augusto boal_dúvidas e certezas

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  • 8/3/2019 Augusto Boal_Dvidas e Certezas

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    C AP iT UL O IV Teatro-F6rum: duvidas e certezas

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    Quando este texto foi escrito, as experiencias e pesquisas feitas sobre 0'lcatro-Forum ainda estavam em fase preliminar, em plena etapa de de-scnvolvimento, descobertas, abertura de caminhos.

    o desenvolvimento em multiplas direcoes do Teatro-F6rum em tan-los pafses do mundo determina, inevitavelmente, uma revisao de todosos conceitos, de todas as formas, estruturas, tecnicas, metodos e proces-NOS. Tudo e reposto em questao, 56 nao se podem repor em questao osprincfpios mesmos do Teatro do Oprimido, que e urn metodo complexoC ' coerente. E esses princfpios sao: a) a transformacao do espectador emprotagonista da alraOteatral; b) a tentativa de, atraves dessa transforma-\ 'iio, modificar a sociedade, e nao apenas interpreta-la,

    Dentro das muitas formas e maneiras de se praticar 0Teatro-F6rum,contudo, surgem muitas duvidas, mas tambem algumas certezas.

    Entre diividas e certezas, creio existirem pelo menos 20 temas fun-dnmentais, que agora me proponho discutir.

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    JOGOS PARA ATORES E NAO-ATORES

    V INTE TEMAS FUNDAMENTA lS

    1 Opressao ou aqressao?Suponhamos estas situacoes: urn homem ja esta dentro de uma dlma_de gas, Faltam poucos segundos para a execucao. 0 carrasco prepara-tf!Fpara soltar a capsula de cianeto. Outro homem esta com os olhos vel l i ldados, amarrado, diante do pelotao de fuzilamento. Faltam POUCOII'1gundos para que 0comandante do pelotao de a ordem de execu~Ao.. ~

    Pode-se fazer uma cena de Teatro- F6rum comessesac(mtecime:ntc,.fj'tPode algum espectador gritar "Para", substituir 0protagonista ada morte e tentar alguma solucao para 0angustioso problema?que nao,E evidente que aqui se trata de casos verdadeiramente extremosjverdade, muitas vezes urn grupo prepara uma peca de f6rum em qUIsituacao e apresentada de tal forma e em tal grau deque as a~6es optativas sao muito poucas ou nenhuma, e ja nao sefazer mais nada. E quando isso acontece, 0efeito que tal modeloe sempre negativo. "E a fatalidade! Nada mais e 0possfvell" E n6s,pelo contrario, tentamos fazer Teatro do Oprimido para buscar 01minhos da libertacao, nao para provo car a resignacao, a catarse.

    Lembro-me, por exemplo, de uma cena de Teatro-F6rum nauma jovem era violentada no metro, a meia-noite, por quatro .armados, estando ela sozinha e a estacao abandonada. E evidente qUInao podia fazer nada mais que tentar defender-se fisicamente. Eas intervencoes dos espectadores tentavam revelar 0defeito doque apresentava uma catastrofe ja inevitavel, Lembro-me de outrodelo, em que a mulher era espancada pelo marido, estando os doiszinhos em casa. Ainda OUtrO'em que urn homem era seqiiestrado nlpor tres policiais armados.

    Em todos esses casos, nada ou quase nada e possfvel fazer. Apode correr para chamar 0 chefe da estacao; a mulher pode gritll1'l

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    TEATRO-F6RUM: OOVIOAS E CERTEZAS

    homem pode pedir socorro. Que mais? Trata-se aqui de agress6es ffsicas,exc1usivamente ffsicas,e as solucoes s6 podem ser de ordem ffs ica, Istoe , s6 se as tres vftimas em questao tivessem aprendido capoeira, carateou jiu-jitsu e que poderiam quebrar a opressao.

    Casos como esses nao servem ao born espetaculo de Teatro-F6rum,pois nao apresentam a opressao, que pode ser combatida, mas sim aagressao ou repressao, que e inevitavel se nao formos fisicamente fortes.

    Convem esclarecer os conceitos: utilizamos a palavra "agressao"para designar 0ultimo estagio da opressao. A opressao nao e totalmenteffsica,nao seresolve apenas em termos musculares, ou no tiro ao alvo.Muitas vezes, ela e intemalizada: a pr6pria vftima a aceita. 0 oprimidoainda pode se libertar; 0agredido, se fisicamente forte, pode devolvera agressao, e nada mais. Mas 0Teatro-F6rum nao e catch-as-catch-canou luta livre.

    Ao mostrar apenas a agressao, portanto, 0modelo provoca a resig-na~o, pois todas as a~6es possfveis referem-se exclusivamente a forcaffsica, E isso causa em mal maior, desmobiliza, desativa os espect-atores.

    Nesses casos, creio, deve-se voltar arras no enredo da hist6ria etentar verificar em que momenta 0oprimido ainda podia ter optado poroutras solucoes, em vez de permitir que a hist6ria avancasse para 0finalagressivo. Por exemplo, a jovem que desceu sozinha a estacdo do metro- 0que poderia ter feito antes de descer? Por que estava s6? Poderiater aguardado a chegada do trem perto do chefe da esta~ao? Poderia terpedido a algum amigo para acompanha-la? Poderia ter comprado urndesses sprays de gas paralisante que se vendem nas lojas para protecaoda mulher? Poderia ter dormido na casa de uma amiga?

    E a mulher agredida pelo marido, fisicamente incapaz de se defen-der, nao poderia antes te-Io abandonado? Por que ficara em casa essanoite? Por que nao chamara alguem, por que nao fora dormir na casadeoutra pessoa? Eo homem seqiiestrado pela polfcia - que erros taticoscometera para se deixar apanhar assim de surpresa? Que cuidados seesquecera de tomar? Que precaucoes seriam posslveis?

    Em suma, se ja nada mais e possfvel, aos espect-atores nada maisresta que seconverterem emtestemunhas da tragedia. 0 diretor polones

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    lOGOS PARA ATORES E NAo-ATORES

    Grotowski disse certa vez que os espectadores devem ser testemunhasde algo que acontece, acrescentando que uma cena que muito 0impres-sionara fora a de urn filme que mostrava urn monge budista no Vietn.que, depois de atear fogo asvestes, morria: 0 filme mostrava 0mongequase morto, e podia-se mesmo ouvir sua respiracao misturada ao ere.pitar das chamas. Trata-se de uma imagem belfssima e muito emocio-nante, que serve perfeitamente bern ao teatro no qual 0 espectador uma testemunha. E nesse tipo de teatro existem muitos diretores ex.traordinarios, alem demuitas pecas belfssimas. No Teatro do Oprimido,contudo, longe de ser testemunha, 0espectador e , ou deve exercitar-separa vir a ser,0protagonista da a~aodramatics - portanto, nesta formaparticular de teatro, a imagem do monge que ja nada pode fazer parisalvar-se de nada serve, e a cena nao pode ser usada como treinamentopara a a~ao real, que e 0 proposito de todas as formas de Teatro doOprimido. 0 que nao invalida a beleza da cena do mongel

    Para montar uma boa cena de Teatro-Forum tendo por tema eal'monge, seria necessario mostra-lo no momento em que, ja tendo jogadoquerosene sobre a roupa e 0corpo, conservasse ainda nas maos a caix.de fosforos, 0fosforo por acender. Sobre essemomento crucial, pode-sa ~[fazer urn excelente f6rum. Mas quando ja arde 0corpo, passamos 10 -dominic da agressao, da repressao, da fatalidade, do inevitavel, e ja nad.mais e possfvel.

