontece por dom ou captura" . O conceito de intercessor til para pensar uma relao que no abole a diversidade e a criao. Filosofia e cincia realizam cruzamentos que no so tradues, cpias ou imitaes. Tambm no o fazem para fundamentarem-se reciprocamente. O intercessor deve ser entendido a partir dos efeitos, dos ecos, das ressonncias que gera nestas duas formas de pensamento, que conservam sua singularidade irredutvel.A funo autopoitica, quando introduzida na mquina filosfica de Deleuze e Guattari, participa de um movimento criador. A apropriao que fazem dela implica num salto de um plano de referncia cientfico para um plano de imanncia filosfico. Esta mudana de plano fica bastante clara quando Guattari, em seu livro Caosmose, utiliza amplamente a idia de autopoiese com o intuito de explicitar o conceito de subjetividade.Guattari pensa a produo da subjetividade por instncias individuais, coletivas e institucionais e adverte que falar em produo no significa falar em determinao por uma instncia dominante, por relaes hierarquizadas. Concebe a subjetividade em sua dimenso maqunica, o que o mesmo que falar em sua produo a partir de mltiplos componentes heterogneos. A transversalidade substitui a hierarquia: a subjetividade atravessada por diversos fatores de subjetivao como instituies, objetos tcnicos, saberes, etc. A subjetividade no se confunde com o sujeito, no individual, pessoal, mas um conceito que visa exatamente embaralhar as dicotomias sujeito-objeto, indivduo-sociedade, corpo-psiquismo, homem-natureza, natureza-artifcio, interior-exterior, todas elas caras abordagem tradicional. neste ponto que a idia de autopoiese chamada cena e parece produzir efeitos. A noo de autopoiese restaura o criacionismo em biologia, problematiza as relaes organismo-meio e fala de um engendramento recproco e incessante, de uma definio e redefinio constantes das fronteiras entre o interior e exterior. Guattari esboa ento uma definio de subjetividade:"o conjunto de condies que torna possvel que instncias individuais e/ou coletivas estejam em posio de emergir como territrio existencial auto-referencial, em adjacncia ou em relao de delimitao com uma alteridade ela mesma subjetiva" . E ainda:"no se est mais diante de uma subjetividade dada como um em si, mas face a processos de autonomizao, ou de autopoiese, em um sentido um pouco desviado do que Varela d a esse termo.Verifica-se mais adiante que este "sentido um pouco desviado" deve-se, em primeiro lugar, transposio de um sentido cientfico para um sentido filosfico. Guattari prope logo frente que seja desprezada a distino, estabelecida por Maturana e Varela, entre sistemas autopoiticos (vivos) e sistemas alopoiticos (no-vivos) e sugere a expanso da idia de autopoiese para alm dos limites biolgicos, para faz-la atravessar instncias fsicas, sociais, tcnicas e psquicas. Seria por demais insuficiente denominar generalizao tal movimento. Guattari recusa a referncia biolgica, que central em Maturana e Varela, pois cumpre lembrar que tal noo forjada exatamente para dar conta da especificidade dos seres vivos. Guattari retm da autopoiese suas caractersticas de autonomia, individualidade e unidade, mas afirma que da no segue que um sistema dotado de tais propriedades nasa, sobreviva e morra como os seres vivos.Com tais transformaes Guattari e Deleuze promovem um devir filosfico da funo autopoitica. S assim podem extrair dela elementos para a problematizao da noo de sujeito em favor da de subjetividade. Nas palavras de Guattari, preciso "operar um descentramento da questo do sujeito para a da subjetividade". Neste ponto, consideramos que sua posio encontra-se muito prxima do que denominamos acima, em relao ao trabalho de Maturana e Varela, "descentramento da dimenso ciberntica da cognio para sua dimenso autopoitica". Pois Guattari, sem negar a existncia do sujeito, recusa sua concepo tradicional como essncia ltima da individuao propondo, em seu lugar, a nfase na subjetividade enquanto processo, a tomada da "relao entre o sujeito e o objeto pelo meio". A subjetividade ento concebida como pr-subjetiva, constituda de mltiplos vetores heterogneos - dispositivos sociais, tcnicos, fsicos e semiolgicos - a partir dos quais pode pode ganhar consistncia um territrio existencial, pode emergir um sujeito. Mas importante notar que o acento no recai sobre o sujeito, sobre o territrio, mas sobre o processo de subjetivao, posto que a emergncia concreta do sujeito, no espao e no tempo, entendida como uma espcie de fechamento da subjetividade sobre si mesma. Fechamento pragmtico, contingente e temporrio, sem garantia de universalidade ou de transcendncia e que no abole, portanto, o contato com o que