aulas1a10.pdf

45
Notas de aula - MAT0315 - Introdução à Análise Real Em cursos de cálculo, algumas ideias são apresentadas de modo intuitivo e informal. His- toricamente, foi desse modo, intuitivo e informal, que certos conceitos foram criados. Entretanto, alguns avanços na teoria passaram a exigir maior precisão e rigor para que certas questões fossem esclarecidas, o que aconteceu de modo gradual a partir de 1820. A esse estudo mais rigoroso e profundo dos números e suas funções damos o nome de Análise Real. Neste curso iremos estudar números reais, limites, continuidade, funções dadas por inte- gral, séries numéricas e séries de funções. Decidi escrever estas notas pela dificuldade que tenho sentido em adotar um único livro- texto que aborde todo o conteúdo programático da disciplina MAT0315, e da forma que considero adequada para os alunos da disciplina, a saber, não extremamente rigoroso, por ser um primeiro contato com o assunto, mas já avançando um pouco nessa direção. Além das ideias da análise matemática, estas notas de aula têm também uma meta especial, que é mostrar, sempre que possível, a relação entre conhecimentos estudados em análise real e tópicos de matemática elementar ministrados nas aulas no ensino básico. Algumas partes destas notas têm a forte influência do livro Calculus, de Michael Spivak [7] que, em minha opinião, aborda os vários conceitos de forma clara e objetiva, evitando truques artificiais. Muitos alunos não conseguem se beneficiar de sua qualidade porque, infelizmente, ele não foi traduzido para o português. Outro autor que admiro bastante, mas que apresenta um nível de rigor mais avançado é Walter Rudin. A leitura de seu livro [6] exige maior maturidade. Gosto muito também do livro do Prof. Ávila [1], que foi escrito tendo em mente a formação de futuros professores de Matemática. Esse livro contém valiosas notas históricas que tornam sua leitura bastante interessante e agradável. Os livros do Prof. Guidorizzi se tornaram referências nacionais em cursos de cálculo. Por terem uma abordagem abrangente, os volumes 1 e 4 ([2], [3]) tratam de tópicos que nos interessam e são referências bastante importantes em nosso curso. Acredito que um professor de matemática deva perceber e transmitir a seus alunos a Matemática não apenas como um conhecimento científico, mas também como uma conquista social e cultural. Muitos problemas relevantes para a humanidade foram solucionados com 1

Upload: antonio-nascimento

Post on 18-Dec-2015

225 views

Category:

Documents


10 download

TRANSCRIPT

  • Notas de aula - MAT0315 - Introduo Anlise Real

    Em cursos de clculo, algumas ideias so apresentadas de modo intuitivo e informal. His-

    toricamente, foi desse modo, intuitivo e informal, que certos conceitos foram criados. Entretanto,

    alguns avanos na teoria passaram a exigir maior preciso e rigor para que certas questes fossem

    esclarecidas, o que aconteceu de modo gradual a partir de 1820. A esse estudo mais rigoroso e

    profundo dos nmeros e suas funes damos o nome de Anlise Real.

    Neste curso iremos estudar nmeros reais, limites, continuidade, funes dadas por inte-

    gral, sries numricas e sries de funes.

    Decidi escrever estas notas pela dificuldade que tenho sentido em adotar um nico livro-

    texto que aborde todo o contedo programtico da disciplina MAT0315, e da forma que considero

    adequada para os alunos da disciplina, a saber, no extremamente rigoroso, por ser um primeiro

    contato com o assunto, mas j avanando um pouco nessa direo.

    Alm das ideias da anlise matemtica, estas notas de aula tm tambm uma meta

    especial, que mostrar, sempre que possvel, a relao entre conhecimentos estudados em anlise

    real e tpicos de matemtica elementar ministrados nas aulas no ensino bsico.

    Algumas partes destas notas tm a forte influncia do livro Calculus, de Michael Spivak [7]

    que, em minha opinio, aborda os vrios conceitos de forma clara e objetiva, evitando truques

    artificiais. Muitos alunos no conseguem se beneficiar de sua qualidade porque, infelizmente, ele

    no foi traduzido para o portugus.

    Outro autor que admiro bastante, mas que apresenta um nvel de rigor mais avanado

    Walter Rudin. A leitura de seu livro [6] exige maior maturidade. Gosto muito tambm do

    livro do Prof. vila [1], que foi escrito tendo em mente a formao de futuros professores

    de Matemtica. Esse livro contm valiosas notas histricas que tornam sua leitura bastante

    interessante e agradvel.

    Os livros do Prof. Guidorizzi se tornaram referncias nacionais em cursos de clculo.

    Por terem uma abordagem abrangente, os volumes 1 e 4 ([2], [3]) tratam de tpicos que nos

    interessam e so referncias bastante importantes em nosso curso.

    Acredito que um professor de matemtica deva perceber e transmitir a seus alunos a

    Matemtica no apenas como um conhecimento cientfico, mas tambm como uma conquista

    social e cultural. Muitos problemas relevantes para a humanidade foram solucionados com

    1

  • idias originais envolvendo a criao de conceitos e o desenvolvimento de novas tcnicas. O

    conhecimento e a reflexo sobre tais questes no passado permite que se tenha uma noo da

    real dificuldade do assunto a ser trabalhado em sala de aula. Estas notas pretendem explorar

    tambm esses aspectos.

    Alm disso, ter clareza de que a Matemtica foi desenvolvida ao longo de muitos sculos e

    contou com a contribuio de muitos homens uma lio a ser passada tambm para os alunos,

    que, com isso, conseguem perceber um lado mais humanizado, realista e desmistificado da Mate-

    mtica. As invenes e descobertas vieram como consequncia de reflexes sobre problemas que

    precisavam de soluo e, na maioria dos casos que conhecemos, surgiram como aprimoramentos

    de ideias de outros. O conhecimento de parte dessa imensa construo que ainda est sendo

    feita faz diferena na vida profissional dos professores e, como consequncia, na formao de

    seus alunos.

    Martha Salerno Monteiro

    IME-USP

    2

  • Captulo 1

    Nmeros Reais

    O que realmente sabemos sobre os nmeros reais?

    De acordo com Walter Rudin, em seu livro Princpios de Anlise Matemtica, uma

    discusso satisfatria dos principais conceitos de anlise devem estar baseados em um conceito

    de nmero definido de forma precisa.

    No objetivo deste curso discutir axiomas da aritmtica. Por isso, iremos assumir

    conhecidos o conjunto N = {1, 2, 3, . . .} dos nmeros naturais, o conjunto Z dos nmeros inteirose o conjunto Q dos nmeros racionais.

    Entretanto h algumas questes delicadas relacionadas ao conjunto dos nmeros racionais

    Q ={pq: p, q Z, q 6= 0

    }que precisam ser esclarecidas.

    1.1 Representao Decimal de Nmeros Racionais

    Como todos devem se lembrar, ensinado no Ensino Fundamental que se o denominador

    de uma frao uma potncia de dez, ento esse nmero pode ser representado na forma decimal.

    Por exemplo, as fraes3

    10;

    84

    1000e75

    10podem ser escritas na forma decimal respectivamente

    como 0, 3 ; 0, 084 e 7, 5.

    Observemos tambm os exemplos:

    a)2

    5=

    2 25 2 =

    4

    10= 0, 4

    b)3

    20=

    3 520 5 =

    15

    100= 0, 15

    3

  • c)27

    36=

    33

    22 32 =3

    22=

    3 5222 52 =

    75

    100= 0, 75

    d)6

    75=

    2 352 3 =

    2

    52=

    2 2252 22 =

    8

    100= 0, 08

    O leitor atento deve ter notado que, depois de simplificada ao mximo, se a frao resul-

    tante pqtem denominador q que se fatora em potncias de 2 ou de 5, ento, multiplicando-se por

    potncias de 2 ou de 5 convenientes, esse denominador pode ser transformado em uma potn-

    cia de 10. Consequentemente, esse racional tem uma representao decimal finita, isto , uma

    representao na forma decimal com uma quantidade finita de casas decimais depois da vrgula.

    Recorde que se n0 um nmero natural e d1, d2, . . . dk so algarismos pertencentes ao

    conjunto {0, 1, 2, . . . , 9} ento a representao decimal do nmero x dado por

    x = n0 +d110

    +d2102

    + + dk10k

    x = n0, d1d2 . . . dk.

    Por exemplo, a representao do nmero

    x = 14 +9

    10+

    7

    102+

    0

    103+

    4

    104+

    6

    105

    x = 14, 97046. O nmero n0 = 14 a parte inteira de x e a sequncia de algarismos 97046 que

    fica depois da vrgula a parte decimal de x.

