augusto veber
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Reportagem de Augusto Veber para a revista Primeira Impressão.TRANSCRIPT
ENTREVISTA
O passado vivo de um ex-combatente As lembranças de Francisco Pértile, um homem que participou da Força
Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial
Ele podia ter ficado onde nasceu e foi criado, dando seguimento aos negócios da
família. A agricultura, no distrito de São Valentim, em Bento Gonçalves, é a maior
força econômica daquela região. Mas Francisco Pértile, hoje com 92 anos, não se
contentava em ficar parado. Ainda jovem, aos 22 anos, embarcou para Quaraí, onde iria
iniciar sua vida militar no 5º Regimento de Cavalaria Mecanizado. Em janeiro de 1942,
o jovem soldado ainda não sabia, mas essa viagem seria mais longa e marcante do que
ele esperava.
Depois de quase 20 meses treinando maneiras e estratégias de combate em
Quaraí, recebeu o convite para servir no Rio de Janeiro. Foi na então capital do Brasil
que o combatente recebeu a notícia que transformou sua vida: ele estava na tropa de
elite do Exército Nacional e foi convidado para participar da Força Expedicionária
Brasileira (FEB) e iria apoiar o Brasil, aliado dos Estados Unidos, na Segunda Guerra
Mundial.
Primeira Impressão - Como foi o período de treinamento em Quaraí e quais
as lembranças marcantes?
Francisco Pértile - A sujeira. Em Quaraí, durante o período de treinamento,
corríamos feito loucos. Éramos tratados feito bichos pelos oficiais, que exigiam sempre
o máximo de todos os soldados. E, devido a exaustão do treino, a fome nos intervalos
era grande. Mas naquela época Quaraí era uma cidade pequena, ainda em
desenvolvimento, e não havia luxo no quartel. A comida era cheia de animais e insetos,
nunca vi coisa igual. O feijão para os soldados era feito em tonéis e, enquanto um
militar mexia a comida com uma colher, outro passava uma peneira para tirar os bichos.
Quando um rato era encontrado, precisava ser tirado rapidamente, pois podia derreter e
aí estragava o feijão. Na época não tínhamos outra coisa, então restava a nós tirar a
sujeira possível e comer o resto.
PI - Quantos jovens de Bento Gonçalves foram servir também em Quaraí?
Francisco - Na época, nós fomos em quatro homens, mas somente eu fui para a
Itália. Os oficiais realizavam uma espécie de seleção entre os combatentes. Os que
aparentavam ser fracos e também os que não tinham uma altura boa eram deixados de
lado. Dois dos que vieram comigo eram baixos demais, e o outro pegou varicela quando
chegou no Rio de Janeiro, ficando impedido de treinar.
PI - E quando você ficou sabendo que iria participar da Força
Expedicionária Brasileira (FEB)?
Francisco - Depois de Quaraí nós fomos para o Rio de Janeiro. Viajamos em um
trem de carga durante sete dias e oito noites. Dormindo, na maioria das vezes, no chão
ou por cima da carga. Quando chegamos na Estação Central, no Rio, fomos ao Quartel
da Guarda, no Palácio da Guanabara. Foram dois meses em que pouco fizemos. Fiquei a
maior parte do tempo passeando no Rio de Janeiro. Foi ali que recebemos o convite de
participar da FEB. Eu aceitei. Teve outro gaúcho que se recusou a fazer parte e
desertou. Ele tinha medo da guerra. Eu achava que se fizesse a mesma coisa não estaria
provando meu amor ao país. Depois de aceitar participar da guerra, fui para São João
Del-Rei, em Minas Gerais, onde estavam reunidos todos os combatentes que iriam
participar do confronto. Lá foram mais 78 dias de treinamento e recebendo instruções
dos oficiais do Exército Americano. Em um dia de folga, pegamos detenção porque
estávamos cantando músicas em italiano no gramado do quartel, porque a maioria dos
combatentes gaúchos era descendente de italianos.
PI - Você participou da tomada de Monte Castelo e de Montese. Como
foram esses episódios?