lhe exterior, o que garante a continuidade de sua existncia enquanto processo.Talvez por essa impossibilidade de separar o produto do processo, pelo fato do sujeito encontrar-se irremediavelmente imerso numa subjetividade, ela prpria anterior e condio mesma da distino sujeito-objeto, a questo do "sujeito" tenha com frequncia cedido lugar quela da "subjetividade". Embora empreendam, em certos momentos, cartografias de processos concretos de subjetivao, no parecem faz-lo propriamente na forma de uma cincia da subjetividade, posto que no se ocupam do exame sistemtico das estruturas que esta assume, nem da organizao que lhe restaria subjacente. No entanto, seu trabalho abre perspectivas para tal projeto, que forneceria ento importantes elementos para o desenvolvimento do trabalho clnico iniciado por Guattari.Para concluir, cumpre apontar como a idia de autopoiese pode concorrer para a efetuao desse projeto. A dimenso cientfica cientfica da obra de Maturana e Varela, que procuramos acentuar ao longo deste trabalho, no exclui dela uma dimenso filosfica e que corresponde, conforme indicamos, ao momento em que estes autores problematizam o modelo ciberntico dominante, para propor em seu lugar a idia da auto-criao da mquina cognitiva. Neste momento de problematizao, em que instauram instabilidade e efetuam uma bifurcao na cincia cognitiva, eles no obedecem a procedimentos cientficos. Constituir algo em problema no o mesmo que criar uma funo cientfica. neste ponto onde a novidade de Maturana e Varela se revela mais ntida, neste ponto em que ela filosfica e no cientfica, que ocorre o cruzamento com Deleuze e Guattari. A anlise deste cruzamento, sob a forma de uma intercesso, nos ensina a ver que h filosofia nesta cincia e que a cincia, em geral, em seus momentos decisivos e de maior fecundidade, no cientificista.Procuramos demonstrar que possvel distinguir na idia de autopoiese duas dimenses. A primeira, cientfica, diz respeito a sua encarnao nos seres vivos, em indivduos concretos cuja existncia tem na morte biolgica seu limite. A segunda dimenso, filosfica, refere-se ao fato de que h vida no vivo, definindo vida como potncia, impulso de auto-criao, cujo resultado imprevisvel no assegura sua manuteno como sistema ser vivo. Enquanto bilogos, Maturana e Varela preocupam-se particularmente com os efeitos da auto-criao sobre o plano do ser vivo, ou seja, com as consequncias da criao de normas incidindo sobre os indivduos biolgicos em sua relao com o ambiente. Mas no segundo sentido que sua obra concorre para dar consistncia a uma concepo de subjetividade onde a vida no comparece como encarnao na matria orgnica, no ser vivo, mas como criao marcada pelo inacabamento. por esta perspectiva criacionista que Deleuze e Guattari dela se apropriam. Pois em Maturana e Varela existem elementos para pensar o vivo permanentemente confrontado no s com a morte biolgica, mas com a morte em vida. A morte da vida no vivo aparece ento como evitao do risco de toda experincia que abriria para a criao permanente da existncia. Em certas formas de subjetividade (tal como ocorre quando a ciberntica assume o estatuto de trancendental) a estrutura acaba por abolir o devir, ou seja, a autopoiese. So essas formas de subjetividade, onde a morte habita sem que a sobrevivncia seja comprometida, que exigem, no entender de Deleuze e Guattari, uma nova clnica, com outras referncias que aquelas tradicionalmente fornecidas pela psicologia e pela psicanlise. , ento, da obra desses bilogos contemporneos que extraem elementos no s para o conceito de subjetividade autopoitica, mas tambm para o trabalho clnico de restaurao da vida no vivo, de revitalizao da potncia criadora da existncia. Utilizando Maturana e Varela como intercessores, Deleuze e Guattari concorrem para a revitalizao das idias e para o devir autopoitico da obra desses bilogos.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

* Bachelard, G. - A filosofia do no. In: Os Pensadores - Bachelard . So Paulo,* Abril Cultural, 1978.* Costa, Rogrio da (org) - Limiares do Contemporneo. So Paulo, Escuta,1993.Deleuze, G. e Guattari, F. - Qu'est-ce que la philosophie? Paris, Minuit, 1991.Deleuze, G. - Os intercessores. In: Deleuze, G. Conversaes. Rio de Janeiro, .Editora 34, 1992.Foucault, M. - As palavras e as coisas. So Paulo, Martins Fontes, 1985.Guattari, F. Caosmose. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992.Kastrup, V. - "Mquinas cognitivas: da ciberntica autopoiese". In: ArquivosBrasileiros de Psicologia, v.45, n.1/2, 1993.Varela, F. - Autonomie et connaissance. Paris, Seuil,1989.

REVISTA DO DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA DA UFF, V.7, N.1, 1995.