augusto dos anjos, ciência no final do século xix

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30 QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 11, MAIO 2000 HISTÓRIA DA QUÍMICA Augusto dos Anjos: ciência e poesia A interdisciplinaridade no ensino tem sido recomendada nas mais recentes reformas edu- cacionais - e parece ser um dos ideais mais difíceis de serem colocados em prática. Este artigo pretende ser uma pequena contribuição para a integra- ção entre diferentes disciplinas. O pon- to de partida é a obra de um importante poeta brasileiro - Augusto dos Anjos. Um soneto desse autor, aliás, já serviu como pretexto para uma questão de química em recente exame vestibular Paulo Alves Porto No presente artigo pretende-se mostrar como o conhecimento de ciências em geral (química e biologia em particular), e de sua história, pode contribuir para a fruição estética de um poema. Augusto dos Anjos, ciência no final do século XIX, interdisciplinaridade Psicologia de um Vencido Eu, filho do carbono e do amoníaco, Monstro de escuridão e rutilância, Sofro, desde a epigênese da infância, A influência má dos signos do zodíaco. Profundissimamente hipocondríaco, Este ambiente me causa repugnância... Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia Que se escapa da boca de um cardíaco. Já o verme - este operário das ruínas - Que o sangue podre das carnificinas Come, e à vida em geral declara guerra, Anda a espreitar meus olhos para roê-los, E há de deixar-me apenas os cabelos, Na frialdade inorgânica da terra! Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1914) Paraíba, 1909 (Unicamp 1997, 1ª fase, questão 3) - embora a questão envolvesse apenas o significado atual dos termos técnicos citados por Augusto dos Anjos, e não o contexto que levou o autor a utilizá- los. Vida e morte na ciência do final do século 19 Antoine Laurent Lavoisier (1743- 1794), considerado um dos fundado- res da química moderna - por seus tra- balhos com grande rigor quantitativo, Esta seção contempla a história da química como parte da história da ciência, buscando ressaltar como o conhecimento científico é construído. Neste número a seção apresenta dois artigos. pela proposição de uma nova nomen- clatura química, por ter-se utilizado de uma definição operacional para “ele- mento químico” - fez também impor- tantes contribuições para a chamada “química orgânica” (então considerada a “química dos seres vivos”). Sistema- tizando e organizando fatos conheci- dos havia muito tempo, Lavoisier observou que as substâncias proveni- entes dos reinos animal e vegetal sem- pre continham os elementos carbono e hidrogênio, e freqüentemente tam- bém oxigênio, nitrogênio e fósforo. Lavoisier considerava a química orgâ- nica como parte integrante da química; por exemplo, classificava juntos todos os ácidos, fossem eles de origem mi- neral, vegetal ou animal. Outros quími- cos seus contemporâneos, porém, preferiam tratar separadamente os compostos inorgânicos e orgânicos. Acreditavam que estes últimos teriam alguma peculiaridade que faria com que somente organismos vivos pudes- sem sintetizá-los. Esta crença se pro- longou através do século 19, sendo desposada por importantes químicos do período. Jöns Jacob Berzelius (1779-1848), por exemplo, chegou a crer que os compostos orgânicos, ao contrário dos inorgânicos, não obede- ceriam à lei das proporções definidas (estabelecida por Joseph Louis Proust (1754-1826) no começo do século). Leopold Gmelin (1788-1853) afirmava que os compostos orgânicos requere- riam um animal ou planta para sinteti-

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 11, MAIO 2000

HISTÓRIA DA QUÍMICA

Augusto dos Anjos: ciência e poesia

Ainterdisciplinaridade no ensinotem sido recomendada nasmais recentes reformas edu-

cacionais - e parece ser um dos ideaismais difíceis de serem colocados emprática. Este artigo pretende ser umapequena contribuição para a integra-ção entre diferentes disciplinas. O pon-to de partida é a obra de um importantepoeta brasileiro - Augusto dos Anjos.Um soneto desse autor, aliás, já serviucomo pretexto para uma questão dequímica em recente exame vestibular

Paulo Alves PortoNo presente artigo pretende-se mostrar como o conhecimento de ciências em geral (química e biologia em

particular), e de sua história, pode contribuir para a fruição estética de um poema.

