augusto dos anjos - universidade federal de minas gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o...

14
João Pessoa - Paraíba 2012 AUGUSTO DOS ANJOS A HETEROGENEIDADE DO EU SINGULAR Maria do Socorro Silva de Aragão Neide Medeiros Santos Ana Isabel de Souza Leão Andrade Organizadoras

Upload: others

Post on 01-Aug-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: AUGUSTO DOS ANJOS - Universidade Federal de Minas Gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse

João Pessoa - Paraíba2012

AUGUSTO DOS ANJOSA HETEROGENEIDADE DO EU SINGULAR

Maria do Socorro Silva de AragãoNeide Medeiros Santos

Ana Isabel de Souza Leão Andrade

Organizadoras

Page 2: AUGUSTO DOS ANJOS - Universidade Federal de Minas Gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse

©Maria do Socorro Silva de Aragão, Neide Medeiros Santos, Ana Isabel de Souza Leão Andrade, 2012

Capa e EditoraçãoLuciano Pereira da Silva

RevisãoMaria do Socorro Silva de Aragão, Neide Medeiros Santos, Ana Isabel de Souza Leão Andrade.

Ficha Catalográfica

ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de, SANTOS, Neide Medeiros, ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão. Organizadoras. Augusto dos Anjos: a heterogeneidade do Eu singular. João Pes-soa. Mídia, 2012 499p. ISBN......... CDU 869.0(81)

Sergio Alcides
Placed Image
Page 3: AUGUSTO DOS ANJOS - Universidade Federal de Minas Gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse

395

UM GOSTO DE AUGUSTO EM DRUMMONDsérgio AlCides103*

Augusto dos Anjos não foi um poeta particularmente apreciado pelos principais envolvidos no movimento modernista, nem pelos do Rio de

Janeiro, nem pelos de São Paulo. Sobre o paraibano, deixaram pairar um largo silêncio, apesar de o movimento renovador ter se desenvolvido e se ramificado precisamente entre as balizas de duas edições fundamentais do Eu: a de 1920, que lhe acrescentou a porção inédita, e a de 1928, que lhe conquistou em defi-nitivo a admiração popular.104

É possível que essa indiferença estivesse de algum modo relacionada ao interesse um tanto romântico do modernismo pelo problema da nacionalida-de da poesia, seja quanto à expressão brasileira, ou supostamente brasileira, seja pela ênfase na chamada “cor local”. “Nenhum amor pela natureza tropical revela Augusto dos Anjos em seus poemas”, observou nessa época o jovem Gilberto Freyre, então estudante nos Estados Unidos. “A natureza brasileira

103 * Professor adjunto da Faculdade de Letras da UFMG.104 Augusto dos Anjos [1920]. Eu (Poesias completas). 2ª ed. Paraíba do Norte: s. e.; Augusto dos Anjos [1928]. Eu e outras poesias. 3ª ed. Rio de Janeiro: Castilho; ambas contêm a introdução de Órris Soares, “Elogio de Augusto dos Anjos”. Note-se que, ainda em 1928, outras duas edições foram impressas, pela própria Livraria Castilho e pela Companhia Editora Nacional.

Page 4: AUGUSTO DOS ANJOS - Universidade Federal de Minas Gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse

A U G U S T O D O S A N J O S : A H E T E R O G E N E I D A D E D O E U S I N G U L A R

396

não o empolgou”.105

Além disso, o pessimismo do malogrado poeta não cativaria, naquele momento, uma geração sorridente e entusiástica, cheia de ímpetos de ação e engajamento na modernização do Brasil. No Rio, um crítico simpático ao movimento julgava Augusto dos Anjos um poeta “falhado em sua ascensão”, cuja poesia estava “cheia dessa necrofilia invencível, dessa hipnotização pela doença, pela podridão, pela morte”.106 Talvez Tristão de Athayde estivesse er-rado ao apontar no Eu “um ilimitado individualismo”, ou, pior ainda, um exa-gerado “culto de si mesmo”.107 Mas o equívoco realça bem a ótica de quem se via atraído por um ideal coletivo, acima das individualidades. Mesmo que ao final da década esse projeto já se mostrasse desmantelado pelas divergências internas – ou intestinas, poderíamos dizer.

