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ERASMO PILOTTO: IDENTIDADE, ENGAJAMENTO POLÍTICO E CRENÇAS DOS INTELECTUAIS VINCULADOS AO CAMPO

EDUCACIONAL NO BRASILCarlos Eduardo Vieira - UFPR

[email protected] Chaves: Intelectuais, educação e modernidade

O objetivo desse capítulo é refletir sobre o conceito de intelectual que vem sendo desenvolvido e utilizado ao longo de dez anos de pesquisa no intuito de explicar o comportamento social dos intelectuais associados, direta ou indiretamente, ao campo educacional no Brasil do último quartel do século dezenove aos anos sessenta do século vinte. Essa formulação tem sido desenvolvida no diálogo com a literatura que trata do tema dos intelectuais e, sobretudo, no cotejo com as fontes que formam o corpus documental da pesquisa. Para evitarmos o tratamento abstrato e, portanto, meramente teórico do tema, exploraremos o potencial heurístico desse conceito a partir da análise das idéias e da trajetória do intelectual paranaense Erasmo Pilotto (1910-1992). O foco nesse personagem histórico, assim como em intelectuais de gerações anteriores e posteriores a Pilotto, tem motivado a formulação conceitual que discutiremos nesse texto que, em síntese, incide sobre quatro aspectos: a identidade e o sentimento de missão dos intelectuais, bem como as crenças na modernidade e no protagonismo político do Estado.

Sendo assim, exploraremos as idéias e as ações de Pilotto, a partir do conceito de intelectual que pretendemos expor e problematizar nesse espaço de reflexão. A análise será conduzida nos marcos estabelecidos pela arquitetura do conceito, considerando as posições de Pilotto e as teorizações presentes na literatura especializada em torno do tema dos intelectuais. Entendemos que essa opção permitirá, a um só tempo, revelar a singularidade de Pilotto e a tipicidade do comportamento do sujeito coletivo denominado nesse texto de intelectuais. A aplicação do conceito que explicitaremos em outros cenários dependerá de investigações circunstanciadas pela pesquisa histórica. Logo, não é objetivo dessa reflexão generalizações imprudentes, mas sim provocar questões que, para além da análise das singularidades dos intelectuais, almejem enfatizar aspectos capazes de compreender os intelectuais na perspectiva do tempo dos sujeitos sociais coletivos.

Os debates acerca da ação pública dos intelectuais remontam a contextos temporais e culturais diferenciados: a idéia de intelligentsia na literatura e no debate político russo na segunda da metade do século dezenove; o famoso manifesto escrito por Émile Zola, em 1898, em torno do affaire Dreyfus; a obra A traição dos clérigos, de Julien Benda, de 1927; e a transformação do tema dos intelectuais em problema de pesquisa nos escritos de Mannheim, Gramsci e Bourdieu ao longo do século vinte são exemplos que marcaram o debate sobre a presença pública dos intelectuais e a discussão a respeito das suas funções sociais. As Ciências Sociais, a História e a Educação são áreas do conhecimento que têm acumulado discussões em torno desse problema. Na História, em particular, existem especialidades, tais como a História dos Intelectuais e a História Intelectual que, guardadas as suas peculiaridades teóricas e metodológicas, têm nas manifestações políticas, filosóficas, estéticas, científicas, literárias e/ou religiosas de mulheres e de homens que se destacaram nas suas especialidades seus objetos de pesquisa e de ensino. No âmbito da História da Educação o foco sobre as idéias e os exemplos de filósofos e de pedagogos célebres é parte da historiografia do campo, seja nos moldes da genealogia ou do cânone dos grandes educadores, comuns nos manuais de História da Educação, seja nos trabalhos

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acadêmicos que tratam de percursos e de idéias de determinados personagens que marcaram os debates educacionais no Brasil.

O olhar para a história do termo intelectual evidencia que o significado da palavra tem estado associado ao movimento de agentes reconhecidos na esfera cultural que se movimentaram em direção ao campo político. Segundo Edgar Morin, quando os filósofos descem de sua torre de marfim ou os técnicos ultrapassam sua área de aplicação especializada para defender, ilustrar, promulgar idéias que têm valores cívico, social ou político, eles se tornam intelectuais. Embora o uso e o significado prosaico do termo sejam mais amplos, nas pesquisas histórica e sociológica ele está ligado à atuação dos representantes da chamada república das letras na esfera pública.

No âmbito do projeto no qual essa reflexão se insere investigamos o tema dos intelectuais dentro da perspectiva histórica e através de diferentes teorias sociais, enfatizando as crenças, as trajetórias, as redes de sociabilidade, as idéias, os projetos, as retóricas e as linguagens manipuladas pelos intelectuais vinculados à área educacional entre o último quartel do século dezenove e os anos sessenta do século vinte no Brasil. Ao longo dessa pesquisa que abrange quase cem anos de história intelectual visamos evidenciar os aspectos que singularizaram os agentes nos seus diferentes contextos, bem como destacamos aqueles elementos que podem servir como chave heurística para uma compreensão abrangente da ação política dos intelectuais. Nesse sentido, objetivamos analisar o discurso, considerando as continuidades e as descontinuidades, da geração dos ilustrados de 1870 aos grupos de intelectuais que disputaram a hegemonia do campo educacional entre as décadas de vinte e sessenta do século vinte. A análise desse discurso nos conduziu à tentativa de compreender as crenças e os comportamentos sociais dos seus enunciadores e, assim, desenvolvemos o conceito de intelectual. Essa formulação tem como objetivo principal a compreensão dos modos de agir e de pensar dos intelectuais, de maneira a projetar uma concepção sobre a função social desempenhada por esses agentes no período estudado. Sendo assim, buscamos identificar e analisar quatro aspectos que consideramos decisivos para a explicação histórica do intelectual como agente coletivo: 1) sentimento de pertencimento ao estrato social que, ao longo dos séculos dezenove e vinte, produziu a identidade social do intelectual; 2) engajamento político propiciado pelo sentimento de missão ou de dever social; 3) elaboração e veiculação do discurso que estabelece a relação entre educação e modernidade; 4) assunção da centralidade do Estado como agente político para a efetivação do projeto moderno de reforma social.