Augusto dos Anjos, ciência no final do século XIX, interdisciplinaridade

Psicologia de um VencidoEu, filho do carbono e do amoníaco,Monstro de escuridão e rutilância,Sofro, desde a epigênese da infância,A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,Este ambiente me causa repugnância...Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsiaQue se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -Que o sangue podre das carnificinasCome, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,E há de deixar-me apenas os cabelos,Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1914)Paraíba, 1909

(Unicamp 1997, 1ª fase, questão 3) -embora a questão envolvesse apenaso significado atual dos termos técnicoscitados por Augusto dos Anjos, e nãoo contexto que levou o autor a utilizá-los.

Vida e morte na ciência do final doséculo 19

Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794), considerado um dos fundado-res da química moderna - por seus tra-balhos com grande rigor quantitativo,

Esta seção contempla a história da química como parte da história da ciência, buscando ressaltar como o conhecimentocientífico é construído. Neste número a seção apresenta dois artigos.

pela proposição de uma nova nomen-clatura química, por ter-se utilizado deuma definição operacional para “ele-mento químico” - fez também impor-tantes contribuições para a chamada“química orgânica” (então consideradaa “química dos seres vivos”). Sistema-tizando e organizando fatos conheci-dos havia muito tempo, Lavoisierobservou que as substâncias proveni-entes dos reinos animal e vegetal sem-pre continham os elementos carbonoe hidrogênio, e freqüentemente tam-bém oxigênio, nitrogênio e fósforo.Lavoisier considerava a química orgâ-nica como parte integrante da química;por exemplo, classificava juntos todosos ácidos, fossem eles de origem mi-neral, vegetal ou animal. Outros quími-cos seus contemporâneos, porém,preferiam tratar separadamente oscompostos inorgânicos e orgânicos.Acreditavam que estes últimos teriamalguma peculiaridade que faria comque somente organismos vivos pudes-sem sintetizá-los. Esta crença se pro-longou através do século 19, sendodesposada por importantes químicosdo período. Jöns Jacob Berzelius(1779-1848), por exemplo, chegou acrer que os compostos orgânicos, aocontrário dos inorgânicos, não obede-ceriam à lei das proporções definidas(estabelecida por Joseph Louis Proust(1754-1826) no começo do século).Leopold Gmelin (1788-1853) afirmavaque os compostos orgânicos requere-riam um animal ou planta para sinteti-

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zá-los a partir da matéria bruta, en-quanto os compostos inorgânicos po-deriam ser sintetizados pelo homemdiretamente a partir dos elementos queos constituem. Essas visões resumema crença vitalista permeando a químicadas primeiras déca-das do século 19.

Por outro lado,apesar das dificul-dades em torno dasíntese de compos-tos orgânicos, suaanálise foi uma dasáreas que experi-mentou maior desen-volvimento ao longodo século 19. O co-nhecimento dos quí-micos acerca dosprodutos da decom-posição dos tecidos vivos, em meadosdo século 19, pode ser resumido pelaspalavras de Friedrich Wöhler (1800-1882) a outro químico, Justus vonLiebig (1803-1873), em carta de 1843:

Imagine-se no ano de 1900,quando nós dois estaremos dis-solvidos em ácido carbônico1,água e amônia, e nossas cinzas- talvez - serão parte dos ossosde algum cão que terá espolia-do nossos túmulos2.

Esta continuidade - ou antes, unici-dade - da química dos “mundos” orgâ-nico e inorgânico, aliada à crença napossibilidade da geração espontânea,e aliada ainda a teorias emergentes noséculo 19 - relativas à evolução das es-pécies e seleção natural - permitiramo surgimento de doutrinas monistasmaterialistas relacionadas à ciência.Um exemplo de cientista que desen-volveu esta postura filosófica foi ErnstH. Haeckel (1834-1919).

