aumont_-_olho_interminavel

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  • Jacques Aumont

    O olho interminvel [cinema e pintura]

    Cosac & Naify

  • De um quadro a outro: a borda e a distncia

    Se h uma relao entre cinema e pintura, ela tudo menos simples, no para-mos de diz-lo. Foi preciso, entre outras coisas, para evitar simplificar, nos demorarmos em configuraes ideolgicas e princpios formais que extrapo-lam, de modo notvel, tanto o cinema quanto a pintura. Conseguindo, agora, descrever os traos por onde, apesar de tudo, cinema e pintura se "asseme-lham" de modo mais manifesto - o quadro, ulteriormente a cenicidade, o jogo dos valores plsticos-, no se tratar de esquecer esses prolegmenos, e sim, antes, de confirm-los, de outro modo.

    Partirei, de modo bem banal, de um caso clebre, tirado do vasto corpus dos filmes sobre a pintura (pois, se o cinema no pintura, ele nunca resistiu a apresent-la, reproduzi-la e, evidentemente, discorrer sobre ela). Esse caso, eu diria quase essa causa clebre, o Van Gogh, de Alain Resnais. Produzido em 1948, por Pierre Braunberger, como um empreendimento ostensivamente cultural, dotado de um comentrio hoje insuportvel de grandiloqncia, o filme , primeira vista, uma simples biografia de pintor, subgnero abun-dantemente representado entre os filmes sobre a pintura. Seguimos, de maneira linear, sem surpresa, a fulgurante carreira do pintor louco. Os topoi da loucura, da exaltao, do expressionismo figuram em bom e devido lugar. O todo , como devido, ilustrado com reprodues filmadas de quadros de 109

  • . . I ~ : ~ .,. ; i ''

    11 ,11

    Van Gogh. De onde vem, ento, a celebridade do filme e, com ela, o pequeno escndalo que causou?

    Primeira razo, e foi-se sensvel a ela na poca: tratando do mais colorista dos coloristas, o cineasta decide filmar em preto-e-branco; anedota suprema e provocante (o ttulo - um primeiro plano da assinatura do pintor - passa do branco ao preto durante os poucos segundos de sua exposio). Tal esco-lha, provavelmente mais tcnica e econmica do que esttica, toca ainda quan-do se v novamente o filme, mas o efeito de choque se resolve hoje em um efei-to de poca: o preto-e-branco data o filme, tanto quanto seu comentrio. Foi portanto outra coisa que causou escndalo e que d hoje a importncia ao Van Gogh. Considerando-o de modo ingnuo, o filme efetua, com efeito, sobre quadros que reproduz, uma operao ao menos tripla:

    - uma operao de" diegetizao": cada quadro tratado como um mun-do ficcional, como uma cena, a um s tempo unitria e passvel de ser decupa-da. Utilizando, por exemplo, os Comedores de batata, Resnais faz uma meia dzia de planos sucessivos, como se fossem pequenos episdios, a mulher que serve o caf, o homem que v etc. O quadro inteiro nunca visto. Claro, isso um pouco o b--b do documentrio sobre a pintura (em 1948, no se tinha esquecido a revelao que os filmes de Luciano Emmer, sobre Giotto, por exem-plo, haviam representado); o estranho aplic-lo de modo to sistemtico, sobretudo em quadros que contam pouco.

    -uma operao de narrao, na colocao em seqncia desses segmen-tos de quadro-segmentos de cena, e, mais surpreendente, no raccord entre dois ou vrios quadros diferentes. A "narrativ' visual produzida pela montagem nos leva, assim, da fachada de um hotel em Arles ao clebre interior do quarto do pintor. No primeiro plano, um travelling para a frente fecha o quadro sobre a janela, de onde se "volta a partir", "para o interior do cmodo" dessa vez, e em travelling para trs, no segundo plano. Como se a "passagem" pela janela tivesse permitido ligar, diegeticamente, os dois quadros, que representam real-mente o lado de fora e o de dentro de um mesmo lugar.

    - enfim, uma operao de psicologizao, conseqncia extrema das duas precedentes, relacionando ficticiamente com a conscincia do pintor uma

    no parte (importante) do contedo dos quadros. Todos os recursos tcnicos so

  • a mobilizados: "campo-contra -campo" entre auto-retratos de Van Gogh (olhar "louco" sob as sobrancelhas grossas) e as paisagens pintadas; redemoinhos da natureza no pobre crebro do demente, feitos pela repetio "contnu' de um mesmo quadro; insistncia sobre o que cada um desses quadros de girassis ou de macieiras exprime de misria e de desespero ("a tristeza durar sem-pre") - basta, s vezes, um zoam para a frente.

    A coerncia lgica das trs operaes quase forte demais: trata-se em cada uma de evacuar representaes pictricas, o que a pintura - a pince-lada, a tinta, a cor, a composio -,para transform-las em diegese, em nar-rativa, em filme. Essas trs operaes coincidem: uma cinematizao, operao contra-natureza, destruidora de especificidade, que s podia chocar. (Trs anos mais tarde, Resnais reincidir, com Guernica, a um s tempo exploso do quadro epnimo e narrativizao artificial de diversos Picassos dos perodos rosa e azul).

    I -----;;t> da que parte Bazin em seu famoso "Pintura e cinem', de 1951. Cons-

    tatando que o cineasta, por suas diversas intervenes, "abriu" o espao das telas pintadas,9 dotou-o de um fora imaginvel, de um fora-de-campo, Bazin estende essa observao a uma caracterizao, tornada clebre, do quadro fl-mico e do quadro pictrico em geral. O quadro flmico, por si s, centrf_ugo: ele leva a olhar para longe do centro, para alm de suas bordas; ele pede, ine-lutavelmente, o fora-d~-=carripo, a fi-ccionaiizaooo no-v1sto. Ao contrrO, o qua dro-pictrico "centrp~t~~~ie f;~ha -~t~l;pi;;:t;d.;;;bre o. esp~o des:~--

    ____ prp_ria matria e de sua prpria composio; obriga o olhar do espectador a voltar sem parar para o interior, a ver menos uma cena ficcional do que uma pintura, uma tela pintada, pintura. A tese de Bazin, oferecida como que en pas-sant (ele no se alonga nela), teria uma enorme repercusso: no h empreen-dimento terico ulterior que no se refira a ela, para refin-la, para contestar a escolha dos termos ("centrfugo" I" centrpeto"), cuja indefinio incmoda, e at mesmo para contradiz-la, mas sempre no interior da mesma problem-tica do quadro: pictrico, por um lado; flmico, por outro. a essa problem-tica que eu gostaria de 'me ater.

    111

  • ...

    O que um quadro? Deixarei de lado consideraes etimologizantes que no ensinam grande coisa. O quadro, o quadratum, todos sabem q_ue um q_uadra-do; mas todos sabem tambm que um quadro, mesmo pictrico, sobretudo pictrico, no obrigatoriamente quadrado, - esta , estatisticamente, uma variedade rara. Definio minimalista, portanto: o quadro o que faz com que a imagem no seja infinita, nem indefinida, o que termina a imagem, o que a detm. Nem os bises de Lascaux, nem o galho de macieira do pintor chins no so, propriamente falando, detidos, limitados, e, por mais minimalista que seja, tal definio j basta para dizer que a instituio do quadro , eminente-mente, convencional, cultural. Alis, nossa viso, com certeza limitada em seu campo, tambm no exatamente enquadrada: as bordas so desfocadas, indistintas, mveis. Em suma, podemos no nos ocupar com uma possvel origem "natural"- ecolgica, e at mesmo biolgica - dessa modalidade da representao e definir, de sada, o quadro, e sobretudo suas funes, a partir de seu lugar privilegiado: a pintura ocidental na sua idade clssica.

