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Curso on-line PARA BEM ESCREVER NA LÍNGUA PORTUGUESA Prof. Carlos Nougué © 2014 I Todos os direitos reservados. 1 PRIMEIRA AULA DO CURSO “PARA BEM ESCREVER NA LÍNGUA PORTUGUESAO QUE É A GRAMÁTICA “Não é coisa de qualquer homem impor nomes, mas de um ‘nominador’. E este é, ao que parece, o legislador, que naturalmente é entre os homens o mais raro dos artesãos.” SÓCRATES/PLATÃO “A linguagem é figura do entendimento: e assim é verdade que a boca diz quanto lhe manda o coração e não outra coisa.” FERNÃO DE OLIVEIRA “A pena é língua da alma; quais forem os conceitos que nesta se engendraram, tais serão seus escritos.” DOM QUIXOTE “A gramática de uma língua é a arte de [escrever e pois de] falar corretamente, isto é, conforme ao bom uso, que é o da gente educada.” ANDRÉS BELLO “A prevenção mais desfavorável [...] é a daqueles que julgam que em gramática as definições inadequadas, as classificações malfeitas, os conceitos falsos carecem de inconveniente, desde que, por outro lado, se exponham com fidelidade as regras a que se conforma o bom uso. Eu creio, contudo, que essas duas coisas são inconciliáveis, que o uso não pode expor-se com exatidão e fidelidade senão analisando os princípios verdadeiros que o dirigem, porque uma lógica severa é indispensável requisito de todo e qualquer ensino.” ANDRÉS BELLO “A gramática é a arte de levantar as dificuldades de uma língua; mas é preciso que a alavanca não seja mais pesada que o fardo.” ANTOINE RIVAROL “Amo-te, ó rude e doloroso idioma, / Em que da voz materna ouvi: ‘meu filho!’” OLAVO BILAC

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Gramática

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  • Curso on-line PARA BEM ESCREVER NA LNGUA PORTUGUESA Prof. Carlos Nougu

    2014 I Todos os direitos reservados.

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    PRIMEIRA AULA DO CURSO

    PARA BEM ESCREVER NA LNGUA PORTUGUESA

    O QUE A GRAMTICA

    No coisa de qualquer homem impor nomes, mas de um

    nominador. E este , ao que parece, o legislador, que

    naturalmente entre os homens o mais raro dos artesos.

    SCRATES/PLATO

    A linguagem figura do entendimento: e assim verdade que

    a boca diz quanto lhe manda o corao e no outra coisa.

    FERNO DE OLIVEIRA

    A pena lngua da alma; quais forem os conceitos que nesta se

    engendraram, tais sero seus escritos.

    DOM QUIXOTE

    A gramtica de uma lngua a arte de [escrever e pois de] falar

    corretamente, isto , conforme ao bom uso, que o da gente

    educada.

    ANDRS BELLO

    A preveno mais desfavorvel [...] a daqueles que julgam

    que em gramtica as definies inadequadas, as classificaes

    malfeitas, os conceitos falsos carecem de inconveniente, desde que,

    por outro lado, se exponham com fidelidade as regras a que se

    conforma o bom uso. Eu creio, contudo, que essas duas coisas so

    inconciliveis, que o uso no pode expor-se com exatido e

    fidelidade seno analisando os princpios verdadeiros que o

    dirigem, porque uma lgica severa indispensvel requisito de

    todo e qualquer ensino.

    ANDRS BELLO

    A gramtica a arte de levantar as dificuldades de uma lngua;

    mas preciso que a alavanca no seja mais pesada que o fardo.

    ANTOINE RIVAROL

    Amo-te, rude e doloroso idioma, / Em que da voz materna

    ouvi: meu filho!

    OLAVO BILAC

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    Carlos Nougu

    DEIXADA DERIVA, sem regras que a dirijam, como hoje querem muitos que,

    porm, o mais das vezes, defendem sua tese sem nenhuma deriva, a lngua seria

    como as guas de um rio, puro fluxo, a ponto de no poder falar-se duas vezes

    como a mesma lngua.

    Isso, no entanto, pura negao do bvio: parte intrnseca de toda e

    qualquer lngua ter regras; o dique ou comporta sem a qual ela de fato fluiria

    e fluiria sem nenhuma permanncia. E, com efeito, pai algum, me alguma, se

    dotados ao menos do nfimo senso natural de cuidado e educao da prole,

    deixaro de corrigir o filho se ele disser algo errado. Se o pequeno disser, por

    exemplo, zinza em vez de cinza, tal pai e tal me no ho de calar-se nem,

    muito menos, de deleitar-se com mais essa novidade de uma permanente deriva

    lingustica.