    Lembro-me ainda do livro de urn medico judeu que narrava asatro.cidades nazistas e a progressao de restricoes impostas aos judeus: pd .meiro, eram obrigados a usar a estrela-de-davi ("Por que nao, se nOl-causa orgulho?", diziam); depois, veio a proibicao de exercerem fun~O'ID~de medicos, por exemplo, ou de advogados ("Por que nao, se podemOl-~igualmente exercer outras funcoes e, cedendo nisso, estaremos apall,Eguando nossos inimigos?"); mais tarde, a obrigacao de viverem juntOl-nos mesmos guetos ("Por que nao]"), finalmente, 0embarque para 0(~1'campos de concentracao e a morte. Esse medico, que era judeu, e m - o ' f 'momenta algum do livro desculpava os nazistas, que foram, e claro, O I ~ rcarrascos de sua raca, Mas, como judeu, perguntava a si mesmo: " & _ 2

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    TEATRO-F6RUM: DUVIDAS E CERTEZA5

    verdade que, na camara de gas, ja nada podfamos fazer; mas sera quenao podfamos ter feito alguma coisa antes?"

    Essee urn belo tema para 0Teatro-F6rum: seria possfvel fazer algu-rna coisa antes? Quem seria capaz de faze-lo? Em que condicoes? Quemo fez? Por que nao fizeram todos? Se isso tornar a acontecer, 0 que sepodera fazer?

    ConcIuo: 0Teatro-Forum e sempre possfvel quando existem alter-iativas, Caso contrario, torna-se fatalista.

    II

    I IIiI

    2 0 estilo do modeloNos primeiros anos do Teatro-Forum, e quando 0 problema centralapresentado pela peca era concreto, 0modelo tendia em geral ao rea-lismo seletivo. Digo mesmo que a maioria dos espetaculos de Teatro-Fo-rum que tenho visto foi realizada dentro desse estilo. Depois, com essaforma de teatro comecando a ser praticada em muitos pafses e em cul-turas muito diferentes, nos cinco continentes do mundo, muitas outrosestilos apareceram.

    Nao importa 0estilo: 0importante e que 0Teatro-Forum seja bornteatro, antes de mais nada. Que a apresentacao do modelo seja, em si,fonte de prazer estetico, Deve ser urn born e belo espetaculo, antes deter infcio a parte forum, isto e, a discussao dramatica, teatral, do temaproposto.

    Creio que uma das formas de sechegar a encenacao de urn modeloe atraves do Teatro-Imagem. Mais precisamente, atraves de uma sequen-cia de tecnicas do Teatro-Imagem que cheguem finalmente a construcaodo ritual que corporifica 0tema tratado. Pode acontecer que 0ritual emquestao seja rico, teatral, estimulante: por exemplo, 0 aniversario damae, 0trabalho na fabrica, a sala de aula, urn tribunal, uma assembleia,e tantos mais. Quantos elementos teatrais podem ser afintroduzidos, afim de coisificarem, visualizarem as relacoes entre os personagensl E

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    JO GO S PA RA A TO RES E NA O -A TO RES

    preciso que os espect-atores vejarn as opressoes, e nao apenas quesejarn informados - isto e teatrol

    Existem, porem, outros rituais que sao pouco teatrais, poucomulantes. Eo perigo de uma encenacao pobre e induzir os eSJ)ect-a'to~.t;~participantes a apenas falar, discutir verbalmente as solucoes nnooh.lllLem vez de fazs-lo teatralmente. E 0que chamamos, pejorativarnente, dt."radio-forum", .

    Nesses casos, creio, em lugar de se tentar encenar utilizando-se O ~iritual, deve-se, atraves das tecnicas da imagem, tentar encontrar asim.. Tcgens, mesmo simb6licas, surrealistas, que possam corporificar teatru. __mente 0tema de maneira enriquecedora. Dou urn exemplo: no espetj.culo realizado pelos professores de frances durante seu congresso anual(Estraburgo, 1979), dirigido por Richard Monod e Jean-Pierre Ryn....gaert, havia uma cena em que 0inspetor vinha examinar um dos prOt-fessores. Ora, 0ritual desse tipo de exarne e teatralmente pobre: os dol._sentados um ao lado do outro, a mesma mesa. Que fizeram os profe.. --sores? Mantiveram 0texto usual em tal tipo de encontros e, cenicamon.-te, apresentaram o ritual da confissao ao padre: 0professor ajoelhado'[diante do confessionario. Aqui, nao setratava apenas de dar urn golpt"t~teatral, mas de revelar visualmente uma das caracterfsticas verdadeir .. =da inspecao, que muito tinha de confissao, de assemelhar a relacao prOt-~ifessor-inspetor a relacao fiel-confessor, na qual um era 0representantt ~_de Deus. Era 0inspetor-confessor quem podia absolver ou condenar 0- 'professor-fiel, Usou-se 0ritual extrapolado.No mesmo espetaculo, outro ritual que se realiza comumente o m ;volta da mesa, a atribuicao de notas aos alunos, era feito igualmente c it .forma simb6lica, com todos os professores e 0diretor da escola vi8Ua1-~~mente formando uma piramide, com 0 diretor no vertice, 0profe8.0f~~de matematica (0mais hierarquizado) logo abaixo, e, embaixo de todo.. ~e mesmo embaixo da mesa, todos os demais professores, que, em corOti':repetiam as notas e as apreciacoes do professor de matematica. Usou.;tj-um ritual metaf6rico.~

    No Setimo Festival Internacional de Teatro do Oprimido realizado-.-'no Centro Cultural do Banco do Brasil em julho de 1993, doze par... ;:

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    TEA T RO -F6RUM : O IlV IO A S E CERTEZA S

    estavam representados com seus espetaculos, Os indianos de Calcuta ,do Jana Sanskriti apresentaram duas pecas que pareciam dois bales, es-petaculos melodicos, sensuais, delicados, sobre a vida das mulheres emBengala; os africanos do Atelier de Theatre Burkinabe apresentaramoutras duas repletas de ritmos africanos e roupas coloridas - espetaculoaberto e direto, intercomunicativo com a plateia desde 0infcio; os aus-trfacos, uma peca que comecava em valsa e terminava de maneira durae com interpretacoes rfspidas: era sobre 0racismo no seu pafs; os fran-ceses, uma peca simbolista; os alemaes, uma peca expressionista sobrea burocracia; os porto-riquenhos, bem, eles sao caribenhos, mostraramo Caribe, suas dancas, seus amores.

    Cada pafs desenvolveu 0seu pr6prio estilo deTeatro-F6rum, e, den-tro de cada pals, cada grupo.

    Portanto, 0estilo e, a meu ver, indiferente: deve-se usar aquele quemelhor convier. Pode-se usar 0ritual depelo menos tres formas: a)realista;b) extrapolada; c)metaf6rica. Isso,quanta a encenacao , Eo mesmo diriaeu quanta a dramaturgia. Mas issonos levaa outro tema. Podeum espe-taculo de Teatro-F6rum ser, digamos, tchekhoviano? Vejamos.

    3 Urgencia au naa7 Simples au camplexo7

    Um dia, quando eu era professor da Sorbonne, em Paris, uma aluna mepropos fazer uma cena de Teatro-Forum sobre um problema seu. Disseestar cansada de tanto f6rum sobre problemas demasiado concretos eurgentes: salarios, greves, mulheres oprimidas, cadencia do trabalho nafabrica etc. Propos seu problema: era jovem, vivia sozinha num enormeapartamento, pois 0pai e a mae se casaram com outras pessoas e saframambos de casa. Elaqueria, de certa forma, reconstituir sua famil ia , Tinhaconvidado alguns amigos para morar com ela. Eles vierarn: um casal emais urn rapaz e outra moca, que nao eram propriamente um casal.Masseus companheiros nao preenchiam os papeis de pai e mae, que era 0que ela buscava. Quando queria que ficassem, partiam; quando queria

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    ficar s6, la estavam eles. Ainda mais: ela pensava seriamente em se casar,em constituir ela mesma seu lar, pensava sinceramente na monogamia ..mas para isso teria que perder sua atual condicao de polfgama, quetambem a atrafa, " Queria coisas contraditorias, tudo ao mesmo tempo.