A independência de um poeta tão difícil de matricular também pode ter contribuído para levantar suspeitas sobre ele, em 1922. “Os modernistas não queriam ouvir falar do ‘neoparnasiano’ Augusto dos Anjos”, escreveu Otto Maria Carpeaux, acrescentando que, por outro lado, “os acadêmicos ainda rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse perfil esquivo constituía um excelente antídoto para a maldição dos “estilos de época”.

Entretanto, não se deve desprezar a hipótese de a antipatia dos moder-nistas por Augusto dos Anjos ser literalmente uma questão de gosto. Antonio Houaiss lembra que Carpeaux foi o primeiro crítico de alto prestígio a ressal-tar a importância do autor do Eu, “contra a maré consagrada”, já nos meados

105 Gilberto Freyre [1924]. “Nota sobre Augusto dos Anjos”. Trad. de M. L. Vieira Pinto [1943]. In: S. Brayner & A. Coutinho (orgs.). Augusto dos Anjos. Textos críticos. Brasí-lia: MEC, INL, 1973, pp. 135-40, à p. 138; diz o original, em inglês: “No love for tropic nature is shown in dos Anjos’ poems. He was not interested in Brazilian nature”; The Stratford Monthly v. 2, n. 3, Boston, setembro de 1924, pp. 273-6; texto integral transcrito em: http://bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos_cientificos/augusto.htm – acessado em outubro de 2012.106 Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) [1920]. “Augusto dos Anjos”. In: A. Amo-roso Lima. Estudos literários. Ed. preparada por A. Coutinho com assistência do autor. Rio de Janeiro: Aguilar, 1966, vol. 1, pp. 174-8, às pp. 178 e 176.107 Idem, p. 177.108 Otto Maria Carpeaux [1951]. Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira. Rio de Janeiro: MEC, 1951, p. 192.

Page 5: AUGUSTO DOS ANJOS - Universidade Federal de Minas Gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse

397

do século XX. “Até aí era de ‘mau gosto’ admirar, apreciar, amar ou ter em conta a poesia de Augusto dos Anjos. Seria, ademais, prova de imaturidade, vulgaridade ou incultura”.109

A persistência do “bom gosto” como critério judicativo constitui uma interessante especificidade dos modernistas brasileiros (exceção feita a Oswald de Andrade), quando vistos no plano mais amplo, ou menos paroquial, das vanguardas do século passado. Mário de Andrade, por exemplo, exaltava em 1924 o “gosto artístico infalível” de Guilherme de Almeida.110 Na década se-guinte, ainda recorria a essa noção de procedência classicista para criticar a “atitude desenvolta” de Murilo Mendes quanto à religião, que mostraria “um frequente mau gosto”.111

Por esse ângulo, observa-se que Oswald de Andrade estava mais sozi-nho do que imaginou, quando escreveu a seguinte boutade, usando uma ins-tável primeira pessoa do plural:

Os retardatários (...) pensam que têm gosto porque aprenderam umas coisinhas. São os mantenedores do gosto. O que sai das coisi-nhas é de mau gosto. Mas nós endossamos o mau gosto e recupera-mos para a época o que os retardatários não tinham compreendido e difamavam.112

Oswald à parte, o critério do gosto foi transmitido àqueles que, nas ge-rações posteriores, filiaram-se ao legado do modernismo. Até um crítico de estatura excepcional como Antonio Candido se embasou aí ao expor suas res-trições à obra de Sousândrade, que para ele “recorre a certo preciosismo, ge-ralmente do pior efeito, com um pendor para termos difíceis que roça o mau

