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Atriz?
DAIANA MOURA
Resumo
O que é ser uma mulher negra e atriz? Por que ouvir uma mulher negra? Por que
buscar compreender seu pensamento? Perguntas que estão orbitando essa reflexão e a vida-
obra de Beatriz Nascimento, Lélia Gonzales, Angela Davis, bell hooks e Glória Anzaldúa nos
surgem como fachos de luzes para discutir as questões relacionadas às opressões sociais.
De forma crítica, com um raciocínio rigoroso, potente e sem meias palavras essas
autoras denunciam e travam embates de cunho militante e acadêmico ao mesmo tempo, isso
porque suas experiências e condutas éticas transparecem coerência e labor em prol do povo
negro e para, além disso, práticas e marcas profundas em suas próprias experiências como
mulheres negras. E são essas referências que dialogam com as falas de atrizes negras da
região de Sorocaba nesta escrita. Os mitos de democracia racial, igualdade e liberdade, são
postos em cheque diante da fala de uma artista negra. Trajetórias que em seus territórios e
temporalidades, são vozes reveladoras de disputas de poder, bem como são portadoras de
possibilidades reais de mudanças.
Introdução: Trajetórias, memórias e resistências de atrizes negras
Este trabalho é parte do processo da pesquisa de mestrado Mulher Negra EnCena
Performances de Encontros e Devir. As fontes são as falas de mulheres negras que estão
sendo ouvidas em entrevistas durante esta etapa da pesquisa. As mulheres negras que
entrevisto são atrizes da região de Sorocaba e falam sobre suas trajetórias e memórias de vida
na arte teatral, bem como explicitam suas buscas e trazem em suas falas pontos que se
encontram e também pontos divergentes. Dessas experiências a pesquisa observa oito temas,
oito nós em que as falas se debruçam e que emergem como categorias para observação e
análise da história de vida dessas mulheres enquanto sujeitos históricos. São eles: Cabelos,
Ufscar Sorocaba-SP, Programa de Pós Graduação em Educação. Pesquisa realizada com o apoio da CAPES.
Rede de mulheres, Única negra do rolê, Políticas públicas e espaços mágicos, Amor,
Formação acadêmica, Família-Umbuntu, Eu vivo de Arte?
Identificados os temas pelos quais as experiências transitam, se aproximam e se
separam, ressaltamos que nosso objetivo neste artigo não é o aprofundamento nas
informações dessas categorias que se apresentam. Intencionamos discutir através de alguns
pontos delas os fatores históricos e sociais que constroem uma estereotipia e uma demarcação
territorial e simbólica em experiências de vidas de mulheres negras, bem como colocaremos
esses pontos em rede com as complexas teorias organizadas por mulheres acadêmicas negras.
As demarcações construídas historicamente pressionam a imagem desses corpos em
determinados lugares tornando improvável o trânsito em setores considerados elitizados da
sociedade. Espaços como a academia, a política, o magistrado, a arte são ocupados por esses
corpos com vivências peculiares, experiências particulares e extremamente difíceis de
compartilhar e de explicar com profundidade, por esse motivo nos amparamos nos valiosos
estudos desenvolvidos por mulheres negras, que mesmo em diferentes épocas apontam para as
mesmas questões. Fato que nos move ainda mais fortemente a discutir essa temática, pois
significa que as sociedades em seus vários âmbitos têm avançado muito lentamente no que
tange ao bem estar de mulheres negras no país.
As diferenças, particularidades e peculiaridades que essas mulheres vivem na arte
teatral são fruto da demarcação que existe sobre a cor de sua pele, seu gênero, sua classe
social, sua sexualidade. Esses marcadores atuam de forma indissociável na trajetória de vida
narrada por essas vozes de resistência. Histórias de vidas improváveis, que reconhecemos
como movimento de resistência e transgressão justamente porque logram escapar das
determinações históricas, sociais e culturais.