Esses quatro aspectos compõem o conceito de intelectual que intentamos explicitar nesse espaço, a partir da problematização da trajetória e das idéias de Erasmo Pilotto, definido pelos seus admiradores como filósofo da educação e que se tornou a maior referência do pensamento e da ação associada ao Movimento pela Escola Nova no Paraná entre as décadas de 1930 e 1960.A questão da identidade

Na segunda metade do século dezenove, na literatura russa, a palavra intelligentsia representou a elite culta que defendia reformas sociais e reivindicava as posições de guia do povo e de grupo portador da consciência nacional. Da Rússia para a França do final do dezenove a palavra intelligentsia foi preterida em favor do termo intelectual. As histórias desses vocábulos revelam a variação dos seus significados, ora conotando positivamente, ora negativamente o papel social dos letrados. No Brasil da segunda metade do século dezenove o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen utilizou a expressão aristocracia de serviços para representar o papel das elites cultas

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na administração racional e isenta do Estado imperial brasileiro. Sendo assim, tanto na Europa como no Brasil, esses agentes foram representados como elite que, em contraste com as elites de sangue ou de posição econômica, se distinguia pela sua identidade própria e pela sua missão social específica. As posições sociais ocupadas pelos intelectuais nos séculos dezenove e vinte, bem como suas habilidades retóricas propiciaram a esse personagem a condição privilegiada de atuar diretamente na produção de sua própria representação social, de forma que, em diferentes momentos, prevaleceram imagens extremamente favoráveis aos intelectuais, “instituindo-os como verdadeiros heróis prometéicos, vocacionados para defender os interesses públicos em nome da razão universal” (VIEIRA, 2008, p.74).

Refletindo sobre essa questão Norberto Bobbio afirmou que as condições necessárias para os estudos desses agentes são: “a) que os intelectuais constituam ou creiam constituir, em um determinado país, uma categoria à parte; b) que essa categoria de pessoas tenha ou creia ter função política própria, que se distinga de todas as outras categorias ou classes componentes daquela sociedade” (1997, p.31). Acrescentaríamos à reflexão de Bobbio a noção de que no processo de formação da identidade social dos intelectuais as diferenças de classe, etnia, nacionalidade, religião, profissão foram relativizadas em favor do encontro de horizontes e da comunhão de interesses desses agentes em torno de temas relacionados aos espaços acadêmico, artístico e literário. As regras de reconhecimento desse grupo social incluíam credenciais formais, tais como diplomas, títulos, mas transcendiam-as ao enfatizar as habilidades retóricas e textuais. Tratava-se do reconhecimento e do auto-reconhecimento da condição de distinção social que advinham do processo de formação, seja este resultante de estudos realizados e certificados pelas escolas nos seus diferentes níveis, seja este decorrente do autodidatismo.

A análise do processo de formação de Pilotto revela, tanto a certificação escolar formal, como os investimentos em autoformação. Estudando sempre em boas escolas de Curitiba, Pilotto formou-se como normalista pela Escola Normal Secundária de Curitiba, em 1928. Título que no período ainda representava fator de distinção entre os homens, mas ao contrário de muitos dos seus pares ele não seguiu seus estudos no âmbito da universidade. O grau universitário veio apenas em 1982, quando a Universidade Federal do Paraná (UFPR) homenageou-o com o título de Professor Honoris Causa. O autodidatismo é perceptível pela amplitude da sua produção intelectual, pois, embora nos seus escritos o foco tenha se mantido nas questões da educação, encontramos textos seus que incidem sobre temas de filosofia, artes plásticas, literatura e história. O saber enciclopédico de Pilotto, bem como a amplitude do acervo da sua biblioteca evidenciam seus enormes investimentos em autoformação. A produção de Pilotto em torno do tema da educação também revela sua refinada erudição, à medida que os problemas educacionais foram analisados em diálogo com idéias oriundas da literatura, da história e, principalmente, da filosofia. Nesse sentido, Pilotto não somente revelou-se um erudito, como também reivindicou um lugar privilegiado para a erudição na sua teoria pedagógica. Pilotto sustentou como ponto arquimediano da formação do professor a cultura geral. Para ele, a formação dos docentes caminhava perigosamente para a exacerbação da técnica didática em detrimento da formação geral. A formação do educador para Pilotto não poderia prescindir dos saberes associados à técnica de ensino e à ciência, particularmente aqueles vinculados às ciências experimentais como a biologia e a psicologia, mas estes e aqueles deveriam estar subordinados à base humanista, tendo na formação da sensibilidade estética seu pilar principal.

