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NATURALISMO V.S. CONTRATUALISMO: SOBRE A ORIGEM DO SOCIAL AMANDA CARLA MOURA BRAGA 1 CLISTENES CHAVES DE FRANÇA 2 Resumo: Neste trabalho propomo-nos expor e explicar, de forma breve, duas correntes de pensamento que têm como objetivo principal solucionar o enigma da origem do social. Enigma este que sempre esteve presente no imaginário do homem. A partir desse pressuposto serão analisados a corrente naturalista e o pensamento de alguns de seus adeptos, que defendem uma origem natural do social, e a corrente contratualista e alguns de seus principais filósofos que, por sua vez, afirmam a origem do social a partir de um ato deliberado da vontade humana. Palavras-chave: Origem do Social. Naturalistas. Contratualistas. NATURALISM V.S. CONTRACTARIANISM: THE ORIGINS OF THE SOCIAL Abstract: In this work, we try to show and explain the ideas about the origins of the social life, which two of the most important political thought schools defend. The origins of the social life represents a puzzle, which both schools want to solve. The naturalist school about the social origin defend that the social life responds to a natural necessity, while the contractarianism say that the social life begins only after an act of the human will. Keywords: Origins of the Social. Naturalism. Contractarianism. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem o objetivo de realizar uma exposição/explicação acerca das teorias que buscam solucionar o enigma acerca da origem do social. O tema em questão é de 1 Acadêmica de Direito do semestre pela Faculdade Luciano Feijão (FLF). E-mail: [email protected] 2 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Filosofia pela Ruhr-Universität Bochum/Alemanha. Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor da Faculdade Luciano Feijão (FLF), nos cursos de Direito e Administração. E-mail: [email protected]

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NATURALISMO V.S. CONTRATUALISMO:

SOBRE A ORIGEM DO SOCIAL

AMANDA CARLA MOURA BRAGA1 CLISTENES CHAVES DE FRANÇA2

Resumo: Neste trabalho propomo-nos expor e explicar, de forma breve, duas correntes de pensamento que têm

como objetivo principal solucionar o enigma da origem do social. Enigma este que sempre esteve presente no

imaginário do homem. A partir desse pressuposto serão analisados a corrente naturalista e o pensamento de alguns

de seus adeptos, que defendem uma origem natural do social, e a corrente contratualista e alguns de seus principais

filósofos que, por sua vez, afirmam a origem do social a partir de um ato deliberado da vontade humana.

Palavras-chave: Origem do Social. Naturalistas. Contratualistas.

NATURALISM V.S. CONTRACTARIANISM:

THE ORIGINS OF THE SOCIAL

Abstract: In this work, we try to show and explain the ideas about the origins of the social life,

which two of the most important political thought schools defend. The origins of the social life

represents a puzzle, which both schools want to solve. The naturalist school about the social

origin defend that the social life responds to a natural necessity, while the contractarianism say

that the social life begins only after an act of the human will.

Keywords: Origins of the Social. Naturalism. Contractarianism.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem o objetivo de realizar uma exposição/explicação acerca das

teorias que buscam solucionar o enigma acerca da origem do social. O tema em questão é de

1 Acadêmica de Direito do 6° semestre pela Faculdade Luciano Feijão (FLF). E-mail:

[email protected] 2 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Filosofia pela

Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Filosofia pela Ruhr-Universität Bochum/Alemanha.

Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor da Faculdade Luciano Feijão

(FLF), nos cursos de Direito e Administração. E-mail: [email protected]

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tamanha relevância que conquistou especial atenção de diversos pensadores renomados de

diversas épocas da história humana, tais como Aristóteles, Santo Tomás de Aquino, Thomas

Hobbes, Jean-Jacques Rousseau, entre outros, o que mostra que, além de possuir grande

importância, o tema também é uma constante no pensamento e na curiosidade do ser humano.

A vida em sociedade traz inúmeros benefícios para o ser humano, contudo resulta

também em diversas restrições, de modo que, algumas vezes, pode chegar até mesmo a limitar

a própria liberdade humana (DALLARI, 2005, p. 9). Sendo assim, qual o motivo de o homem

decidir – ou não – pela vida em sociedade e nela permanecer? Dessa forma, surge a seguinte

questão: qual a origem do social?

Buscando responder à questão do parágrafo anterior surgem duas correntes de

pensamento, quais sejam: os naturalistas e os contratualistas. Tais correntes de pensamento se

propõem a construir ideias que expliquem/respondam como a nossa sociedade atual, com todas

as suas imperfeições, surgiu.