Nos interessa portanto ouvir essas experiências que contrariam as estatísticas como
cantam os rappers Racionais Mc’s1. Interessa também contextualizá-las no atual período
histórico, desvelando as cortinas que ora escondem e ora explicitam o quanto esses
marcadores são determinantes para os processos e relações em cena, na vida artística como
1 Trecho de uma das letras mais emblemáticas do grupo Racionais Mc’s. Entendemos que o trecho especifico é
simbólico para referendar essas vidas e utilizaremos outras vezes a expressão contrariar as estatísticas. A
música diz: (...) mas não, permaneço vivo. Não sigo a mística, vinte e sete anos contrariando a estatística. Seu
comercial de TV não me engana, Eu não preciso de status nem fama. Música: Capítulo 4 Versículo 3. In.
Sobrevivendo no Inferno. São Paulo: Cosa Nostra, 1997.
um todo e na vida pessoal. Quando escondidos e silenciados relegam experiências de
invisibilidade na sociedade, quando escancarados e explicitados expõem essas mulheres a
situações vexatórias, perturbações emocionais, debilidade da saúde psicológica e agressões
simbólicas, verbais, etc. E esse movimento dialético de vidas marcadas por dores, mas que
falam e denunciam essas mazelas está presente sempre que algum depoimento evoca alguma
situação vivida. Então esse processo de vida na arte está engendrado no vivido, atravessado
por muitos fatores. Através das falas podemos sentir o quanto as experiências corporificadas,
o desejo de manter-se em cena e reconhecer-se enquanto atriz tem potência suficiente para
superar as barreiras da cor da pele, do gênero e da classe social.
Trazer essas vozes para a discussão acadêmica faz parte de um movimento contra
hegemônico do pensar. Ouvir esses sujeitos e aproximar sua visão de mundo do ambiente
acadêmico significa romper com os parâmetros históricos sob os quais alguns saberes são
estabelecidos e podem ser reconhecidos como válidos, em detrimento de relegar à
marginalidade, invisibilidade e silenciamento vidas e conhecimentos que são minorados.
Essas mulheres que reconhecem a guerra de poderes de que fazem parte enquanto
cidadãs negras, atrizes brasileiras nos ensinam uma pedagogia da resistência. Entender as
estratégias e ferramentas que lançam mão historicamente para subverter a lógica da
hegemonia branca existente na arte teatral é movimentar-se na direção de incessantes
tentativas de mudanças e também significa estar em contato com o cotidiano de luta de
mulheres guerreiras que nunca descansam. Debruçar-se sobre experiências de vida que o
tempo todo carregam em si a ambiguidade, mulheres marcadas pela ilegitimidade, mas que
buscam legitimar suas vozes através do teatro, pode nos ajudar a compreender e agir com
outros olhares e de outras formar no funcionamento do mundo que fazemos parte.
Transgressões Artísticas e Acadêmicas
Aproximar as histórias de vida de mulheres negras atrizes do pensamento acadêmico
militante de pensadoras negras como Sueli Carneiro, Lélia Gonzales, Beatriz Nascimento, as
norte-americanas bell hooks e Angela Davis, a Glória Anzaldua, nos possibilita criar uma rede
de mulheres que comungam entre si um profundo conhecimento sobre ser o outro, sobre ter a
experiência de vida objetificada, subalternizada, e principalmente compartilham a experiência
da transgressão ao conseguir escapar da norma que ciclicamente busca manter esses corpos no
silenciamento.
Essas mulheres que contrariam as estatísticas, antes de tudo falam, possuem a
experiência corporificada, não distanciam teoria e prática, corpo e mente, ao contrário
observa-se nessas trajetórias um esforço em fugir de dicotomias e reiteram sempre a
impossibilidade de neutralidade cientifica, política e no caso das atrizes, artística. Rompem
com ciclo e ao fazê-lo revelam primeiro que ele existe e segundo que possui determinadas
maneiras de oprimir e silenciar e que essas maneiras fazem parte de um acordo velado, que
torna o assunto desagradável, incômodo, são vozes que geram um mal estar quando se
levantam e se pronunciam. E neste ponto é necessário salientar que a essa pesquisa não será
possível fugir do assunto desse ciclo incômodo, gostaríamos de nos ater as formas e discursos
das obras teatrais de mulheres negras, porém, sentimos que antes disso, é em sua presença no
teatro que reside nossa maior urgência. Inclusive como tentativa de fortalecer suas presenças,
talvez chamando atenção para o fato de que todas as entrevistadas são sempre a única negra
do grupo em que são integrantes conseguimos demonstrar o abismo que separa o imenso
número de cidadãs e cidadãos negros de espaços artísticos.