109 Antônio Houaiss [1964]. “Reportagem. Cinquentenário da morte de Augusto dos Anjos”. In: S. Brayner & A. Coutinho (orgs.). Augusto dos Anjos. Textos críticos. Brasília: MEC, INL, 1973, pp. 46-9, à p. 46.110 Mário de Andrade [1924]. “A escrava que não era Isaura”. In: M. de Andrade. Obra imatura. São Paulo, Belo Horizonte: Martins, Itatiaia, 1980, pp. 195-200, à p. 230. 111 Mário de Andrade [1939] “A poesia em pânico”. In: M. de Andrade. Vida literária. São Paulo: Edusp, 1993, pp. 17-24, à p. 18.112 Oswald de Andrade [1926]. “Objeto e fim da presente obra”. In: O. de Andrade. Esté-tica e política. 2ª ed. revista e ampliada. Organização de Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Globo, 2011, pp. 61-3, à p. 62.

Page 6: AUGUSTO DOS ANJOS - Universidade Federal de Minas Gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse

A U G U S T O D O S A N J O S : A H E T E R O G E N E I D A D E D O E U S I N G U L A R

398

gosto”.113 Nesse contexto de referências, era natural que o vocabulário “difícil” buscado por Augusto dos Anjos na biologia fosse geralmente percebido como preciosista, de gosto duvidoso.

Mesmo a revisão crítica efetuada ao longo dos anos de 1940, que resga-tou para o debate erudito uma obra há muito tempo consagrada pelo “gosto” popular, contrabalançava as considerações elogiosas com insistentes expres-sões de nariz torcido. Um artigo fundamental para essa revisão foi o publicado em 1947, no Correio da Manhã, por Álvaro Lins, que não deixou de escrever:

Isto agora não é um elogio, mas a constatação de uma parte fraca, detestável sob certos aspectos, na obra de Augusto dos Anjos. (...) Encontramos nele o mais puro valor literário e o mais horrendo mau gosto. Algumas vezes, o mau gosto em Augusto dos Anjos é tão ab-soluto, tão pavoroso, tão irritante, que um leitor de gosto requintado pode cometer o erro de desprezá-lo porque já não tem mais paciên-cia para procurar o verdadeiro poeta naquela confusão entre a beleza e a vulgaridade.114

No mesmo ano, um leitor de “gosto requintado” como o jovem poeta Ledo Ivo, que então se contrapunha junto com a Geração de 1945 ao establish-ment modernista, reiterava o mesmo critério de um modo enviesado: para ele, ser “um poeta de mau gosto” como Augusto dos Anjos era uma “maneira de ser autêntico criador de gosto”.115 Com o que se mantinha a pressuposição de sempre: o gosto como valor estético, mesmo quando recriado (ou reciclado) a partir daquilo que antes poderia ter sido visto como ruim.

Essa persistência mostra que, em certos aspectos, os modernistas fica-ram aquém de Augusto dos Anjos: romperam com o parnasianismo rotineiro das décadas iniciais do século XX, mas não com um dos principais valores que

113 Antonio Candido [1969]. Formação da literatura brasileira (Momentos decisivos). 3ª ed. São Paulo: Martins, vol. 2, p. 208.114 Álvaro Lins [1947]. “Augusto dos Anjos, poeta moderno”. In: S. Brayner & A. Couti-nho (orgs.). Augusto dos Anjos. Textos críticos. Brasília: MEC, INL, 1973, pp. 186-98, à p. 189.115 Ledo Ivo [1947]. “As diatomáceas da lagoa”. In: S. Brayner & A. Coutinho (orgs.). Augusto dos Anjos. Textos críticos. Brasília: MEC, INL, 1973, pp. 325-31, à p. 328.

