ausência

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Por Vera Helena Rossi AUSÊNCIA Sabia do tanto que se fechava na palavra dor. “Viver é estar preparado para sentir dor.” Esta era a máxima que um avô poderia ensinar a sua neta. Ele entendia o quanto poderia preparar sua neta com aquela frase. Era seu dever, afinal. Preparar um neto, aquele ser que se aquece nos olhos do avô, nos muitos anos que estes olhos guardam; transmitir a este mínimo corpo o essencial da vida. “E o principal é isto, saber da dor, minha pequena.” A neta não piscava, mal respirava, atenta à respiração lenta do avô, às verdades sobre as quais se encurvava uma vida excedente. “Minha menina, a gente até pode passar a vida inteira livre dela. Mas pra qualquer hora a dor chega, ah, se chega. E quando falo dela, não me refiro a uma topada do dedo no pé da cômoda, não. Digo de quando arrancam seu dedo fora. Da dor extrema. Sabe como é? Arrancar um dedo fora?” A pequena sacudia a cabeça como se entendesse do extremo. “Eu já. Sei o que é ter um dedo amputado.” Ele arrancou o sapato e mostrou o pé direito deformado pelos joanetes e pela ausência de um dedo. Ela quase pulou da cadeira, mas se ajeitou melhor no assento duro, em uma pose heroica, como que preparada a toda dor. Por pouco, não lembrou ao velho de quando tinha passado por uma cirurgia no olho esquerdo, sem anestesia. O

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conto sobre conselhos de um avô para sua neta.

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Por Vera Helena Rossi

AUSNCIA

Sabia do tanto que se fechava na palavra dor. Viver estar preparado para sentir dor. Esta era a mxima que um av poderia ensinar a sua neta. Ele entendia o quanto poderia preparar sua neta com aquela frase. Era seu dever, afinal. Preparar um neto, aquele ser que se aquece nos olhos do av, nos muitos anos que estes olhos guardam; transmitir a este mnimo corpo o essencial da vida. E o principal isto, saber da dor, minha pequena.A neta no piscava, mal respirava, atenta respirao lenta do av, s verdades sobre as quais se encurvava uma vida excedente. Minha menina, a gente at pode passar a vida inteira livre dela. Mas pra qualquer hora a dor chega, ah, se chega. E quando falo dela, no me refiro a uma topada do dedo no p da cmoda, no. Digo de quando arrancam seu dedo fora. Da dor extrema. Sabe como ? Arrancar um dedo fora? A pequena sacudia a cabea como se entendesse do extremo. Eu j. Sei o que ter um dedo amputado. Ele arrancou o sapato e mostrou o p direito deformado pelos joanetes e pela ausncia de um dedo. Ela quase pulou da cadeira, mas se ajeitou melhor no assento duro, em uma pose heroica, como que preparada a toda dor.Por pouco, no lembrou ao velho de quando tinha passado por uma cirurgia no olho esquerdo, sem anestesia. O pai havia insistido para que a filha recebesse por uma agulha a supresso de qualquer sensibilidade fsica. Como resposta apenas ganhara uma risada alta da criana, que queria a dor. Mas o que a dor de um terol arrancado se comparada a de um dedo decepado? Corou, envergonhou-se da lembrana.Voc no pode ver, minha menina, mas tudo dor. A gente quer se esconder debaixo de um teto, em um amor gigante, que nem a gente sabe explicar direito o que , dentro de uma casa limpa, que a gente vive e morre pra manter ela limpa. Disfarado na bondade, a gente se ilude de que a linha invisvel j outro mundo. Apontou uma linha fina de poeira aquecida por uma nesga de sol. A criana segurou firme as duas mos nos ps da cadeira.Essa linha invisvel que faz a gente acreditar que est protegido. Que a gente bem diferente daquela ferida pustulenta na perna do pedinte cado na calada. tudo a mesma coisa. Isso que a vida. A carne da presa estraalhada pelas leoas. E se voc no souber disso agora, um dia vai saber, pequena menina. Ento que seja eu, seu av, que te conte antes, que te prepare. meu dever, dever de av. A porta rangeu, a me tocou o cabelo curto da filha aproximando-a da linha invisvel de poeira. L, o vov precisa descansar. O que isso agora, pai? no chora. Sua neta precisa saber da verdade. Deixa de coisa, pai, v se descansa. D um beijo no vov, L. A me deixou que a filha desse o beijo que ela nunca havia dado, um beijo guardado por tantos e tantos anos. Afastou a filha da dor, ainda que do prprio nascimento se marcasse no corpo da me a prpria expiao. Deixaram o av descansar, ainda que do prprio corpo no nascesse cansao, mas uma falta dolorida e exposta.

Vera Helena Saad RossiAutora do romance Telefone sem fio (Patu, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patu, 2011), Vera Saad Rossi jornalista, mestre em Literatura e Crtica Literria pela PUC SP e doutora em Comunicao e Semitica tambm pela PUC SP. Ministrou no Espao Revista Cult curso sobre Jornalismo Literrio em 2012. Tem participaes na Revista Cult, na Revista Lngua Portuguesa, na Revista Metfora, no Portal Cronpios e na Revista Zuni. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Igncio de Loyola Brando, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prmio da Jovem Literatura Latino-Americana.