    Esqueamos, por enquanto, os casos excepcionais, e eles no faltam: como se apresenta o quadro, em sua manifestao pictrica mais corrente? Vejo trs aspectos dele, trs sries de operaes ou de funes.

    O primeiro desses aspectos, o mais tangvel, o que chamarei de quadro-objeto. Enquadramento material, fsico, da tela pintada, a cornija de madeira dourada, o passe-partout ou marie-louise, em suma, o objeto que se chama de moldura e que faz com que haja moldureiros. O empirismo dessa noo apa-rente; seus limites, obrigatoriamente um pouco indefinidos. Em muitos casos, deveremos, por exemplo, nos perguntar onde comea o quadro-objeto e onde termina o entorno, arquitetura!, notadamente, da obra. (Os afrescos - os das villas e das igrejas romanas - muitas vezes no tiveram outro quadro-objeto seno uma arquitetura, mas a poca barroca, por exemplo, se divertiu emba-ralhando as cartas com todas as espcies de hbridos.) Vamos dizer novamen-te, o quadro-objeto tem sempre esse valor: ele rodeia a obra, fabrica um entor-no para ela. Ao mesmo tempo, sob a forma, a um s tempo banal e emblemtica, d moldura dourada ou esculpida, ele est ligado mobilizao da imagem: a seu devir-mvel, a seu devir-objeto, precisamente e at mesmo

    112 objeto comercializvel. (Todos sabem que uma tela "bem" emoldurada, ainda

  • hoje, "vale" mais no mercado). O quadro-objeto uma valorizao, e, na for-ma clssica, um sinal de que a imagem est venda e se destina a ser levada.

    Uma vez desfeito o enquadramento da pintura, aparece a borda da tela, o limite material da imagem: o quadro-limite. Limite fsico, esse quadro tam-bm e sobretudo limite visual da imagem; ele regula suas dimenses e propor-es; rege tambm o que chamamos de composio. Esta ltima palavra , provavelmente, um pouco fraca, a tradio que a imps jamais conseguiu real-mente defini-la; mas basta, para torn-la um pouco mais consistente, acres-centar-lhe, por exemplo, uma hiptese um pouco precisa sobre o que podem ser, para o olho, propores e relaes plsticas. A tentativa mais sistemtica nesse sentido, de Rudolf Arnheim, faz da composio uma questo de centra-lizao, de constituio de centros visuais na tela pintada: a interao din-mica, e at mesmo conflitante, desses centros entre si e tambm com esse cen-tro "absoluto" que o sujeito-espectador que cria, que , diz Arnheim, a composio. O olho o instrumento que aprecia a justa e harmoniosa relao das massas visuais, seu peso respectivo, seu afastamento do centro ou dos cen-tros. E, nesse jogo, o quadro-limite marca o terreno.

    Mas essa definio abstrata da composio (Arnheim vem depois de Klee, depois de Kandinsky) no a nica: h tambm, na pintura figurativa clssi-ca, o arranjo concertado de figuras, meio simblicas, meio funcionais, seria melhor dizer seu arranjo decente, conforme ao decorum. Nesse arranjo, a superfcie da tela, sua diviso e sua hierarquizao intervm ativamente. conhecido, por exemplo, o papel simblico inestimvel que o centro geomtri-co da tela - e sua concorrncia com o ponto de fuga principal - desempe-nha na pintura do Quattrocento, onde ele representa nada menos do que o princpio divino. Em toda a pintura clssica, o quadro-limite e a superfcie da tela so investidos de um valor propriamente retrico: a tela "fal', exibe seu decorum, sua composio simbolicamente correta: e o quadro-limite o ope-rador desse discurso. nesse sentido, somente nesse sentido que se pode diz-er, com Louis ]\1arin, que o quadro um operador de refl.exividade, que ele permite tela se enunciar como tela e como discurso.

    Naturalmente, uma tela pintada, at mesmo um quadro-limite, no fala. Dizer que ela profere o ser-tela, o ser-discurso da tela, quer, portanto, assinalar 113

  • ,,,,,

    I ' 'I : ~ I 'I' "i.

    o seguinte: o sentido, todos os sentidos possveis de um quadro esto, a um s tempo, contidos na prpria tela, e devem ser lidos a partir de seu lado de fora, o lado de fora mais radical possvel, aquele onde nada mais da imagem existe. (Deixo que meditem sobre essa anedota relatada por Borges em a Histria da eternidade: na gria de gatunos nova-yorquinos do incio do sculo, "picture frame" era uma metfora para a potncia.) Simetricamente, esse sentido no est a por acaso: ele foi posto a por um produtor, que, ele tambm, no est, nunca est na imagem, ainda que delegue a ela, s vezes, sua efgie ou seu fan-tasma. Dito de outro modo: a tela pintada, como enunciado e como significa-o, se produz e se l a partir de um espao que no o da fico, mas um espao discursivo, um fora-de-quadro. Tal operao, a instituio de um fora-de-quadro, incontornvel pela imagem figurativa - e no apenas a pintura -,mesmo se suas modalidades, pouco diz-lo, variaram enormemente. ela que, em ltima instncia, se identifica com a funo do quadro-limite.

    Enfim, interessemo-nos, j tempo, pelo que representa a imagem, por esse mundo imaginrio "que se afina com nossos desejos". Uma imagem, tal-vez no seja suprfluo diz-lo aps Lacan, , a um s tempo, gato por lebre, a tica e o imaginrio. Ela feita para que ns nos percamos nela - sabendo, ou mais raramente, sem o saber -, e a produo de imagens em nossa cul-tura "oculocentrist' no seno o casamento do objetivo com o subjetivo, a indistino de ambos. Fazer uma imagem , portanto, sempre apresentar o equivalente de um certo campo - campo visual e campo fantasmtico, e os dois a um s tempo, indivisivelmente. (O equivalente apenas: o campo visual tem muitos caracteres diferentes da imagem, a comear por sua variabilida-de, da qual at mesmo a imagem do filme s mostra uma aproximao, como vimos. Sem falar no campo da fantasia.) O quadro, portanto: os limites desse campo, suas bordas, antes porm, pois elas no pertencem ao campo, as bor-das daquilo que, do campo, nos dado ver. Dito de outra maneira, do cam-po, tampouco, o quadro faz parte: ele , sempre, um operador, operador de uma certa vista (a pintura, com efeito, d a ver, e, inseparavelmente, enclau-surao olhar, faz no ver). Abertura sobre a vista e o imaginrio, esse quadro merece receber um nome que crie fico: eu o chamarei, evidentemente, de

    114 quadro-janela.

  • Janela d a entender que h, atrs dela, esse algo que se v, ao menos se tomamos totalmente ao p da letra essa metfora tradicional. Foi o que quis Bazin, que gostava de fazer acreditar que se poderia atravessar as aparncias, essa "janel'. Mas em Leon Battista Alberti, que foi seu promotor, a metfora era mais prudente, mais metfora. Alberti no ignorava que o "mundo" sobre o qual se abre a janela no o nosso, mas, em parte, ao menos, o do smbolo. E alis, ele no tinha do mundo natural a mesma idia que ns: os smbolos, para ele, j estavam no mundo, por graa divina. (O mesmo acontece com a concepo albertiana da perspectiva artificialis. O ponto de fuga central, onde se quis, com tanta freqncia, ver a marca da naturalizao geomtrica e da ideologia humanista, correspondia sobretudo, para Alberti, ao "rei dos raios" -a expresso dele prprio -,ou seja, ao raio divino.) Alis, sobre esse pon-to, a histria da pintura no tem ambigidade: se a pintura quatrocentista pro-cura, efetivamente, "abrir a parede" (Vasari), quase um sculo mais tarde, a pintura di maniera j vai alm dessa busca, e quer "fazer surgir com a mesma fora o volume da figura e a superfcie da tel' (Daniel Arasse) . Janela, se se quiser, mas janela ilusria.