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Percebemos que tanto do ponto de vista da certificação formal, como do ponto de vista dos investimentos nos estudos e pesquisas pessoais Pilotto conquistou um capital cultural significativo, reconhecido inúmeras vezes ao longo de seu percurso por muitos setores do campo intelectual. A regularidade dos convites e das comendas que ele recebeu são evidências fortes que denotam a transferência do seu capital cultural para o plano simbólico que envolve o prestígio e o reconhecimento público. A título de exemplos podemos destacar as inúmeras vezes que ele foi paraninfo de turmas da Escola Normal, as vezes que atuou como organizador ou membro de comissões julgadoras de exposições de arte, a sua atuação como articulista nos jornais Diário da Tarde e O Dia, a sua participação em periódicos associados às artes e à educação, o título acima mencionado de Professor Honoris Causa e, sobremaneira, a posição ocupada por ele como Secretario de Estado de Educação e Cultura no Paraná, entre 1949 e 1951. Pilotto foi prestigiado, mas também distribuiu reconhecimento através do seu esforço em estabelecer vínculos entre as diferentes gerações de intelectuais. O culto da memória dos seus professores da Escola Normal, bem como seus investimentos na escrita de biografias sobre poetas, professores e artistas célebres no cenário paranaense permitem inferir a sua preocupação em representar a genealogia dos intelectuais. Nessa chave de leitura, Pilotto foi reverenciado, assim como reverenciou a geração que o antecedeu, assim como o seu grupo de contemporâneos ilustres.

Pilotto esteve na sua carreira como professor e como administrador público envolvido intensamente com a questão política, contudo suas relações com os partidos políticos e com a administração pública foram pontuais. Nos anos trinta vislumbramos a rápida ascensão de Pilotto a cargos cobiçados de direção em diversas Escolas Normais e Grupos Escolares do Paraná. Na década seguinte, a definitiva inserção de Pilotto no campo político ocorreu quando ele ocupou lugar de destaque na coordenação da campanha de Moisés Lupion ao governo do Estado. Após a eleição de Lupion, ele ficou à disposição do governador e ocupou, em 1949, a Secretaria de Estado de Educação e Cultura (SEEC). Ao final do seu mandato como Secretário de Estado ele foi nomeado Auditor do Tribunal de Contas. No plano partidário o único registro que temos foi a sua filiação ao Partido Socialista Brasileiro em 1963, não obstante não obtivemos informações sobre as razões e as conseqüências dessa filiação. A presença Pilotto nesses espaços demonstra a sua força crescente nos meios políticos entre os anos trinta e cinqüenta do século passado, contudo somos levados a crer que a ocupação dessas posições não foram resultados de investimentos regulares no jogo das relações políticas e partidárias, mas sim como conseqüência da transferência do seu prestígio angariado nos meios educacionais e culturais para a esfera política.

Se no âmbito da política as filiações partidárias e as associações diretas com o Estado foram pontuais, no plano das organizações culturais foram inúmeras as suas participações. Ainda como normalista Pilotto criou o Centro de Cultura Filosófica e, posteriormente, o Centro de Cultura Pedagógica. Os dados referentes ao funcionamento desses centros mostram a liderança de Pilotto no interior desses grupos, bem como a construção da rede de sociabilidade que incluía jovens interessados em adentrar no campo, bem como intelectuais reconhecidos e estabelecidos. No decorrer do período somam-se muitas iniciativas como essas, tais como a criação da Universidade Popular e do boletim Ideário da Escola Nova. Não foram encontradas fontes em quantidade e de qualidade suficientes para um exame mais detalhado desses investimentos, contudo percebemos que nesse período de formação e de afirmação de Pilotto como intelectual a diversidade e a efemeridade

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marcaram as suas iniciativas no campo. Nos anos quarenta, período em que Pilotto está estabelecido e reconhecido, ele colabora com a criação do Grupo Editorial Renascimento do Paraná (GERPA), coordenado por Raul Gomes, e com a publicação da Revista Joaquim, em parceria com Dalton Trevisan. Funda, em 1944, em colaboração com outros intelectuais a Sociedade de Cultura Artística Brasílio Itiberê – SCABI, promovendo a área da música. Participa, também, da criação do Salão Paranaense de Belas Artes e da fundação da Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP). No processo de fundação da EMBAP Pilotto atuou como mediador entre os interesses dos artistas e professores e o Estado. Na década seguinte fundou a Associação de Estudos Pedagógicos e colaborou com escritos sobre a situação do ensino no Paraná encomendados diretamente pelo INEP, sob a direção de Anísio Teixeira.

A ocupação desses espaços no campo cultural, em contraste com a sua participação no campo político, ocorreu ao longo da sua trajetória de forma regular. Em síntese, podemos afirmar, à luz das evidências de pesquisa, que entre os principais aspectos que nos permitem compreender a formação da identidade do intelectual Erasmo Pilotto estão: a formação escolar e os investimentos em autoformação; o reconhecimento público evidenciado pelos inúmeros convites e comendas recebidos; a participação e a liderança na organização de grupos de estudos, projetos editoriais, exposições de arte e concertos musicais; a ocupação de posições importantes nas esferas administrativa e política do Estado; bem como o esforço de Pilotto em representar o campo intelectual, através da produção da genealogia da intelectualidade paranaense. Essa postura militante de Pilotto na organização desses espaços revela o processo de construção da sua identidade como membro da intelligentsia que se reconhecia como tal ao criar espaços próprios de sociabilidade. Espaços nos quais eram definidas as regras do jogo do campo e, por extensão, a identidade daqueles que atuavam no seu interior. A intensa movimentação de Pilotto nessas esferas política e cultural sugere a sua inserção na identidade social dos intelectuais que vinha se produzindo no Brasil no século dezenove e que ganhou nova dinâmica a partir da década de vinte do século passado em função da ampliação e da complexificação do campo cultural. Pilotto pertenceu ao grupo social que, a partir do poder simbólico conquistado nas instituições e nos movimentos artísticos e educacionais, estabeleceu suas relações com o Estado, de maneira a produzir a legitimação dos intelectuais como representantes do poder político e, concomitantemente, legitimar as políticas do Estado na esfera cultural através das suas ações e das suas presenças prestigiadas socialmente.O sentimento de missão social