Francisco - Os americanos já tinham tentado cinco vezes invadir a cidade de
Monte Castelo. Na sexta vez, depois de um grande planejamento, foi possível fazer a
invasão. No meio estavam os brasileiros, de um lado os americanos e de outro os
ingleses. Os alemães não tinham como escapar. Ou recuavam ou morriam. No meu
primeiro ataque, ficamos em uma baixada, com uma tela na frente. Quando deitávamos,
dava pra sentir e escutar as balas passando. Ficávamos deitados iguais a lagartos. Eu
nunca fui atingido, mas as balas passavam a um palmo da gente. Nesse dia, depois da
meia noite, começou a nevar na Itália. Em Monte Castelo onze brasileiros ficaram
presos na neve, sendo que só vimos os corpos quando a neve baixou, no início da
primavera. Foi nesse período também que iniciamos a batalha de Montese, mas a de
Monte Castelo, se comparada, foi a mais sangrenta.
PI - De que forma os soldados ficavam informados sobre o andamento da
guerra? Como era a feita a comunicação? Vocês tinham acesso as cartas de
familiares?
Francisco - Não sabíamos nada do que acontecia na guerra. Da família, eu
recebia cartas, mas era tudo controlado pelos americanos. Eram dois aviões pequenos
que levavam cartas todos os dias do Brasil para a Itália e da Itália para o Brasil. Na
época não havia jornais como os de hoje, somente alguns folhetos que eram distribuídos
entre os soldados, que continham informações sobre a guerra. Mas, como cada dia
acontecia algo novo, sempre estava desatualizado. Ainda não existiam os rádios
comunicadores, então a comunicação era feita por cabos. Grandes rolos de fios que os
soldados iam passando nas trincheiras. Quando caía uma granada, o fio se rompia, daí
tínhamos que consertar.
PI - O senhor lembra se matou algum soldado alemão?
Francisco - Em uma patrulha noturna eu atirei em um inimigo, ele ficou ferido e
morreu logo depois de chegar na enfermaria. Isso fazia parte do nosso trabalho na
guerra. Era difícil de enxergar quando combatíamos à noite. Os alemães eram sacanas.
Colocavam minas por baixo de corpo de soldados, para que, quando alguém tirasse,
tudo explodisse. Nas portas, a mesma coisa. Se não tinha espaço para passar, nem
tentávamos. Era certo que havia algo que iria explodir quando a porta fosse aberta. Um
brasileiro ficou cego dos dois olhos quando abriu uma caneta que achou em uma
batalha. Ela explodiu no momento em que o soldado abria para ver o que continha. Um
amigo de Quaraí tinha uma moto no Brasil, e, quando ele viu uma na Itália, tentou ligar.
Havia uma bomba no motor e ela explodiu enquanto o soldado tentava ligar.
PI - E a medalha que o senhor recebeu durante a guerra?
Francisco - Ainda quando estava na Itália, fiquei sabendo que tinha ganhado
uma medalha de Cruz de Combate de Primeira Classe, a mais importante da FEB.
Ganhei pela minha bravura, em um episódio que tentei salvar dois soldados e um
sargento, todos brasileiros, após um ataque de granadas. Eu tirei os dois do local e me
escondi. O sargento resistiu, mas ficou totalmente surdo. Já os ferimentos dos soldados
eram maiores, e eles não aguentaram.
BOX
A vida pós-guerra
Depois que retornou ao Brasil, Pértile foi convidado para continuar no Exército
Brasileiro, mas recusou, atitude da qual se diz arrependido. Ele voltou para São
Valentim e ficou trabalhando cerca de um ano junto à família, no período de
readaptação. Virou caminhoneiro e levava cargas de madeira até a cidade de Getúlio
Vargas. Exerceu a profissão por mais 15 anos. Posteriormente, passou em um concurso
federal, tendo se aposentado como motorista concursado. Foi nesse meio tempo também
que Pértile encontrou Rosa Cobalchini, com a qual casou e teve uma única filha. Hoje
ele se dedica à família, à propriedade e também a dar palestras em escolas da região,
para que os estudantes sintam com maior intensidade e demonstrem mais interesse pela
História, ouvindo de alguém que esteve lá sobre o que aconteceu no período da guerra.
Pértile é recebido diversas vezes ao ano no 6º Batalhão de Comunicações (BCOM), em
Bento Gonçalves, sendo que até hoje participa do desfile cívico de 7 de Setembro.
“Alguns amigos meus nem se lembram de momentos da guerra. Eu lembro porque eu
falo sempre e mantenho vivo esse pedaço da história.”