    Trs funes do quadro: foi com um vocabulrio casual, um pouco ajeitado, que tentei desdobr-las. No posso dizer, por exemplo, que esteja muito satis-feito com a expresso "quadro-objeto", que tem o inconveniente de dar muita importncia natureza material desse quadro. Parti, eu o disse, do enquadra-mento de madeira, no mais das vezes dourado e esculpido vontade, e que foi, por muito tempo, quase obrigatrio. Mas obrigatrio por qu, para qu?

    Por dois efeitos principais, me parece, que vo permitir esquecer o vocabu-lrio e afinar a definio deslocando-a. Primeiro efeito: trata-se sempre de transformar a percepo da tela pintada, e de vrias maneiras. O dourado do quadro (moldura), por exemplo, ou, se no for dourado, sua ptina, tudo menos inocente: o dourado remete prpria tela pintada uma luz amarelada e suave, que inunda a imagem sem afog-la, que a banha difusamente, sem se fazer notar. preciso aqui dar provas de um pouco de imaginao e tentar ver 115

  • - difcil apesar do retorno, na museografia moderna, s iluminaes difu-sas, sempre, ai de mim, frias - as telas pintadas como podiam aparecer nos cmodos pouco iluminados, com velas. Um texto como o admirvel Elogio da sombra, de Tanizaki, escrito, no entanto, em um contexto bem diferente, pode nos ajudar. A moldura, a cornija, adapta a luz ambiente e a luz da tela uma outra: ela assegura uma mediao. esta, de modo mais amplo, sua funo perceptiva: ser um intermedirio, e forosamente paradoxal, como todo inter-medirio; integrar a tela pintada a seu ambiente e ao mesmo tempo separ-la dele visivelmente. Integrao, j que o enquadramento faz da tela pintada uma pea de mobilirio e de cenrio que combina com os mveis, com os lambris; separao, j que ele se sobressai na parede, que ele comea a abstrair o inte-rior da tela pintada como um mundo parte. A ainda, a poca maneirista ofe-rece os exemplos mais demonstrativos, aqueles que jogam de modo mais deli-berado com essa unio-oposio entre enquadramento e "istoria".

    O visual nunca vem sozinho, e no pude deixar de indicar o segundo efei-to, o efeito simblico, alis tambm ele multiplicado. O ouro do quadro (mol-dura) clssico - como o ouro dos interiores de templo ou de apartamentos principescos de que fala Tanizaki- deixa transparecer a riqueza, ele a osten-ta. Ouro ouro, e no insisto, a no ser sobre um ponto, que no indiferente: o ouro circula. Presente no quadro (moldura) , ele est presente fora do quadro (moldura), na forma real (em outros mveis) e na forma simblica; e sobretu-do ele est, s vezes, dentro do quadro (moldura). A Anunciao, de Simone Martini, a Apoteose da Virgem, de Fra Anglico, e mil outras telas pintadas do Trecento tm, a um s tempo, um quadro (moldura) dourado e um fundo em ouro, a ponto de, em certos casos, um ser como que um prolongamento, mate-rial e espiritual outro.

    Mencionei o ouro porque ele o que fala mais facilmente; mas os efeitos simblicos, evidentemente, no se esgotam a. Se o quadro-objeto simboliza o valor, tambm, e cada vez mais, a partir do Renascimento, na medida em que significa o controle do pintor, onde diz o inefvel do estatuto de artista. Um pintor como Jan van Eyck chegava a fazer seus prprios quadros (molduras), cujos moldes complexos trabalhava e pintava em seguida - como tambm o

    n6 reverso do painel - para simular o mrmore ou o prfiro, outros materiais

  • preciosos. Em suma, cabem ao quadro-objeto todos os valores que marcam a fora da instituio pictrica em todos os seus estados: status do quadro, sta~ tus do artista, status social do possuidor ...

    Funo perceptiva, funo simblica, sem esquecer a materialidade: estes seriam, portanto, os traos pelos quais eu poderia definir o quadro-objeto, e que, melhor ainda, poderiam se substituir a essa expresso, para poder pro cu-rar suas manifestaes mltiplas, na prpria ausncia desse objeto separvel do qual partimos. Nem os afrescos de Arezzo, nem os de Boscoreale tm qua-dro (moldura) separvel. Eles no mobilizam "objeto" algum; eles tm, no entanto, realmente, um quadro (moldura), arquitetnico, no caso, verdadeiro cofre da obra, que determina suas condies fsicas de percepo e a situa sim-bolicamente. Isso se tornar ainda mais evidente se pensarmos em casos extre-mos, em trompe-l' oeil, por exemplo: a clebre abbada pintada de San Ignazio, em Roma, depende, absolutamente, de seu quadro (moldura) para uma per-cepo correta- um pequeno disco sobre o cho da igreja marca o ponto de onde se deve olhar. Poderamos multiplicar os exemplos, evocar os "gabinetes" em trompe-l' oeil flamengos e, claro, as anamorfoses- em cilindro ou em cone - etc. Encontraramos sempre, para alm da diversidade dos enquadramen-tos, objetos - e s vezes em sua ausncia total -,algo que assegura o condi-cionamento material e psicolgico do espectador, sem o qual a obra pictrica no funcionaria nem em termos de perceptiva, nem simbolicamente, ou seja, no existiria. Esse algo , em um sentido forte, um dispositivo.

    J evoquei, acima, o que hoje se chama de "dispositivo", e no preciso diz-er novamente em que esse termo, mais ainda do que pintura, apropriado ao cinema. Tambm est claro que, nessa definio cada vez mais geral do "qua-dro-objeto, eu procurava, pouco a pouco, me aproximar do cinema e, sobretu-do, evitar ver equivalentes onde no h nenhum. Poderamos, certamente, se fizssemos absolutamente questo, encontrar, em torno da tela cinematogrfi-ca, algo que sirva de quadro-objeto. O que, creio, se aproximaria mais dele seriam as cortinas, que, na Frana, em todo caso, abertas no incio do filme, o enquadram durante a projeo. Mas essa equivalncia fraca: as cortinas tm apenas um papel perceptivo muito reduzido, seu valor simblico residual tri-vial e um pouco tolo (elas pretendem imitar a nobreza do espetculo teatral). 117

  • Em suma, se est bem longe do quadro (moldura) dourado, do simples qua-dro (moldura). Dos acessrios da representao cinematogrfica, nenhum, na verdade, encarna de maneira convincente o conjunto das funes que se pode atribuir ao enquadramento da tela pintada. No , no entanto, que tais funes deixem de existir, e de modo intenso, no cinema; o espetculo cinematogrfi-co, vimos, estranho, seu dispositivo, comovente e significativo. Por isso no interior desse dispositivo, ou seja, j, de uma construo abstrata, que se deve procurar o equivalente do quadro-objeto.