    O que acontece se o denominador de uma frao irredutvel pqtiver um fator primo diferente

    de 2 ou 5?

    A prtica e familiaridade com o algoritmo da diviso (isto , a conta de dividir que

    aprendemos na escola), nos permite perceber que, nesse caso, quando dividimos p por q, iremos

    obter uma conta que nunca acaba, ou seja, a representao decimal infinita!

    Por exemplo,

    1

    3= 0, 333 . . .

    3

    11= 0, 2727 . . .

    2455

    9000= 0, 272777 . . .

    Note que as reticncias escritas acima so imprecisas. Elas indicam que as casas decimais

    continuam, mas no informam precisamente como a continuao. Por esse motivo, quando

    4

  • sabemos que a continuao peridica, colocamos uma barra sobre a parte que se repete. Assim,

    a notao mais precisa dos exemplos acima :

    1

    3= 0, 3

    3

    11= 0, 27

    2455

    9000= 0, 2727

    Entretanto, a experincia, por maior que seja, no nos permite enunciar um resultado

    geral sem uma argumentao que seja vlida para todos os casos. Vamos ento procurar um

    argumento que garanta que se um nmero racional, escrito na forma irredutvel comop

    q, tal

    que q contm algum fator diferente de 2 e de 5, ento a representao decimal desse nmero

    ser infinita e peridica.

    Observe que no possvel multiplicar denominador e numerador por um nmero inteiro

    de forma a transformar o denominador em uma potncia de 10. Por qu?

    Bem, isso consequncia do Teorema Fundamental da Aritmtica, conhecido pelos alunos

    desde o Ensino Fundamental. Esse teorema nos ensina que qualquer nmero natural pode ser

    escrito como produto de fatores primos, de modo nico a menos da ordem dos fatores. Sendo

    assim, qualquer potncia de 10 se fatora, de modo nico, como produto de potncias de 2 e

    potncias de 5.

    Portanto, se o denominador de uma frao irredutvel tem algum fator diferente de 2 e

    de 5 no ser possvel encontrar uma frao equivalente cujo denominador seja uma potncia de

    10. Sendo assim, a representao decimal desse racional ser infinita!

    Exerccio 1.1.1 Determine a representao decimal de cada um dos nmeros1

    7,2

    7, . . .

    6

    7.

    Exerccio 1.1.2 Determine a representao decimal de7

    11,9

    11,10

    11.

    Exerccio 1.1.3 O nmero 117

    tem representao decimal finita, infinita peridica ou infinita e

    no peridica?

    Depois de observar o que aconteceu nos exerccios acima, voc j conseguiu perceber umaargumentao para o caso geral?

    Voc deve ter observado que, na diviso de 1 por 7, encontramos os restos 3, 2, 6, 4, 5, 1

    5

  • e, a partir desse ponto, os restos comeam a repetir: 3, 2, 6, 4, 5, 1, 3, 2, . . .

    1, 0 | 73 0 0, 142857 . . .

    2 0

    6 0

    4 0

    5 0

    1. . .

    Portanto,1

    7= 0, 142857.

    Na diviso de 7 por 11, aparecem apenas os restos 4 e 7, nessa ordem, que iro se repetir

    indefinidamente. Obtemos o quociente 0, 63.

    No caso geral, podemos dizer que, se um racional se escreve, na forma de frao irredutvel,

    como pqe q contm algum fator distinto de 2 e de 5, ento:

    (i) impossvel transformar o denominador em uma potncia de 10, o que torna a represen-

    tao infinita;

    (ii) os possveis restos da diviso de p por q so 1, 2, 3, . . . , q 1. (Note que o resto da divisonunca igual a 0.)

    Portanto, sendo uma diviso infinita e apenas uma quantidade finita de restos possveis, a

    partir de algum momento, algum resto ir se repetir. A partir da, ir aparecer um perodo no

    quociente.

    Assim, conclumos que a representao decimal de um nmero racional, se no for finita,

    ser necessariamente peridica.

    Com a discusso acima podemos concluir que a representao decimal de qualquer

    nmero racional finita ou infinita e peridica.

    Um dos problemas de se lidar com infinitas casas decimais operar com eles. Por exemplo,

    como somar ou multiplicar dois nmeros com infinitas casas? Se for possvel transformar em

    frao, o problema fica resolvido.

    6

  • Veremos adiante como justificar a validade de um processo prtico de transformar dzi-

    mas peridicas em fraes. Trata-se de multiplicar a dzima por uma potncia de 10 conveniente

    de modo a cancelar a parte decimal. Por exemplo, se x = 1, 582, ento x = 1 + 0, 5 + 0, 082.

    Logo, 10x = 10 + 5 + 0, 82. Tambm

    1.000x = 100 (10x) = 100 [15 + 0, 82 + 0, 0082] = 1500 + 82 + 0, 82

    Logo, 1.000x 10x = 1582 + 0, 82 [15 + 0, 82] = 1582 15 = 1567. Portanto, x = 1567990

    .

    Esse processo funciona, mas ser preciso entender por qu! Note que uma dzima , na

    verdade, uma soma infinita de fraes decimais (por exemplo, 0, 9999 . . . =n=1

    9

    10n) e ns ainda

    no aprendemos a lidar com somas infinitas de nmeros.

    Exerccio 1.1.4 Em cada caso, encontre uma frao cuja representao decimal a dzima

    peridica dada:

    a) 0, 4

    b) 0, 250

    c) 3, 04

    d) 0, 221

    e) 4, 00167

    7

  • 1.2 O que so nmeros irracionais?

    Dados dois pontos A e B, o conjunto dos pontos da reta determinada por A e B e situados

    entre A e B, chamado segmento AB e denotado por AB. O comprimento desse segmento

    ser denotado simplesmente por AB.

    Definio 1.2.1 Dois segmentos AB e CD so comensurveis se existirem um segmento EF

    e dois nmeros naturais m e n tais que AB = mEF e CD = nEF .

    No caso que que AB e CD so comensurveis, o segmento EF uma unidade comum, de modo

    que EF cabe m vezes em AB e n vezes em CD.

    Com a notao usada nos dias de hoje, poderamos escrever

    AB

    CD=mEF

    nEF=m

    n

    ou seja, se os segmentos AB e CD so comensurveis ento a razo entre seus comprimentos

    um nmero racional.

    Os gregos antigos j haviam notado que existem segmentos incomensurveis, ou seja,

    segmentos para os quais no existe uma unidade comum. Por exemplo, o lado AB e a diagonal

    AC de um quadrado no so comensurveis.

    De fato, se existisse EF tal que AB = mEF e AC = nEF , com m e n inteiros, ento

    (AB)2

    (AC)2=

    (mEF )2

    (nEF )2=m2

    n2

    Logo, (AB)2 =m2

    n2(AC)2.

    Por outro lado, pelo Teorema de Pitgoras, tem-se

    (AC)2 = (AB)2 + (BC)2 = 2(AB)2 = 2m2

    n2(AC)2

    o que equivale an2

    m2= 2, ou seja, n2 = 2m2.

    Mas tais nmeros naturais m e n no existem! De fato, sendo n um nmero natural,

    o Teorema Fundamental da Aritmtica garante que n pode ser escrito, de modo nico, como

    produto de fatores primos, n = pk11 pk22 . . . p

    krr . Portanto, n2 = (p

    k11 p

    k22 . . . p

    krr )

    2 = p2k11 p2k22 . . . p

    2krr .

    Assim, na decomposio de n2, cada fator primo aparece uma quantidade par de vezes.

    8

  • O mesmo acontece com m2, ou seja, m2 se escreve, de modo nico como um produto de

    fatores primos e cada fator aparece uma quantidade par de vezes.

    Isso significa que a igualdade n2 = 2m2 impossvel, j que na decomposio do nmero

    2m2 h uma quantidade mpar de fatores iguais a 2 e, portanto, no pode ser igual a n2.

    Conclumos assim que o lado e a diagonal de um quadrado no so comensurveis. Equi-

    valentemente, provamos o seguinte resultado:

    Proposio 1.2.2 No existe um nmero racional cujo quadrado igual a 2.

    O conjunto dos nmeros racionais tem falhas!

    Os nmeros racionais podem ser representados geometricamente por pontos de uma reta,

    que chamamos usualmente de reta numrica. De fato, escolhemos um pontoO chamado origem,que representa o nmero 0. Escolhemos um outro ponto P , distinto de O, para representar onmero 1. Tomando-se o comprimento do segmento OP como unidade de medida, marcamosos demais pontos que representam os nmeros racionais. Com isso, todo nmero racional r

    representado por um ponto R da reta. Dizemos que o nmero r a abscissa do ponto R.