    Nao fizemos esse forum, pois ao mesmo tempo que ela queria faze10, nao queria ...Tempos depois, com outro grupo na mesma universidade, propus

    tenta-lo, E tentamos. Devo dizer que aprendi alguma coisa sobre o.jovens parisienses de hoje em dia. Mas confesso que a imprecisao domodele correspondeu igual imprecisao do f6rum. 0 modelo nao expll-citava claramente os problemas, as opress6es; 0 forum nao foi a l e m ,embora est ivesse teatralmente animado. Teatro-Forum e, antes de tude,uma boa pergunta: aqui, ninguem sabia 0que estava perguntando, 0que tornava as respostas mais diffceis ,

    Quando se tem um problema claro, concreto e urgente, e naturalque 0 debate se dirija para solucoes igualmente urgentes, concretas Iclaras. Um tema nebuloso provoea nebulosidade.

    Pode ser, ao contrario, que a imprecisao seja apenas aparente, e qUIo forum sirva para analisar uma situacao, em vez de sintetizar solu~Oelposs fve is ,

    4 Deve-se chegar a uma solu~ao ou nao e necessarlo?Acredito que muito mais importante do que chegar a uma boa solu~IOe provocar um bom debate. Na minha opiniao, 0que conduz.a auto-ad-vao dos espect-atores e 0debate, nao a solu~ao que porventura nn co_,",ser encontrada.

    Mesmo que se chegue a uma solucio, pode ser que ela seja boaquem a propos, ou para as condicoes em que 0debate se deserlrOlO1llaiC.~~tmas nao necessariamente util ou aplicavel para todos osdo forum.E evidente que muitas vezes ocorre aprendermos algum dado

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    TEATROF6RUM: O(JVIOAS E CERTEZAS

    durante 0 debate-forum. Lembro-me, por exemplo, de um espetaculosobre 0poder medico: um doente, acidentado num desastre de autom6-vel, era conduzido ao hospital e ali passava por varias peripecias semque pudesse sequer ser informado do seu estado de saude. Era transpor-tado de quarto em quarto, de mesa de operacao em mesa de operacao,submetido a exames e analises, obrigado a engolir remedies e suportarpicadas de injecoes - tudo isso sem que the dissessem por que, nempara que.

    Todos os espect-atores em cena tentaram usar argumentos, forcarexplicacoes, obter informacoes, Ate que entrou uma senhora - nao poraeaso enfermeira - e pediu para assinar uma decharg. Informou quenos hospitais franceses, por lei, 0paciente, seja qual for seu estado desaude, tem 0direito de se retirar do hospital depois de assinar um do-cumento em que se responsabiliza por si mesmo, desresponsabilizandoos medicos e 0hospital: e a decharg .

    Era informacao titil que nem nos nem os espect-atores conhecfamos ,Fo i bom ficar sabendo disso, e pode ser importante para 0futuro. Mes-mo antes de 0saber, porem, todos os que participavam do f6rum eramauto-ativados, buscando solucoes, argumentos, a~6es que poderiam,cventualmente, empreender no caso de tal eventual idade se apresentar .o debate, 0conflito de ideias, a diale t ica, a argumentacao e a con-tra-argumentacao - tudo isso estimula, aquece, enriquece, prepara 0cspectador para agir na vida real. Portanto, quando 0modelo nao eurgente, isto e, quando nao se trata de sair do espetaculo e agir direta-mente sobre a realidade, igualmente nao e necessario encontrar umasolucao: necessario e busca-la,

    Pode acontecer, no entanto, que 0f6rum seja feito justamente noscntido de buscar uma solucao para um acontecimento que se produ-zira de qualquer mane ira, logo em seguida. Digamos, por exemplo,que se promova um forum com 0 objetivo de treinar uma equipe demoradores de um mesmo bairro, que ira, em comissao, protestar juntoi\ municipalidade, ou fazer qualquer reivindicacao. Nesse caso, nao setrata apenas de estimular a auto-atividade, mas de tracar, concreta eminuciosamente, uma estrategia e uma tatica para uma a~o iminente.

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    Quem falara? De que maneira? Que argumentos vai usar? Que sepod.esperar do adversario? Neste caso, e absolutamente indispensavel che-gar nao apenas a uma solucao generics, mas desenvolver igualmentetodos os planos concretos da a~ao que sevai empreender, e decidir 0papel de cada um.No trabalho do Centro do Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro,e muito freqiiente encontrar-se essetipo de forum urgente. Casos comoos narrados com maismimicias no meu livro Teatro Legis lativo: no mor-ro do Chapen Mangueira, um grupo queria que uma sociedade filantrd-pica se encarregasse de mediar a concessao de verbas municipais e, ante.de procura-la, ensaiou em forum os diferentes argumentos e a~oesqueproporia. No grupo de homossexuais do AtoM, ensaiaram-se as dife-rentes estrategias a ser usadas em uma entrevista onde 0protagonistsbusca emprego e e discriminado por causa de suas roupas e de seu com-portamento. No caso do Sindicato dos Bancarios, ensaiaram-se a lgumasvezes greves que seriam realizadas no dia seguinte.

    Ensaiar uma a~aoantes de pratica-la: eis uma das maiores utilidadeado Teatro- Forum. Eu mesmo ensaiei a minha propria ida ao Ministerioda Cultura frances para pedir aumento de verbas para 0meu centro d.l a , 0CTO-Paris. Deu certol

    5 Deve-se representar 0modele da aC;aofutura ou nao?Penso que, no caso anterior, e titil representar 0mode1o da a~ao futura,considerando-se que ele vai ser efetivamente vivido no futuro imediato,Tal representacao pode funcionar como uma especie de ensaio geral doato real. Essemodelo seria a cena tal como queremos ve-Ia na vida real,e as a~oes tal como as queremos praticar.

    Creio tambem que, num espetaculo teatral em forum, tal repre-sentacao pode ajudar a sumariar os resultados do proprio forum. Muitl'discussao e feita e nem tudo os espect-atores conservam na mem6ria.Uma apresentacao final pode servir como siimula,

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    T EA T RO -F6RUM : DO V IDA S E CERT EZA S

    Mas deve-se tomar sempre certo cuidado: pode ser que 0modeloda a~ao futura seja aceitavel pela totalidade dos presentes, e nesse casosua representacao servira como novo e derradeiro estfmulo para a a~aoreal; mas pode acontecer que nao, e nesse caso existe sempre 0risco deque tal modelo se apresente como evangelizador, preconizando a~oesimpossfveis de serem levadas a pratica. Essa salvaguarda deve ser feita,e esse perigo, evitado.

    Pode acontecer tambem que queiramos apenas refletir sobre urnproblema cuja eclosao nao e iminente: e born falar das opressoes quepodem vir a acontecer, ainda que elas nao estejam programadas para 0dia seguinte.

    6 Modelo ou antimodelo? Erro ou duvida?Talvez 0 termo "modelo" ja contenha em si a conotacao de caminho aser seguido. Na verdade, convem reiterar, uma peca de Teatro-Forumdeve apresentar sempre a duvida, e nao a certeza; deve ser sempre urnantimodelo, e nao urn modelo. Urn antimodelo que sepretenda discutir,nao urn modelo que se deva seguir.