    Eu estaria sobretudo tentado a ressaltar aqui o papel do escuro na sesso cinematogrfica. Em primeiro lugar, o escuro em torno da imagem que, lite-ralmente, a torna visvel: em pleno dia, ela empalidece e se apaga, ela se altera de modo ainda mais radical do que a tela pintada sob uma luz crua. Mas pro-fundamente, o escuro que materializa a parte de sombra e de mistrio da ses-so: ele que faz com que os fantasmas existam sobre a tela. A aura da obra fl-mica noturna: nada mais aqui da ostentao luminosa do quadro (moldura) dourado. At mesmo uma certa ambigidade da relao entre imagem e seu quadro-objeto encontrada: o escuro, tambm ele, sua maneira, circula. Ele se coloca, significativamente, sobre determinadas partes da imagem, s vezes a devora por inteiro, como em obras "expressionistas" das quais falarei mais adiante. O preto, ao menos em certos casos, aquilo de que o prprio filme feito. Claro, como qualquer paralelo desse gnero, este frgil. Objetaro, por exemplo, que nada variou mais do que a prpria qualidade desse escuro em volta da tela, que ela varia ainda para quem atravessa os Alpes, ou o Atlntico, e que, alis, com o vdeo, tende-se, hoje, a dispens-lo. (Em uma entrevista de 1978, Jean-Pierre Beauviala evocava como algo logo possvel, e esperava, um espetculo cinematogrfico no qual no se precisaria mais de escuro, sendo a imagem luminosa o bastante e sobretudo no sendo mais projetada. Da ele tirava, alis, as conseqncias exatas em termos de dispositivo: com o desapa-recimento do escuro desapareceriam, segundo ele, o isolamento do espectador e tambm seu silncio.) Tudo isso inegvel, mas no me impede de ver, nesse escuro do dispositivo-cinema que, material e simbolicamente, encaixa a ima-gem, a apresenta, a enquadra, a melhor figura - tambm ela, como o quadro

    118 (moldura) dourado da tela pintada, historicamente datada e perecvel - do

  • quadro-objeto. Caso intermedirio e complexo, na falta de um verdadeiro dis-positivo, seria interessante levar em conta a fotografia. Para nos atermos foto de amador, o quadro-objeto, outrora presente na forma de uma pequena bor-da branca, hoje praticamente desapareceu. A funo simblica, sem dvida alguma, ganha amplamente de toda funo perceptiva.

    As duas outras funes do quadro (moldura) so, provavelmente, mais fceis de ser consideradas juntas e, sobretudo, de ser "estendidas" a todas as artes da ima-gem figurativa. Que devam ser consideradas juntas, , no fundo, o mrito essen-cial de Bazin t-lo mostrado, at mesmo no vocabulrio. O quadro (moldura), nos diz ele, em suma, pode abrir ou fechar a obra; ele pode obrigar o olhar a percorr-la ou incitar o esprito a vagabundear para alm de seus limites. E acrescentarei, por meu lado, que, em geral, ele faz os dois. Limite e janela -ou, na terminologia de Bazin, "quadro (moldura) x mscara''-, a imagem pictrica e a imagem flmica jogam com os dois e, no mais das vezes, com os dois juntos. A histria da pintura est repleta de casos onde o limite se trans-forma em janela e vice-versa, na fronteira, s vezes, do indecisvel. J citei demais o maneirismo e o trompe-l'oeil, e de modo geral verdade que foi sobretudo do sculo xv ao sculo xvn que a pintura se interessou por esses jo-gos e multiplicou-os. Mas em pleno sculo XIX, apesar da emergncia do olho fotogrfico e varivel, apesar da abertura cada vez maior das bordas da tela, a superfcie continua presente nela, marcada por todo tipo de vis: ver, por exemplo, a tendncia planificao na escola neoclssica e seu rebento Ingres.

    O filme, de fato, nos ensinou muito sobre isso. Foi a propsito do cinema que a troca do campo e do fora-de-campo, a irredutvel oposio entre fora-de-campo e fora -de-quadro, e at mesmo, mais recentemente; a difcil relao entre fora -de-quadro e "no-quadro", foram evidenciadas, definidas, estudadas, em inmeros exemplos que ilustram as diversas figuras da quadrilha. Foi a partir do filme que se aprendeu, por exemplo, que o fora-de-campo pode ser a simples continuao do campo, responder a ele e confirm-lo, mas que ele pode tambm transform-lo, e at mesmo enfraquec-lo. Dessa duplicidade 119

  • do fora-de-campo como "figura da ausnci' (Marc Vernet), cuja leitura supe a reconstituio quase policial de uma intriga, foi sobretudo o cinema que tirou proveito. No esclarece ela, entretanto, o jogo dos olhares em toda uma parte da pintura, e no apenas no sculo xx? Do mesmo modo, em grande parte ao peso da instituio e da economia cinematogrfica que devida prpria elaborao da noo de "fora-de-quadro" (inclusive nos filmes auto-reflexivos, Godard frente, dos anos 6o e 70). No , entretanto, uma noo eminentemente aplicvel, para tomar um exemplo "enorme", pintura chine-sa, onde o vazio que o artista utiliza, legvel apenas como marca da ausncia de trabalho, uma verdadeira intruso do fora-de-campo na obra?

    No insisto mais nessa alternncia e nessa coexistncia da "abertur' e do "fechamento", no cinema como na pintura- e tambm, claro, na fotogra-fia. sabido, alis -voltaremos a falar disso no prximo captulo - que na histria das noes de fora-de-campo e de fora-de-quadro, tais como a teoria do cinema as desenvolveu, h, certamente menos teorizadas, talvez, porm mais manifestas no prprio dispositivo, caractersticas inerentes ao espetcu-lo teatral: uma forma de representao qual, em todas as suas pocas, a pin-tura tambm foi ligada. Eu gostaria, por enquanto, de salientar apenas um ltimo ponto. Considerar juntos o quadro-limite e o quadro-janela , como acabo de dizer, justificado por sua prpria reversibilidade em inmeros casos, e essa reversibilidade que pe em evidncia a escolha de duplas de termos - abertura/fechamento, centrpeto/centrfugo- que so o avesso um do outro. Ora, resta entre essas duas noes, apesar de tudo, uma diferena maior, que esses termos podem mascarar, mas que a reflexo sobre o fora-de-campo e sobre o fora-de-quadro no cinema demonstrou: a saber que, se o primeiro orientado e espacializado, o segundo no tem, propriamente falando, dimenso alguma.

    Dito de outro modo: o quadro-limite rege apenas o interior, a superfcie que ele delimita; para alm do quadro-limite, no h nada que possa se rela-cionar com esse interior, nem em termos ficcionais - essa a funo da "janel' -,nem em termos visuais em geral, plsticos, por exemplo. As telas abstratas de Mondrian, com a tenso visual que provocam nos limites do

    120 quadro, justamente, e, alm disso, a nudez deliberada de seu enquadramento,

  • puxam o olho, foi muitas vezes observado, para fora do quadro-limite; mas esse fora no tem nenhuma estrutura espacial que seja pensvel a partir da organizao plstica da tela. No mximo pode-se "prolongar" a tela fazendo atuar, de modo bem intelectual, princpios de continuidade, de coerncia, e quase de verossimilhana, que j so quase princpios ficicionais. Natural-mente, a tela abstrata o lugar privilegiado onde reina, quase sem partilha, o quadro-limite (e apenas a propsito dele que a tese de Bazin tem alguma justificativa). Ao falar, no prximo captulo, de espao cnico a propsito da pintura representativa, indicaremos, obrigatoriamente, que esta conhece o fora-de-campo, e darei aqui um nico e ltimo exemplo da sutileza com a qual a pintura pode jogar com o limite e a janela: a saber, o que se produz na borda inferior do quadro.