    Observe que entre dois racionais quaisquer (mesmo muito prximos) sempre existe outro

    racional entre eles. De fato, se a e b so racionais ento m = a+b2

    racional e satisfaz a < m y se x y P ;x < y se y x P ;x y se x > y ou x = y;x y se x < y ou x = y.

    Em particular, x > 0 se e somente se x P . Os nmeros x que satisfazem x > 0 so chamadospositivos e os nmeros x que satisfazem x < 0 so chamados negativos.

    Note que as desigualdades x < y (x menor do que y) e y > x (y maior do que x) so

    equivalentes.

    Dos axiomas (O1), (O2) e (O3) decorrem algumas propriedades importantes, tais como:

    (PO1) Se a e b so nmeros quaisquer de K ento exatamente uma das afirmaes verdadeira:

    a = b ou a > b ou a < b.

    15

  • (PO2) Propriedade transitiva: Se a < b e b < c ento a < c.

    De fato, como b a P e c b P , por (O2) tem-se que (b a) + (c b) = c a P .Ou seja, a < c.

    Notao 1.4.2 Se as duas desigualdades a < b e b < c so vlidas simultaneamente, podemos

    escrever abreviadamente a < b < c.

    (PO3) Compatibilidade da ordem com a adio: Se a < b ento a + c < b + c, qualquer que seja

    c K.De fato, se a < b ento b a P . Logo, (b+ c) (a+ c) P , ou seja, a+ c < b+ c.

    (PO4) Compatibilidade da ordem com a multiplicao: Se a < b e c > 0 ento ac < bc.

    Como b a P e c P , ento, por (O3), tem-se que (b a)c = bc ac P , ou,equivalentemente, ac < bc.

    (PO5) Se a < 0 e b < 0 ento ab > 0.

    Como a < 0, tem-se que 0 a = a P . Analogamente, b P . Portanto, por (O3),(a)(b) = ab P , ou seja, ab > 0.

    Como consequncia de (O3) e de (PO5), tem-se que x2 > 0, para todo x 6= 0.Um outro fato tambm importante que, como 1 = 12, tem-se que 1 > 0. Observe

    que esse fato no bvio: estamos lidando com corpos ordenados abstratos. O smbolo 1

    representa o elemento neutro da multiplicao e o smbolo 0, o elemento neutro da adio e, at

    este momento, no conhecamos uma relao de ordem entre eles! Note tambm que, at este

    momento, por meio dos axiomas s conhecemos os nmeros 0 e 1.

    Na desiqualdade 0 < 1, podemos somar 1 dos dois lados e obter 0 + 1 < 1 + 1(def)= 2.

    De modo anlogo, fazendo o mesmo com cada nova desigualdade, iremos obter 2 < 3; 3 < 4,

    etc. Tambm, somando-se o oposto de 1 de cada lado, obtemos 1 < 0, 2 < 1, e assim pordiante. Isso justifica o que os professores precisam ensinar no Ensino Fundamental sobre ordem

    dos nmeros inteiros e sua representao na reta numrica:

    - x. . . 2 1 0 1 2 3 . . .

    16

  • Exerccios 1.4.3 Prove as afirmaes

    1. Se a < b ento a > b.

    2. Se a > 0 ento a1 > 0.

    3. Se 0 < a < b ento 0 < b1 < a1.

    4. Se a > 1 ento a2 > a.

    5. Se 0 < a < 1 ento a2 < a.

    6. Se 0 < a < b ento a 0.

    2.x 12 x < 2.

    3.1

    x+

    1

    1 x > 0.

    Definio 1.4.5 Para cada nmero x definimos seu mdulo ou valor absoluto da seguinte ma-

    neira:

    |x| = x, se x 0,x, se x < 0.

    17

  • Vale pena observar que, representando-se x na reta numrica, |x| pode ser interpretadocomo a distncia de x at a origem e, analogamente, fixado um nmero a, |x a| representa adistncia de x at a.

    Teorema 1.4.6 (Desiqualdade Triangular)

    |x+ y| |x|+ |y|, quaisquer que sejam x e y.

    Demonstrao. H vrias demonstraes em diversos livros. Escolhi esta, que um pouco longa,

    porm elementar.

    Vamos considerar 4 casos:

    1. Se a 0 e b 0, ento a+ b 0, pelo axioma (O2). Portanto, |a+ b| = a+ b = |a|+ |b|.(Note que, neste caso, vale a igualdade.)

    2. Se a 0 e b 0, ento a+b 0 (Por qu?). Portanto, |a+b| = (a+b) = (a)+(b) =|a|+ |b|. (Neste caso tambm vale a igualdade.)

    3. Se a 0 e b 0: Como a 0, ento |a| = a e, como b 0, |b| = b. Logo, |a|+|b| = ab.Por outro lado, no sabemos se a+ b positivo ou negativo. Vamos separar em 2 casos:

    - Se a+ b 0, ento |a+ b| = a+ b a b, j que b 0 e b 0.- Se a+ b 0, ento |a+ b| = (a+ b) = a b a b, j que a a.Portanto, se a 0 e b 0, vale |a+ b| |a|+ |b|. (Se b < 0, ento |a+ b| < |a|+ |b|.)

    4. Se a 0 e b 0. (Exerccio.)

    Definio 1.4.7 Se x 0, x o nico nmero positivo cujo quadrado x.

    Por exemplo,4 = 2;

    49 = 7;

    2 = ...

    2 (Sabemos que

    2 irracional. Erra quem

    escreve2 = 1, 41, pois 1,41 uma aproximao de

    2. O valor exato s pode ser indicado

    usando-se o smbolo da raiz.)

    Vamos observar: se x = 3 ento x2 = 9 e x2 = 3 = | 3|. Ser que sempre assim?

    18

  • Proposio 1.4.8 Para todo nmero a, vale que |a| = a2.

    Demonstrao. Exerccio.

    Exerccios 1.4.9 1. Expresse cada sentena abaixo sem o smbolo de valor absoluto:

    (a) |x| |x2|(b) |x| |x3|(c) |a + b| |b| (No se assuste se a resposta no couber em uma linha. Mesmo assim,

    ela pode ser organizada e objetiva.)

    2. Determine todos os valores de x para os quais vale cada desigualdade:

    (a) |x 2| = 1 (b) |x 2| < 1(c) |x 2| > 1 (d) |x 1|+ |x+ 1| < 2(e) |x 1|+ |x+ 1| > 2

    3. Prove que |x| |y| |x y|. (A demonstrao pode ser bem curta, se voc escolher umcaminho conveniente.)

    4. Seja b positivo. Prove que |a| b se e somente se b a b.

    5. Seja b positivo. Prove que |a| b se e somente se a b ou a b.

    6. Prove que se |x x0| < 2 e |y y0| < 2 , ento |(x+ y) (x0 + y0)| < .

    Notao 1.4.10 O mnimo entre dois nmeros a e b denotado por min{a, b}.

    A sentena x < min{a, b} significa que x < a e x < b (simultaneamente). Nos exercciosabaixo em que o mnimo aparece, voc ir precisar de uma desigualdade em algum ponto de sua

    argumentao e a outra desigualdade em outro ponto.

    Exerccios 1.4.11 (Exerccios retirados de [7], captulo 1)

    1. Prove que se |xx0| < min{ 2(|y0|+ 1) , 1

    }e |yy0| <

    2(|x0|+ 1) , ento |xyx0y0| < .

    2. Prove que se y0 6= 0 e |y y0| < min{ |y0|

    2,|y0|22

    }, ento y 6= 0 e

    1y 1y0

    < .19

  • 3. Troque os pontos de interrogao por expresses que envolvem , x0 e y0, de modo que a

    concluso seja verdadeira:

    se y0 6= 0, |y y0|

  • 1.5 Conjuntos Limitados

    Definio 1.5.1 Sejam K um corpo ordenado e A K um subconjunto no vazio. Dizemosque A limitado superiormente se existir um elemento M K tal que a M,a A. Talelemento M chamado majorante ou cota superior de A.

    De modo anlogo, dizemos que o conjunto A limitado inferiormente se existir um

    nmero N K tal que a N,a A. O nmero N chamado minorante ou cota inferior deA.

    Se um conjunto no vazio A limitado superior e inferiormente, dizemos simplesmente

    que A limitado. Nesse caso, existem M e N tais que N a M,a A.

    Exemplos 1.5.2 1. No corpo ordenado Q, o conjunto A = {11, 13, 17, 19, 23, 29, 31, 37},formado pelos nmeros primos entre 10 e 40 limitado e os nmeros 10 e 40 so respecti-

    vamente um minorante e um majorante de A.