    Outra palavra que pode induzir 0espectador, e portanto manipu-la-lo (quando 0 que se deseja e exatamente 0 contrario), e a palavra"erro". Seinform amos ao espectador que 0protagonista do nosso mo-delo cometeu urn erro, isso significa que ja predeterminamos que suaa~ao e equivocada. E quem devera dize-lo (se for 0 caso) e 0proprioespectador, e nao nos. Portanto, para usar as palavras corretamente,devemos dizer que, no modelo, temos duvidas sobre 0comportamentodo protagonista oprimido.

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    JOGO~ PARA ATORES E HAo-ATORES

    7 A conduta do curinga do f6rumCuringa e 0nome que damos ao mestre-de-cer imonias do espetaeukf6rum. Durante a Quinzena do Teatro do Oprimido no Theatre Present(novembro de 1979), pudemos estudar pelo menos meia duzia de curin.gas em a~o. No Festival do Rio, uma duzia, Em Toronto, 1997, dllzlae meial Cada urn tinha sua personalidade pr6pria e se comportava diantt ~do publico segundo suas pr6prias caracterfsticas. No entanto, pudemosobservar e concluir que existem algumas regras obrigat6rias:."a) 0curinga deve evitar todo tipo de manipulacao, de indu~o do

    espectador. Nio deve tirar conclusoes que nio sejam evidentes. 01ve quesrionar sempre as pr6prias conc lusoes e enuncia- las em formade pergunta, e na o afirmarivamente, de forma que os espec t-a torestenham que responder sim ou nao, foi isso que dissemos ou nio fo~em vez de serem confrontados com uma interpretacao pessoal docuringa.

    b) 0curinga nio decide nada por conta propria, Enuncia as regras dojogo, mas, a partir daf, deve aceitar ate mesmo que a plateia .. -:;~~modifique, se isso for julgado conveniente para 0exame do te11'llem questao,

    c) 0 curinga deve constantemente reenviar as duvidas lplateia part ....que ela decida. Vale ou nio vale? E certo ou errado? Especialmenllno que diz respeito as intervencoes dos espect-atores, muitas vclII .alguem gri ta "Para" quando 0espect-ator precedente ainda nAo ~ .minou sua a~o - 0 curinga deve fazs-lo esperar que 0 primclfO;E~termine de mostrar a a~io a que se propos, mas deve ser sensfveldesejo da plateia, que pode ja ter entendido a a~o proposta, nftlll... ,Lr indo passar adiante.Outro caso delicado que 0curinga deve reenviar a plateia e 0saber se 0espectador-protagonista esta ou nao avancando; sederrotando facilmente os opressores, todos poderao passar atituir esses opressores - e s6 nesse caso. Mas quem decide, 111.111":

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    TEATRO-F6RUM: DOVIDAS E CERTEZAS

    uma vez, e a plateia, Os opressores s6 poderao ser substitufdos quan-do os atores que os interpretam nao forem suficientemente conhe-cedores das opressoes que exercem e dos seus arsenais de opressao,

    d) 0 curinga deve estar atento a todas as solucoes magicas, Pode inter-romper uma a

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    JO GO S PA RA A T ORES E NA O -A T O RES

    significativas, sao significantes que tern urn signif icado. Se0curingaem cena esta cansado ou desorientado, sua cansada e desorientadaimagem sera transmitida aos espect-atores. Se, pelo contrario, fisi-camente, 0curinga esta atento, dinamico, tambem esse dinamismoele transmitira aos espect-atores, Mas, atenclio: ser dinamico naodeve significar ser impositivo!

    j8 Teatralidade au reflexao?Alem da conduta do curinga, existe a propria conduta do espetaculocomo urn todo. Deve 0 espetaculo-forum conduzir a teatralidade, ouseja: deve-se constituir em born espetaculo teatral, mesmo depois daapresentacao do modele, ou deve, ao contrario, estimular a reflexao, 0pensamento, a argumentacao e a a~ao?

    Penso que isso depende dos propositos e das condicoes em que serealiza 0espetaculo. E tambem do mimero de participantes e de muitasoutras condicoes especfficas, como 0 local, 0tema, as caracterfst icas daplateia etc.

    Normalmente, num teatro, e quase inevitavel que a tendencia sejapara a teatralidade. Conheco mesmo urn grupo que introduziu urn ele-mento espetacular no forum: urn gongo, como nas lutas de boxe, queanuncia 0termino ou 0inicio de cada intervencao. Outro grupo limit.o tempo de intervencao, obrigando todos a pensar rapidamente (paraobter, assim, efeitos teatrais de ritmo). Enfim, creio que, na presenca dogrande mimero de espect-atores (no Porto e em Estocolmo, fiz foruD.para plateias de 1.000 pessoas, e em Sant'Arcangelo di Romagna, do3.000), e quase inevitavel 0 carater teatral do espetaculo. E tambemnesses casos aparecem com maior frequencia os espect-atores exibicio-nistas, que tendem a levar 0espetaculo para 0burlesco, 0vaudeville. : 4preciso evitar tais excessos, embora eu acredite no poder estimulante auto-ativador do Teatro-Porum, mesmo nesses casos extremos ...

    Quando, porem, se trata de pequena plateia constituida de pessoas

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    TEA TRO -F6RUM : D llv lDA S E C ERT EZA S

    igualmente motivadas, a reflexao pre domina, e a busca pode ser maisfrutffera, Principalmente se a a~ao a ser empreendida posteriormente eobrigat6ria, isto e , se os espect-atores estiverem realmente se preparandopara uma a~ao verdadeira.

    9 A encenacaoMuitas vezes, os grupos que praticam 0Teatro-F6rum sao pobres, depoucos recursos econOmicos. Em geral, veem-se cenografias constitufdaspor mesa e cadeiras, e nada mais. Isso e uma contingencia, nao deve serconsiderado opcao, 0 ideal e que a cenografia seja 0mais elaboradapossfvel, com todos os detalhes que julguem necessarios, com toda acomplexidade que se considerar importante. 0 mesmo e valido para osfigurinos. E importante que os personagens sejam reconhecidos pelasroupas que vestem e pelos objetos que utilizam. Muitas vezes, a opressaoesta na roupa, nas coisas: e preciso que coisas e roupas sejam presentes,atuantes, claras, estimulantes. Quanto melhor a apresentacao estetica doespetaculo, maior 0estfmulo e maior e mais intensa a participacao daplateia, E linda ver urn espectador que entra em cena e se veste antes decomecar a agir! Ele mesmo sente-se mais protegido, mais personagem(sem deixar de ser pessoa!). Urn espectador vestido com 0figurino dopersonagem e muito mais livre e criador.omesmo vale para os demais elementos de uma encenacao, Afinal,o modele e uma peca de teatro como tantas outras, com a unica diferencade que nao pode ser evangelica, cao pode ser portadora de mensagem,da boa palavra, e sim da duvida, da inquietude que vai estimular 0pen-samento e a acrao da plateia, Por isso, se for possfvel, usar rmisica; se forpossfvel, usar danca, dance-se muitol Se a cena puder ser colorida, porque fazs-la em preto e branco?E importante considerar tambem a marcacao (a mise-en-place). Ca-da movimento de cada ator e significativo. 0 cenario e os atores apre-sentam a cada momenta imagens dinamicas que possuem significados.

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    o movimento nao pode ser arbitrario, mas deve ter urn conteudo. Aproximidade ou 0afastamento entre duas pessoas e importante, poistraduz ideias, muito mais do que apenas centfmetros ou metros.