No decorrer desse trabalho realizaremos uma breve apresentação das referidas correntes

de pensamento, bem como, exporemos as teses que tiveram maior impacto e aceitação no

tratamento de nosso tema, fazendo referência a alguns dos principais autores de cada corrente,

de modo que seja possível o alcance de uma compreensão acerca do tema e dos reflexos de tais

teorias no esclarecimento da questão sobre a origem do social.

NATURALISTAS

Uma das correntes de maior expressividade acerca da origem da vida social, possuindo

um grande número de adeptos, é a que afirma a formação natural da sociedade humana,

defendendo que o ser humano possui um impulso natural à vida em sociedade, ou seja, que é

inerente ao ser humano a necessidade de coexistir em proximidade e em conjunto com outros

seres humanos. Para essa corrente de pensamento, o ser humano possui mais que o desejo de

viver em sociedade, em verdade, ele teria uma necessidade efetiva de viver com outros seres

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humanos. Sendo assim, o motivo da vida em sociedade seria o impulso associativo natural

inerente à espécie e não um ato deliberado de escolha.

Os naturalistas acreditam, portanto, que o fator responsável pela associação humana

advém da própria constituição da espécie. Esta definiria o ser humano como um animal

gregário.

É importante, contudo, salientarmos, que os naturalistas não se prendem à crença de que

o ser humano é um ser social simplesmente por viver com seus semelhantes, antes o que eles

defendem é que o ser humano apenas se torna realmente humano com a convivência social.

Logo, o adjetivo “humano”, para os pensadores naturalistas, deve ser entendido como produto

genuinamente coletivo da vida gregária dos seres humanos. Sendo assim, as características que

diferenciam o ser humano dos outros animais – como, por exemplo, a produção e expressão de

pensamentos em uma linguagem verbalmente diferenciada, o andar bípede ereto, ou a produção

de artefatos culturais etc. – somente seriam adquiridas e plenamente desenvolvidas com a vida

em sociedade.

Entretanto, precisamos lembrar que os naturalistas não creditam a diversidade existente

de formas de organização humana apenas ao impulso associativo. Os naturalistas não excluem

a participação da liberdade e da vontade na modelagem da forma de organização social dos

agrupamentos humanos, haja vista que ambas são responsáveis pela diversidade de formas de

organização socioculturais3.

ARISTÓTELES E SANTO TOMÁS DE AQUINO

A corrente naturalista de pensamento possui diversos pensadores de destaque, dentre os

quais Aristóteles e Santo Tomás de Aquino. Para ambos só podemos entender a vida social

3 Diferentemente dos animais gregários que devem sua organização coletiva unicamente aos instintos naturais,

como as abelhas, os lobos e os suricatos, a vida coletiva humana é marcada por uma diversidade espacial e

temporalmente muito grande na forma como a vida social se estrutura. Em sendo, para os naturalistas, o instinto

natural o mesmo em toda a espécie humana, a diversidade sociocultural só pode ser explicada como produto da

liberdade e vontade humanas.

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humana se a concebermos como animada por uma necessidade intrínseca à própria constituição

natural da espécie.

Aristóteles concebe o ser humano como um animal, mas um que se diferencia dos

demais que agem puramente por instinto. O homem seria um animal racional, capaz de discernir

e realizar escolhas livres. Por ser um animal político e racional, o homem precisaria viver em

uma sociedade política/cidade (pólis) para concretizar sua natureza e sua essência4. Desse

modo, é na cidade e por meio dela que a humanidade se torna capaz de atingir os fins de sua

existência. Ou seja, é na cidade, e apenas nela, que os seres humanos se tornam seres humanos,

podendo alcançar plenamente suas potencialidades (LOPES, ESTEVÃO, 2012, p.36).

Conforme o filosófo grego:

Toda Cidade é um tipo de associação, e toda associação é estabelecida tendo em vista

algum bem (pois os homens sempre agem visando a algo que considerem ser um bem);

por conseguinte, a sociedade política [pólis], é a mais alta dentre todas as associações,

e que abarca todas as outras, tem em vista a maior vantagem possível, o bem mais alto

dentre todos (ARISTÓTELES, 2001, p.53).