Haeckel estudou diversos tipos deorganismos. A forma de vida que maislhe despertou interesse foram os orga-nismos unicelulares que não possuemnúcleo - classificados na ordem mo-nera. O núcleo celular é uma organelaessencial às células de quaisqueroutros seres vivos, pois sem ele as cé-lulas ficam incapazes de se reproduzir.Devido às características da estruturadas moneras, Haeckel defendia queelas seriam as mais simples formas de

vida, a partir das quais organismos su-cessivamente mais complexos teriamevoluído. Haeckel aderiu ao darwinis-mo, embora o tenha interpretado demaneira particular, misturando-o comradicalismo político (crença cega no

progresso, anticlerica-lismo) e com a filosofianatural romântica deGoethe. Em sua obraGenerelle Morphologie,de 1866, Haeckel bus-ca explicações causaismecânicas para as for-mas e os fenômenosda vida. Segundo ele,isto possibilitaria umaexplicação “monista”da Natureza sobre ba-ses filosóficas. Assim,ele afirma que não ha-

veria qualquer diferença essencial en-tre o que é animado e o que é inanima-do. Após comparar detalhadamente oscristais e as células vivas, Haeckel con-clui que ambos são semelhantes emtodos os aspectos relativos à compo-sição química, crescimento e individua-lidade. Em Welträtsel, de 1899, Haeckeldefende que a única causa do movi-mento vital são as propriedades quími-cas do carbono. As formas maissimples do protoplasma vivo teriam sur-gido de compostos nitrogenados decarbono, não vivos, por um processode geração espontânea. A própria ativi-dade psíquica não seria mais do queum conjunto de fenô-menos dependentesde mudanças mate-riais no protoplasma.Surpreendentemente,porém, ainda em Ge-nerelle Morphologie,Haeckel tende para ummonismo panteísta, aoafirmar que “matérianenhuma pode serconcebida sem espírito, e nenhum es-pírito sem matéria”, e ao decretar aunidade entre Deus e a Natureza.

O darwinismo então em voga tevemuitos outros ferrenhos defensores;entre eles, Herbert Spencer (1820-1903). Embora não fosse um especia-lista em biologia, Spencer foi um dosmais importantes representantes dopensamento evolucionista do final do

século passado. Acreditava Spencerque a filosofia deveria combinar, sobum ponto de vista comum, os resul-tados obtidos por todas as ciências:física, química, biologia, e também psi-cologia e sociologia. A evolução seriao ponto de contato entre todas as ciên-cias. Spencer desenvolve um conceitode evolução que abrange todas asformas de existência, não apenas osorganismos biológicos:

Evolução é uma integração dematéria e concomitante dissipa-ção de movimento, durante aqual a matéria passa de uma ho-mogeneidade indefinida e inco-erente para uma heterogenei-dade definida e coerente; edurante a qual o movimento re-tido sofre uma transformaçãoparalela3.

Spencer partiu de teorias de biólo-gos acerca da evolução, como a “teo-ria da epigênese” de Caspar FrederickWolff (1733-1794), por exemplo. Wolff,estudando células ao microscópio,observou a formação progressiva e adiferenciação de diferentes órgãos apartir do que ele chamava de “gér-men”, aparentemente homogêneo. Ahipótese alternativa seria a “teoria depré-formação”, segundo a qual todosos organismos já estariam pré-forma-dos no ovo, e a partir de então apenascresceriam. Esta última teoria é clara-mente incompatível com a doutrina da

evolução. Spencer,todavia, não conce-beu a evolução comorestrita apenas à bio-logia: procurou gene-ralizá-la para todosos fenômenos. Enxer-gou evolução noscorpos celestes; naformação geológicada Terra (de uma bola

incandescente e homogênea até o as-pecto atual); na formação de espéciesanimais cada vez mais complexas apartir de formas primitivas; nas própriasestruturas sociais.

Psicologia de um Vencido: cruzamentodos planos científico e poético

A característica mais notável daspoesias de Augusto dos Anjos é seu

Herbert Spencer, um dosmais importantesrepresentantes do

pensamento evolucionistado final do século passado,acreditava que a filosofiadeveria combinar, sob umponto de vista comum, os

resultados obtidos portodas as ciências: física,

química, biologia, etambém psicologia e

sociologia

A característica maisnotável das poesias de

Augusto dos Anjos é seuconteúdo científico e

filosófico. Isto não significaque Augusto dos Anjos

estivesse preocupado emfazer, investigar ou mesmodivulgar ciência e filosofia

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 11, MAIO 2000Augusto dos Anjos: ciência e poesia