    No Rio de Janeiro, fez-se urn Teatro-F6rum sobre urn personagemjovem que gostava de rmisica e de danca, Em cena, porem, ele nao bai-lava nem se ouvia uma tinica nota musical. A informacao de que gostavade danca e mtisica nao era trazida esteticamente aos espect-atores, e simverbalmente. E isso nao entrava como urn dos dados fundamentais doproblema. Quando reensaiado, 0antimodelo introduziu a mtisica e 0movimento, e os espect-atores, muito mais ativados, participaram commaior intensidade e frequencia,

    10 A func;aodo aquecimentoEm todos os espetaculos-foruns de que participei, houve sempre umperfodo de aquecimento. Em geral, a aquecimento dos espect-atoresda-se de duas maneiras poss fve is ,a) Durante dez ou quinze minutos, 0curinga da uma rapida explicacao

    sobre 0que e 0Teatro do Oprimido, conta casos acontecidos emespetaculos-foruns e tambem de Teatro Invisfvel, explica as regrasdo jogo que se vai desenrolar a seguir;

    b) em seguida, prop6e alguns exercfcios, comecando pelos mais sim-ples e menos conflituosos, os que produzem menor resistencia, Porexemplo, no Egito, quando se tentou fazer exercfcios em que osparticipantes t inham que se tocar fisicamente, houve sempre intensaresistencia, 0 mesmo ja nao aconteceu com os magistrados em Paris.Tudo depende do pais, da cultura, da regiao, do momento;

    c) depois dos exercfcios, passa-se ao Teatro-Imagem: aqui, os espect-atores comecam a trabalhar esteticamente, a propor imagens eleamesmos;

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    TEATRO-F6RUM: DllvlDAS E CERTEZAS

    d) finalmente, 0elenco apresenta 0modelo e, a partir dai, 0forum.Ja utilizei e ja vi utilizarem outro processo, que me parece menos

    eficaz: comecar diretamente os exercfcios, com urna explicacao a p o st e-riori. Nesses casos, tenho observado que parte da plateia se sente mani-pulada e reage negativamente. Ao contrario, quando 0curinga explicaprimeiro, sempre consegue a aceitacao dos espect-atores, sua confiancae aquiescencia,

    Nao que 0 aquecimento seja absolutamente indispensavel, Creioque ele predisp6e 0espectador a a~ao, mas 0que mais vai predispo-lo,na verdade, e 0proprio tema, bem como a propria peca, 0 caso do HetTrojaanse Paard, grupo belga da cidade de Anvers, e significativo: essegrupo ja fez 0mesmo espetaculo sobre a condicao da mulher (Lider notrabalho, escrava dentro de casa) em quase uma centena de cidades daBelgica e da Holanda (0 grupo fala flamengo, lingua proxima do holan-des) e nunca fa z aquecimento previo, Seus membros apenas falam eexplicam 0que vai se passar , Eo espetaculo e tao sugestivo e estimulante,que, sempre, todos os espect-atores querem participar.

    11 A funcao do atoro estilo Teatro-Forum determina um estilo de interpretacao diferente.Em certos pafses da Africa, e considerado born cantor aquele que e capazde estimular 0maior mimero de espect-atores a cantar. Assim deve aeon-tecer com o born ator de Teatro-Forum: na sua interpretacao, nao deveexistir 0narcisismo tantas vezes encontrado no espetaculo fechado. Pelocontrario, na apresentacao do modelo, ele deve expressar sobretudo aduvida: cada gesto deve conter sua negacao; cada frase deve deixar pres-supor a possibilidade de se dizer 0contrario daquilo que se diz, cadasim pressup6e 0nao, otalvez,

    Durante a parte do forum propriamente dito, 0ator deve ser extre-mamente dialetico. Quando contracena com urn espectador-protagonis-

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    ta, que tenta romper a opressao, deve ser honesto e mostrar que rom.ps-la nao e tao faeil. Ao agir assim, porem, deve estirnula-lo a rompe-la,Isto e , ao mesmo tempo que reage contra cada frase e cada ato do ea.pectador, deve estimula-lo a mais atos produzir e mais frases pronuneiar.Impedindo-o de romper a opressao, deve estimula-lo a faze-lo.Caso 0ator serevele demasiado duro, pode provocar 0desinteresseIdo espectador, ou, 0 que e pior, 0medo. Caso se mostre demasiadobrando e vulneravel, sem argumentos e sem a~6es, pode induzi-lo aoerro, a erer que resolver 0problema que a peca propoe e mais facil doque na verdade e .

    Em Berlim, na Hocchschule der KUnst,apresentou-se urn f6rumsobre urn jovem que tentava convencer a familia a the dar a mesada semobriga-lo a padecer os rituais familiares de longas conversacoes e tertd.lias sobre a guerra e 0passado, diante de av6s e parentes distantes. M"Itao entusiasmados estavam os atores, que cada novo espectador que SIaventurava a entrar no palco era recebido com uma avalanche de argu-m~ntos e fatos, 0 que levou logo a plateia a protestar em unissono,gritando "Parem todos: Isso e magicol", pois nao acreditava que fammaalguma pudesse ser assim, tao aeirradamente feroz.

    Repito, 0ator deve ser dialetico, dar e receber, dialogar, medir-se,ser estimulante, criador. Nao deve ter medo (coisa que acontece comfrequencia, quando se trata de atores profissionais) de perder seu postono palco. 0 grande mago e aquele que sabe fazer a magia e igualmenteensinar 0 truque. Urn grande jogador de futebol nao 0 sera menos s.ensinar alguem a chutar indistintamente com os dois pes.

    Ensinando-se, aprende-se. A pedagogia e transitiva. Ou nao e peda-gogial

    12 A cena repetidaUma vez apresentado 0modelo e iniciada a discussao de forum, vario.espect-atores, urn de cada vez, tentarao romper a mesma opressao, A J.

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    sim, a mesma cena sera apresentada muitas vezes. E importante que 0espetaculo, ainda que bastante reflexivo, nao seja monotone. Por isso,e aconselhavel que, em todas as repeticoes, os atores se preocupem emacelerar urn pouco 0ritmo, de forma a nao mostrar a mesma maneiramais vezes ou mais longamente que 0necessario. A repeticao excessivapode fazer decrescerem 0interesse, 0estimulo e a criatividade da plateia,

    13 0 macrocosmo e 0microcosmoNum born espetaculo de Teatro-F6rum, todos os atores devem estarsempre superligados e preparados para qualquer eventualidade.

    Pode acontecer que a solucao desejada ou proposta por urn espec-tador nao possa ser realizada no microcosmo do modelo. Para resolveresse impasse, e necessario buscar alem. Que fazer?

    Em Turim, urn jovem casal procurava urn apartamento. 0 porteiro,encarregado de aluga-lo, perguntava pelos papeis, salaries, condicoeseconomicas etc. Logo depois vinha urn senhor que queria alugar 0mes-mo apartamento para encontros periodicos com a amante. Podia usarurn hotel, mas preferia 0conforto do apartamento. Diante da segurancaeconomica ofereeida pelo senhor e nao pelo jovem casal, que realmentepreeisava do apartamento, 0 porteiro decidia-se pelo senhor. Qual asolu~ao? Os dois jovens entraram de forma violenta no apartamento eocuparam-no. Qual a pr6xima a~o do porteiro? Chamar a polfc ia ,

    No modelo, porem, nao havia cena de policia. 0 ator que fazia 0porteiro disca urn mimero no telefone e imediatamente urn ator fora decena atende: transforma-se no comissario. Os outros atores, com a ajudade alguns espect-atores, improvisam imediatamente a delegaeia policial,os guardas, os prisioneiros, 0 escrivao. 0 comissario resolve intervir eprender 0 casal, levando-o para a delegacia. L a, 0 rapaz telefona para 0advogado. No mierocosmo do modelo, evidentemente, nao havia advo-gado. Mas isso nao tinha importancia: outro ator atende e forma-se 0cenario do escritorio de advocaeia, com a ajuda de alguns espect-atores,

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    todos representando seus papeis, 0 advogado telefona para os pais dorapaz e da m091, e mais atores e mais espect-atores improvisam duas casas,duas familias com pais, maes, filhos e filhas, tios e av6s e ate vizinhos. Empoucos minutos, toda a sala esta tomada por uma cenografia gigante, coma quase totalidade dos participantes realmente participando.Isto e, 0 modelo mostra apenas urn microcosmo, que esta inseridono macrocosmo de toda a sociedade, e toda a sociedade e posta emquestao, Toda a sociedade pode comparecer a uma sessao de 'Ieatro-Fo-rum, nao importando para isso as dimensoes do modelo.