    A tela pintada, a obra pintada , geralmente, concebida para ser vista na vertical: ela tem lugar, portanto, entre os objetos verticais e, conforme uma das mais seguras constantes de nossa experincia- inclusive visual, como nota-ram as teorias "ecolgicas" da percepo-, ela pesa, est submetida gravi-dade, no apenas porque os objetos representados so fantasiados como pesa-dos, mas porque as "massas visuais" (Arnheim) tm elas prprias tendncia a se ancorar em um solo, a "cair". Dito de outro modo, a borda inferior da tela pintada aquela na qual, literalmente, tudo se apia. surpreendente, assim, que essa borda tenha, quase sempre, um tratamento~lar, que Te~a em.- ____.....,__......- -~~ .. -., - ~ - --

    conta essa funo de solo e de sustentculo perceptivos e imaginrios. Citarei apenas duas m~nifestae~ , f; eqent; s- ; m .toda a.pintu; a dssi~a~~ ttica que consiste em abrir, na borda inferior, um precipcio mais ou menos ameaador,

    ' . ~ . ' . c ' 1 l"d ' 1 um aJ!!.~.?!JfJ; a que consiste, ao contrano, em re1ora- a, em conso 1 a- a com um rebordo. tendncia "abismo:_p~t.t~[l.,:e~p Q_b_I. ,JQ!.O A_ vi~gef!:l dos_ roc_he-

    -- . dos, de Leonardo, _ou a Deposio de Cristo , de Caravaggio (na Pinacoteca do Vaticano); a tendncia "rebordo" foi mais banalizada, ela um verdadeiro este-

    --- --- --

    retipo do retrato por volt~~e- ~soo (ver_ Rafael, o Perugino etc.). Essas duas tticas so opostas; mas no deixam de ser vestgios de uma mesma crena, al-is, mais ou menos ldica, na existncia do fora-de-campo- na forma de

    - - ""' ~ - - '

    uma potencialidade de "queCli' - , o mesmo tempo que de uma conscincia . --

    aguda do quadro como limite. O ~ne~~~ _9.~~ -~:_~!am__a!~~~-~~-modo m~~ 121

  • JANELAS

    A janela pictrica abre para o mundo: sempre no mesmo sentido. O cinema multiplica as janelas, as atravessa,Jaz delas o lugar do mistrio e do in -visto, mas tambm as imobiliza em sobrequadro.

    J. Alt, Vista do ateli do artista (1836) [acima]; fotograma de Dreyer, Vampyr (1930-1931) [p. 125]; fotograma de Hitchcock, Os pssaros (1954) [p.128]; Fotograma de Oshima, Imprio dos sentidos

    122 (1976) [p.131].

  • ostensivo, torna,_p_rovavelmente,_u_f!!_.E_Ouco mais intercambiveis as bordas do q~adro; nem por isso ele insensvel a-~-s~~ "gr-;vicf~d.e" visuaC se as ~rd.as laterais so prioritariamente destinadas entrada e sa_~!' a .!:?o.!cla ~nferior _ ~e;;_pre, de ~odo mais espetacular, -..... -- ---- .

    - em Hitchcock, em parti~~a~ dos...JJJ.ais.:enquadradores" de todos os grandes cinea~as, que gosta de deixar escorrer para baixo, para a ausncia, sob a borda inferior, as personagens que ~stQ_morrendo - a menos que, reno-

    ---------- . ---

    vando a ttica do rebordo, ele no redobre o qu~dro, com uma janela, por exemplo, atravs da qual o esp_ectador supostamente olhar (ver, por exemplo, a cena do assassinato em La Chienne).

    Resumindo: o que procuro fazer aparecer , antes de tudo, que no h dois tipos de quadro, o pictrico e o flmico, que seriam de naturezas diferentes, um, quadro (moldura) verdadeiro, o outro, simples mscara. H funes do quadro, mais ou menos universais - no pretendo ter esgotado a lista -, diversamente atualizadas a partir de pressupostos estilsticos, eles prprios historicamente variveis. No significa, evidentemente, que se deva apagar to-das as diferenas, e vou, daqui a pouco, salientar duas ou trs delas; mas tais diferenas so menores em matria de quadro do que em qualquer outra parte, ou, se se quiser, em termos de guadro que cinema e pintura tm a

    ~ --- --- ---semelhana mais clara - talvez por ser a mais superficial-, como tenderiam ____ ;..._ _____ - ----- -- . - - -

    -~ p~~v~r-os pastiches e as citaes de um pelo outro, quase sempre nos termosl.. fetichizados por muitos cineastas e muitos crticos, da composio~ O plano da to; re de Babelem Metroplis, os do arco-ris e da arca em Noah's Ark (Michael Curtiz, 1928) so, provavelmente, caricaturas de "planos-telas pintadas"; nem por isso deixam de manifestar a confiana totalmente ingnua feita, em toda parte, a essa semelhana, considerada um parentesco. Em uma poca, verda-de, ainda mais arcaica, no propunha Vachel Lindsay aumentar foto gramas de filmes para fazer deles obras de arte? E um certo Victor Freeburg no fez, em 1923, repousar o essencial da "beleza pictrica'' no cinema sobre o respeito dos princpios da composio harmonio:>a? 123

  • Diante de todo esse mau gosto, diante dos ataques de pompierismo aos quais a semelhana serviu de pretexto, quadro por quadro, do filme e da tela pintada, compreende-se a salutar persistncia de Bazin em deslindar os seg-mentos estilsticos (o academismo dos "planos-telas pintadas" devia ser abso-lutamente insuportvel para o cantor do neo-realismo). Lamentamos apenas que, como muitas vezes, ele passe do campo estilstico, onde sua fineza crtica exmia, e caia nesse erro ontolgico-gentico que j expus. Se os Van Gogh filmados por Resnais comeam a contar uma histria, a abrir para um fora-de-campo, , com certeza, em virtude da forte propenso narrativa do cinema, mas tambm porque a histria comea - e com ela a abertura - nas telas pintadas. Se olharmos bem, no por acaso que, em todas as verses de O quarto de Vincent em Arles, ambas as bordas laterais coincidem com uma por-ta ( verdade que Resnais nos faz passar pela janela ... ): uma evidenciao do quadro como abertura que encontramos, em formas cada uma mais visvel do que a outra, em uma enorme proporo de telas pintadas do sculo XIX.

    No indispensvel, alis, inverter totalmente a tese de Bazin, que, mais uma vez, e ontologia parte, tem seus (grandes) mritos estticos; mas, do

    onto de vista voluntariamente geral que adotamos ~qul~.J:od~~!.:ws q~se dizer que qs e !.tos de qgadro ~n~vei~-~~ mesmos em pintura e no cine-ma. O que difere, e isso capital, so os meios empregados para atingir tais

    -efeitos e, por conseguinte, s coii;;to; esttico-e~tilsticos ";;_~quai~~;~n--~ sa~

  • princpios de enquadramento, eles tambm, "gigantescos". Em seu estudo do estilo clssico hollywoodiano, David Bordwell mostrou que tal estilo, fundado

    bre a~-~~::'sidad~s narrativas !l.gadas . categ. mia J:"r:,;on~J'!:? zido uma ma!?~ia : sm: gadora de ? lanos "centralizados"- ou seja, que n~ .. -lhziD.Utllizam muitoP''OC"o7s bfcfsaqa:Y:'(Par Bordwell, a zona

    de7\:e"iitra1zao" do estilo cls~ico ~;p;;~de. o tero superior da imagem e o tero vertical central, uma espcie de "T".)