Page 7: AUGUSTO DOS ANJOS - Universidade Federal de Minas Gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse

399

permitiam a sobrevivência anacrônica da poética parnasiana no país. Poucos críticos, assim, puderam perceber a virulência subversiva da poesia do Eu, tanto pela forma quanto pela matéria, que se explicitava precisamente no de-safio aos parâmetros do gosto imperantes no Parnaso. Quanto à versificação, as provocações do poeta paraibano não deixaram de ser ouvidas com reprova-ção nas “margens plácidas” da boa escola, em 1912:

São inúmeros os versos duros, ou sem ritmo, creio que proposital-mente empregados, para que as extravagâncias de forma corram pa-relhas com as teratologias de concepção.116

Meio século depois, quanto à matéria, pôde-se ler a afirmativa de Fausto Cunha, no Correio da Manhã:

O Eu pode ser visto como um desafio cara a cara ao parnasianis-mo. Indo mais longe, poderíamos vê-lo até como uma paródia. (...) Numa sociedade voltada para céus estrelados, em que os astros eram virgens mortas na mitologia bilaquiana, soaria como uma brincadei-ra de mau gosto compará-los a “uma epiderme cheia de sarampos”.117

Mas era justamente a permanência do gosto como critério, contra a qual o poeta se voltara, o que dificultava ou quase impedia a aceitação pela casta erudita de sua obra já popularizada em meios alheios a essa espécie de inter-secção entre a estética e a distinção social.

O vasto anedotário sobre Augusto dos Anjos e sua obra estranhíssima traz abundantes sinais do seu efeito desestabilizador para os padrões burgue-ses e pequeno-burgueses de conveniência e adequação. Conta-se, por exem-plo, que o poeta Raul de Leoni – um filho da elite política fluminense, atlético representante da jeunesse dorée carioca – costumava recitar versos escabrosos

116 Osório Duque-Estrada [1912]. “Registro literário. ‘Eu’, versos de Augusto dos Anjos”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 17 de junho de 1912, p. 1.117 Fausto Cunha [1963]. “Augusto dos Anjos salvo pelo povo”. In: S. Brayner & A. Couti-nho (orgs.). Augusto dos Anjos. Textos críticos. Brasília: MEC, INL, 1973, pp. 348-53, à p. 351.

Page 8: AUGUSTO DOS ANJOS - Universidade Federal de Minas Gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse

A U G U S T O D O S A N J O S : A H E T E R O G E N E I D A D E D O E U S I N G U L A R

400

do Eu à mesa, de brincadeira, “para desarranjar o estômago dos circunstantes e tirar-lhes a vontade de almoçar”.118 Em Leopoldina, contavam que, quando chegaram à cidade os primeiros exemplares do livro, um grupo de figurões proeminentes reunia-se na casa do juiz da comarca, à noite, para ler os po-emas do recém-nomeado diretor do grupo escolar; quando os vizinhos per-guntavam a razão das gargalhadas, a resposta era: “Estão rindo das poesias do professor Augusto dos Anjos”.119

No entanto, mais adiante nessa década e mais adentro em Minas Gerais, no tédio adolescente da província, o Eu começou a ser lido de outro modo. João Alphonsus, filho do grande simbolista Alphonsus de Guimaraens, não era então o único futuro escritor a se deixar impressionar pelo “sentido do dramático e do lancinante”, persistente nos versos do livro.120 Outro jovem lei-tor se chamava Carlos Drummond de Andrade, que décadas depois relatou brevemente sua leitura numa nota manuscrita, hoje guardada na Biblioteca Nacional.

Li o Eu na adolescência, e foi como se levasse um soco na cara. Ja-mais eu vira antes, engastadas em decassílabos, palavras estranhas como simbiose, mônada, metafisicismo, fenomênica, quimiotaxia, zooplasma, intracefálica... E elas funcionavam bem nos versos! Ao espanto sucedeu intensa curiosidade. Quis ler mais esse poeta di-ferente dos clássicos, dos românticos, dos parnasianos, dos simbo-listas, de todos os poetas que eu conhecia. A leitura do Eu foi para mim uma aventura milionária. Enriqueceu minha noção de poesia. Vi como se pode fazer lirismo com dramaticidade permanente, que se grava para sempre na memória do leitor. Augusto dos Anjos con-tinua sendo o grande caso singular da poesia brasileira.121