Ao falar desse mal estar é preciso tocar em lugares que são profundamente enraizados
nas vidas que se fazem dentro do contexto atual, resultante de uma série de processos que não
podemos nos ausentar de denominá-los. E é isso que essas mulheres fazem, estão sempre
fincadas no presente, observando e situando os acontecimentos passados buscando um futuro
que possa pertencer a suas descendentes.
Esses corpos de artistas negras são obrigados a criar armaduras, estratégias, jeitinhos
para conseguir a cada dia, a cada projeto, a cada ensaio, enfrentar o olhar do outro, a
exposição do corpo e das fragilidades, o mostrar-se, o protagonizar, parte de um processo de
aprendizado, que nem sempre é superado sem maiores conflitos (internos e externos). Artistas
são pessoas que dão matéria, consistência, ao inanimado, ao profundo, dão vida ao indizível,
entregam ao mundo a possibilidade do sonho, do delírio, do futuro. Portanto atrizes negras
são sujeitos que transitando em processos artísticos deslocam e transmutam a experiência
ancestral de dor de corpos negros. O direito ao sonho, a criação, ao delírio e ao aspecto
dionisíaco da arte teatral é social e culturalmente reconhecido como direito de brancos, ricos,
ou classe média, de forma que à grosso modo caberia aos negros sobreviver, trabalhar,
sustentar a família, etc.
Assim sendo corporeidade, território, memória são noções marcantes para as
trajetórias de vida dessas mulheres no teatro e reverberam em reconhecimento de identidades,
militâncias e lutas sociais, em contraste com o modo como historicamente as palavras atriz ou
artista se constroem no imaginário histórico, cultural e social.
Diante do exposto, elucidamos que essas dores são corpo, o corpo é o território onde
essas tensões se dão, é esse corpo que vai estar espaços que parecem querer expulsá-lo, é esse
corpo que carrega a dor de seres humanos que compartilham a experiência do escuro, do
negrume, da sombra, do invisível, do deboche, do escarnio, do emudecimento...
Compartilhamos enquanto negras como diz Beatriz Nascimento (1989) a experiência de não
querer ser escrava, compartilhamos a experiência de desejar que a escravidão nunca tivesse
existido.
A memória é o conteúdo do continente, da sua vida, da sua história do seu passado como se o corpo fosse o documento. Não é à toa que a dança é um momento de libertação. O
homem negro não pode estar liberto enquanto ele não esquecer o cativeiro, não esquecer no
gesto que ele não é mais um cativo. A linguagem do transe é a linguagem da memória. Tudo
isso não resgata a dor de um corpo histórico, aquela matéria se distende mas ao mesmo tempo
ela traz com muito mais intensidade a história, a memória, o desejo. O desejo de não ter vivido
a experiência do cativeiro. A escravidão é uma coisa que está presente no corpo, no nosso
sangue, nas nossas veias. (Gerber e Nascimento, 1989, transcrição nossa)
A própria escrita da vida brota de contradições e ambiguidades, o corpo histórico da
mulher negra que é ele mesmo documento onde essas marcas estão sempre latentes, uma vez
que a sociedade é construída no pilar hierárquico de relações, e todas as relações sociais são
racializadas, a raça é a mediadora das relações do corpo negro no mundo. A dança desse
corpo, movimento, o ritmo, a cena é a busca mesma de libertação. Conseguir inscrever-se no
mundo enquanto criadoras, elaboradoras e participes, enquanto corpo que dança, canta, atua,
festeja é em si um fato marcante da resistência histórica de mulheres negras na arte brasileira,
estar em cena é dizer não sou mais cativa.