    O cinema clssico hollywoodiano retoma, portanto, adaptando-o, um prin-cpio bastante antigo: o da centralizao, cujas variantes em pintura e no cine-ma seriam numerosas. A pintura usou muito a ttica que consiste em fazer do centro do quadro um centro de simetria, ou seja, esvazi-lo para equilibrar as figuras em torno dele. Muitas frmulas foram a usadas, algumas at o bagao, das personagens refletidas no espelho de ambos os lados do eixo vertical (Anunciaes, Visitaes) s eqilaterais Trindades e s Crucificaes. Tais frmulas, a ttica da simetria em geral, encontram rapidamente os lugares-comuns simblicos ligados ao binrio, ao duplo, ao ternrio, e com razo que os primeiros tericos da abstrao pictrica tiveram a sensao de estar

  • apenas evidenciando leis muito antigas, at ento implcitas. O cinema tem, evidentemente, mais dificuldade em utilizar simetrias plsticas, a no ser de ~ -- ---rr:odo bastante fugidio, para encarnar situaes de dilogo ou de enfrenta-menta - caricatur;:-;-duel~de faro este nTntri']:([illinesm quaa:r, em ~--- --- - -- --- - -- -- ~ ---- ~-- --- ---- .. ~ -- -- - -

    Cinemascope; ou ento em contextos menos estritamente submetidos ao nar-~ativo: o filme "abstrato", alguns filmes musicais - penso em Match, de Mauricio Kagel, feito inteiramente sobre repeties de formas e simetrias em espelho. Desde ento, a indstrfa o clip se conforma, periodicamente, com es~e jogo forma[ - - - - ___ --- -

    De fato, a centralizao do cinema clssi~ na medi a em que apenas a traduo visvel da centralizao narrativa, J~bil e mj~el. Ela coincide nota-damente com a prtica do reenquadramento 'de-ntvimento de acompanha-mento, que visam manter a centralizao na durao. Outros traos secund-rios da centralizao, a frontalidade das figuras e cenrios, o equilbrio das massas plsticas, buscados por quase to-da a pintura clssica, so mais difceis de obter e manter no cinema, onde so sempre pouco ou muito conotados como "a-clssicos" ou "anti-clssicos", como arcaizantes ou como muito modernos. Do lado dos arcaicos, penso, evidentemente, em Griffith antes de tudo- em seus curtas-metragens da poca da produtora Biograph: afronta-lidade e o equilbrio nunca foram to aparentes nem to constantes quanto naqueles planos em que uma, duas ou trs personagens ocupam a parte da frente da cena, enquanto uma multido de comparsas se agitam atrs. Com-posies construdas, onde se sobrepem, cuidadosamente, ao principal e aes secundrias, estas ltimas sistematicamente impelidas para o fundo do quadro, cuja perspectiva elas, ao mesmo tempo, designam e fecham, enquan-to as figuras do primeiro plano flertam com o eixo de simetria vertical, forte-mente sustentadas nisso pela montagem, como nas alternncias - quase um tique estilstico de Griffith-Biograph- entre planos com uma personagem ~-- esquerda do quadro e planos com uma personagem direita do quadro. -~ Quanto aos modernos, teramos a indeciso da escolha. Encontraremos a,

    - - ------- - ---~.

    sobretudo, interessantes variantes sobre o mesmo princpio diretor: o da cen-tilizao, talcomoessa esignaoenftica Cf~centr;por um ou vrios ~~s-

    126 sris, que poderamos chamar de "sobreenquadramento". Um-quadro- entro -- --~----"' ..

  • do quadro, seria a definio mnima: uma janela, uma porta, em geral uma arquitetura "quadrada''. Lang fez disso um princpio plstico confesso em Os Nibelungos, custa da dispendiosa construo de um cenrio bastante vistoso em sua sobriedade .. Mas encontramos, de modo mais passageiro, a mesma idia atuante em filmes como Psicose ou No correr do tempo, em que os pra-brisas, as portas, os vidros (do carro de Marion Crane ou do caminho de Bruno) so intermedirios entre o quadro da imagem, o olhar da personagem, que eles enquadram, e o olhar do espectador. Em outra parte, em um "barro-co" como Ophuls, sero psichs, penteadeiras, estojos de p-de-arroz, todo o arsenal dos espelhos, mveis ou menos mveis, que pegam, dessa vez, em sua rede olhares de coquetismo salientados de modo bastante pesado (o sobre-quadro como reduplicao reflexiva do quadro: ver a abertura de Desejos proi-bidos). O espelho, o vidro.!. apesar de seu e
  • 128

    auto-suficiente. Mais complexas, as encenaes de um Velzquez, em As meni-nas, claro, mas j em A Vnus diante do espelho, esto mais prximas daqui-lo que falvamos a propsito do cinema. No por acaso que a anlise de As meninas, de Michel Foucault, reutilizada com tanta freqncia pela reflexo terica sobre o cinema: , evidentemente, porque elas apelam mais para um efeito-fico, apesar de embrionrio, que permite s imagens nas imagens desempenhar plenamente todos os seus papis. No sculo XIX, com a marca-o ainda acentuada do enquadramento como vista fictcia, a janela ou o espe-lho participaro, em p de igualdade, da diegese pictrica e da estruturao da superfcie: a jovem sonhadora de A mulher janela, de Friedrich (1822) reen-quadrada, em duas dimenses, pelo parapeito da janela, ao mesmo tempo que seu olhar - ela nos d as costas - desaparece atrs do vidro. Inversamente, mas segundo a mesm~ lgica, em nossa direo que olha a Madame Moitessier, de Ingres, enquanto o espelho pintado direita do quadw'recorta suas costas, sua nuca, como que para uma outra tela.

  • Em todas essas variantes do efeito de centralizao, o que me surpreende - e foi por isso que citei tanto Arnheim -, a impossibilidade em que se encon-tra, manifestamente, toda a representao ocidental at o cinema, clssico pelo menos, de separar a janela e o limite, a profundidade fictcia e a superfcie real. Explorarei mais demoradamente, no prximo captulo, essa idia de que, em nossa cultura visual, h uma dupla e indissocivel natureza das imagens. Mas, para permanecer na questo do quadro, gostaria de considerar uma ltima variante estilstica do princpio de centralizao, que, talvez de modo mais radical, com certeza mais espetacular, confirma essa duplicidade: quero falar, j tero adivinhado, do jogo com a descentralizao.

    Para Arnheim, que lhes consagra um longo desenvolvimento, as diversas modalidades da descentralizao no passam, uma na outra, de uma espcie de "avesso" da centralizao. Que a tnica visual coincida com o centro geo-mtrico, que, ao contrrio, ela se afaste dele com ostentao, sempre ao mes-mo princpio, nos diz ele, que se volta, sempre a um conflito entre o geomtri-co e o plstico, ou seja, entre o simblico e o visual. Na abordagem de Arnheim, que concede, j o disse, a preeminncia ao visual, essa uma posi-o lgica dificilmente contestvel. Ela deixa, entretanto, um pouco de insatis-fao, se a relacionamos no mais exclusivamente com a pintura, e sim com o cinema, devido incidncia enorme, neste ltimo, dos efeitos ficcionais sobre a funo do quadro. As coisas so, alis, bastante claras: por ele ser mais sens-vel ao valor ficcional, diegtico do centro - e ser tambm mais formado pela imagem do filme-, Pascal Bonitzer (a referncia se impe) tem uma posio

    - ---------,,.---- --- -- ...... - - _ ... _ . .., ~ -

    razoavelmente diferente.l':-J.a s_rie_d~a!"_tig9 9_ns grQQ a filmes ma_;:cados pela descentralizao, Bonitzer define o que ele chama ( o subttulo, eloqen-

    - ., - - - - --

    te, da srie) de " esenqua.ramen ts"-:''Dsenquadramento" no exa~~m~n-te "descentil1zao" --=- veremos em que, e apreciaremos o de~loca~-e~~~; e? que eledesigna assim se caracteriza por trs traos: primeiro, o desenquadra-mento suscita um vazio no centro da imagem; segundo, ele re-marca o quadro como borda da imagem; terceiro, enfim, ele s pode se resolver na seqencia-lidade, e, no cinema, tende efetivamente a ela.