118 Agrippino Grieco [1928]. “‘Semeador de harmonia e de beleza’ – os inéditos de Raul de Leoni”. Autores e livros. Suplemento literário do jornal A Manhã. Rio de Janeiro, 23 de novembro de 1941, p. 304.119 Cf. João Alphonsus [1941]. “Augusto dos Anjos em Leopoldina”. Autores e Livros. Suplemento literário de A Manhã. Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1941, p. 327.120 Idem.121 Carlos Drummond de Andrade. “Nota crítica à obra poética de Augusto dos Anjos”. FBN, Rio de Janeiro, ms. I-07,17,005C, datado de abril de 1984; escrita especialmente para a Exposição Comemorativa do Centenário de Nascimento do poeta paraibano,

Page 9: AUGUSTO DOS ANJOS - Universidade Federal de Minas Gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse

401

Frisemos bem o depoimento recepcional: “um soco na cara”. Se a me-mória de Drummond não é falha, nem falseia o passado, é possível especular que Augusto dos Anjos tenha desempenhado um papel relevante na educação modernista do autor de Alguma poesia. A “dramaticidade permanente” tam-bém caracteriza o melhor da poesia de Drummond, e com frequencia está igualmente associada ao aproveitamento de elementos que o gosto médio per-ceberia como grotescos.

Foi precisamente aí que José Guilherme Merquior embasou sua leitura da obra drummondiana, apontando a “ótica grotesca” que o poeta manejou a partir da técnica da “mescla dos estilos”.122 É a Stilmischung de que fala Eri-ch Auerbach em Mímesis, contrastando-a com a Stiltrennung – o princípio clássico da separação estrita entre os três níveis do estilo: o sermo gravis (su-blime), o sermo mediocris (médio) e o sermo humilis (baixo). Por essa regra, “a representação realística da vida cotidiana era incompatível com o sublime e só poderia ter lugar na comédia ou, cuidadosamente estilizada, no idílio”.123 No pólo oposto, por exemplo no teatro de Shakespeare, a mescla de estilos põe em cena uma variedade desconcertante, em que os objetos comezinhos se misturam com a coroa, o rei passeia entre os peões e até a dicção elevada se tinge com expressões inferiores – com um destaque para os aspectos materiais ou mesmo cruentos da vida humana que Auerbach designou como a “criatu-ralidade física”.124

O realismo criatural não terá deixado de contribuir decisivamente para a construção dos acentos dramáticos que possibilitaram a Drummond o seu “lirismo de interrogação existencial”, na expressão de Merquior.125 Este não deixou de notar que Auerbach retomara a discussão sobre a mescla de estilos a propósito da obra de Charles Baudelaire.126 Trata-se de um nome funda-

organizada pela Biblioteca Nacional; fac-símile: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/literatura/mss_I_07_17_005C.jpg – acesso em outubro de 2012.122 Ver: José Guilherme Merquior [1975]. Verso universo em Drummond. Trad. de Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: José Olympio, p. 14.123 Erich Auerbach [1946]. Mimesis. The Representation of Reality in Western Literature. Trad. de Willard R. Trask; introdução de Edward W. Said. Princeton NJ: Princeton UP, 2003, p. 22.124 Idem, p. 313.125 Merquior, cit., p. 121.126 Idem, p. 14, n. 11. Ver: E. Auerbach [1951]. “The Aesthetic Dignity of the ‘Fleurs

Page 10: AUGUSTO DOS ANJOS - Universidade Federal de Minas Gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse

A U G U S T O D O S A N J O S : A H E T E R O G E N E I D A D E D O E U S I N G U L A R

402

mental tanto para Augusto dos Anjos quanto para Drummond; é o poeta da charogne, da carniça, para o qual os resíduos da “criaturalidade” têm a maior importância:

Alors, ô ma beauté! dites à la vermineQui vous mangera de baisers,Que j’ai gardé la forme et l’essence divineDe mes amours décomposés!127

Esse trecho exemplifica bem o ponto que Merquior assinala – em Drum-mond – como “a alma do estilo mesclado”: é a “contradição entre intenção problemática e referência vulgar”, produzida pelo “choque entre o tom sério e a matéria vulgar”.128 Mas não é precisamente desse choque que Augusto dos Anjos extrai o maior dramatismo da sua poesia?