Ou seja, o ser humano é mais que um animal gregário movido unicamente pelo instinto,

ele é um animal político, que precisa viver em uma pólis em busca de um bem maior, pois este

é o lugar natural do ser humano, em decorrência de sua racionalidade. O que o distingue dos

demais animais seria a linguagem, que lhe possibilitaria discernir o bem do mal, o justo do

injusto, o certo do errado. Dessa forma, “pensar a cidade como existindo por natureza equivale

a vincular a natureza humana à cidade: [o ser humano seria então] um ser intermediário, nem

deus nem besta, que pode escolher viver em conformidade com a virtude e a justiça e, então,

realizar sua essência segundo o melhor fim, a eudaimonia.” (LOPES, ESTEVÃO, 2012, p. 41).

Santo Tomás de Aquino, pensador que também defende a posição naturalista, afirma

que o ser humano é um animal social e político, sendo natural que viva em sociedade.

Expressivo seguidor de Aristóteles, Santo Tomás de Aquino concorda com o filósofo grego

4 Sobre a concepção naturalista da vida em sociedade de Aristóteles, afirma MACIEL (2013, p.10): “Aristóteles

inicia a obra [A Política] discutindo acerca da origem do Estado, ou seja, da sociedade política e revela que tal

origem remonta às leis naturais. O Estado teria um fundamento natural, pois seria o resultado de um processo

desencadeado por força da natureza.”.

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quanto ao caráter natural da associação, do social. Para ele, a cidade representa a suprema

sociedade/comunidade humana, a mais completa e perfeita. Sendo um animal racional, a

existência do ser humano estaria diretamente ligada à vida conjunta, que é possibilitada pela

presença da linguagem. Esta seria algo próprio dos seres humanos, haja vista que,

diferentemente dos demais animais que possuem apenas a voz, o ser humano é detentor da

capacidade de se comunicar por meio de símbolos convencionais aptos a adquirir determinados

significados em dadas situações.

Uma vez que o ser humano possui essa qualidade essencial, a cidade se torna necessária

e natural, pois constitui o local em que ele poderá efetuá-la, já que a comunicação é uma ação

dependente da vida em comunidade.5 Com isso, é licito afirmar que o social é algo natural ao

ser humano, sendo a cidade a mais perfeita e ampla comunidade, na qual o ser humano é capaz

de atingir sua essência (LOPES, ESTEVÃO, 2012, p. 39).

Conforme Santo Tomás de Aquino, o ser humano seria um animal social que

necessitaria mais que os outros da vida em sociedade. O notável italiano ainda acrescenta que

o ser humano somente viveria isoladamente em três hipóteses, quais sejam: excelentia naturae

– caso de ser humano extremamente virtuoso vivendo em comunhão com a própria divindade;

corruptio naturae – que envolveria os casos de anomalia mental; e mala fortuna – que

abrangeria, os casos de acidente que obrigam os seres humanos, por circunstâncias alheias à

sua vontade, a viver só.

Assim, podemos concluir que, segundo as principais ideias avançadas pelo pensamento

naturalista, o ser humano vive em sociedade por um impulso intrínseco à constituição natural

de nossa espécie, mas que, diferentemente dos demais animais gregários, esse instinto é

complementado pela vontade, liberdade e racionalidade humanas, que faz com que o ser

humano em sociedade não seja simplesmente mais um animal gregário, mas se torne um animal

5 Como afirma OLIVEIRA (2012, p.58), para Santo Tomaz de Aquino “. . . a fala humana auxilia o homem a

realizar aquilo que o distingue dos demais animais: a capacidade de entender e comunicar o útil e o nocivo, o justo

e o injusto. E como a natureza nada faz em vão, quando ela dá ao homem a capacidade de comunicar o útil e o

nocivo, o justo e o injusto, ela dá ao homem a capacidade de se comunicar com outro homem. Ora, é evidente que

o homem só é capaz de se comunicar quando vive em comunidade . . .”.

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político que busca comunicar-se com os outros seres humanos e alcançar sua perfeição na vida

coletiva.

CONTRATUALISTAS

Os autores contratualistas rejeitam veementemente a existência de um impulso

associativo natural ou de qualquer instinto natural que seja responsável pela associação humana.

Para eles, as sociedades não foram formadas de modo natural/instintivo, houve, em verdade,

um momento no qual os seres humanos por um ato deliberado de vontade decidiram se associar.

A corrente de pensamento contratualista acredita, em geral, que houve um momento na

história humana em que os seres humanos, embora vivessem próximos uns dos outros, viveriam

isolados, isto é, sem que houvesse um contato duradouro de modo a se organizarem

socialmente. Esse momento anterior à formação da sociedade seria o estado de natureza.