    2. No corpo ordenado Q, considere o subconjunto

    B ={ 1n: n N

    }={1,1

    2,1

    3, . . .

    }Como

    1

    n 1,n N, vemos que B um conjunto limitado superiormente, e 1 um majo-

    rante de B. O conjunto B tambm limitado inferiormente e 0 um de seus minorantes,

    j que todos os elementos de B so positivos.

    Observe que os nmeros 5, 10, 100, etc, tambm so majorantes de A, assim como

    1,pi,5 so minorantes de A.

    Se A um conjunto limitado superiormente eM um majorante de A ento todo nmero

    R maior do que M tambm majorante de A, j que se a M, a A e M < R ento apropriedade transitiva garante que a R, a A.

    2. Considere o conjunto B = {2n : n N} = {2, 4, 6, 8, . . .} Q.Como o conjunto B formado apenas por nmeros positivos, B limitado inferiormente

    e 0 um de seus minorantes.

    21

  • Sabemos intuitivamente apenas que B no limitado superiormente, j que, qualquer que

    seja o nmero M > 0 que se tome, por maior que seja, existir um elemento de B maior

    do que M . Em breve veremos como provar essa afirmao.

    3. Considere o conjunto C = { nn+1

    : n N} = {12,2

    3,3

    4, . . .} Q. Como n

    n+1> 0,n,

    temos que nn+1

    < 0,n N. Logo, C limitado superiormente e 0 um majorante de C.Por outro lado, como n < n+ 1, n N, temos n

    n+1< 1,n N. Logo, n

    n+1> 1,n

    N, o que nos permite concluir que C limitado inferiormente e 1 um minorante de C.

    Em muitas situaes pode ser til conhecer o menor dos majorantes ou o maior dos

    minorantes de um conjunto. Esses nmeros recebem nomes especiais.

    Definio 1.5.3 Seja A um subconjunto no vazio e limitado de um corpo ordenado K. O

    menor dos majorantes de A (se existir) chamado supremo de A. O maior dos minorantes de

    A (se existir) chamado nfimo de A.

    Assim, um nmero s supremo de A (escrevemos s = supA) se e somente se:

    (a) (s majorante de A): a s,a A;

    (b) (s o menor majorante de A): se M um majorante de A, ento s M .

    De modo anlogo um nmero i um nfimo de A (i = inf A) se e somente se

    (c) i a,a A e

    (d) se K a,a A, ou seja, se K um minorante de A, ento K i.

    Exerccio 1.5.4 Mostre que se s e t so supremos de um conjunto A ento s = t. Em outras

    palavras, o supremo de um conjunto, se existir, nico. O mesmo vale para nfimo.

    Vejamos alguns exemplos.

    Exemplo 1. Em Q, considere o subconjunto A = {x Q|x < 4}. claro que A no vazio (por exemplo, 2 A) e limitado superiormente: M = 4 ummajorante de A, j que x < 4,x A. Para provar que 4 o supremo de A, basta mostrarque 4 o menor dos majorantes de A.

    Para provarmos que s = 4 satisfaz (b), vamos mostrar, equivalentemente que s = 4 satisfaz:

    22

  • (b) se x < s ento x no majorante de A, isto , existe a A tal que x < a.

    Seja x Q tal que 0 < x < 4. Vamos mostrar que x no majorante de A. De fato,tome m a mdia aritmtica entre x e 4, m = x+4

    2. Ento m Q e m < 4 (de fato,

    x < 4 x+ 4 < 8 x+42< 4). Portanto, m A. Logo, x no majorante de A, j que

    x < m. (Confira esta ltima igualdade!)

    Note que A no limitado inferiormente e, portanto, no admite nfimo.

    Exemplo 2. Em Q, considere o subconjunto B ={ nn+ 1

    |n N}={12,2

    3,3

    4, . . .

    }.

    B claramente no vazio. Vamos provar que B limitado: de fato, como 0 < n < n+ 1,

    n N, ento 0 < nn+ 1

    < 1, n N. Ou seja, 0 um minorante e 1 um majorante deB.

    Vamos provar que supB = 1. Para isso, basta tomar b < 1, b Q e provar provar queexiste um natural n0 tal que n0n0+1 > b. Como

    n0n0+1

    B, poderemos ento concluir que bno majorante de B, o que nos permite concluir que 1 o supremo de B.

    Rascunho. (b < n0n0+1

    bn0 + b < n0 b < n0(1 b) n0 > b1b .)Seja b < 1 (podemos supor b > 0) e escolha n0 N tal que

    n0 >b

    1 b (1.1)

    Ento, b < n0n0+1

    B, o que mostra que b no majorante de B.Observao. A rigor, necessrio provar que tal n0 existe. Adiante, em 1.7.1, iremos

    demonstrar que o conjunto N no limitado2.

    Definio 1.5.5 Seja A um conjunto de nmeros. O maior elemento de A, se existir, chamado

    de mximo de A e, de modo anlogo, o menor elemento de A, se existir, o mnimo de A. Esses

    nmeros so indicados, respectivamente, por maxA e minA.

    Exemplos 1.5.6 1. Se A = {2, 4, 6, 8, 10} Q ento minA = 2 e maxA = 10.2Se voc acredita que isso bvio e que no precisa ser demonstrado, talvez voc esteja sendo influenciado

    demais por seu conhecimento intuitivo. Ns estamos passando a limpo o conhecimento sobre nmeros, com

    base em axiomas e teoremas. Todas as afirmaes precisam de justificativas rigorosas.

    23

  • 2. Se A = {12, 14, 16, 18, 110} Q ento minA = 1

    10e maxA = 1

    2.

    3. Se A = {x Q : 1 x 5} ento minA = 1 e maxA = 5.

    4. Se A = {x Q : 1 x < 5} ento minA = 1 e no existe maxA. (Por qu?) Note que Atem supremo e supA = 5.

    interessante observar que, para determinarmos o mximo de um conjunto, olhamos para

    os elementos pertencentes ao conjunto e, quando precisamos determinar o supremo, olhamos para

    fora do conjunto (para o conjunto dos majorantes). O mesmo acontece com mnimos e nfimos.

    Exerccios 1.5.7 Determine, se existirem, o mximo, mnimo, supremo e nfimo de cada con-

    junto dado.

    1. A = {x Q : 2 < x 7}

    2. B = {x Q : x2 + 5x+ 6 0}

    3. C = {x Q : x2 + 5x+ 6 < 0}

    4. D = { n1+n

    : n N}

    5. E = { 11+x2

    : x Q}

    24

  • 1.6 O Conjunto dos Nmeros Reais

    Provamos anteriormente (veja 1.2.2) que no existe x racional tal que x2 = 2.

    importante compreender que essa afirmao diferente de 2 irracional, j que esta ltima

    pressupe a existncia de um nmero, denotado por2, cujo quadrado 2. Ns no provamos

    que esse nmero existe!

    Nosso prximo objetivo ser descobrir:

    Que propriedade distingue o conjunto dos racionais e o conjunto dos reais?

    Vamos observar mais um exemplo:

    Exemplo 1.6.1 Em Q, considere o subconjunto C = {x Q : x 0, x2 < 2}Temos:

    1) C no vazio, j que, por exemplo, x = 1 pertence a C: 1 Q, 1 0 e 12 < 2.

    2) C limitado: De fato, todo x em C satisfaz 0 x < 3.

    3) C no admite supremo! De fato, os majorantes de C so os elementos do conjunto D =

    {x Q : x 0, x2 2}. Vamos provar que D no tem um menor elemento, ou seja, queno existe o menor dos majorantes de C:

    Seja p D qualquer. Como provamos que no existe racional cujo quadrado igual a 2,sabemos que p2 > 2.

    Defina q = p p2 2p+ 2

    Q. Sendo p2 2 > 0, temos que q < p. Tambm temos:

    q = p p2 2p+ 2

    =p2 + 2p (p2 2)

    p+ 2= 2

    p+ 1

    p+ 2> 0.

    Logo, 0 < q < p.

    Alm disso, q2 2 = 2 p2 2

    (p+ 2)2> 0 (confira as contas! ).

    Portanto, q D. Assim, provamos que para todo p em D existe q tambm em D tal queq < p. Ou seja, o conjunto D no tem mnimo. Isso garante que C no tem supremo (em

    Q).

    25

  • Axioma do Supremo. Todo subconjunto de K no vazio e limitado superiormente

    admite um supremo em K.

    O exemplo 1.6.1 acima nos mostrou que o conjunto Q no satisfaz o axioma do supremo.