A idéia de missão social dos cultos pode ser encontrada em muitos contextos temporais e culturais. Johann Gottlieb Fichte, no seu texto intitulado Sobre a missão do erudito, de 1794, afirma que o erudito deve assumir a condição de professor da humanidade, sacerdote da verdade, guia do povo e razão do Estado. Para Fichte o homem culto tem o olhar voltado para o futuro, a mentalidade aberta, o interesse pelo mundo e, sobremaneira, a capacidade de exposição e de persuasão. Lúcia Lippi de Oliveira, discutindo o comportamento político dos intelectuais na primeira república no Brasil, afirma que “independente da sua origem de classe, da sua formação bacharelesca ou especializada, [os intelectuais] mantiveram-se ocupados em ´pensar`o Brasil e em propor caminhos para a salvação nacional. Ao atuarem na construção de consciências coletivas, os intelectuais, consideraram-se imbuídos de uma missão e procuraram difundir suas propostas mediando aspirações nacionais e políticas governamentais” (1990, p.187). O termo missão, historicamente associado

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ao clérigo na idade média e, depois, ressignificado para explicar a posição social do professor na modernidade, foi usado no discurso da intelectualidade brasileira para expressar o imperativo do dever e a decisão de engajamento político dos intelectuais. Na educação o engajamento político representou uma característica comum dos intelectuais que se associaram ao campo, pois a educação foi e permanece sendo espaço de prática e de intervenção social. Logo, a reflexão teórica nesse espaço social está, em regra, associada às dimensões prática e política, de maneira que a escrita da história dos intelectuais da área, em grande medida, demanda do historiador a percepção das idéias, das teorias, mas, também, dos projetos e das ações a elas vinculadas.

É interessante perceber como nos documentos autobiográficos deixados por Pilotto a idéia de missão aparece relacionada ao sentido de causa educacional. Nas suas memórias, escritas na maturidade dos seus setenta e nove anos, ele narra as tensões entre a sua decisão pessoal de ser um mestre de meninos em uma pequena escola primária retirada e as demandas oriundas da sua projeção como intelectual proeminente. Refletindo sobre esse contexto ele afirmou que a sua decisão original sofreu redefinições ao longo de sua vida e argumentou que não foi “diretamente o ‘mestre de meninos’, mestre escola, mas toda a [sua] vida foi o sincero serviço, sem interrupção de um dia, à causa da educação. O duro problema da coerência” (PILOTTO, 1989, 12). A noção de causa educacional, tão comum no discurso educacional do período, conota a idéia de projeto, de ação dirigida a fins práticos e políticos. Nessa chave de leitura a educação — antes de representar a transmissão da cultura ou a atividade profissional — significou um projeto político e uma razão de engajamento dos intelectuais.

Para além do seu compromisso pessoal de dedicação e de devoção ao magistério, Pilotto destacou nos seus escritos os exemplos de Tolstoi e de Pestalozzi. Esses foram representados como intelectuais sofisticados que negaram os sabores das vidas cortesã e burguesa para dedicarem-se à causa do povo pobre. Tolstoi e Pestalozzi representaram o encontro entre os cultos engajados e o povo desassistido e carente. A exemplo do literato russo e do educador suíço, Pilotto criou diversas escolas experimentais, entre as quais se destacou, em 1943, o Instituto Pestalozzi. As referências a Tolstoi e a Pestalozzi foram mobilizadas no discurso pilottiano na intenção de demonstrar a coerência das suas próprias opções, assentadas, segundo ele, em fortes razões políticas e morais.

O engajamento de Pilotto pode ser ainda melhor qualificado na perquirição da sua passagem pela SEEC, pois ele implementou na sua curta participação como Secretário de Estado a regionalização do ensino normal. Denunciando o descaso com a educação no interior do Estado Pilotto propôs, em contraste com as iniciativas voltadas à capital e às cidades tradicionais do Estado, a interiorização do investimento em educação. Segundo Pilotto “praticamente todo o magistério incumbido, no Paraná, da educação de nossa criança da zona rural, em nossas escolinhas isoladas, é formado por professoras que mal tem o curso primário. Algumas, efetivamente, não podem ensinar mais do que o primeiro e o segundo anos primários. E não têm, naturalmente, nem a mais leve formação pedagógica” (1952, p.18). E na seqüência do raciocínio pergunta: “Como foi possível que chegássemos a 1948, sem ter dado um passo sequer para ultrapassar essa situação? [...] Não é humano que nada se tenha feito anteriormente para remediar esse estado de coisas” (Idem, 1952, p.18).

A história de vida de Pilotto, assim como de muitos intelectuais, é a história da luta política pelas reformas educacionais, tanto nas dimensões da crítica à pedagogia tradicional, da revisão do processo de formação dos professores e/ou da organização

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do sistema público de ensino. O lema de Pilotto, repetido inúmeras vezes, era: a educação é direito de todos. O lema tornou-se título de um dos seus livros e neste, parafraseando Romain Rolland, Pilotto afirmou: “escrevi sempre para os que marcham, pois estive sempre em marcha e espero não me deter até a morte” (PILOTTO, 1952). A metáfora da marcha sugere as idéias do soldado e da batalha, tal como Pilotto concebeu a sua posição como intelectual e o seu engajamento em relação à causa educacional. O sentido político das suas idéias ou as conseqüências práticas das suas ações são objetos em abertos na História da Educação, contudo não restam dúvidas sobre a intenção de Pilotto de representar sua vida profissional nesse encontro entre o sentimento de dever e a tomada de posição política.