    14 Como se substitui 0personagem sem transforma-loem outro

    Pode acontecer que urn espectador substitua urn ator e modifique de talmaneira 0personagem, que a solucao seja totalmente magics. 0espec-tador deve respeitar os dados do problema.

    Se 0espectador substitui 0ator e se comporta exatamente como 0personagem, tal qual era no modelo, e claro que nao vai modificar coisaalguma na a~ao enos acontecimentos. E evidente, portanto, que algodeve mudar. Urn indivfduo substitui outro indivfduo, urn espectadorsubstitui urn personagem, urn ser humano substitui outro ser humano.Algo se modifica. 0que pode ser modificado e 0 que nao pode?Primeiro: nao se podem modificar os dados sociais do problemaapresentado. Nao se podem modificar os laces de parentesco entre ospersonagens, a idade, 0s tatus economico etc. que condicionam as a~oesde cada urn. Se esses fatores forem modificados, as solucoes de nadaservirao, pois se aplicam a casos diferentes daquele exposto no modelo.

    Segundo: nao se pode modificar a motivacao do personagem.Exemplo: em Norrkoping, uma jovem esposa que trabalhava era, nomodelo, obrigada a largar 0emprego e acompanhar 0marido, que tinhaencontrado trabalho em outra cidade, a quilometros de distancia, Suamotivacao importante, ao agir assim, era conservar 0marido. Entrou a

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    TEATRO-F6RUM: OUVIOAS E CERTEZAS

    primeira espectadora e mandou 0marido a merda! Evidentemente, elamodificou urn dado essencial do problema. Se a esposa, no modelo,detestasse 0marido, sua transferencia para outra cidade seria uma solu-~ao, nao urn problema. Mas ela 0amava.

    o que de fato pode ser modificado e a caracterizacao da motivacao.como fazer 0que se deve fazer. 0c om o e 0problema.

    15 Qual a "boa" opressao?Muitas vezes, na preparacao de urn forum, 0grupo discute quais as boasou as mas opressoes, quais as mais importantes e quais as que nao ternimportancia. A meu ver, todas as opress6es sao igualrnente importan-tes ... para quem as sofre!

    Sempre existe alguem que sofre mais do que n6s; portanto, esse naoe urn argumento que nos deva impedir de falar das nossas pr6prias opres-soes, mesmo que elas parecam menores se comparadas as dos refugiadoscambojanos na fronteira com a Tailandia, vftimas indefesas de variesbandos armados, de soldados e de contrabandistas. N ossas opressoes saomfnimas se comparadas as dos intocaveis da india, parias de uma socie-dade parial Mas, para n6s, quando as sofremos, nossas opressoes sao deborn tamanho. 0Teatro do Oprimido serve para nos ajudar a nos livrar-mos delaslIgualmente, creio que nao se devem subordinar opressoes, fazendocom que uma dependa da outra.E evidente que existem opress6es mais crucis que outras; e evidenteque existem opressoes que se abatem sobre urn mimero maior de pessoase com maior crueldade do que outras, Mas creio que a luta contra urnaopressao e indissociavel da luta contra todas as opressoes, por mais se-cundarias que parecam. A luta pela libertalrao nacional da Argelia teriade ser indissociavel da luta pela libertacao das mulheres argelinas. Naoo sendo, que Argelia se libertou? Apenas uma parte. A luta contra 0nazismo teria de ser indissociavel da luta contra 0preconceito racial.

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    Nao 0 se ndo , que nazism o foi v enc ido? A pe nas 0 a lem ao, m as nao 0rac ism o naz is ta, que continuou v ito rioso ate m esm o nos pr6prios E sta-d os U n i do s.

    Q uan do tod os o s o prim ido s de ntro d e urn g ru po o pr im ido se ju nta m,m aior e 0p od er d e q ue d isp6 em . S e a s m ulhe re s e o s n e gro s, n os e xe mp lo sci tad os, s e l ib ertass em a o m es mo te mpo , m ais rap ida se ria a v it6 ria.

    C re io, po rtan to, q ue na o d ev em os h ie rarq uiza r p ad ecim ento s. D ev e-m os ap en as co nsu ltar os e sp ec t-a tore s, e tod as as op re ss6 es se rv irao pa raa c on struc ao de u rn m ode lo de T e atro-F 6ru m, se fo re m as op re ss6 es re ais,s en tid as p el os p ar tic ip an te s q ue d es eje m r ea lm e nte l ib er ta r- se d el as .

    16 Quem pode substituir quem?P ara que um a se ssao de T eatro-F 6rum se ja re alm ente T eatro do O prim i-do , e e vide nte qu e ap ena s o s e spe ct-atore s vf t imas do m e smo tipo deop re ssa o e xpe rim en tado pe lo p erso na ge m (po r id en tid ad e o u p or in te n-s a a na lo gi a) p od er ao s ub sti tu ir 0pro tag onis ta -op rim id o p ara te nta r no -v os carninhos ou nov as form as de l ibe rtacao. S 6 assim te rn se ntido e ssatentativa: 0 e spe ctad or (tao op rim id o q ua nta 0pe rsonag em ) e stara see xe rci tando para a a~ao re al na sua v ida re a l .

    S e u rn e sp ec tado r qu e na o sofre a m es ma o pre ssao trata d e su bsti tu iro pro tag onis ta oprim ido, e claro que caire mos no te atro e xe mplar: um ape ssoa m ostrando a outra 0que e la de v e faze r - 0v elho te atro e van-ge l i s ta , 0te atr o p ol iti co d e a nti ga rn en te .

    M as pode tam be m aconte ce r coisa d ife re nte e e s tim ulante . P oi emE s to co lm o , d ur an te 0Sode r F estiv al , que urn g rupo apre se ntou urn m o-de lo de f6rum sobre p roblem as de re lacoe s e ntre hom ens e m ulhe re s.L em bro-m e que um a jov em disse um a coisa que m e fascinou:

    - Tenho medo de dizer a urn homem que gosto deleI- Por que? Tern medo que ele diga que nao gosta de voce?