    E de fato os propugnadores da tese da lngua sem regras no conseguem ver

    que sem estas nem sequer se poderia propor sua tese simplesmente porque

    nem sequer haveria nenhuma lngua. Bem sabemos que se retrucar: Mas as

    lnguas mudam constantemente... Impossvel neg-lo. Todavia, mudam em

    duplo sentido: no primeiro, corrompendo-se, no raro at ao desaparecimento;

    no segundo, progredindo.

    Corrompem-se mais aceleradamente quando, entre fiapos de civilizao,

    contam to somente com suas regras intrnsecas ou mais ou menos

    espontneas: essa a razo por que as lnguas grafas tendiam (e tendem)

    incessantemente desordem de seus paradigmas e de seu prprio quadro

    fontico. Menos impetuosamente quando, em meio a uma verdadeira civilizao

    universal (ou tendente universalidade), se tem a escrita com sua arte prpria,

    a Gramtica. Mais ainda, neste ltimo caso as lnguas podem tender at a

    grande estabilidade: foi o que se deu com o latim ao tornar-se idioma altamente

    normatizado e ordenado Cincia e Sabedoria.

    Progridem, por outro lado graas, ainda, antes de tudo escrita e

    Gramtica , quer quando fecham um novo paradigma, quer quando criam e

    incorporam a seu lxico palavras ou acepes que expressem novas concepes

    da realidade. E tanto mais progrediro quanto mais cultivadas forem, ou seja,

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    quanto mais se valerem delas e as aprimorarem verdadeiros mestres. Foi o caso,

    por exemplo, de Plato e de Aristteles com respeito ao grego antigo: no s lhe

    deram todo um conjunto de novas palavras para significar os mais profundos

    conceitos cientficos, mas, pela necessidade mesma de fazer servir a lngua

    Filosofia, contriburam ainda para o aprimoramento de seus paradigmas

    casuais.1

    E no s a Gramtica, com efeito, ser antes de tudo a arte da lngua escrita

    (ou no ser propriamente Gramtica), seno que a escrita a parte das lnguas

    que de si mais capacidade tem no s de conservar-se, mas de conserv-las.

    fato evidentssimo que, por exemplo, o grego tico de um Plato ou o latim

    romano de um Ccero no nos teriam chegado se no fora a escrita; assim como

    tambm fato evidente que no seno em razo da escrita que podemos dizer,

    com toda a propriedade, que o portugus do Brasil e o de certas regies dos

    demais pases lusfonos so ainda hoje a mesma lngua.

    Mais que isso, todavia: o que um ensino gramatical rudimentar, combinado

    com a ao dos media, propicia nos dias de hoje no Brasil no mais que uma

    trivial compreenso mtua de gachos e nortistas, porque de fato no s

    desaparece em geral a capacidade de escrita, mas a mesma capacidade de

    discurso articulado e profundo o que infelizmente tambm se manifesta, e em

    ampla escala, em nosso prprio meio acadmico. Pois o que por reflexo propicia

    mais cabalmente o bem falar o ler bons autores e o bem escrever, tudo o que,

    por sua vez, no propiciado seno pelo ensino no rudimentar da Gramtica.

    Como todavia chegamos a tal estado calamitoso? So mltiplas e complexas

    suas causas:

    uma deficiente compreenso filosfica da linguagem e da Gramtica, e que

    remonta a mais de dois milnios;

    o beletrismo, que, conquanto se tenha intensificado com o Humanismo e o

    Renascimento, tem origem muitos sculos antes;

    o nominalismo tardo-medieval, com sua Gramtica filosfica ou

    especulativa, e o racionalismo ps-renascentista, com sua Gramtica lgica,

    especialmente a de Port-Royal;

    1 Cf. mile BOUTROUX, Aristteles, Rio de Janeiro, Record, 2000.

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    a Lingustica, sua pretenso a cincia, sua negao da Gramtica e da

    importncia da escrita, e sua influncia daninha sobre os mesmos gramticos;

    por fim, certo populismo que, buscando desatrelar a Gramtica do carro do

    literrio e do oratrio, quer atrel-la ao carro dos falares do povo.