As linhas de pensamento construídas pelas mulheres negras acadêmicas são de uma
complexidade e riqueza profundas. Quando escrevem é a voz desse corpo histórico que se faz
presente, são as memórias desse corpo-documento que ao mesmo tempo em que doem são as
ferramentas de luta e de buscas. Esse entrelaçamento temporal (passado-presente-futuro)
exige um grande panorama dos acontecimentos históricos, políticos, culturais, artísticos. É
emblemático o modo como ao citar as condições de seus pares negros esses estudos lançam
mão de um escopo não só teórico, como já citado as experiências de vida se enredam às
teorias, a militância se enreda à teoria. Um exemplo disso é a forma como a ideologia do
feminismo negro alcança e atravessa essas obras, é um feminismo que abarca uma rede densa
com inúmeras camadas que provocam e podem até instaurar conflitos. Uma vez que está
disposto a retirar da invisibilidade histórias que normalmente podem ser violentas, hostis e
brutais. Pois é assim que essas histórias são tratadas pela sociedade. Estão nomeando as
opressões, dando direção e corpo. Estão saindo do silêncio e se fazendo durante o processo.
Esse processo costuma ser longo e insidioso e começa já na escola primária. Lá em
Sergipe, para citar um fato concreto, eu estudava numa escola que era num terreno
arrendado de minha avó, era em frente à casa dela; pois bem, eu muitas vezes
inventava um dor de barriga e fugia, sabe por quê? Porque tinha pouquíssimas
crianças negras, iguais a mim na escola. E esse fenômeno acontece comigo até hoje.
Eu me sinto mal, me dá uma sensação de isolamento quando eu estou num grupo onde
não têm muitos pretos. (Ratts, 2007, p. 49)
A sensação de dor de barriga pode ser aqui entendida como símbolo do medo, da
opressão, da escola como primeiro ambiente hostil que vai lembrar a cada segundo as marcas
históricas. O isolamento, a sensação de não ser parte, de não pertencer ao espaço, ao grupo
acompanham desde a infância.
Eu lembro que na escola eu era pequeninha eu lembro uma vez que dois amiguinhos
falaram assim: ah você não vai brincar com a gente porque você é preta! E eu fiquei
chateada e contei pra minha mãe. Aí pretinha, negrinha, não sei o que... E minha mãe
deu a melhor resposta que ela pôde me dar e eu faço isso com meus alunos também,
ela disse assim: você é preta! Você é negra! Não entenda filha isso como uma ofensa
porque é o que você é. Ismênia Leão
Aproximando esses depoimentos conseguimos observar que a experiência da menina
negra na escola é muito diferente das experiências de outras crianças. A diferença nesse caso
não se dá apenas por se reconhecer como diferente.
Acho que muita criança negra tem esse mesmo problema e é por isso que não estuda,
muitas vezes não passa de ano, tem dificuldade na escola por causa de um certo tipo
de isolamento que não é facilmente perceptível. É aquela mecânica de educação que
não tem nada a ver com esses grupos de educação familiar, a mecânica da leitura,
onde você não sabe quem é, porque não está nos livros. (Ratts, 2007, p. 49)
A escola nesse sentido apontado por Beatriz Nascimento é um reflexo da sociedade. E
também a sociedade é reflexo dela.
O que ela não passou com isso eu passei muito. Em escola, em tudo. E a gente reagia
das piores maneiras possíveis, saía no tapa. Porque... Sabe? Cabelo de bombril na
escola. Tinha uma... um livro que a professora tinha que tinha uma bonequinha que
chamava Bortolina. Então ela tinha cabelinho todo, todo que nem tonhonhoin, então
os meninos apelidavam a gente assim. E a gente brigava muito, brigava muito, sabe?
(Solange Nunes, 2018)
A questão dos livros didáticos2 apontada no depoimento de Solange vem sendo
repensada na atualidade, muito por conta da lei 10. 639. Lei que ainda encontra entraves seja
pela questão religiosa, pela ingenuidade ou superficialidade que os temas são tratados, pela
forma como o fenótipo negro ou indígena é visto pelos escritores brancos. Ainda hoje nos
deparamos com a imagem da menina negra muito estereotipada, e existem dificuldades ao
explicitar para os autores os motivos das ofensas e injurias. Para citar dois exemplos
discutidos recentemente, podemos falar do livro Peppa distribuído em algumas secretarias de
educação do sudeste e do nordeste, militantes negras denunciaram que a personagem era
negra, com fenótipo negro e era extremamente agredida na história. A autora se ofendeu e
com relutância pediu para a editora retirar o livro de circulação. Também existe o caso livro
Omo-oba – Histórias de Princesas, com princesas inspiradas em divindades africanas e afro-
brasileiras. O livro foi retirado da escola por pressão de pais cristãos que se sentiram
ofendidos com a temática.