Conforme o pensador contratualista analisado, a concepção do modo como se deu o estado de

natureza pode variar drasticamente, assim como as razões para a assinatura do contrato social

e o modo como se estabeleceria o estado civil. Dessa forma, precisamos lembrar que existe uma

diversidade de autores contratualistas, que articulam de maneira distinta as ideias fundamentais

do contratualismo. Entretanto, todos concordam em dizer que a vida em sociedade não se deu

em decorrência de um impulso associativo natural, mas sim por um ato livre de escolha humana.

HOBBES

Dentre os autores que defendem essa corrente contratualista destaca-se Thomas Hobbes.

Para ele, o estado de natureza não apenas significava o momento anterior à formação da

sociedade, mas também o momento mais embrutecido da história da humanidade, no qual os

indivíduos possuíam uma vida breve, animalesca, sórdida e bestial. O estado de natureza

caracteriza-se, para esse pensador, como o momento em que imperava o caos. Além disso,

Hobbes entende o estado de natureza como uma ameaça constante que paira sobre a sociedade,

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ou seja, a ameaça de retorno do caos e desordem caso falte uma autoridade capaz de conter as

más paixões humanas, impondo-lhes restrições e limites.6

Para Hobbes, o estado de natureza seria produto necessário de quatro fatores, quais

sejam: a natureza vil da humanidade, a natureza desejante dos indivíduos, a igualdade de todos

entre si e a escassez de bens aptos a satisfazerem as necessidades e os desejos de todos os

indivíduos.

Em sendo vil, o ser humano sempre estaria disposto a praticar os atos mais sórdidos para

atingir seus objetivos. Lembremos que no estado de natureza não há instituições sociais aptas a

controlar as más paixões dos seres humanos, o que oferece um campo livre de atuação para as

maldades inerentes ao nosso ser.

Em sendo um ser desejante, o ser humano nunca se sentiria satisfeito com o que tem e

sempre procuraria ter mais na tentativa inglória de aplainar seus desejos. Ora, a lógica do desejo

é ser insaciável, posto que todo apaziguamento de um desejo é sempre temporário e tende a

intensificar o desejo tão logo a sensação de saciedade tenha evanescido com o tempo.

Ao tratar da igualdade, é perceptível que Hobbes a compreende de forma negativa. Para

o filósofo, embora os seres humanos não fossem absolutamente iguais, eles eram iguais o

suficiente para que nenhum pudesse triunfar sobre o outro (RIBEIRO, 2005, p. 55). Sendo

assim, vivendo em constante estado de temor, já que todos eram iguais na capacidade de

prejudicarem-se mutuamente, e por não saber o que o outro faria, visando preservar sua vida,

Hobbes acredita que a escolha do ser humano nesta situação seria atacar seu semelhante mesmo

antes de ser atacado.

Por sua vez, a escassez de bens exige que a satisfação temporária de um desejo ou

necessidade se dê por meio do impedimento de que os outros indivíduos apossem-se

primeiramente do objeto visado.

6 Sobre o estatuto teórico da referência ao estado de natureza em Hobbes, BRANCO (2013, p.60) alega: “Na

filosofia política de Hobbes podemos (. . .) encontrar dois tipos de estados de natureza. O primeiro fictício ou

hipotético e o segundo histórico. O primeiro é alcançado por meio da imaginação da ausência do Estado. Já o

segundo, o estado de natureza histórico, indica o estágio inicial da humanidade cuja existência antecede a fundação

do Estado.”.

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Hobbes tem ainda uma concepção negativa da liberdade humana, haja vista que, por

meio dela o ser humano possuiria o direito de tudo querer e poder, sendo possível fazer o uso

de todas as suas forças e capacidades para alcançar seus objetivos.

A soma desses fatores supracitados levaria à instauração da chamada "guerra de todos

contra todos". O caos constituiria uma consequência necessária do estado de natureza. Pela

conjunção dos elementos nele presentes, a guerra seria uma necessidade de sobrevivência e não

uma escolha opcional para os indivíduos.

Todavia, conforme o filósofo inglês, o ser humano, apesar de tudo, é um ser dotado de

razão e percebe a inviabilidade de permanecer nesse estado em que seu bem mais precioso –

sua própria vida – está sob constate ameaça. Isso o leva a imaginar uma situação na qual esta

ameaça seja eliminada. Para Hobbes, chegado a esse ponto, os indivíduos vislumbram que a

única forma de escaparem do estado de natureza é por meio da mútua associação, tendo em

vista a implementação de uma coexistência pacífica. A formulação do pacto social se dá,

portanto, no exato momento em que a razão humana subordina o lado vil e desejante do ser

humano, e institui as regras e instituições necessárias para a convivência pacífica. Assim, a

função do pacto social é a preservação da segurança humana, e sua manutenção não se dá por

outro motivo além da preservação da vida e dos bens dos indivíduos.