    Pois bem, nossa Suma Gramatical da Lngua Portuguesa (por publicar-se

    at 2015 pela importante editora Realizaes) e nosso curso PARA BEM

    ESCREVER NA LNGUA PORTUGUESA no s buscam explicar aprofundadamente

    tudo quanto se acaba de dizer, seno que se ordenam ao estritamente

    normativo, mas de modo que se superem os problemas que desde h muito

    tempo vm acometendo o ensino gramatical. Com efeito, como no haveria de

    afastar ao estudante um ensino to cheio de contradies como o que diz,

    primeiro, que orao toda frase ou pedao de frase compostos de dois termos

    essenciais o sujeito e o predicado para, depois, dizer que h orao sem

    sujeito? Ora, se isto se pode dar, ento obviamente ou a orao que carece de

    sujeito no orao, ou o sujeito no um termo essencial da orao. Ademais,

    como pode qualquer estudante suportar um ensino que d, primeiro, a regra

    geral da chamada concordncia verbal o verbo concorda em nmero e pessoa

    com o sujeito para, depois, propor uma quantidade de excees tal, que acaba

    por despojar a regra precisamente do carter de regra?

    Mesmo porm numa aula introdutrio como esta, no basta apontar

    determinado estado calamitoso e suas causas: preciso dizer ainda, ao menos

    sumariamente, a) a que se ordena a Gramtica; e, em razo disso, b) em que

    deve fundar-se, c) como deve considerar-se, d) como deve fazer-se, e) como

    deve ensinar-se.

    a) A Gramtica ordena-se:

    antes de tudo, a constituir-se justamente como a arte da escrita seu

    objeto prprio;

    como porm a escrita signo da fala, a normatizar (dentro de certos

    limites) a esta;

    superiormente, a servir arte-cincia da Lgica e pois Cincia e

    Sabedoria;

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    e tambm, afinal, Potica e Retrica, as quais, todavia, por sua mesma

    ndole e seus mesmos princpios e fins, s se cingiro mais ou menos

    estritamente Gramtica e suas regras.2

    b) Deve fundar-se:

    antes de tudo, nos melhores escritores no literrios (filsofos,

    jurisconsultos, historiadores...) e, naturalmente, nos melhores gramticos e

    lexicgrafos;

    mas tambm, em justa medida, nos melhores oradores e nos melhores

    literatos;

    e ainda nas melhores tradues ao portugus.

    c) Deve considerar-se:

    como arte, que, como toda e qualquer arte, tem seu corpo terico, dotado

    de princpios prprios, mas iluminado por princpios de outras cincias,

    superiores;

    como arte que , todavia, no h de ter um corpo terico seno para servir

    estritamente a seus fins prticos, assim como a teoria musical no pode servir

    seno prtica da composio e da execuo musicais.

    d) Deve fazer-se:

    como arte estritamente normativa da escrita, e, insista-se, dentro de certos

    limites, tambm da fala;

    para tal, deve ter sempre em vista a manuteno e o fechamento de

    paradigmas;3

    consequentemente, deve formular regras o mais possvel simples e de

    abrangncia o mais possvel universal o que implica esquivar, ainda quanto

    possvel, as excees;

    e, por razes metodolgico-didticas, deve expor-se em espiral ou, mais

    propriamente, em hlice.

    2 Como se explica detidamente na Suma Gramatical.

    3 Tomamos paradigma em sentido lato, como se ver em nosso curso e em nossa

    gramtica.

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    (Por todo o dito at aqui, alis, v-se a razo de nossa Suma dizer-se

    gramtica avanada. E, se se diz ainda geral, no o faz, naturalmente, porque

    se pretenda gramtica universal ou filosfica, pretenso a que, como visto ao

    arrolarmos as causas da runa hodierna do ensino gramatical, no podemos

    seno opor-nos. geral porque, agora contra a pretenso de tantos gramticos

    infludos pela Lingustica e como que tomados de certo sentimento de

    inferioridade com respeito a ela, nossa gramtica ser una e completa:

    normativa como fim, mas perfeitamente especulativa como meio, razo por que

    no deixar de ser tambm histrica, etimolgica, semntica, descritiva, etc.)

    Nunca nos esqueceremos de ter ouvido certa vez, com estupor, uma

    professora universitria de Lngua Portuguesa perguntar aos alunos: Para que

    a Gramtica? Era pergunta retrica, que trazia implcita sua resposta: Para

    nada. Deixemos a lngua seguir sua deriva. No essa, obviamente, a nossa

    resposta, seno esta: Para fazer que nossa lngua seja rio, sim, mas rio que

    graas aos diques e curso que lhe demos ajude a atingir a foz da Sabedoria.