conteúdo científico e filosófico. Isto nãosignifica que Augusto dos Anjos esti-vesse preocupado em fazer, investigarou mesmo divulgar ciência e filosofia.Sua peculiar visão de mundo, sua bus-ca interior, é que foram encontrar nomaterialismo, no monismo, no evolu-cionismo, os conceitos e o vocabulárioadequados para se expressar. Obser-va-se em sua poesia a incorporaçãodas idéias, principal-mente, de dois dosprincipais divulga-dores do evolucionis-mo no final do século19: Haeckel e Spen-cer (que chegam a sercitados nominalmenteem alguns poemas4).Recuando no tempo,essa característica de cantar em versosuma filosofia materialista nos permiteestabelecer, sob alguns aspectos, umparalelo entre Lucrécio e Augusto dosAnjos.

Tito Lucrécio Caro (96-55 a.C.), emseu De rerum natura, cantou em formade poesia alguns aspectos da filosofiade Epicuro (341-270 a.C.). Não se tratade uma exposição rigorosa do sistemaepicurista, visto que sequer atinge seuâmago, que é a teoria do prazer.Lucrécio busca enaltecer a figura deEpicuro, e destaca algumas de suasidéias. Aqui, interessa-nos observarque, buscando respostas sobre a natu-reza da alma e da morte, Lucréciotambém descreve uma “cosmologia”materialista em que a morte é o fim detudo.

Para Lucrécio, como para Epicuro,a criação do universo não teria sidoobra dos deuses. Tudo o que existe -fosse o céu, a Terra, as plantas, os ani-mais, o homem - teria origem no movi-mento de átomos que não teriam inícionem fim. Seria esse mesmo movimentode partículas minúsculas que produ-ziria todos os fenômenos da Natureza,psicológicos e sociais. Segue-se - des-se absoluto materialismo que rejeita aexistência de qualquer poder sobre-natural a influir sobre a vida humana -que a morte significaria apenas a dis-persão dos átomos constituintes de umser. Essa visão da morte encontra ecoséculos depois em Psicologia de umVencido, onde o que resta do homem

após a decomposição de sua carnesão apenas cabelos na terra fria. Ape-sar de estarem de acordo quanto a es-se ponto, os enfoques de um e deoutro poeta são bem diferentes. Lucré-cio expõe sua visão da morte paramostrar que não devemos temê-la, quenão há motivo para o homem sofrercom a incerteza acerca do futuro deseu espírito. Diz ele: “...o espírito nasce

juntamente com o cor-po e cresce com ele eenvelhece ao mesmotempo”5. O espíritonão poderá lamentar aausência de situaçõesfelizes passadas, ou aausência de pessoasqueridas, ou a nãofruição plena da vida -

simplesmente porque o espírito seextingue junto com o corpo, e nadaresta que possa sofrer ou lamentar-se.O que transparece no poema deAugusto dos Anjos, entretanto, é umapostura muito mais pessimista e an-gustiada. O poeta paraibano destacao sofrimento do homem ainda em vida,como agrupamento de matéria àmercê de forças sobre as quais ele nãotem controle. A morte, sendo o fim detudo, desfaz qualquer esperança deconsolação e alívio em outro plano deexistência. Lucrécio convida a desfrutarda vida, sem preocupação com aimortalidade que não existe; paraAugusto dos Anjos só há desgosto emvida, que se há de encerrar empodridão.

Conforme dissemos, o que Augus-to dos Anjos faz não é uma ‘tradução’das idéias de Haeckel e Spencer paraa forma de versos. Opoeta buscava ex-pressar sua angústiadiante da vida. Seutema não era o amor:em seu livro Eu, amore erotismo são temaspraticamente ausen-tes; ou então apare-cem para serem repelidos pelo poeta.Tampouco era a busca de Augusto dosAnjos pela divindade, ou pela transcen-dência da alma. Os sentimentos queele expressa são o pessimismo, umavisão materialista e perplexa da vida.Seus poemas são construídos de ima-

gens grotescas, horríveis, repugnantes- que chocam o leitor. Na filosofia evo-lucionista Augusto dos Anjos encon-trou uma visão de mundo que entrouem ressonância com seu próprio pes-simismo: uma doutrina que concebiaa vida como originária de uma com-binação de moléculas por geração es-pontânea; que via o homem como umestágio na evolução da vida, a partirde microrganismos simples e pas-sando por plantas e animais sucessi-vamente mais complexos. Assim, a filo-sofia e a ciência evolucionista derama forma intelectual e os signos lingüís-ticos que Augusto dos Anjos precisava

para expressar seussentimentos. O poetaacumulou conheci-mentos num nível cog-nitivo consciente - o daciência - e foi capaz detransmutá-los para umplano diferente, o daexpressão lírica, do

efeito estético, da emoção.Assim, o uso que Augusto dos An-

jos faz de termos técnicos familiaresao cientista, mas estranhos a outrospoetas - ou mesmo ao leitor comum -,pode ser enfocado sob várias facetas.Um aspecto que chama a atenção é a