    Veremos que o axioma do supremo que distingue os conjuntos R e Q, j que R satisfaz esse

    axioma.

    O teorema a seguir ser apenas enunciado. H duas demonstraes, ambas bastante

    longas e trabalhosas, para este teorema. Cada uma das demonstraes consistem em construir,

    a partir de Q, um conjunto maior, R, que tem todas as propriedades desejadas. O conjunto

    construdo contm Q, no apenas como subconjunto, mas como subcorpo, isto , as operaes

    de adio e multiplicao definidas em R, quando aplicadas a elementos de Q, coincidem com

    as operaes usuais de Q. possvel provar tambm que o conjunto dos racionais positivos so

    elementos positivos de R.

    Teorema 1.6.2 Existe um corpo ordenado que tem a propriedade do supremo. Alm disso,

    esse corpo contm Q como subcorpo.

    No final do curso iremos ver uma das construes do conjunto dos nmeros reais, suas

    operaes e a estrutura de ordem e provaremos que ele satisfaz todos os axiomas de corpo

    ordenado, alm do axioma do supremo. tambm possvel demonstrar que R o nico corpo

    ordenado que satisfaz a propriedade do supremo, a menos de isomorfismo.

    Intuitivamente, o axioma do supremo o que garante que R pode ser identificado com

    os pontos da reta orientada, sem deixar buraquinhos. Por esse motivo, possvel caracterizar o

    conjunto dos nmeros reais como sendo o nico corpo ordenado completo.

    Os elementos de R so chamados nmeros reais. Tambm dizemos que um nmero real

    irracional se no for racional, isto , se for um elemento do conjunto RQ.

    Exerccios 1.6.3 1. Decida de cada afirmao dada verdadeira ou falsa. Se for verdadeira,

    prove. Se for falsa, mostre um contra-exemplo.

    (a) A soma de um nmero racional com um irracional irracional.

    (b) A soma de dois nmeros irracionais irracional.

    (c) O produto de um nmero racional com um irracional irracional.

    26

  • (d) O produto de dois nmeros irracionais irracional.

    2. Determine um nmero irracional entre 0, 001 e 0, 002.

    3. D exemplos de infinitos irracionais entre 1 e 2.

    4. Obtenha o supremo e o nfimo de cada um dos subconjuntos:

    A =

    {n+ (1)n

    n: n N

    }, B =

    {(1)nn

    : n N}

    e C ={ n

    k=1

    1

    2k: n N

    }Justifique sua resposta.

    5. Prove que o supremo do conjunto

    {nk=1

    9

    10k Q |n N

    }= {0, 9; 0, 99; 0, 999; . . .}

    igual a 1. Interprete.

    Nos prximos exerccios, A e B so dois subconjuntos no vazios de R.

    6. Prove que se A B, ento inf B inf A supA supB.

    7. Sendo A + B = {a+ b : a A, b B}, mostre que sup(A + B) = supA + supB e queinf(A+B) = inf A+ inf B.

    8. Se A limitado inferiormente, mostre que A = {x : x A} limitado superiormentee sup(A) = inf A

    9. Suponha que a b para todo a A e todo b B. Prove que supA inf B. Prove aindaque supA = inf B se, e somente se, qualquer que seja > 0, existem a A e b B taisque b a < .

    10. Seja A um subconjunto no vazio e limitado superiormente de R. Prove que b = supA se

    e somente se b majorante de A e para todo > 0 existe a A tal que b < a b.

    27

  • 1.7 Algumas Consequncias da Propriedade do Supremo

    Foi mencionado anteriormente, sem demonstrao, que N no limitado. Vamos provar

    tal afirmao.

    Teorema 1.7.1 O conjunto N no limitado superiormente.

    Demonstrao. Suponha, por absurdo, que N seja limitado superiormente. Como N um

    subconjunto no vazio de R, N admite um supremo R, tal que n , n N. Logo,n+1 , n N, j que n+1 N. Mas esta ltima desigualdade equivale a n 1,n N, oque significa que 1 um majorante de N, menor do que o supremo , o que uma contradio.

    O teorema 1.7.1 equivalente ao teorema a seguir, que chamado por muitos autores de

    propriedade arquimediana.

    Teorema 1.7.2 Se x e y so dois nmeros reais e x > 0, ento existe pelo menos um nmero

    natural n tal que nx > y.

    Demonstrao. Exerccio.

    Corolrio 1.7.3 Para cada x > 0 existe um natural n tal que1

    n< x.

    Demonstrao. Suponha, por absurdo, que tal n no exista. Isso significa que1

    n x, qualquer

    que seja n N. Portanto, n 1x, n N. Mas isso significa que 1

    x um majorante de N, o que

    contradiz o teorema 1.7.1.

    A seguir, daremos uma demonstrao rigorosa para o importante e intuitivo fato que

    entre dois reais quaisquer sempre existe um racional.

    Proposio 1.7.4 Se a, b R e a < b ento existe r Q tal que a < r < b.

    28

  • Demonstrao. Como b a > 0, a propriedade arquimediana garante que existe um naturaln tal que n(b a) > 1. Alm disso, usando novamente a propriedade arquimediana, existemnaturais s e t tais que s > na e t > na. Portanto, t < na < s. Logo, existe pelo menos uminteiro m entre t e s, tal que m 1 na < m. Temos:

    na < m 1 + na < nb

    Como n > 0, tem-se a 0 e todo natural n existe um nico real b tal que

    bn = a.

    Exerccio 1.7.7 (Demonstrao do teorema acima).

    Fixados a > 0 e n N, considere o subconjunto A = {x R |x > 0 e xn < a}.

    1. Mostre que A no vazio. (Sugesto: considere o nmero aa+1

    )

    2. Mostre que A limitado superiormente. (Sugesto: tome M = 1 + a)

    3. Conclua que existe (em R) o supremo de A, que ser chamado de b. Verifique que b > 0.

    O prximo passo provar que bn = a, ou seja, que b a raiz procurada. Para isso, nos

    prximos itens usaremos o resultado a seguir, cuja demonstrao fica a seu cargo:

    xn yn = (x y)(xn1 + xn2y + + yn1) < (x y)nxn1, x, y R | 0 < y < x.

    29

  • 4. Suponha que bn < a. Mostre que existe 0 < h < 1 tal que (b + h)n < a e b + h A.Conclua que isso no pode ocorrer.

    5. Suponha que bn > a. Mostre que existe 0 < r < b tal que se x satisfaz (b r) < x < b,ento xn > a. Conclua que isso no pode ocorrer.

    6. Conclua que bn = a e prove a unicidade.

    Observe que a existncia de razes se baseia na existncia do supremo.

    1.7.2 E a sala de aula?

    Tendo em vista que as representaes decimais dos nmeros racionais so finitas ou

    infinitas e peridicas, costumamos encontrar a definio de nmero irracional como sendo um

    nmero cuja representao decimal infinita e no peridica. Tambm encontramos a definio

    de que o conjunto dos nmeros reais a reunio dos racionais com os irracionais. Assim, um

    nmero irracional positivo da forma = a, c1c2c3 . . . , em que a um inteiro positivo (a 0)e cj um nmero inteiro entre 0 a 9 (cj a j-sima casa decimal de ), e com a restrio que

    essa sequncia de algarismos cj no seja peridica.

    Um aluno poderia perguntar: Como feita a adio de dois nmeros como esse? E a

    multiplicao?

    possvel operar com nmeros que tm infinitas casas decimais? Por exemplo, seria

    possvel somar ou multiplicar2 por pi escritos na forma decimal?

    Uma outra dvida, ainda mais bsica, que pode surgir como saber se um nmero

    irracional? Por mais casas decimais que possamos escrever, nunca teremos certeza se h ou

    no uma sequncia de casas decimais formando perodo a partir de algum ponto. Assim, apenas

    observar as casas decimais no nos permite garantir se um nmero ou no racional. Isso precisa

    ser muito claro para o professor e, caso um aluno pergunte, tem que ser esclarecido para ele

    tambm. Em geral, a demonstrao de que um nmero irracional feita por absurdo, e nem

    sempre fcil. J vimos como demonstrar que certos nmeros da forma nx so irracionais.

    Veremos adiante a demonstrao de que o nmero e irracional. A demonstrao de que pi

    irracional muito trabalhosa e s foi feita no sculo XVIII, apesar desse nmero ser conhecido

    desde a antiguidade.

    30

  • Exerccio 1.7.8 Depois de quantas casas decimais comea a parte peridica do nmero41387

    99000?

    Exerccio 1.7.9 D um exemplo de um nmero racional em que o perodo s aparece depois

    de 10 casas decimais.