    Esse conjunto de traos fortemente ttico: em Bonitzer, eles valem, com efeito, no menos para uma definio do cinema moderno, e at mesmo, 129

  • ~uando preciso for, simp~esmente do.cinem_a, do c~ema. tal co~o Bonitzc:r /~oncebe e gosta dele. Nao tenho a mtenao de drscutu aqm a con -\ "heterolgic' do cinema que essa definio subtende, e que, por ser

    \ esttica perfeitamente coerente - derivada da de Eisenstein -, no tem alcance absoluto que s vezes lhe atribui Bonitzer. Eu me interessarei, portan-to, pelo desenquadramento unicamente como fenmeno estilstico, no mes-mo patamar que a centralizao analisada por Bordwell. E no evidente-mente por acaso que aproximo um do outro, j que os trs traos que acabo de enumerar, considerados individualmente ou em bloco, formam exatamen-te uma espcie de negativo do estilo centrado do cinema clssico: um preen-che o centro, o outro o vazio; um procura fazer esquecer as bordas, o outra as marca; um esttico, o outro dinmico. O desenquadramento, em suma, se-ria "o contrrio" da centralizao: ele definiria o estilo no-clssico por exce-lncia, e, por que no, um cinema menos apanhado na iluso diegtica. Foi, alis, por uma crtica ideolgica do estilo clssico que Bonitzer comeou outrora a trabalhar seu sistema.

    certo que com Antonioni ou Straub, dois mestres do desenquadramento, tem-se rapidamente o sentimento de um sistema formal que se oporia ao sis-tema clssico, sua centralizao e tambm sua transparncia. Nem assim estou certo de que todos os traos do desenquadramento tenham a mesma importncia. Sendo um pouco rpido, parece-me que o primeiro e o terceiro, considerados juntos, significam o seguinte: no cinema do desenquadramento, o centro da imagem, antes esvaziado, ou seja, devemos enfim precis-lo, esva-ziado de qualquer personagem, esvaziado da figura humana, e somente dela, se encontra em seguida, ao menos potencialmente, preenchido novamente pelo jogo de outro desenquadramento, que suprime o primeiro desenquadramen-to. No fundo, com uma pequena diferena, claro, que no se pode negligen-ciar, de uma dinmica amplificada, isso s descreve um estilo globalmente esttico, que no realmente o avesso do classicismo, e sim uma de suas variantes. exatamente o que se passa no exemplo de Griffith, que citei h pouco, com o jogo das_personagens ocupando a esquerda, a direita, o centro.

    Vamos nos entender: no procuro, de modo algum, sugerir que o desen-130 quadramento no existe ou no interessante. Ao contrrio. Simplesmente, tal

  • 1:

    ~uando preciso for, simplesmente do cinema, do cinema tal como Bonitzer o /L~oncebe e gosta dele. No tenho a inteno de discutir aqui a concepo \ "heterolgic' do cinema que essa definio subtende, e que, por ser uma

    \ \ esttica perfeitamente coerente - derivada da de Eisenstein -, no tem o

    130

    alcance absoluto que s vezes lhe atribui Bonitzer. Eu me interessarei, portan-to, pelo desenquadramento unicamente como fenmeno estilstico, no mes-mo patamar que a centralizao analisada por Bordwell. E no evidente-mente por acaso que aproximo um do outro, j que os trs traos que acabo de enumerar, considerados individualmente ou em bloco, formam exatamen-te uma espcie de negativo do estilo centrado do cinema clssico: um preen-che o centro, o outro o vazio; um procura fazer esquecer as bordas, o outra as marca; um esttico, o outro dinmico. O desenquadramento, em suma, se-ria "o contrrio" da centralizao: ele definiria o estilo no-clssico por exce-lncia, e, por que no, um cinema menos apanhado na iluso diegtica. Foi, alis, por uma crtica ideolgica do estilo clssico que Bonitzer comeou outrora a trabalhar seu sistema.

    certo que com Antonioni ou Straub, dois mestres do desenquadramento, tem-se rapidamente o sentimento de um sistema formal que se oporia ao sis-tema clssico, sua centralizao e tambm sua transparncia. Nem assim estou certo de que todos os traos do desenquadramento tenham a mesma importncia. Sendo um pouco rpido, parece-me que o primeiro e o terceiro, considerados juntos, significam o seguinte: no cinema do desenquadramento, o centro da imagem, antes esvaziado, ou seja, devemos enfim precis-lo, esva-ziado de qualquer personagem, esvaziado da figura humana, e somente dela, se encontra em seguida, ao menos potencialmente, preenchido novamente pelo jogo de outro desenquadramento, que suprime o primeiro desenquadramen-to. No fundo, com uma pequena diferena, claro, que no se pode negligen-ciar, de uma dinmica amplificada, isso s descreve um estilo globalmente esttico, que no realmente o avesso do classicismo, e sim uma de suas variantes. exatamente o que se passa no exemplo de Griffith, que citei h pouco, com o jogo das personagens ocupando a esquerda, a direita, o centro.

    Vamos nos entender: no procuro, de modo algum, sugerir que o desen-quadramento no existe ou no interessante. Ao contrrio. Simplesmente, tal

  • como o defini retomando Bonitzer, ele continua a fazer referncia, em parte, centralizao, continua a ser seu "avesso cmplice", como se dizia outrora. Dizer que o centro est vazio de qualquer personagem persistir na proble-mtica da narrao. O cinema que s exclusse as personagens do centro, para melhor traz-las de volta a ele, no faria, justamente, outra coisa que descen-tralizar, que excentraliiar; ele permaneceria exatamente na lgica da centrali-zao, como se pode dizer que as extraordinrias excentralizaes de Tin-toretto no atacam em nada a centralizao da representao, melhor, elas a reforam. (Na exemplar Ceia, de Tintoretto, o ponto de fuga principal brutal-mente puxado para a extrema direita, quase no canto superior direito da tela; fica-se ainda mais siderado pela figura do Cristo, seu nimbo luminoso, em pleno centro, e, no canto esquerdo, a fonte de luz, manifestamente divina, que equilibra perfeitamente o ponto de fuga.) Por isso realmente o segundo trao da definio que, por si s, me parece carregar o essencial, e talvez fosse preci-so citar apenas ele. O que faz do desenquadramento algo diferente de uma des-centralizao, o que permite fundar sobre ele uma esttica que ele transfer-

    I ma o equilrbrio clssico entre as funes do quadro: menos a hipottica e sempre frgil presena das personagens na borda do quadro do que o carter ativo, resoluto, marcado dessa borda que conta, ou seja, a nfase dada ao qua-dro como limite e, sobretudo, como operador terico. Em um filme como 131

  • O JOGO COM A BORDA

    Bordas laterais, borda inferior; instituio de um rebordo ou, ao contrrio, de um "abismo"; permea-bilidade ou intransponibilidade; re-marcagem realista ou quase-abolio fantstica. A pobre metfora da janela perde, a cada vez, um pouco mais de sua substncia.

    H. Sanders-Brahms,A//emagne, mere blafarde (1980) [acima];fotograma de Wenders, No correr 132 do tempo (1975) [p.135]; fotograma de Cocteau, Orfeu (1950) [p.136].

  • Othon, de Straub e Huillet, em que os planos so longos e os desenquadramen-tos violentos, as personagens nunca tm o poder de voltar a ocupar o centro; bem mais, torna-se suprfluo em um filme desses se perguntar se a composi-o simtrica ou assimtrica: ela no nem um nem outro, j que sempre precria, est sempre em andamento. Afastando o quadro flmico de seu valor de janela, o desenquadramento realiza o paradoxo de separar o filme de seu fora-de-campo. Essa anulao do fora-de-campo difcil obter em pintura, como bem mostram as personagens, cortadas pelo quadro, das telas de Degas, e por isso o desenquadramento um efeito essencialmente flmico.