Através dessa associação tem origem o estado civil, no qual o Soberano – o Estado –

seria a autoridade responsável por garantir a segurança dos indivíduos, devendo punir

severamente quem descumprisse quaisquer de suas normas, haja vista que ele seria a única

garantia do não retorno ao estado de natureza. Desse modo, os seres humanos, no momento da

instituição do pacto social, teriam transferido seu direito de autodefesa para o Soberano. Logo,

os seres humanos não mais lutariam entre si para preservar o que lhes é mais precioso, este

poder pertenceria unicamente ao Soberano (BRITO, 2012, p. 121).

Para Hobbes, no estado civil, os seres humanos de fato não possuiriam uma gama ampla

de direitos e os direitos existentes poderiam ser excluídos se necessário à conservação do corpo

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político. A liberdade dos indivíduos, no estado civil, seria a possibilidade de fazer o que a lei

não proíbe.

Hobbes recusa aceitar qualquer confrontação ao Soberano, uma vez que, para ele,

mesmo um governo ruim ainda é melhor que o caos representado pelo estado de natureza. Em

consequência disso não haveriam limites ao Soberano, salvo os que ele mesmo se impusesse.

Por conta da concepção de poder dada ao Estado, por Hobbes, podemos dizer que ele

manifestou grande apoio à forma absolutista de governo, como bem detectou Dalmo de Abreu

Dallari (2005, p. 14):

encontra-se na obra de Hobbes uma clara sugestão ao absolutismo, sendo certo que

suas ideias exerceram grande influência prática, tanto por seu prestígio pessoal junto

à nobreza inglesa [...], como pelas circunstâncias de que tais ideias ofereciam uma

solução para conflitos de autoridade, de ordem e de segurança, de grande intensidade

no século XVII.

A sistematização das ideias contratualistas realizada por Hobbes permitiu um grande

avanço na discussão política acerca da natureza do social. Outros autores que vieram depois de

Hobbes aderiram ao contratualismo, mas rejeitaram veementemente o conteúdo que Hobbes

deu a essa estrutura conceitual de compreensão da origem do social. Vejamos a seguir um

grande continuador das ideias contratualistas, mas opositor ferrenho do pensamento

hobbesiano, Jean-Jacques Rousseau.

ROUSSEAU

Rousseau acredita que no estado de natureza os seres humanos não estabeleceriam

qualquer vínculo social com seus semelhantes a não ser aqueles estritamente necessários à sua

sobrevivência. Os seres humanos não só não possuiriam vínculos entre si, mas também não

necessitariam destes. Todavia, a inexistência de vínculos não significa necessariamente a

desordem, pois, para Rousseau, a única preocupação humana, nesse estado, seria com a sua

autopreservação, sendo que, por possuir natureza essencialmente boa, o ser humano não

possuiria qualquer predisposição de atacar seu semelhante (ROMÊO, 2013, p. 170). Desse

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modo, considerando as aspirações e natureza humanas, inexistiria a "guerra de todos contra

todos" afirmada por Hobbes. O ser humano, embora sozinho, viveria em paz.

Para Rousseau, o ser humano possuiria duas características próprias ao estado de

natureza: liberdade e igualdade. Os indivíduos seriam livres, pois a inexistência de vínculos

garantiria também a ausência de qualquer obrigação e restrição. Eles seriam ainda iguais pela

falta de qualquer autoridade superior capaz de submetê-los à sua vontade. Os indivíduos teriam

direito a tudo querer e poder, mediante o uso da razão.

O aparecimento da linguagem adquire, em Rousseau, uma significação importante no

que concerne à criação de laços e regras. Através da linguagem, em algum momento, um dos

seres humanos decidiu instituir através de convenções a ideia de propriedade, que possui estreita

ligação com a desigualdade, ao passo que retira algo do coletivo transformando em individual.

Segundo Rousseau, haveria dois tipos de igualdade/desigualdade: as físicas e as sociais.

Estas se radicam nas convenções impostas pelos seres humanos e, por não serem fruto da

natureza, não possuem legitimidade. Desse modo, a sociedade traz a infelicidade, dá origem à

corrupção humana. Isso porque, inicialmente feliz no estado de natureza, o ser humano decide

por meio de seu egoísmo instituir noções individualistas que geram sua própria decadência.