    Exerccio 1.7.10 D um exemplo de um nmero racional em que o perodo s aparece depois

    de 100 casas decimais.

    O restante desta seo opcional, embora bastante interessante, em minha opinio.

    Uma definio alternativa para o conjunto R.

    Vamos admitir que os nmeros da forma = a, c1c2c3 . . . , em que a um inteiro positivo

    e cj um nmero inteiro de 0 a 9, estejam bem definidos, isto , vamos admitir que possvel

    calcular a soma infinita a+c110

    +c2100

    +c3103

    + . . .

    A esses nmeros daremos o nome de nmero real positivo.

    Por exemplo, o nmero pi pode ser escrito como 3 +1

    10+

    4

    102+

    1

    103+

    5

    104+

    9

    105+ . . .

    Observe que os racionais cuja representao decimal finita so tais que cj = 0, a partir

    de um certo ndice. Por exemplo, 3, 14 = 3 +1

    10+

    4

    100+

    0

    103+

    0

    104+ . . . , ou seja, cj = 0 para

    j 3.Tambm interessante saber que o nmero 3,14 uma aproximao de pi, bem como

    3,15. O primeiro uma aproximao por falta e o segundo, por excesso. Aproximaes por falta

    so facilmente obtidas, bastando truncar o nmero, isto , apagar as casas decimais a partir

    de algum ponto.

    Sempre que aproximamos, cometemos um erro de aproximao. No caso do exemplo

    acima, tanto 3,14 como 3,15 so aproximaes de pi com erro menor do que 0,01. Se precisarmos

    de uma aproximao com erro menor, basta acrescentar mais casas. Assim, 3,1416 uma

    aproximao por excesso, com erro menor do que 104.

    Sabemos tambm que, como 0, 9 = 1, tambm verdade que 0, 49 = 0, 5; 0, 8369 = 0, 837

    e assim por diante. Para evitar ambiguidades, vamos considerar os nmeros definidos acima,

    com a restrio que a sequncia de algarismos c1, c2, . . . no tenha, a partir de um certo ponto,

    s algarismos 9.

    31

  • Com essa definio, um nmero real um objeto bem concreto.

    Esboaremos, em forma de exerccio, uma maneira de obter a estrutura de corpo ordenado:

    1. Se = a, c1c2c3 . . . e = b, d1d2d3 . . ., defina < se a < b, ou se a = b e existe um n tal

    que cj = dj para 1 j < n e cn < dn.

    (a) D exemplo de um par de nmeros irracionais < que diferem apenas na terceira

    casa decimal.

    (b) Mostre que o conjunto de nmeros assim definidos e com essa relao de ordem

    satisfaz a propriedade do supremo.

    2. Seja = a, c1c2c3 . . . e defina o nmero racional k = a, c1c2 . . . ck, ou seja, k o racional

    obtido pelo truncamento de a partir da k-sima casa decimal. Note que dado um racional

    da forma r = a, c1c2 . . . ck, podemos considerar o nmero real r = a, c1c2 . . . ck 0 0 0 . . ., ou

    seja, r = a, c1c2c3 . . ., sendo cn = cn para todo ndice n tal que 1 n k e cn = 0, sen > k.

    Assim, podemos definir a soma e o produto de dois reais da seguinte maneira: Para

    = a, c1c2c3 . . . e = b, d1d2d3 . . ., defina

    + = sup{(k + k) : k N} e = sup{(k k) : k N}

    possvel verificar que todas as propriedades de corpo esto satisfeitas (o que d um

    enorme trabalho). Como exerccio para poder perceber quais so as dificuldades envolvi-

    das, prove apenas o axioma (A3): para cada nmero real existe um oposto () tal que + () = 0.

    Para um aluno do ensino mdio, o que podemos dizer que a soma e o produto de

    dois nmeros reais podem ser obtidos por meio de aproximaes com quantas casas decimais

    desejarmos. Veja, por exemplo, uma aproximao por falta, com 5 casas decimais, da soma:3199+ pi 0, 31313+ 3, 14159 = 3, 45472. O valor correto maior, j que uma aproximao por

    falta, e o erro cometido menor do que 105.

    Tambm importante ensinar para os alunos que, quando fazemos contas, mesmo com

    uma calculadora, usamos sempre nmeros racionais para aproximar os irracionais. As calcula-

    doras usam muitas casas decimais, mas sempre h um erro de aproximao! Quando queremos

    32

  • uma resposta exata, sem aproximaes, deixamos indicado, como por exemplo, nas frmulas

    ensinadas: a rea do crculo de raio r A = pir2; o volume da esfera de raio r V = 43pir3;

    sen pi3=32; etc.

    1.8 Intervalos

    Alguns subconjuntos de nmeros reais desempenham um papel bastante importante na

    compreenso de certas ideias da anlise. Dentre eles destacam-se os intervalos.

    Se a e b so nmeros reais tais que a < b, definimos:

    o intervalo fechado [a, b]: [a, b] = {x R : a x b};o intervalo aberto ]a, b[ = {x R : a < x < b};e os intervalos ]a, b] = {x R : a < x b} e [a, b[ = {x R : a x < b}.

    O comprimento de qualquer um desses invervalos , por definio, a diferena b a.O primeiro resultado relacionados a intervalos conhecido como Propriedade dos Inter-

    valos Encaixantes.

    Teorema 1.8.1 Sejam [a1, b1], [a2, b2], [a3, b3],. . . , [an, bn], . . . intervalos tais que

    [a1, b1] [a2, b2] [a3, b3] . . . [an, bn] . . .

    Ento a interseco de todos os intervalos no vazia.

    Se, alm disso, o comprimento dos intervalos tender a zero conforme n cresce, ou seja,

    se limn

    (bn an) = 0, ento existe um nico ponto a pertencente a todos os intervalos, ou seja,n=1

    [an, bn] = {a}.

    Demonstrao. Considere o conjunto A = {a1, a2, a3, . . .} dos nmeros reais que so as extre-midades direitas de cada intervalo. Como os invervalos esto encaixados, temos

    a1 a2 a3 . . . bn, n

    Assim sendo, o conjunto A no vazio e limitado superiormente e cada bn majorante de A.

    Pela propriedade do supremo, existe supA = .

    33

  • Como um majorante de A, temos an , para todo n. Por outro lado, como an < bn,para todo n, podemos concluir que bn,n. (Prove!) Logo, para cada n, vale an bn,o que mostra que [an, bn].

    Alm disso, no caso em que limn

    (bnan) = 0, podemos ver facilmente que ser o niconmero real pertencente interseco. De fato, se [an, bn], teremos || (bnan),n.Fazendo n crescer indefinidamente, conclumos que = .

    Observao 1.8.2 Sem a condio limn

    (bnan) = 0, tomando-se = inf{b1, b2, b3, . . .}, vemosque a interseco de todos os intervalos ser o intervalo [, ].

    Exerccio 1.8.3 Prove:

    1. que existe inf{b1, b2, b3, . . .}.

    2. a validade da afirmao dada na observacao 1.8.2 acima.

    Veja que para provarmos que o conjunto dos nmeros reais satisfaz a propriedade dos

    intervalos encaixantes, precisamos usar o fato que R tem a propriedade do supremo. Ocorre

    que as duas propriedades so equivalentes. Ou seja, sabendo que uma delas satisfeita, pode-se

    demonstrar a outra.

    Exerccio 1.8.4 Admitindo que um corpo ordenado K satisfaz a propriedade dos intervalos

    encaixantes, prove que K satisfaz o axioma do supremo.

    34

  • 1.9 Conjuntos Infinitos

    H uma certa confuso sobre quantidades infinitas. No raro encontrarmos exem-

    plos equivocados de conjuntos infinitos, como a quantidade de gros de areia na praia ou a

    quantidade de estrelas no cu. Acontece que essas quantidades, embora muito grandes, so

    finitas!

    Um exemplo de conjunto infinito o conjunto dos nmeros naturais: mesmo tomando-se

    um nmero natural n muito grande, sempre existe outro maior, por exemplo, seu sucessor n+1,

    ou tambm o dobro de n, 2n, ou ainda seu triplo 3n.

    No final do sculo XIX apareceu a necessidade de compreender melhor os conjuntos in-

    finitos, motivada pelo estudo de funes integrveis. Sabemos que se uma funo limitada tem

    uma quantidade finita de descontinuidades, ela integrvel. E se a quantidade de descontinui-

    dades for infinita? Em alguns casos, a funo ainda integrvel, em outros, no! A questo da

    integrabilidade ser estudada por ns mais adiante, mas foi mencionada neste momento para

    sabermos a motivao que levou os matemticos a estudar conjuntos infinitos.