O discurso da modernidadeNo horizonte retórico dos intelectuais do último quartel do século dezenove

aos anos sessenta do século vinte identificamos a presença marcante da idéia de modernidade. A modernidade foi representada como uma espécie de éden que se conquistaria a partir de investimentos em diferentes frentes, mas, de forma especial, a cultura e a educação representaram áreas estratégicas nesse projeto. A análise do discurso da intelectualidade no Brasil, nas particularidades dos agentes que se destacaram no campo educacional, bem como nas redes de sociabilidade intelectual criadas através dos jornais, revistas e instituições culturais confirmaram a tese, bastante difundida na área acadêmica, sobre a relação estreita entre os ideais de modernidade e a defesa de investimentos em cultura e em educação. Relação esta que, em muitos cenários, foi impostada de maneira a supor a conexão propriamente causal, de maneira que os investimentos em educação implicariam necessariamente e inexoravelmente na conquista da modernidade. A idéia de modernidade cativou os intelectuais. A rigor, é possível dizer que esses foram produtos e arautos dessa crença, de maneira que os diferentes grupos e gerações terçaram armas na perspectiva de afirmar modos de ser e de pensar associados aos sentidos do moderno, da modernidade e da modernização.

Associados à representação da modernidade estavam muitos significados marcados pela positividade, tais como desenvolvimento, progresso, ordem, civilização, bem-estar, entre outros. O éden moderno foi imaginado em muitos países da Europa e da América do Norte, a partir da idealização das suas experiências sociais, políticas, econômicas e, em particular, educacionais. Não obstante, se por um lado o ethos moderno seduziu os intelectuais, por outro percebemos que o ideal comum de modernidade não significou usos unívocos desse termo. O monarquista Ricardo Pires de Almeida, em 1889, cativado pela cultura francesa, afirmava que o imperador D. Pedro II adotava uma política progressista e modernizadora para a educação e, dessa forma, ele conduziria o regime monárquico e o país a sua atualização. Afrânio Peixoto, em 1933, representou o Imperador e o regime monárquico como entraves superados no caminho do país para a modernidade. O republicano Peixoto entendia que a modernidade estava nos exemplos dos Estados Unidos e, no plano da educação, defendeu a adoção da escola ativa de inspiração deweiana. Teobaldo Miranda Santos, entre os intelectuais católicos na década seguinte, defendeu que o projeto da modernidade no Brasil não deveria adotar modelos externos, mas sim olhar para suas próprias tradições, considerando, em particular, a experiência de ensino que a Igreja Católica representava.

Esse breve e esquemático confronto de teses em torno dos ideais e dos rumos almejado para a modernidade evidencia o desejo dos intelectuais de atualizar o Brasil, contudo tais leituras demonstram, também, como os sentidos do moderno e os

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modelos propostos eram conflitantes. Porém, se os modelos e os fins da modernidade provocavam dissensos, os meios eram relativamente comuns, ou seja, os intelectuais partilharam a convicção que o caminho da modernidade seria trilhado através da ação política sobre a sociedade, a partir de uma liderança política centralizada e esclarecida pelos poderes de análise e de predição da ciência moderna. Nesse contexto, as crenças no “poder ilimitado da razão, na inexorabilidade do télos do progresso e na potencialidade da ciência para interpretar e intervir sobre o mundo natural e social produziram a atmosfera intelectual da modernidade que, em diferentes ritmos temporais e a partir de tradições diversas, perpassou diversas instâncias sociais e culturais” (VIEIRA, 2007a, p.380). A modernidade, nesse contexto, pode ser representada pela confiança na ação edificante da razão que, através da ciência, da tecnologia, da instrução e das políticas sociais universalizaria um novo modo de pensar e sentir a realidade.

A vinculação de Pilotto ao discurso da modernidade pode ser verificada pela sua adesão ao Movimento pela Escola Nova (MEN). Esse movimento internacional tem suas raízes no último quartel do século dezenove e mobilizou um conjunto significativo de intelectuais no Brasil em torno de um projeto que, nas palavras de Lourenço Filho, visava a organização nacional através da organização da cultura. O MEN representou, em escala mundial, a expressão mais forte da presença do ethos da modernidade no campo educacional, pois esse movimento impostou sua retórica de maneira a afirmar a ciência como a principal fonte para o trabalho pedagógico. A ligação de Pilotto com o MEN tem suas origens no seu período como normalista na Escola Normal Secundária de Curitiba, nas iniciativas já mencionadas do Centro de Cultura Pedagógica e do boletim Ideário da Escola Nova. Nos anos trinta, mais precisamente em 1933, verificamos a definitiva vinculação de Pilotto ao movimento através da participação, como delegado do Paraná, na V Conferência Nacional de Educação. O encontro visava subsidiar o debate sobre educação na constituinte de 1934, contudo resultou na cisão da ABE e, nesse quadro de confronto, Pilotto alinhou-se aos pioneiros em oposição ao grupo católico.

Essas convergências em relação às idéias do MEN, tanto no plano da renovação das práticas pedagógicas, como na perspectiva da compreensão de que a reforma da escola significava a reforma da sociedade, não significaram a adesão de Pilotto às tendência teóricas hegemônicas no MEN. Pilotto afirma que a sua “vocação para a Educação Nova vinha [...] de outras origens; assim, foi com grande independência que respeitamos o ar do importante movimento renovador brasileiro” (1989, p.53). As antigas referências às idéias de Tolstoi, Rousseau e Pestalozzi foram mobilizadas contra a forte tônica cientificista presente nas principais correntes do MEN associadas ao chamado naturalismo pedagógico, mais particularmente ao pragmatismo de Dewey e ao sociologismo de Durkheim.