Tudo isso reverbera para todos os âmbitos da vida e das relações da menina negra.
Acontece que às vezes antes mesmo de nascer a marca da cor está presente: temor da família
de que nasça com cabelo duro, nariz achatado, lábios grossos, etc. Na infância esses insultos
que os depoimentos trazem são recados diretos são a faca afiada que em dores lancinantes
marcam o corpo e a alma. Só brincam com a menina preta com ela leva brinquedo, ela
sabendo o porquê responde bem: “É porque sou preta. A gente tava brincando de mamãe, a
Catarina branca falou: Eu não vou ser tia dela. A Camila (que também) é branca não tem nojo
de mim, as outras crianças tem” (Carneiro, 2011), esse depoimento vem de uma menina negra
ainda na educação infantil.
2 Os livros didáticos são os maiores exemplos do desprezo e ignorância em relação aos afrodescendentes e das ligações do
Brasil com o continente africano. Em seu trabalho que desmistifica ideias racistas sobre a África e falando sobre sua
produção cartográfica que demarca as reais dimensões do continente africano e dos países do sul, o Professor Doutor Rafael
Sanzio dos Anjos diz que “Primeiro são os livros didáticos, que ignoram a população africana e o brasileiro com ascendência
na África, como agentes ativos na formação territorial e histórica do país. Em seguida, a escola tem funcionado como uma
espécie de segregadora informal. A ideologia subjacente a essa prática de ocultação e distorção das comunidades brasileiras
de referência africana e seus valores tem como objetivo não oferecer modelos relevantes que ajudem a construir uma
autoimagem positiva nem dar verdadeira referência a sua verdadeira territorialidade aqui, e, sobretudo no continente
africano” (ANJOS, p. 18 grifos nossos).
Se essas são experiências de crianças negras, no atual sistema, por força dele
segregadas, diminuídas, reduzidas, tornadas mercadoria, como podemos almejar experiências
diferentes na vida juventude e na vida adulta? Se o sistema é o mesmo, mais tarde explora,
estupra, mata e joga na cova rasa, essa juventude que automaticamente é relacionada com o
termo marginal, e isso independe de classe social. “A questão econômica não é o grande
drama, apesar de ser o grande drama. O grande drama é o reconhecimento de pessoa. O
homem negro nunca foi reconhecido no Brasil” (Gerber e Nascimento, 1989, transcrição
nossa). E se não é reconhecido como ser humano, como pessoa, esse corpo pode se tornar o
objeto que vai suprir desejos e servir para determinados papeis sociais. Nas ocasiões em que
esse corpo se vê encaixado no mundo dos brancos, vemos estereotipias que se repetem:
mulata festiva, globeleza, favelada escandalosa, boba, ingênua, serviçal dócil, essa tantas
vezes repetidas nas novelas, a babá querida que até hoje vive bem próximo da relação de
embalar o sinhozinho e seus filhos, etc.
Quando mulheres negras transgridem esses papeis sociais impostos contrariando os
ideais de sujeição e submissão precisam de um escopo para lidar com as reações contrarias. A
experiência de mãe e filha, sucessivamente professora e atriz, demonstram o quanto essa força
contrária é violenta:
E o mais engraçado ainda é que aqui em Porto Feliz negro serve pra limpar chão. (...)
Ela colocou no facebook dela (que estava estagiando no cartório) e falaram assim: ai
você está limpando o cartório?