O que Augusto dos Anjosfaz não é uma ‘tradução’das idéias de Haeckel e

Spencer para a forma deversos. O poeta buscavaexpressar sua angústia

diante da vida

Os poemas de Augusto dosAnjos são recheados de

palavras incompreensíveispara a maioria dos leitores,e assim adquirem uma aura

de mistério, demusicalidade quase pura

Augusto de Carvalho Rodriguesdos Anjos (1884-1914)

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sonoridade destas palavras. Elas con-ferem aos poemas musicalidade eritmo inusitados, por sua própria foné-tica e estranheza. Estas característicassão realçadas quando participam darima; em Psicologia de um Vencido,Augusto dos Anjos produz surpreen-dente rima com as palavras amoníaco/ zodíaco / hipocondríaco / cardíacoAlém disso, empresta da ciência aspalavras carbono, epigênese e inorgâ-nica. Há críticos que apontam o voca-bulário ‘difícil’ de Augusto dos Anjoscomo um dos motivos para sua popu-laridade. São poemas recheados depalavras incompreensíveis para amaioria dos leitores, e assim adquiremuma aura de mistério, de musicalidadequase pura (porque destituídas designificado) e - por conseqüência - deencantamento.

Podemos, então, imaginar diferen-tes níveis de leituras para os poemasde Augusto dos Anjos, e para a Psico-logia de um Vencido em particular. Umleitor pouco versado em ciências po-derá não entender muito bem porqueo poeta se declara filho do carbono edo amoníaco; nem por isso deixará dese impressionar com a sonoridade dapalavra amoníaco, e com suas rimascom zodíaco, etc. Este leitor tambémnão deverá ter dificuldade em apreen-der o tom pessimista do soneto, e avisão materialista em que a morte seresume a ter o corpo roído pelos ver-mes - conforme os dois tercetos dei-xam bastante claro. Por outro lado, umleitor que conheça um pouco de quí-mica e de biologia fará ainda outrasleituras. Este leitor verá resumido já noprimeiro verso, de maneira magistral,o materialismo de Augusto dos Anjos.O carbono é, efeti-vamente, o princi-pal elemento cons-tituinte das molé-culas dos organis-mos vivos. Graçasà capacidade dosátomos de carbo-no formarem ca-deias é que são possíveis as grandesmoléculas de carboidratos, proteínas,lipídios, ácidos nucléicos,... que cons-tituem as células. O amoníaco é umcomposto dos elementos hidrogênio -companheiro fiel do carbono na estru-tura de qualquer cadeia carbônica - e

nitrogênio - constituinte essencial dasproteínas e dos ácidos nucléicos. Nadécada de 1920, o cientista russo A.I.Oparin viria a propor que o amoníacoe outros gases (metano, vapor deágua, hidrogênio), expostos à energiade relâmpagos ou de raios ultravioletasprovenientes do sol, teriam reagido naprimitiva atmosfera terrestre paraformar aminoácidos e outros compos-tos precursores damatéria viva. Quimi-camente falando,portanto, era justoatribuir ao carbono eao amoníaco a “pa-ternidade”, não sódo homem, mas detodos os seres vivos.Dos quatro elementos mais abundan-tes na matéria viva, Augusto dos Anjossó não faz referência, neste poema, aooxigênio - mas o que se espera aquinão é, evidentemente, o rigor de umbioquímico. O que se deve ressaltar éo extraordinário talento do poeta emresumir a origem química da vida emapenas um verso.