Em texto publicado em 2001 sobre a pedagogia pilottiana busquei demonstrar como esse intelectual reagiu contra o cientificismo que imperava no MEN e buscou afirmar uma concepção pedagógica apoiada nos ideais de liberdade e de autodeterminação e nos poderes da intuição e da vontade. Essa concepção, em diálogo com as filosofias românticas e neo-idealistas, materializou-se em uma visão de mundo e da pedagogia espiritualista. Essa postura não representou a recusa completa das contribuições de Dewey e de Durkheim, da mesma forma que não significou oposição à função da ciência na sociedade e, por extensão, na revitalização das práticas pedagógicas. A rigor, podemos afirmar que as idéias pedagógicas de Pilotto oscilaram entre a assunção da ciência como suporte da prática pedagógica e a defesa dos saberes associados à arte, à literatura e à filosofia. Essa oscilação não se caracterizou como

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ambigüidade ou contradição teórica, mas sim como tentativa permanente de pensar a ação educativa entre a objetividade do dado empírico, a lógica do conceito, a liberdade da intuição e o imperativo da vontade. Talvez, em termos polêmicos, pudéssemos definir Pilotto como um crítico moderno da modernidade, uma vez que ele, sem desprezar o racionalismo filosófico e a ciência, posicionou-se contra os excessos provocados pela transformação do discurso científico em ideologia do progresso e, também, opôs-se ao molde rígido e exclusivista do modelo das ciências experimentais aplicadas à educação. Em outras palavras, sem negar a fecundidade da relação entre educação e ciência, Pilotto buscou evitar que essa interlocução representasse o fechamento do diálogo com outras dimensões do pensamento moderno, particularmente com a arte e a filosofia.

Em síntese, podemos afirmar que Pilotto compartilhou a tese sobre a necessidade de atualização do Brasil, da mesma forma que entendeu que a atualização do país passava inexoravelmente por uma reforma social conduzida por uma elite esclarecida e pela imposição de modos de pensar racionais e de práticas informadas pela pesquisa científica. Não obstante, no contexto dos anos quarenta do século vinte, o otimismo irrefletido em torno da modernidade como o éden terreno e, sobretudo, o potencial da ciência como meio exclusivo de condução da ação social, que marcaram a atmosfera intelectual do último quartel do século dezenove, estavam abalados pela sucessão de crises internacionais e pelo surgimento de críticos veementes do percurso da chamada civilização ocidental. Dessa forma, Pilotto alinhou as suas convicções nos poderes da ciência e da educação ao novo cenário, de maneira que no plano dos seus diálogos pedagógicos ele priorizou a interpretação de Pestalozzi da filosofia romântica de Rousseau, os exemplos do idealismo e do cristianismo integral de Tolstoi e a filosofia do ato puro de Gentile. No plano propriamente filosófico o niilismo de Nietzsche, Heidegger, Schopenhauer acompanharam suas reflexões com o propósito de relativizar o discurso da ciência e os valores da sociedade ocidental dos séculos dezenove e vinte. A visão sobre a relação entre educação e modernidade acompanhou os horizontes teórico e prático de Pilotto, contudo, tal como em Almeida, Peixoto e Santos acima mencionados, o significado da idéia de modernidade foi ressignificado na sua visão de mundo.O protagonismo do Estado

A crença no Estado com agente político capaz de realizar o projeto moderno de reforma social atravessou diferentes gerações de intelectuais. Nilo Odália (1997), analisando as obras e as posturas políticas de Varnhagen e de Oliveira Vianna, identifica essa representação que, por um lado, ao analisar a história do país critica a ausência do Estado e de políticas sociais eficientes e, por outro, reclama a ação desse agente de forma resoluta e intensa no processo de reorganização da sociedade. A relação entre intelectuais e Estado foi tratada em muitos estudos nas diferentes áreas das Ciências Sociais e Humanas. Na obra célebre de Daniel Pécaut, Os Intelectuais e a política no Brasil, encontramos a tese sobre a ideologia do Estado sustentada pelas diferentes gerações da intelectualidade brasileira. Para Pécaut a “`ideologia de Estado´ tem, portanto, o mérito de ressaltar que o Estado, e não a sociedade civil, se apresenta como agente da construção nacional” (1990, p.45). Nessa ideologia o Estado aparece como o agente político principal e os intelectuais como a intelligentsia responsável por elaborar o projeto nacional capaz de dar unidade cultural ao país. Para o sociólogo francês Alceu Amoroso Lima representou essa visão de forma lapidar ao afirmar que na história do Brasil “o poder público não é apenas o reflexo do povo e sim o orientador, o guia, o verdadeiro formador do povo” (LIMA, apud PÉCAUT, 1990, p.45).

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As presenças dos mitos da unidade cultural e política da nação e do atraso do país em relação às nações civilizadas no discurso da intelectualidade brasileira foram fundamentais para a produção da justificativa do protagonismo do Estado, pois, nessa chave de leitura, o país necessitaria queimar etapas no seu desenvolvimento, sob pena de ficar eternamente em descompasso com a modernidade da Europa e da América do Norte. Stella Bresciani (2005), a partir da exploração das idéias presentes na historiografia brasileira da primeira metade do século vinte, destacou o pesar de intelectuais como Oliveira Vianna e Sergio Buarque de Holanda em relação ao atraso do país. Para ela as obras desses intelectuais, guardadas as suas profundas diferenças, produziram o sentimento de ressentimento em relação à realidade brasileira, explicada por eles a partir dos lugares comuns “do meio tropical adverso, as características das raças formadoras e a persistente alienação de nós mesmos” (p.424). A retórica do atraso nacional foi mobilizada de maneira a produzir, não somente a explicação das razões do atraso, mas, sobretudo, a vontade política de mudança social. De acordo com essa leitura, as mudanças necessitariam de um agente que reunisse grande poder, tanto no plano persuasivo, como no coercitivo, para acelerar o tempo e produzir a nova realidade nacional. Essa visão favoreceu, assim como ficou demonstrado pela extensa bibliografia sobre o tema do pensamento autoritário no Brasil, a relativização do valor da democracia e a desconfiança em relação às iniciativas políticas do povo e da sociedade civil. Logo, a partir de diferentes contextos temporais e políticos, intelectuais monarquistas ou republicanos, integralistas ou comunistas, liberais ou conservadores, guardadas às exceções que confirmam a regra, convergiram no propósito de pedir a intervenção do Estado na sociedade. Nessa linha de argumentação a educação ganhou destaque como instrumento eficaz de intervenção social, seja na perspectiva da reforma da escola primária e popular, seja no plano de implementação do ensino superior voltado à elite.