    O centrar - e, no cinema, os efeitos de recentralizao, de reenquadramento que ele suscita-, a maior ou menor busca da frontalidade e do equilbrio e, claro, todas as formas do que chamei de sobreenquadramento, podiam e po-dem ser pensados mais ou menos exclusivamente a partir do mesmo corpo de hipteses psicolgico-estticas, aquelas que encontramos em Arnheim e em Bordwell, e em virtude das quais a representao - mais pintura em um, mais cinema no outro- tem sempre a ver com o centrorAt ll]:~smo_a ex~nt!:_aliza

    ~o, re0~o, no passa de um meio desviado de ganhar ou de fortalecer o cen-tro ~ o cinema elimina sempre a excentralizao, e, em pintura, ele nunca absoluto; resta alguma coisa, no mais das vezes alguma coisa importante, no centro da tela. Nessa representao centrada, em que os efeitos estilsticos pro-vm do trabalho do fora-de-campo e das variantes composicionais, pintura e cinema esto em p de igualdade.

    No de modo algum o que acontece com o desenquadramnto, tal como acabamos de defini-lo, como ativao das bordas e fora separadora- com-preende-se que ele fascine Bonitzer. Preocupado em "dar novamente prumo" filosofia baziniana, eu quis salientar, antes de tudo, que a histria do quadro, da pintura no cinema, apenas um dos avatares visveis dessa filiao subter-rnea e essencial que procuro delimitar; retendo apenas o que, quadro aqui, quadro acol, parecia ecoar de um a outro, acabei com as diferenas. Ora, o desenquadramento , provavelmente, o ponto sensvel onde uma diferena - 133

  • no digo, evidentemente, uma oposio - apareceria entre as duas artes, pois indicaria que a imagem flmica pode desempenhar mais o efeito de borda, de corte. O que significa isso e, se no se quiser mais uma vez correr o risco de essencializar abusivamente "o" cinema e "' pintura, como isso se traduz?

    Haveria, penso, dois tipos de explicao, ambas ligadas, em ltima instn-cia, bvio, histria das formas. Em primeiro lugar, apesar da possibilidade terica e da existncia efetiva do fora-de-campo em pintura- no estou me desdizendo -, preciso reconhecer que o fora-de-campo atualizado de modo mais rpido, mais fcil, mais freqente no filme. Quaisquer que possam ter sido as insuficincias de seu vocabulrio (ele o primeiro a fustig -las), Noel Burch no estava errado em falar, em sua Prxis do cinema, de um fora-de-campo "imaginrio" e de um fora-de-campo "concreto", de um fora-de-campo que evoca lembranas- j o vimos- e de outro que faz a imagina-o funcionar - nunca saberemos, talvez, com o que ele se parece. Esse duplo regime no existe para a pintura: ela conhece apenas um fora-de-campo, e ele no concreto. Quando Degas corta, na borda do quadro, o rosto de uma per-sonagem, no temos dificuldade em "completar" imaginariamente. Sempre o princpio de complexo e, notemos, alis, que a est, bem exatamente, a tercei-ra das trs maneiras, para Burch, de determinar um fora-de-campo. Isso no impede que, sobre a parte que falta de rosto, certeza alguma, nem sequer retrospectiva, nos ser um dia concedida.

    Atuando a um s tempo no registro da imaginao e no da memorizao i ediata, o filme teria, dito de modo um pouco rasteiro, um acesso mais sim-ples, mais natural ao fora-de-campo, sem falar ainda de coerncia diegtica e de efeito-fico. Corolariamente, o fora-de-quadro seria a mais longnquo,

    L mais visivelmente heterogneo, mais perturbador. Mobilizando a imaginao, e somente ela, o fora-de-campo pictrico a deixa divagar, e acaba sempre levando-a, inevitavelmente, ao mundo fingido, sua produo, ao pintor, em ~ ~ma, ao que fora-de-quadro em pintura. O espao da produo do filme, mantido distncia pela fora da iluso diegtica, pelo reforo permanente

    134

    que os efeitos enganosos de rememorao e de dj-vu lhe trazem, s pode retornar de muito mais longe, portanto, com muito mais fora. Tal rememora-o enganosa pelo fato de ser, evidentemente, mimicada e convencional: sal-

  • vo no caso de um movimento de cmera - e mesmo a pode-se sempre tra-pacear-, o fora-de-campo "concreto" de Burch s o na medida da crena no mundo diegtico como mundo coerente e unitrio. Estritamente falando, todo fora-de-campo sempre imaginrio, como tambm o campo.

    Estou esquematizando, sem dvida, pois os efeitos de crena nunca so, afinal, to brutais, nem to marcados, e o espectador, at mesmo do filme mais cativante, sabe que est no cinema; mas o filme, falo do filme de fico, brinca sempre com a borda do quadro como com o fogo. Alis, mesmo o fora-de-campo "imaginrio"- no sentido de Burch: aquele que nunca nos mostrado

    \

    -,por mais fora-de-campo que seja, pode, se for mantido no no-visto com insistncia, provocar a irrupo do fora-de-quadro, ou, ao menos, uma certa

    erturbao, causada pela ambigidade de seu status. Como prova disso ape-r nas o jogo, s vezes ambguo, com a borda inferior, do qual j falei. Em Varit, que um pouco o arqutipo desse efeito, a persistncia do campo "vazio" enquanto ocorre o assassinato "embaixo" do quadro, a lenta subida, pela mes-ma borda inferior, da mo segurando a faca, seu brusco mergulho, tudo con-tribui para colocar o espectador em uma situao desconfortvel, em que ele deve, a um s tempo, acreditar no fora-de-campo como bastidor do campo, e 135

  • 136 1

    sentir essa elipse visual como o produto de uma coero institucional: um cdigo de decncia cinematogrfico, que probe mostrar a violncia do assas-sinato e transfere, no mesmo lance, essa violncia para a forma flmica.

    Tudo isso pode ser traduzido de outra maneira: se, na imagem de filme, as bordas so mais permeveis e, ao mesmo tempo, terrivelmente marcadas, porque o cinema uma encarnao mais completa do olho varivel, porque o olho produtor- a cmera- a mais passvel de ser fantasiado como pirmi-de visual mvel, como amostragem de um campo e, correlativamente, como recorte. Foi para o cinema que foi forjada a palavra enquadramento, no cine-ma que ela ganha seu verdadeiro sentido, o sentido de uma atividade do qua-dro que funda, tambm, o desenquadramento. Cineastas, os que do uma .. importncia decisiva _fil~g~tp., sempre soube;am:quadro se ctefi"~e ~o ~ -pel~ que el;~ntm quanto pelo-;;~:E tam~m_J].cl;;_ eiii:lriY:e_ e_,_

    - - - __...,.. __ ,.,..,.....- ~ ~" """ --

    . ~?~ch, Straub-Huiget -,que, no interior do cinema modern_o, .enf91l!!~~ia-mos os estilos, a um s tempo, mais atentos s mil nuances, aos mil detalhes do

    c~mp, ~-~~is deliberadamente v ulnerveis s proezs-ao fora-de-qu dro. --

  • C estamos de volta, com tudo isso, s aventuras do olho. Era, provavel-mente, inevitvel e um ltimo sinal que o quadro flmico no seja exatamen-te o quadro pictrico. Seria fcil aqui fechar outros circuitos, remeter ao que se dizia, mais acima, da mobilidade, da tomada de distncia, do primeiro plano. O primeiro plano, j foi dito o bastante, pro