Rousseau compreende que o ser humano não poderia voltar ao seu estado natural, isso

porque voltar no tempo é algo impossível. Contudo, o ser humano não poderia permanecer na

decadência instituída pela sua individualidade e, por meio de um artifício, buscou a

recuperações de seus princípios naturais. Assim, haveria chegado um momento em que as

dificuldades de manutenção tornaram-se crescentes de modo a dificultar ou mesmo impedir que

o ser permanecesse naquele estado. Por ser dotado de razão, o ser humano teria se

conscientizado da impossibilidade de vencer sozinho tais dificuldades e, tendo consciência de

que a liberdade e a força são as chaves para a sua conservação, decidiu unir forças com seus

semelhantes formando a sociedade.

Com o objetivo de recuperar a liberdade natural por meio da instituição da liberdade

civil e de ampliar a igualdade natural, o ser humano teria assinado um pacto social. Todos os

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seres humanos, na condição de iguais, teriam decidido pela alienação total de seus direitos em

favor da criação de uma autoridade formada por eles mesmos. Isto é, a elaboração de leis e

regras se daria pelo povo e este mesmo povo seria sujeito passivo de tais regramentos

(NASCIMENTO, 2005). Desse modo, ao obedecer a si mesmo, por meio da vontade geral, o

ser humano permanece tão livre e igual como dantes. Logo, o pacto seria responsável pela

instauração do Estado, que por sua vez, deveria estruturar-se de modo a ser um mero

representante da vontade geral, que não se resume a qualquer vontade individual.

Para Dalmo de Abreu Dallari, as bases das ideias afirmadas por Rousseau tiveram

determinante importância para o movimento que realizou a defesa da forma democrática de

governo, pois:

verifica-se que várias das ideias que constituem a base de pensamento de Rousseau

são hoje consideradas fundamentos da democracia. É o que se dá, por exemplo, com

a afirmação da predominância da vontade popular, com o reconhecimento de uma

liberdade natural e com a busca da igualdade, que se reflete, inclusive, na aceitação

da vontade da maioria como critério para obrigar o todo . . . (DALLARI, 2005, p.18).7

Rousseau, como apresentado acima, mesmo utilizando a mesma arquitetura teórica do

contratualismo, que pressupõe a existência de um momento anterior à vida social no qual os

indivíduos viviam próximos mas isolados, momento que seria superado pela celebração de um

pacto social entre os indivíduos para a constituição da vida político-social, desenvolve um

conjunto de ideias abertamente contrárias às conclusões avançadas por Hobbes no que concerne

à natureza da organização político-social humana.

CONCLUSÃO

As teorias expostas ao longo desse trabalho nos mostram que a pergunta pela origem do

social pode obter respostas bem díspares entre si. Enquanto a corrente de pensamento naturalista

centra-se na tese de que a vida social é produto de uma necessidade intrínseca à espécie humana,

7 Rousseau chega em sua obra a uma conclusão basilar para a fundamentação da democracia quando afirma que é

somente ao poder legítimo que devemos obediência. “Convenhamos, pois, que a força não faz o direito e que não

se é obrigado a obedecer senão a poderes legítimos.” (ROUSSEAU, 2014, p.30)

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que só realizaria plenamente todas as suas capacidades por meio da vida coletiva, a corrente de

pensamento contratualista centra sua resposta na ideia de que somente a vontade e liberdade

humanas podem dar origem ao social e estão aptas a explicar a natureza de nossas instituições.

Apesar de o contratualismo, como explicação historicamente válida da emergência da vida em

sociedade, não possuir adeptos declarados atualmente, suas ideias têm grande valor como

justificativa filosófica das instituições sociais. O contratualismo de Rousseau, por exemplo,

possui manifesta influência no que hoje convencionamos chamar de democracia.

Seria plenamente factível, em um movimento dialético de síntese, entendermos que

ambas as teorias possuem ideias relevantes para o esclarecimento do caráter social da vida

humana. Assim, poderíamos dizer que a sociedade humana é fruto tanto do instinto quanto do

desejo humano. Instinto de sobrevivência e desejo de formar um grupo para que unidos os

indivíduos possam transpor os obstáculos que ameaçam sua existência. Dessa forma,

concluímos que a sociedade é resultado tanto da natureza, quanto da vontade, liberdade e

inteligência humanas.

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