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    TEATRO-FORUM: OUVIOAS E CERTEZAS

    - Nao. E muito mais complicado. Tenho medo que ele diga que tambemgosta de mim.- Entso, qual e 0problema?- 0 problema e muito mais complicado: tenho medo que ele diga quetambern gosta de mim, mas que, no fundo, isso nao seja verdade, e que eles6 0diga porque nao tenha coragem de dizer 0contrario ...C om o v ee m, 0p ro bl em a n ao e ra s im pl es ... E nfi m, c om o n ao c os tu mo

    h ie rarq uiza r op re ss6 es, ac ei te i se m h esi tar qu e se fize sse urn f6 ru m so bretal te ma. 0 e spe tacu lo foi no m eio da rna, num a se xta -fe ira. (P ara que mnao conhe ce a Sue cia , inform o que a s s e xt as -f ei ra s m e ta de d a p op ul ac aofica de porre - a no ite , de po is da s de z h oras , 80% d a s p ess oa s n a ruae stao be ba da sl) I sso d eu urn a e xcita~ o e sp ec ia l ao e spe ta cu lo . P as sou -sea p ri m ei ra c e na , a s eg un da, e tu do be rn. N a te rce ira , qu e ap re se nta va u rnd ia lo go d o c as al e xa ta rn en te s ob re e ss e p ro bl em a d a jo ve m i nd ec is a, q ua n-d o i ni c ia r no s 0f6 rum , urn hom em no m eio da p la te ia g ri tou "P ara !" P en-s ar no s q ue q ui se s se s ub st it ui r 0rapa z, m as e le se nto u-se no lu ga r d a m ocapara m ostrar com o achav a que as m ocas de v iam se com portar num a si-tua~o como e ssa. T ente i im ped ir - e u fazia 0c ur in g a n e ss e e sp e ta cu lo-, m as, co mo se mp re , co nsulte i a p late ia , O s e sp ec t-atore s, u na nim em en -te , e xig irarn que e u 0de ix as se co ntin ua r. 0 ho me m, co nte nte , co me coua dar l i~ 6 e s d e c ompo r ta rn e n to a s m ul he re s. E la s e sc uta va rn e s e p re pa ra -v ar n p ar a 0r ev id e. Q ua nd o e le , im ag in an do -s e v ito ri os o, q ui s r eti ra r- seda ce na, v arias e spe ctadoras, um a a um a, d ize ndo "P ara!", e ntrararn e mc en a, m as p ar a s ub sti tu ir 0rapaz!

    Isto e : e m ce na , urn hom em m ostrav a as m ulhe re s com o acre ditav aque e las de viam se com portar, e nquanto que as m ulhe re s, e m ce na, assu-mindo 0p ap el d o h om em , m ostra va rn com o o s ho me ns se co mp ortav arn .o re su ltado foi fantastico , pois os hom e ns e as m ulhe re s, cada urn assu-mindo 0p ap el d o a dv e rs ar io , m os tr av ar n, te atr al me nte , e ste ti ca me nte (en ao a pe n as v e rb al m en te ), 0qu e pe nsa va rn u ns do s ou tros, te nta va m c or-r i g ir - se , mos t rando 0qu e o s o prim ia n o c om po rta me nto d o in te rloc uto r.E , d ig a- se d e p as sa ge m , a s i nte rp re ta co es , p or s er em s en tid as , v e rd ad ei ra s,e mbo ra e xa ge rada s, n ao e ram , e m m om en ta alg um , ca ric atu rais.

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    17 Como ensaiar urn modeloUrn modelo, como qualquer peca de teatro, pode ser ensaiado de mui-tfssimas formas diferentes. Sugiro, no entanto, 0metodo que me parecsdar sempre melhores resultados, e que pode igualmente ser usado emforma de improvisacao para a sua pr6pria construcao dramanirgica.

    Trata-se de proceder a ensaios analfticos de motivacao, ensaios ana-lfticos de estilo e finalmente ao ensaio sintetico,

    Uma vez estabelecido 0 embr iao da peca (ou a peca inteira desen-volvida) , os atores devem ensaiar anal it icamente diversas vezes 0mesmotexto. Assim, num primeiro ensaio devem analisar, isto e , individualizaras motivacoes,

    o ensaio da motivacao isolada ajudard 0ator a: primeiro, descobrlrcada motivacao que possa estar carnuflada no texto, traze-la a tona, lconsciencia; segundo, em caso de se tratar de urn embriao de peca jt tdesenvolvida, criar palavras e atos que passarao a ser incorporados aotexto definitivo, alem de se preparar para enfrentar as futuras interven-~6es dos espect-atores,

    Cada vez que urn ator descobrir ou suspeitar que existe no seu per-sonagem, ou numa cena, determinada emocao ou motivacao que nAochega a aflorar com clareza, deve-se proceder ao ensaio analftico dessaemocao ou dessa motivacao , Por exemplo, a cena deve ser interpretadacom total desinteresse, ansiedade, ironia, com diivida, medo, coragern,com tudo que puder ajudar 0ator a, atraves da analise, da concentracaonuma s6 emocao ou motivacao, construir, pouco a pouco, seu persona-gem e as cenas nas quais intervem,

    Deve-se ainda ensaiar varias vezes com pausa artificial (cada atorespera alguns segundos antes de dizer seu texto, procurando preencheressa pausa com pensamentos relativos aos conflitos nos quais esteja en-volvido), ou pausa de pensamento contrario (durante a qual 0ator pensao oposto daquilo que vai dizer ou fazer), ou mesmo fazer ensaios mudos(em que 0texto e pensado e sentido, mas nao emitido).

    Tais ensaios ajudam a desenvolver as motivacoes, 0 mesmo deve serfeito com referenda ao estilo: deve-se ensaiar 0texto como se ele fosse

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    TEA T RO -F6RUM: O O V IO A S E CERT EZA S

    tudo aquilo que poderia ser: faroeste, comedia, tragedia, circo, 6pera,cinema mudo, filme de terror etc. A cada repet icao, ou 0ator dira sempreo mesmo texto preestabelecido, cada vez deuma forma diferente, oupodera acrescentar novos dialogos e novas acoes , se 0elenco partir deurn embriao, para chegar ao texto definitivo.Esses ensaios servem para que cada ator disponha de todas as emo-s;6es puras, como 0pintor tern as cores puras antes de mistura-las, ou 0musico os instrumentos e as notas musicais. E isso se fara no ensaiosintetico, em que todos os textos, todas as a~6es e todas as novas formasde dizer e de fazer 0que deve ser feito e dito em cena serao finalmenteincorporados.

    Quando isso acontece, 0que deve ser evitado, a meu ver, e 0nao-oprimido (0qual muitas vezes e exatamente 0 opressor, como no casocitado) que pretende dar li~6es, indicar os caminhos.

    o que esse epis6dio tambem me ensinou foi que 0Teatro-F6rumtern suas regras, que devem ser respeitadas. Mas se 0publico, em deter-minado momenta e por determinada razao, decide modificar as regras,que 0 faca. 0 que nao se pode modificar absolutamente no Teatro doOprimido sao seus dois principios fundamentais: 0espectador deve pro-tagonizar a a~ao dramatica, e preparar-se para protagonizar a pr6priavida! Isso e 0essencial.

    18 Pode-se permanecer "espectador" numa sessaode Teatro-F6rum?

    Nao! Embora eu nao goste de dar respostas perempt6nas, neste casorespondo alegremente: nao! Numa sessao de Teatro-F6rum, ninguempode permanecer espectador no mau sentido dessa palavra. Mesmo quequeira. Mesmo que se afaste, que fique s6 olhando, de longe. No Tea-tro-F6rum, todos os espect-atores sabem que podem parar 0espetaculono momenta que desejarem. Que podem gritar "Para!" e, democratica-mente, dar sua opiniao, teatralmente, em cena. Portanto, se escolhem

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    nao dizer nada, essa escolha ja 6 uma participacao. Para nao dizer nada,o espectador tem que se decidir a nao dizer nada: isso ja e uma a~o.

    Mas, em geral, 0que acontece 6 que todas aspessoas que tem algoa dizer acabam dizendo, entrando em cena, principalmente quando jaestao auto-ativadas, desejosas de provar suas opinioes, teses, tendencias,vontades - e a prova e a cena. Quanto mais intenso 0desejo de a~o,mais rapidamente os espect-atores entram em cena.