    Existem diferentes tipos de infinito!

    Desde crianas aprendemos a contar... O que contar?

    Se dermos a uma criana um pacote com 5 lpis e pedirmos a ela que conte, no fundo o

    que ela faz estabelecer uma bijeo entre os lpis e o conjunto {1, 2, 3, 4, 5}.Uma outra situao corriqueira comparar quantidades de dois conjuntos. Imagine que

    estamos em uma sala com muitas cadeiras e vrias pessoas. Se algum perguntar se h mais

    cadeiras ou mais pessoas, no h necessidade de se contar quantas so as cadeiras, quantas so

    as pessoas. Ao invs disso, podemos pedir a todos que se sentem. Se sobrarem cadeiras vazias,

    h mais cadeiras. Se sobrarem pessoas em p, h mais pessoas! Assim pudemos responder

    rapidamente pergunta feita, sem a necessidade de contar cada conjunto.

    Do ponto de vista da matemtica, o que foi feito?

    Ao pedirmos para as pessoas que se sentem, estamos estabelecendo uma funo que a

    cada pessoa associa a cadeira onde ela se sentou. Se essa funo for bijetora, o nmero de

    cadeiras e de pessoas o mesmo! A funo injetora, pois estamos subentendendo que s pode

    ter uma pessoa em cada cadeira. Se a funo no for sobrejetora, h cadeiras sobrando.

    35

  • Algum poderia argumentar sobre a possibilidade de haver pessoas em p. Nesse caso,

    no est estabelecida uma correspondncia que a cada elemento do domnio associa um no

    contra-domnio. Consequentemente, a funo no estaria bem definida.

    O que feito no estudo de conjuntos infinitos basicamente encontrar uma funo bijetora

    para comparar o conjunto alvo de nosso estudo com outro j conhecido.

    necessrio esclarecer que a terminologia usada neste tpico pode diferir levemente de

    um livro para outro. Neste texto adotaremos as mesmas definies encontradas no livro do

    Rudin [6].

    Definio 1.9.1 Se existir uma funo bijetora entre dois conjuntos A e B, dizemos que os

    conjuntos tm a mesma cardinalidade e escrevemos A B.

    Note que a relao A B uma relao de equivalncia, isto , satisfaz as propriedades:

    (i) A A (propriedade reflexiva)

    (ii) Se A B ento B A (propriedade simtrica)

    (iii) Se A B e B C ento A C (propriedade transitiva)

    Por esse motivo, se dois conjuntos tm a mesma cardinalidade, dizemos que eles so

    equivalentes (segundo Cantor).

    Exerccio 1.9.2 Verifique que, de fato, a relao A tem a mesma cardinalidade que B uma

    relao de equivalncia.

    Definio 1.9.3 Para cada n N seja Fn = {1, 2, 3, . . . , n}.

    (a) Um conjunto A finito se existir uma funo bijetora de Fn em A, para algum n. Dizemos,

    nesse caso, que A tem n elementos. Consideramos o vazio um conjunto finito.

    (b) A infinito se A no for finito.

    (c) A enumervel se A N.

    (d) A no enumervel se A no for finito nem enumervel.

    36

  • (e) A no mximo enumervel se A for finito ou enumervel.

    Exemplos 1.9.4 (a) O exemplo mais simples de conjunto enumervel e o que serve de modelo

    para essa ideia o conjunto N dos nmeros naturais.

    (b) O conjunto P = {2, 4, 6, . . .} dos nmeros pares tambm enumervel. Neste caso, fcilver que a funo f : N P dada por f(n) = 2n bijetora.

    (c) O conjunto Z dos nmeros inteiros enumervel. De fato, podemos pensar na funo que

    leva N em Z associando os nmeros naturais aos inteiros na seguinte ordem:

    0, 1,1, 2,2, 3,3, . . .

    Essa funo pode ser dada por

    f(n) =

    n2 se n par , n12

    se n mpar .

    Fica a cargo do leitor verificar que f uma funo bijetora.

    Definio 1.9.5 Uma sequncia uma funo cujo domnio N. Se f : N A, denotamosf(n) = an, dizemos que os valores an so os termos da sequncia e que (a1, a2, a3, . . .) uma

    sequncia em A.

    As notaes (an), ou (an)nN so usadas para indicar a sequncia cujos termos so

    a1, a2, a3, . . ..

    Note que uma sequncia uma lista seus termos em uma certa ordem: o elemento indicado

    por a1 o primeiro, o elemento a2 o segundo, e assim por diante.

    Os termos a1, a2, a3, . . . no precisam ser dois a dois distintos. Por exemplo, a sequncia

    (1, 2, 4, 8, 16, . . . , 2n, . . .) formada pelas potncias de 2 tem todos os seus termos distintos entre

    si. J a sequncia (1, 2, 1, 2, . . .) dada por f(n) = 1, se n mpar e f(n) = 2, se n par, uma

    sequncia cujos termos se repetem no conjunto {1, 2}.Como um conjunto enumervel a imagem de uma funo bijetora definida em N, po-

    demos compreender um conjunto enumervel como a imagem de uma sequncia formada por

    termos distintos dois a dois, ou ainda, que os elementos de um conjunto enumervel podem ser

    organizados em uma sequncia.

    37

  • Cabe agora uma observao muito importante. Quando lidamos com conjuntos finitos,

    se um conjunto A um subconjunto prprio de B, isto , se A est contido em um conjunto B

    e diferente de B, ento B tem uma quantidade de elementos menor do que A. Entretanto, os

    exemplos acima mostram que com conjuntos infinitos pode acontecer A B, A 6= B e A B:o exemplo 1.9.4(b) mostrou que P N e P N; o exemplo 1.9.4(c) mostrou que N Z eN Z.

    Como esse fato caracteriza os conjuntos infinitos, alguns autores adotam a seguinte defi-

    nio: um conjunto C infinito se for equivalente a algum de seus subconjuntos prprios.

    Teorema 1.9.6 Todo subconjunto infinito de um conjunto enumervel enumervel.

    Demonstrao. Sejam A um conjunto enumervel e B A um subconjunto infinito.Como A enumervel seus elementos podem ser colocados em uma sequncia a1, a2, a3, . . .

    de termos distintos dois a dois (ai 6= aj se i 6= j).Vamos construir uma sequncia (nk)kN da sequinte maneira:

    Defina n1 como o primeiro natural tal que an1 B.Tome n2 como sendo o menor natural que maior do que n1 tal que an2 B.Tendo encontrado n1, n2, . . . , nk1 tome nk como sendo o menor natural que maior do

    que nk1 tal que ank B.Como B, por hiptese, um conjunto infinito, B pode ser visto como uma sequncia

    B = (an1 , an2 , an3 , . . . , ank , . . .)

    claro que esses termos so distintos dois a dois. Assim obtemos uma funo bijetora f : N Bdada por f(k) = ank . Logo, B enumervel.

    A ideia que esse teorema nos apresenta que os conjuntos enumerveis so conjuntos do

    menor tipo de infinito, j que nenhum conjunto no enumervel pode ser subconjunto de um

    enumervel.

    38

  • Definio 1.9.7 Sejam E1, E2, E3, . . . conjuntos.

    A reunio de todos esses conjuntos, denotada porn=1

    En, o conjunto U formado pelos

    elementos x tais que: x Ej, para um ou mais ndices n.A interseco desses conjuntos, denotada por

    n=1

    En, o conjunto P tal que

    x P x Ej, para todo n.

    Exemplos 1.9.8 1. Para cada n N, tome En = {1, 2, . . . , n}. Observe que cada En umconjunto finito: E1 = {1}, E2 = {1, 2}, E3 = {1, 2, 3} etc.

    Temos:n=1

    En = N;n=1

    En = {1}.

    2. Para cada n N, defina En = {n}. Temos:n=1

    En = N;n=1

    En = .

    Teorema 1.9.9 Seja E1, E2, . . . , En, . . . uma sequncia de conjuntos enumerveis e seja U =n=1

    En. Ento U enumervel.

    Demonstrao. Primeiramente vamos observar que, como E1 U , U infinito.Os elementos de cada En podem ser colocados em uma lista infinita, j que En enume-

    rvel. Assim, vamos considerar a matriz

    e11 e12 . . . e1n . . .

    e21 e22 . . . e2n . . ....

    ... . . .... . . .

    em1 em2 . . . emn . . ....

    ... . . .... . . .

    em que a primeira linha formada por todos os elementos do conjunto E1, a segunda linha,

    pelos elementos de E2, e assim por diante.

    Os elementos da matriz so os elementos do conjunto U . Para mostrar que U um

    conjunto enumervel, teramos que escrever os elementos de U em uma lista sem repeties.