O surgimento da Associação Brasileira de Educação (ABE), em 1924, e as suas sucessivas conferências nacionais evidenciam o propósito dos intelectuais do nascente campo educacional de criar um espaço público de enunciação do projeto de formação do espírito nacional através da escola. Do púlpito da ABE os intelectuais criticaram a falta de uma política nacional para a educação e exigiram a intervenção do Estado para sanar essa ausência. Nesse cenário os intelectuais revelaram a convicção no protagonismo do Estado que, ao longo do período, traduziu-se na ocupação sistemática pelos intelectuais de posições no âmbito do aparelho de Estado.

Pilotto partilhou dessa experiência e dessa crença sobre o Estado, embora tenha mantido uma atitude alinhada aos valores democráticos e a sua presença efetiva em posições de poder no Estado tenha sido pontual. A passagem dele pela SEEC é, evidentemente, o momento mais significativo para vislumbrarmos a sua relação direta com o aparelho de Estado. O estudo de VIEIRA e MARACH (2007b) enfoca as contradições vividas por Pilotto quando assumiu a direção da educação no Paraná, uma vez que a pedagogia diferencial defendida por ele no interior da experiência no Instituto Pestalozzi, em 1943, foi revista na perspectiva de elaboração de um plano de interiorização da Escola Normal no Paraná. Pilotto defendeu, no plano das escolas experimentais, um procedimento de ensino adequado a cada educando e a formação de um professor que, antes de seguir métodos de ensino, criasse pedagogias. Esse cenário mudou no fim dos anos quarenta no processo de condução da política que visava levar a educação às regiões distantes da capital. Diante da dura realidade das escolas que contavam com apenas um professor semi-alfabetizado, Pilotto defendeu o treinamento dos docentes, a partir de procedimentos rígidos e de condutas automatizadas na pretensão de obter algum sucesso nas experiências da escola de

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mestre único. Pilotto criticou a ausência do poder público no interior do Paraná e, coerentemente, atuou de maneira a fazê-lo presente, mesmo que essa presença fosse sentida através de métodos coercitivos e de uma relação vertical entre os especialistas do Estado e os professores das escolas isoladas.

Para além da participação direta de Pilotto na elaboração e na administração das políticas de Estado, vislumbramos a crença no protagonismo do Estado nas suas obras que trataram do tema do sistema público de ensino. A tese tão propalada nos anos vinte sobre a unidade da nação através da escola foi traduzida nas décadas seguintes pelo projeto de organização do sistema público de ensino que, vigente em todo o território nacional, seria capaz de homogeneizar as formas de organização e de administração da escola, os processos de formação de professores, as condutas didáticas, os objetivos e os conteúdos de ensino. Esse debate atravessou o século e levou muitos especialistas do campo a contribuírem com programas completos para a organização da educação nacional. A idéia de sistema de ensino ocupou o centro da reflexão pilottiana, de modo que, em 1949, no discurso para os normalistas ele asseverou que existia uma revolução em curso e que esta trazia dois conceitos fundamentais: “a pedagogia da educação Nova; e, segundo — a organização do sistema educacional em função de propiciar a todos, uma educação que permita a cada um o desenvolvimento de suas aptidões cientificamente determinadas” (PILOTTO, 1977, p.61).

No léxico pilottiano percebemos a presença constante da idéia de sistema de ensino e, assim, destacamos as obras Prática de Escola Serena, de 1946, e Problemas abertos no estudo de sistemas escolares para o Brasil, de 1958. A primeira trata da experiência já mencionada no Instituto Pestalozzi que foi criado por ele para testar suas idéias pedagógicas. O contexto de experimentação, em uma pequena escola privada, não inibiu a sua pretensão de tornar a experiência do instituto base para a organização do sistema público de ensino. Pilotto afirma que “o sistema educacional do Instituto Pestalozzi é, em seus fundamentos, o esquema de um sistema educacional universal” (1946, p.43). A obra de 1958, no curso dos debates da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, apresenta uma proposta completa de organização do ensino do jardim de infância à universidade, ainda que a discussão enfatize o ensino primário e o secundário. Pilotto adverte o leitor na introdução do seu texto que o advérbio talvez deve acompanhar a argumentação da sua proposta, revelando sua prudência intelectual, porém o escopo do texto era responder às demandas da “realidade atual do Brasil, numa fase de passar ao primeiro plano mundial, e situado na vertiginosa realidade em transformação do mundo [que] impõe uma urgente e aguda revisão de nossos sistemas escolares” (1958, p.4). Essa obra, produzida a partir de comparações exaustivas como as realidades educacionais da Europa e da América do Norte, sustenta a tese da necessidade imediata de reorganização do sistema nacional de ensino, sob pena do país ficar em descompasso com o mundo moderno. Nesse contexto argumentativo, o apelo ao Estado se mostra, tanto na crítica do comportamento político do aparelho estatal — movido por interesses alheios e, em grande medida, contrários às demandas de ordem racional e científica — como na reivindicação da presença do Estado como executor e administrador das propostas defendidas por Pilotto.