Além disso, o verso retrata a origemda vida em seu absoluto materialismo.Augusto dos Anjos poderia falar do ho-mem como amontoado de carne, os-sos, sangue - entidades que por si sósnão são vivas. Mas esses conceitossão ainda portadores de uma cargavital muito forte, e talvez ainda lhes pos-samos atribuir algum valor espiritual ouanímico. Poderia falar de proteínas oucarboidratos, mas ainda assim essestermos estariam muito associados aum organismo vivo “em funcionamen-to”. Ao falar, entretanto, em carbono eamoníaco, Augusto dos Anjos desce

ao limite inferior da mate-rialidade biológica. Pen-sando em termos dosátomos (carbono) e mo-léculas (amoníaco) quesão estudados pela quí-mica, estaremos numadimensão onde não exis-te qualquer resquício de

alma ou de espírito. Não há nada quelembre um espírito num monte de car-vão ou grafita (formas mais comuns decarbono elementar). Como enxergarvida no malcheiroso e sufocante gásamoníaco? Antes o associaríamos aofim de toda vida, por ser tóxico - e

também por ser um dos gases queemanam dos corpos em putrefação.E, no entanto, em seus átomos resideparte do segredo da vida.

O soneto principia descrevendo asorigens da vida - filho do carbono e doamoníaco - e termina descrevendoqual a destinação final do ser humano- restos lançados na frialdade inorgâ-nica da terra. O poema se estrutura,

pois, numa forma cícli-ca: o homem provémdo mundo inorgânico ea ele retorna. É o pró-prio ciclo da vida e damorte retratado no so-neto. O que acontecede permeio? Dor, sofri-mento, e a presença

constante e ameaçadora da morteinevitável. Augusto dos Anjos se clas-sifica como um ‘monstro’ no segundoverso; mas um monstro de escuridãoe rutilância. Neste paradoxo de claro-escuro caracteriza-se o ser humano,que guarda dentro de si o bem e o mal,o anjo e o demônio simultaneamente.Essa bipolaridade que atormentavaAugusto dos Anjos foi manifestadatambém em outros poemas, como emVítima do Dualismo:

Psique biforme, o Céu e o Infernoabsorvo ....

Criação a um tempo escura e cor-de-rosa.

Em outro soneto, Contrastes, omesmo tema:

O Amor e a Paz, o Ódio e aCarnificina,

O que o homem ama e o que ohomem abomina,

Tudo convém para o homem sercompleto6.

Esse homem dividido é um prisio-neiro das contingências do mundo; nosversos seguintes, Augusto dos Anjosdescreve seu implacável destino. Amenção à influência má dos signos dozodíaco poderia ser interpretada comoalusão supersticiosa do poeta, queestaria manifestando sua crença numpoder sobrenatural das estrelas. Acre-ditamos, porém, que o poeta está meta-forizando seu determinismo. Ou seja,desde sua formação, o homem teria jáseu destino implacavelmente traçado,como se isso estivesse escrito nasestrelas. A terrível sina do poeta é des-

Psicologia de um Vencidoé um excelente exemploda rara habilidade com

que Augusto dos Anjos foicapaz de transmutarciência em expressão

poética

‘Eu, filho do carbonoe do amoníaco’

Com apenas uma frase otalentoso poeta pôde

resumir a origem químicada vida...

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 11, MAIO 2000

Notas e referências bibliográficas

1. Isto é, o dióxido de carbono - CO2 -dos químicos de hoje.

2. Apud IHDE, A. J. The Developmentof modern chemistry. Nova Iorque: Dover,1984. p. 181.

3. Apud MAYR, E. The growth of biologi-cal thought, p. 386.

4. Vide os poemas “Agonia de um filó-sofo”, “Mater originalis” e “Os doentes -I”, in: Eu e outras poesias, 40ª ed. p. 81,101, 106.

5. LUCRÉCIO CARO, T. Da natureza,livro III, versos 445 - 446.

6. ANJOS, A. dos, op. cit. (nota iv), p.

190 e 126.7. LUCRÉCIO CARO, op. cit. (nota v),

livro III, versos 720-724.

Para saber maisANJOS, A. dos. Eu e outras poesias, 40ª

edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-leira, 1995.

BROCK, W.H. The Norton history ofchemistry. Nova Iorque: Norton, 1993.

LUCRÉCIO CARO, T. Da natureza. Trad.de A. da Silva. In: Os pensadores. SãoPaulo: Editora Abril, 1973. v. 5.