Pelo enfoque da “ótica grotesca”, a aproximação entre o modernista mi-neiro e o autor do Eu nos permite dois ganhos. Por um lado, evidencia-se uma afinidade que contribui para demarcar melhor a singularidade de Drum-mond no contexto do modernismo, em particular com relação ao magistério exercido por Mário de Andrade, a quem ele se mostrou mais ligado do que a Oswald. Por outro lado, realça a modernidade de Augusto dos Anjos, que passou despercebida não só no seu tempo, mas justamente no momento em que se pretendeu modernizar a poesia brasileira, desprovincianizando-a, em ruptura com a rotina dos estertores parnasianos.

De maneira muito peculiar, Augusto dos Anjos “naturaliza” o choque apontado por Merquior. O plano biológico a que ele recorre obsessivamente ressalta o criaturalismo e condensa no próprio vocabulário a mescla dos esti-los. Na “Noite de um visionário”, por exemplo:

du mal’”. Trad. de Ralph Manheim. In: E. Auerbach. Scenes from the Drama of European Literature. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984, pp. 201-26.127 Na tradução de Ivan Junqueira: “Então, querida, dize à carne que se arruína, / Ao ver-me que te beija o rosto, / Que eu preservei a forma e a substância divina / De meu amor já decomposto!” – “Une Charogne”. In: C. Baudelaire [1857]. As flores do mal. Trad. de I. Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pp. 173-7, às pp. 176-7.128 Merquior, cit., p. 126.

Page 11: AUGUSTO DOS ANJOS - Universidade Federal de Minas Gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse

403

E no estrume fresquíssimo da glebaFormigavam, com a símplice sarcode,O vibrião, o ancilóstomo, o colpodeE outros irmãos legítimos da ameba!129

Os termos “cientifizantes” estão aí designando bactérias, parasitas, pro-tozoários – enfim, os organismos que produzem a podridão, a degeneração. No entanto, seu estatuto de palavras “difíceis” contrasta com o reino grotesco que eles mesmos evocam. O “tom sério” então abre a via de uma espécie de “contra-sublime” a partir da maior baixeza imaginável. É o “evolucionismo às avessas” de que falou José Paulo Paes, acerca do Eu, com o desejo de regresso à indiferenciação orgânica e à “pátria da homogeneidade”.130

Já em Drummond, o resultado final é geralmente dessublimador, como se lê ao final de “Vida menor”:

Não apenas o morto nem o eterno ou o divino,apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferentee solitário vivo.Isso eu procuro.131

Adotando essa perspectiva, o poeta ataca a metafísica do sujeito, como Augusto dos Anjos, mas por outro flanco: retirando o peso do sublime de suas costas, sem com isso redimi-lo de sua constitucional pequenez.

Vários modos característicos da poesia do Eu se renovam em diferentes pontos da obra drummondiana. O mais generalizado é a situação deambula-tória, que em Drummond esbarra sempre no obstáculo, na “pedra no meio do caminho”. Também muito recorrente é a pintura de um cenário, no qual as condições atmosféricas estão mudando. Além disso, vários temas angelinos

129 “Noite de um visionário”. In: A. dos Anjos. Eu e outras poesias. Apresentação, notas e comentários de S. Alcides. São Paulo: Ática, 2005, pp. 145-8, à p. 147.130 José Paulo Paes [1986]. “Augusto dos Anjos ou o evolucionismo às avessas”. In: A. dos Anjos. Os melhores poemas de... São Paulo: Global, 1996, pp. 11-35, à p. 26.131 “Vida menor”, de A rosa do povo [1945]. In: C. D. de Andrade. Poesia completa. Ed. preparada por Gilberto Mendonça Teles. Introdução de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, pp. 143-4, à p. 144.