A motivação política que guiou a exigência do protagonismo do Estado no discurso pilottiano era o direito universal à educação que, antes de ser tema dos intelectuais, representou uma demanda política das classes subalternas em diferentes momentos da história. A questão que provoca o analista do campo intelectual não é o valor político da reivindicação, mas sim a percepção de que mesmo no contexto da

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defesa de teses democráticas e populares o Estado prevaleceu como interlocutor e agente político privilegiado, em detrimento da sociedade civil e do movimento popular. Nesses termos, a recusa de ocupação sistemática de cargos na administração direta por parte de Pilotto, não significou no seu projeto pedagógico a relativização da visão sobre o papel do poder executivo ou a busca da afirmação de outros protagonistas sociais. Os intelectuais, mesmo distantes ou alijados do Estado, identificaram nos seus projetos de reforma social o Estado como o agente político privilegiado. Conclusões

Antonio Cândido, no prefácio da célebre obra de Sérgio Miceli Intelectuais e as classes dirigentes no Brasil (1920-1945), argumenta que é difícil estudar um objeto que envolve tanta sacralização como os intelectuais. Soma-se ao culto social dos clérigos modernos o fato de que os analistas das trajetórias intelectuais são também intelectuais e, assim, a crítica enfrenta os limites inerentes à autocrítica. Para além do problema tradicional da isenção e do afastamento em relação ao problema, Candido ainda enfatiza o caráter ambíguo e fugidio do problema, pois “o intelectual parece servir sem servir, fugir mas ficando, obedecer negando, ser fiel traindo” (2001, p.72). As habilidades lógicas e retóricas desses agentes os colocam em posição privilegiada para a produção de sua imagem social, contudo as imposições dos ofícios intelectuais obrigam que esses agentes escrevam e publiquem volumes consideráveis de textos que propiciam aos analistas ampla documentação e, portanto, ampla possibilidade de análise das suas idéias, linguagens, crenças e projetos sociais. Nesse sentido, a visibilidade dos seus projetos e teses é proporcional à visibilidade das suas contradições e ambigüidades, cabendo ao analista escolher entre a literatura de idolatria e as obras laudatórias — tão comuns na formação da memória do campo intelectual e, portanto, na afirmação de hierarquias, valores e comportamentos — e os textos de crítica honesta e baseada em métodos de investigação confiáveis. Particularmente, acreditamos que a maior homenagem que um agente social que dedicou parte da sua vida à atividade pública pode receber é ser objeto de uma investigação que seriamente procura a verdade, ou melhor, nesses tempos de ceticismo epistemológico, que evita sistematicamente os erros e as falsificações. É assim que reconhecemos, no plano geral, o papel político dos intelectuais e, no particular, a figura emblemática de Erasmo Pilotto.

A pesquisa histórica sobre os intelectuais pode representar, assim como Helenice Rodrigues da Silva sugeriu, o desaparecimento desse protagonista social ou pelo menos a mudança substantiva na posição social desse agente na sociedade contemporânea. Para Silva (2002) “a crise da representação do intelectual serviu de estímulo para o aparecimento de um novo objeto de estudo — o intelectual — e uma nova área de investigação — a história intelectual” (p.18). Porém, esse não é um problema para nos ocupamos aqui, pois nos coube nesse texto explicitar o conceito de intelectual que estamos desenvolvendo e, como ficou evidente ao longo da argumentação, não reivindicamos a originalidade na produção desse conceito. Este surgiu no diálogo com a literatura que tem tratado do tema no Brasil e no exterior e no cotejo com as fontes da pesquisa que coordenamos. Talvez, a originalidade que cabe a esse trabalho é a reunião dos quatro aspectos que arranjam a arquitetura desse conceito para a investigação do comportamento político dos intelectuais. Dessa forma, esperamos ter mostrado, à luz da experiência e do discurso pilottiano, a potencialidade dessa formulação que incide sobre as questões da identidade e do sentimento de missão social, assim como sobre as crenças na modernidade e no protagonismo político do Estado.

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Imaginamos ter podido demonstrar que esse conceito não restringe a compreensão das singularidades dos agentes sociais, das suas formas peculiares de pensar e de agir, pois não pretendemos reduzir o indivíduo ao grupo social do qual ele fez parte. A rigor, tentamos evidenciar, a partir da análise da trajetória de Pilotto, as crenças e as atitudes compartilhadas pelos intelectuais, assim como os modos particulares que envolveram a interpretação de Pilotto dessas crenças e condutas. Nessa linha de raciocínio, que envolve a tensão relacional entre indivíduo e grupo social, destacamos a crítica moderna de Pilotto à modernidade, a sua defesa do protagonismo político do Estado elaborada à distância dos cargos administrativos do poder público, o seu engajamento em torno da tese do direito universal à educação, a sua maneira própria de reapresentar-se como intelectual como indícios, a um só tempo, daquilo que é singular na visão de mundo de Pilotto e do que é comum na prática social dos intelectuais do campo educacional no Brasil no período circunscrito por essa pesquisa. A questão está na escala analítica, pois quanto mais nos aproximamos do indivíduo verificamos suas formas peculiares de interpretação e de ação diante do mundo e quanto mais focalizamos o grupo social ao qual ele pertenceu mais identificamos as crenças e as práticas compartilhadas.

Essa problematização do comportamento político dos intelectuais nos serviu, inicialmente, como hipótese de pesquisa, mas nesse momento assume a condição de conceito que orienta a compreensão do campo educacional no Brasil, mesmo que entendamos que não se trata de idéia fechada, rigidamente estruturada e acabada. A ampliação, a redução, o ajuste ou mesmo a recusa dessa formulação dependerá da continuidade da pesquisa e do diálogo com as críticas que este texto espera receber. Fontes HistóricasPILOTTO, E. Prática da escola serena. Curitiba: 1946.

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