MAYR, E. The growth of biologicalthought. Cambridge: The Belknap Press,1982.

crita como sofrimento físico, um mal-estar semelhante ao de um doente; mastrata-se de uma repugnância ao própriomundo, decorrente da consciência acer-ca da miserável condição humana.

Os vermes representam a iminênciae a onipresença da morte. A eles cabefechar o ciclo da Natureza, fazendocom que a matéria humana retorne àsformas mais simples da matéria inor-gânica. Em De rerum natura, Lucrécioafirmou que a alma residente no cor-po do homem, após a morte, não so-brevive: subdivide-se em outraspequenas almas que animarão os ver-mes. Se a alma abandona o corpo nomomento da morte, indaga Lucrécio,“...donde vem que uma tão grandeabundância de animais sem ossos esem sangue se agite por entre osmembros tumefactos?”7 Augusto dosAnjos reinterpreta o tema, colocandoo verme como operário das ruínas, àespera do momento em que intervirá

Augusto dos Anjos: ciência e poesia

no ciclo natural dos átomos. O últimoterceto retrata a inexorabilidade damorte: o verme háháháháhá de deixar-me apenasos cabelos / Na frialdade inorgânica daterra! Não se fala em alma ou espíritoimortal, não há transcendência. Nadaresta após a morte senão cabelos,alimento de vermes - átomos, enfim.

Psicologia de um Vencido é um

excelente exemplo da rara habilidadecom que Augusto dos Anjos foi capazde transmutar ciência em expressãopoética.

Paulo Alves Porto ([email protected]), bacharele licenciado em química pela USP, mestre e doutorem comunicação e semiótica pela PUC-SP na áreade história da ciência, é docente do Instituto deQuímica de São Carlos da USP.

Resenha

(Re)visitando a escola e seu ensino deciências

É muito grato para Química Novana Escola convidar para uma visitaçãoà escola e ao seu ensino de ciênciasconduzidos por um texto denso masentusiástico. Nosso condutor nestavisita é Renato José de Oliveira, já co-nhecido das leitoras e dos leitores des-ta revista, professor do Departamentode Fundamentos da Educação da Fa-culdade de Educação da UFRJ. Quemo vê escrevendo, lecionando, pesqui-sando e envolvido com temas comoÉtica e humanização do homem nãoimagina que este filósofo seja licen-ciado em química e teve uma profícuatrajetória como professor de químicano ensino médio.

Aventuro-me em afirmar que em Aescola e o ensino de ciências Renatovolta a ser um professor de ciências,pois sem deixar de irrigar o texto comaquilo que é próprio do filosofar - a per-manente crítica -, temos um texto enri-quecido com a experiência do fazer.Aflora ainda no livro uma continuadapreocupação de mostrar quanto a his-

tória da ciência é produtora de alfabe-tização científica. Os três grandes capí-tulos do livro são independentes nassuas propostas e nas possibilidadesde leitura. Mas são muito interconec-tados, especialmente no quanto osdois primeiros preparam o terceiro, queaflora quase como um gran finale - aténão tão feliz - para olhar a Escola nomundo de hoje.

No primeiro capítulo, cinco íconesda filosofia moderna (Descartes, Ba-con, Hume, Kant e Comte) se fazempresentes em uma muito bem apanha-da análise-síntese. No segundo capí-tulo, aflora a sólida afiliação do Renatoa Bachelard, onde há quase um aplai-namento dos obstáculos bachelardea-nos. No capítulo 3, chegamos à Escolaconduzidos pelas análises críticas deRenato, quer o tenhamos como o filó-sofo professor ou o professor filósofo.Mesmo sem se pretender um historia-dor da educação, o autor olha a edu-cação que se fazia 22 séculos antesdo presente para chegar àquilo que éo ensino de ciências hoje no Brasil.Acreditamos que A escola e o ensinode ciências contribua para mais fecun-das transformações na vida das mu-lheres e dos homens agora e nos tem-pos que se anunciam com tantas mo-dificações para a Escola.

(Attico Chassot - UNISINOS)A escola e o ensino de ciências.

Renato José de Oliveira. São Leopol-do: Editora da UNISINOS, 2000. 139p. ISBN 85-7431-041-7.