    Conto urn caso que se passou em Perugia, cidade italiana, na Um-bria. Foi 0primeiro caso de participacao vertical. Explico melhor: du-rante tres dias, trabalhei com um grupo de mulheres chamado L e Pas-sere. Durante a tarde, preparavamos pequenas cenas quase sem texto,na base da mfmica, e, a noite, representavamos em Teatro-F6rum naspracas medievais da cidade. Pracas pequenas, acolhedoras, com casasem toda a volta, trss ou mais andares, cheias de janelas que davam d i-retamente para a praca, Numa dessas noites, vi que todas as janelasestavam cheias de gente, especialmente mulheres que queriam ver 0espetaculo de suas pr6prias casas.Aosgritos, pedi a todas que descessem,pois queria facilitar a participacao dessas espectadoras, acomodadas emsuas varandas. Muitas atenderam ao apelo e desceram. Muitas me igno-raram, e quando eu lhes falava, fingiam nao me escutar, ou nao meentender. Insisti, mas acabei desistindo: elas la ficaram, na comodidadede suas poltronas.

    Comecamos 0espetaculo, como sempre, pelos exercfcios, A s mu-lheres Ia em cima (namaioria, gente idosa) riam a va le r ,Depois fizemos jogos dos animais, imagens sobre a familia e 0ritualda volta a casa. Foi af que as mulheres comecaram a ficar inquietas: 0que os homens mostravam 1 a embaixo, na praca, nao era verdade, niioera 0que eles faziam dentro de suas casas. Suas esposas, nas varandas,comecaram a ficar indignadas, pois cada marido que subia em cena mos-trava-se maravilhoso, exemplar: fazia comida, cuidava das criancas, dosgatos e dos cachorros, punha a mesa... Elas nao agiientaram e comeca-ram a gritar Ia de cima:

    - M a sc alz on e! Tudo isso e mentira! Aqui em casa voce nao e assim,voce nunca entrou numa cozinha em toda a sua vida. Vagabundo.

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    TEATROF6RUM: DOVIDAS E CERTEZAS

    Dada a generosidade vocabular e gestual dos italianos, em poucosinstantes toda a praca estava deflagrada, com gritarias horizontais (entreos participantes da plateia de baixo, que estavam na rua) e verticais (queinclufam as espectadoras totalmente integradas na a~o, embora conti-nuassem em suas janelas). Agressoes e repreensoes voavam em todas asdirecoes, Ate que, envergonhados, os maridos que apresentavam falsase belas imagens de si mesmos abandonaram a cena...

    19 Pode um f6rum mudar de tema7Aconteceu no Rio de Janeiro. 0 tema era simples: um elevador t inhacafdo em Copacabana, num dos muitos ediffcios construfdos a s pressas,sem osmfnimos cuidados arquitetenicos requeridos, em busca do maiorluero. Os moradores, vftimas do acidente, queriam processar a firmaconstrutora. Organizou-se uma assemble ia , E a assembleia era 0f6rum.

    Durante 0debate, porem, a violencia de todos os participantes eratao grande, sua ansiedade tao extraordinaria, que nao se podia chegara um acordo nem sobre osmetodos de processarem a firma construtora,nem sequer sobre os metodos que se deviam seguir para que todos pu-dessem falar e expor suas opinioes,o f6rum acabou sendo sobre 0tema: como organizar um f6rum?

    20 Quando e que term ina uma sessao do Teatrodo Oprimido?

    Nao deve terminar nunca. Como 0objetivo do Teatro do Oprimido naoe 0de terminar um cicIo, provocar uma catarse, encerrar um processo,mas, ao contrario, promover a auto-atividade, iniciar um processo, es-timular a criatividade transformadora dos espect-atores, convertidos emprotagonistas, cumpre-lhe, justamente por isso, iniciar transformacoes

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  • 8/3/2019 Augusto Boal_Dvidas e Certezas

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    lOGOS PARA ATORES E NAO-ATORES

    que nao sedevem determinar no ambito do fenomeno estetico, mas simtransferir-se para a vida real.

    Teoricamente, e isto que deve acontecer, e tern acontecido na pratica,Vejamos 0exemplo do Teatro-F6rum. 0 oprimido cria urn modelo

    que e constitufdo de imagens da sua vida real, isto e , urna realidade deopressao e mostrada ern imagens. Essas imagens possuem duas caracte-rfsticas essenciais: sao imagens de algo real e sao, elas pr6prias, reais. Aoserem produzidas, passarn a existir. Vemos assim que, a partir da cria~aodo modelo, podemos observar a existencia de uma opressao que e real,e de imagens reais dessa opressao, Como se existissem dois mundos: 0mundo da realidade na qual 0oprirnido seinspirou para criar 0mundodas imagens, e essemundo das imagens.

    Simplificando: se eu tiro uma fotografia de Maria, Maria e urnapessoa real, mas a fotografia, que e a sua imagem, tambem e real. Sefa~o urn desenho de Maria, ou uma escultura, ou se, inspirado nela,eserevo urn poema ou urn romance, erio imagens de Maria, imagensreais, como Maria.

    Agora vejamos: 0oprimido que criou 0modelo (conjunto dinamicode imagens) e todos os oprimidos que corn ele seidentificam (por iden-tidade absoluta ou por intensa analogia) sao pessoas privilegiadas nestanova forma de teatro; pessoas que participam simultaneamente dessesdois mundos, 0mundo da realidade e 0mundo das imagens tomadasrealidade.

    Aspessoas que nao seidentificam corn os oprirnidos que originararnas imagens podem igualmente goza-las, fruf-las, porem a distancia - enao poderao nunca fazer a extrapolacao das experiencias tidas na vidaimaginaria para a vida real. Os oprimidos, esses sim, poderao se exerci-tar, treinar a~6es, realizar atos na vida imaginaria de uma sessao def6rum; em seguida, auto-ativados, inevitavelrnente extrapolarao essanova energia para a sua vida real, ja que participam desses dois mundos.E . preciso observar e insistir sobre urn ponto fundamental: 0opri-mido seexerce como sujeito nos doismundos. No combate contra opres-s6es que existem no mundo imaginario, ele seexercita e sefortalece para

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    TEATRO-F6RUM: O(JVIOAS E CERTEZAS

    o combate posterior que travara contra as suas opress6es reais, e naoapenas contra as imagens reais dessas opress6es.

    Por isso e necessario que0espectador setransforme ernprotagonistano combate estetico que prepara 0combate real. Por isso e necessaria aatitude maieut ica do curinga, que deve estimular os espect-atores a de-senvolver as suas pr6prias ideias, a produzir as suas pr6prias estrategiase a contar corn as suas pr6prias forcas na tarefa de se libertar de suaspr6prias opress6es.

    Na verdade, uma sessao de Teatro do Oprimido nao deve terminarnunca, porque tudo que nela acontece deve ser extrapolado na pr6priavida. 0 Teatro do Oprimido esta no limite entre a fic~o e a realidade:e preciso ultrapassar esse limite. E se 0espetaculo comeca na fic~o, 0objetivo e se integrar na realidade, na vida.

    Agora, em 1998, quando tantas certezas se transformaram em dn-vidas, quando tantos sonhos murcharam, expostos a luz do sol, e tantasesperancas setransformaram ern decepcoes - agora que estamos viven-do num tempo de tanta perplexidade, cheio de diividas e incertezas,agora, mais do que nunca, eu acredito que e tempo de urn teatro que,na pior das hip6teses, fara asperguntas certas nas horas certas - mesmoque nao tenha as respostas.

    Sejamos democraticos e pecamos as nossas plateias que nos contemseus desejos, que nos mostrem suas altemativas. Vamos esperar que urndia - por favor, nurn futuro nao muito distante - sejamos capazes deconvencer ou forcar nossos govemantes, nossos lfderes, a fazer 0mes-mo: perguntar a suas plateias - n6s, 0povol - 0que devem fazer paratomar estemundo urn lugar para seviver e ser feliz- sim, isto e possfvell-, ern vez de apenas urn grande mercado onde vendemos nossos bense nossas almas.

    Vamos desejar.Vamos trabalhar para issol

    R IO D E JA N EI RO ,S ET EMB RO D E 1 99 8

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