Page 12: AUGUSTO DOS ANJOS - Universidade Federal de Minas Gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse

A U G U S T O D O S A N J O S : A H E T E R O G E N E I D A D E D O E U S I N G U L A R

404

reaparecem, como o da alalia – o das dificuldades da fala, no qual sobressai a ambiguidade da palavra “língua”, entre código linguístico e órgão oral:

(...) olhos pintados,dentes de vidro,grotesca língua torcida.132

Ou o aproveitamento das funções fisiológicas:

Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de co-mida,mais tarde será o de amor.133

Ou o mais cruel humor negro:

De tudo ficou um pouco:de mim; de ti; de Abelardo.134

Ou a observação do declínio físico decorrente da idade, como conjunto de sinais do fim:

Para fora do tempo arrasto meus despojose estou vivo na luz que baixa e me confunde.135

Ou, menos como tema e mais como recurso, o autonomear-se:

E a matéria se veja acabar: adeus, composiçãoque um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.136

132 “Nosso tempo”, de A rosa... In: C. D. de Andrade, cit., pp. 125-30, à p. 128.133 Idem, ibid.134 “Resíduo”, de A rosa... Ibidem, pp. 158-60, à p. 159.135 “Campo de flores”, de Claro enigma [1951]. Ibidem, pp. 268-9, à p. 269.136 “Os últimos dias”, de A rosa... Ibidem, pp. 214-17, à p. 217. Para não citar o trecho mais óbvio: “Vai, Carlos, ser gauche na vida”, do “Poema de sete faces”, de Alguma poesia [1930]. Ibidem, p. 5.

Page 13: AUGUSTO DOS ANJOS - Universidade Federal de Minas Gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse

405

Neste último trecho, o sujeito caminha para a situação em que o acha-mos no desenlace de “Os doentes”, no Eu:

O inventário do que eu já tinha sidoEspantava. Restavam só de AugustoA forma de um mamífero vetustoE a cerebralidade de um vencido!137

No entanto, os restos do “eu”, seus resíduos finais, ainda podiam se ele-var sobre a putrefação e o tempo na esfera ideal da arte, “uma região sem nódoas e sem lixos, / subtraída à hediondez de ínfimo casco”.138 Mesmo essa doutrina de fundo schopenhaueriano comparece em Drummond como uma motivação para a poesia, diante da “confusão de coisas ao crepúsculo”, em vis-ta de “um todo sábio, posto que sensível”, “tal uma inteligência do universo / comprada em sal, em rugas e cabelo”.139

Esta última passagem permitiu a Merquior considerar a “inteligência do universo” de Drummond como “o segundo caso de schopenhauerianismo das letras brasileiras, sendo o primeiro, naturalmente, Machado de Assis”.140 O grande crítico se esquecera de um certo paraibano... Com a lembrança deste, no intermédio, uma espécie de linhagem se desenha. Ou, se quiserem, uma filogenia.

ANEXO

137 “Os doentes”. In: A. dos Anjos. Eu e outras poesias, cit., pp. 95-113, à p. 112.138 “Gemidos de arte”. Ibidem, pp. 130-36, à p. 132. Sobre a apropriação da estética de Schopenhauer por Augusto dos Anjos, ver J. P. Paes, “Augusto dos Anjos...”, cit., p. 21.139 “Versos à boca da noite”, de A rosa... In: C. D. de Andrade. Poesia completa, cit., pp. 192-4, à p. 194.140 Merquior, cit., p. 98.

Page 14: AUGUSTO DOS ANJOS - Universidade Federal de Minas Gerais · 2019-11-27 · rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos”.108 Mas não ocorreu a ninguém, no momento, que esse

A U G U S T O D O S A N J O S : A H E T E R O G E N E I D A D E D O E U S I N G U L A R

406

Nota manuscrita de Carlos Drummond de Andrade sobre a poesia de Augusto dos Anjos, hoje guardada na Biblioteca Nacional.