    Como no sabemos quais termos se repetem na matriz, possvel escrever tal lista! Para

    39

  • contornar essa dificuldade, vamos colocar os elementos da matriz em uma sequncia (que pode

    ter repeties),

    s : e11, e21, e12, e31, e22, e13, e41, e32, e23, e14, . . .

    Observe que a sequncia s tem uma regra de formao: primeiramente comeamos com o termo

    e11, depois os termos cuja soma dos ndices 3, a saber, e21 e e12, depois termos cuja soma dos

    ndices 4: e31, e22 e e13 e assim por diante.

    Como conseguimos escrever todos os elementos da matriz em forma de uma sequncia,

    existe uma funo de N no conjunto U , que associa os nmeros 1, 2, 3, . . . , respectivamente

    a e11, e21, e12, e31, e22, e13, e41, e32, e23, e14, . . . Como a primeira linha da matriz j um conjunto

    enumervel, logo infinito, os termos da sequncia s formam um conjunto enumervel.

    Assim, U um subconjunto infinito do conjunto enumervel formado pelos termos da

    sequncia s. Pelo teorema 1.9.6, U enumervel.

    Corolrio 1.9.10 A reunio finita de conjuntos enumerveis um conjunto enumervel.

    Demonstrao. Se U o conjunto do teorema anterior, tem-se que a reunio finita F =nk=1

    Ek U um subconjunto infinito de um conjunto enumervel. Logo, F enumervel.

    Corolrio 1.9.11 Se E1, E2, . . . , En so conjuntos finitos ou enumerveis, ento R =nk=1

    Ek

    no mximo enumervel.

    Demonstrao. De fato, se cada Ek for finito, ento R ser um conjunto finito. (Por que? )

    Se algum Ek for enumervel, como Ek R, a reunio R ser um conjunto infinito. Logo,enumervel.

    Teorema 1.9.12 Sejam A e B conjuntos enumerveis. Ento o produto cartesiano

    AB = {(a, b) : a A, b B}

    enumervel.

    40

  • Demonstrao. Para cada a A fixado, considere o conjunto Ba = {(a, b) : b B}. Esseconjunto equivalente a B e, portanto, enumervel.

    Mas observe que AB =aA

    Ba, ou seja, AB uma reunio enumervel de conjuntosenumerveis. Portanto, pelo teorema 1.9.9, AB enumervel.

    Exerccio 1.9.13 Prove que se A enumervel, ento o conjunto das n-uplas

    An = {(a1, a2, . . . , an) : aj A}

    enumervel.

    Dica: use induo.

    Corolrio 1.9.14 Q enumervel.

    Demonstrao. Seja x Q. Ento x = pq: p, q Z, q 6= 0.

    Seja f : Z Z Q que, a cada par (p, q) associa o nmero x = pq.

    claro que f uma funo. Seu domnio um conjunto enumervel (por que? ) e,

    claramente, f sobrejetora.

    Como a imagem de um conjunto enumervel ou um conjunto finito, ou um conjunto

    enumervel, basta mostrarmos que a imagem de f no finita. (Note que f no injetora, j

    que, por exemplo, f(1, 2) = f(2, 4) = f(3, 6).)

    Mas a imagem de f contm todos os nmeros inteiros, pois, se n Z ento n = f(n, 1).Portanto, Q enumervel.

    Teorema 1.9.15 O intervalo [0, 1] no enumervel.

    Demonstrao. Suponha, por absurdo, que [0, 1] seja enumervel. Como esse conjunto contm

    o conjunto infinito A ={ 1n: n N

    }, vemos que [0, 1] tambm infinito.

    41

  • Seja {x1, x2, x3, . . .} uma enumerao de [0, 1]. Podemos escrever cada xj na forma de-cimal infinita e, para evitar repeties vamos escolher as representaes decimais que no ter-

    minam com infinitos algarismos iguais a 9. Por exemplo, o nmero 0, 5 ser representado como

    0, 5000 . . . e no 0, 49999 . . .. Assim,

    x1 = 0, a11 a12 a13 . . .

    x2 = 0, a21 a22 a23 . . .

    ......

    xn = 0, an1 an2 an3 . . .

    ......

    (ai1, ai2, ai3, . . . {0, 1, 2, . . . , 9} so os algarismos da representao decimal de xi)Vamos agora definir o nmero b = 0, b1b2b3 . . . da seguinte maneira:

    b1 = 5, se a11 6= 5 e b1 = 6, se a11 = 5;b2 = 5, se a22 6= 5 e b2 = 6, se a22 = 5

    e assim por diante. Ou seja, bn = 5, se ann 6= 5 e bn = 6, se ann = 5, para cada n.O exerccio de reviso 7 abaixo ajuda a entender por que tal b existe. (b o nmero real

    dado por b = sup{n

    j=1bj10j Q : n N

    }).

    Mas veja que interessante: o nmero b diferente de x1, pois, por construo, sua primeira

    casa decimal diferente da primeira casa decimal de x1 (b1 6= a11).O nmero b tambm diferente de x2, pois b2 6= a22, . . . Para cada n, o nmero b

    diferente de xn, pois bn 6= ann.Mas isso contradiz o fato de {x1, x2, x3, . . .} ser uma enumerao de [0, 1], j que encon-

    tramos um nmero b [0, 1] que no estava nessa lista!

    Corolrio 1.9.16 R no enumervel.

    Corolrio 1.9.17 RQ no enumervel.

    42

  • Exerccios de reviso

    1. Prove que12 irracional.

    2. Prove que log3 2 irracional.

    3. Prove que se p, q N e p e q so primos ento pq irracional. (Encontrado em [1], 2.1).

    4. Prove que se x e y so irracionais tais que x2 y2 racional no nulo, ento x+ y e x yso ambos irracionais. Por exemplo,

    5 +3 e53. (Encontrado em [1], 2.1).

    5. Seja A ={

    (1)nn1 : n N, n 2

    }. Determine, caso existam, o supremo, o nfimo, o mximo

    e o mnimo de A. Justifique.

    6. Observe que o nmero racional 0,999 pode ser escrito como 910+ 9

    100+ 9

    1000. De modo geral,

    0, 99 . . . 9 n

    =n

    k=19

    10k.

    Considere o conjunto D ={n

    k=19

    10k: n N

    }. Prove que sup(D) = 1. Interprete.

    7. Seja (ak)kN uma sequncia de algarismos (ak {0, 1, 2, . . . , 9}) e considere os nmerossn =

    a110+ a2

    102+ + an

    10n.

    (a) Cada nmero sn racional ou irracional?

    (b) Mostre que o conjunto E = {sn : n N} no vazio e limitado superiormente.(c) Conclua que s = sup(E) um nmero real entre 0 e 1.

    8. Seja A R um conjunto no vazio e limitado inferiormente. Defina A = {x : x A}.Prove que inf(A) = sup(A).

    9. Prove que se a, b R e a < b ento o intervalo [a, b] um conjunto no enumervel.

    10. Um nmero real r dito algbrico se r raiz de um polinmio com coeficientes inteiros.

    (a) Verifique que os nmeros 2,1

    13,2,

    5267 so algbricos, encontrando funes po-

    linomiais que tm esses nmeros como razes.

    (b) Verifique que2 +3 e2(1 +

    5) so algbricos. (Voc ir precisar de equaes

    de grau 4).

    43

  • (c) Prove que o conjunto P (Z), de todos os polinmios com coeficientes inteiros, enu-

    mervel.

    (d) Seja {p1, p2, p3, . . . , pn, . . .} uma enumerao de P (Z). Seja An o conjuntos das razesreais de pn. Conclua que o conjunto A formado por todos os nmeros algbricos,

    enumervel.

    (e) Um nmero real dito transcendente se no algbrico. Mostre que o conjunto dos

    nmeros transcendentes no-enumervel.

    44

  • Referncias Bibliogrficas

    [1] Geraldo vila. Anlise Matemtica para Licenciatura. Edgard Blucher Ltda, 3 edition, 2006.

    [2] Hamilton Guidorizzi. Um Curso de Clculo, volume 1. LTC Editora, 2001.

    [3] Hamilton Guidorizzi. Um Curso de Clculo, volume 4. LTC Editora, 2001.

    [4] Elon Lages Lima. Anlise Real. IMPA, CNPq, 1997.

    [5] Ivan Niven. Nmeros: racionais e irracionais. SBM, 1984.

    [6] Walter Rudin. Princpios de Anlise Matemtica. Ed. Ao Livro Tcnico S.A., 1971.

    [7] Michael Spivak. Calculus. Addison Wesley, 1967.

    45