Que nem aconteceu outro dia comigo. A menina perguntou: onde você trabalha? Eu
falei: eu trabalho no presídio. Daí ela pegou e falou pra mim: que que você faz? Você
limpa lá? Eu falei: eu ministro aulas. Ela perguntou: o que é que é isso. Falei: Sou
professora! Nossa, não sabia. (Solange Nunes, 2018)
Todas as facetas do racismo brasileiro são perversas. Tudo o que viemos descrevendo
sobre o período escolas, a infância, as delimitações históricas são tão intensas e repetidas
tantas vezes e em tantas ocasiões diferentes que são naturalizadas, normalizadas. Quando o
normal deveria ser o oposto. Lélia Gonzales começou a chamar do “lugar de negro” (Ratts e
Rios, 2010) aos lugares sociais predestinados a população negra e ela própria tem uma
trajetória de fuga dos significados que esse termo possui:
Nesse sentido, vale apontar para um tipo de experiência muito comum. Refiro-me aos
vendedores que batem à porta da minha casa e, quando abro, perguntam gentilmente:
A madame está? Sempre lhes respondo que a madame saiu e, mais uma vez, constato
como somos vistas pelo “cordial” brasileiro. Outro tipo de pergunta que se costuma
fazer, mas aí em lugares públicos: “Você trabalha na televisão?” ou “Você é artista?”
E a gente sabe o que significa esse “trabalho” e essa “arte” (Ratts e Rios, 2010, pg. 63)
Essas perguntas supostamente ingênuas contêm em si um forte laço com o passado
histórico, essas perguntas querem dizer que não parece comum ou normal que esta mulher
negra esteja neste espaço. Perguntas, gestos, olhares, atitudes, carregados do racismo que
durante muito tempo esteve escondido debaixo do manto do mito da democracia racial.
Quando Lélia Gonzales diz que constata a forma como as mulheres negras são vistas pelo
“cordial” brasileiro está se referindo a isso. O homem cordial, o povo cordial, o negro cordial,
durante o período da ditadura militar o auge dessa falsa ideia era reprimir todo e qualquer
movimento coletivo negro, os negros não podiam denunciar o racismo para não perturbarem a
“ordem vigente”.
Em todos os períodos que sucederam a escravidão negra no Brasil, as políticas e os
setores sociais estavam profundamente contaminados por esse discurso.
Nas ruas as pessoas me agridem das mais diversas formas. No meu interior há
recalcamento das aspirações mais simples. Em contato com as outras pessoas tenho
que dar praticamente todo o meu “curriculum vitae” para ser um pouquinho
respeitada. Há oitenta anos atrás minha raça vivia nas condições mais degradantes.
(...) a maioria dos meus iguais permanece social e economicamente rebaixada, sem
acesso às riquezas do país que construiu. Quando de volta ao cotidiano, verifico que as
pessoas vêem minha cor como meu principal dado de identificação, e nesta medida
tratam-me como um ser inferior. Me pergunto que ideologia absurda é essa, dessas
pessoas que querem tirar minha própria identidade? (Ratts, 2007, p. 48, grifo nosso)
Esse desabafo de Beatriz Nascimento (2007) é um retrato de sua época, para ser
respeitada necessitava dizer seu currículo, precisava demarcar que venceu a delimitação da
cor. Sua pergunta é extremamente atual: que ideologia absurda é essa, dessas pessoas que
querem tirar minha própria identidade? Além de todas as agressões as mulheres negras que se
deslocam do “lugar de negro” como dissemos anteriormente, sofrem a pressão do
embranquecimento, como se precisassem despir-se de toda sua história e ancestralidade para
ser aceita, incluída no mundo dos brancos.
O termo moreninha é parte desse cruel panorama: “Da mesma forma que eu trouxe
isso pra minha vida inteira e acho ofensivo quando alguém tenta esconder a minha cor de mim
dizendo que eu sou moreninha: não filho, pára de economizar tinta. Eu sou preta, sou negra!”
(Ismênia Leão, 2017) O racismo deseja apartar o ser de si mesmo. As humilhações visíveis e
invisíveis agem de forma a diminuir a existência do corpo negro. A dita pressão do
embranquecimento conduz ao distanciamento de suas idiossincrasias, ao apagamento de sua
história. Mas em resposta a isso as mulheres negras reivindicam a construção de um novo
mundo, não desejando ser incluídas ou aceitas em espaços onde o racismo, discriminação e
preconceito imperam. Essas vozes estão dizendo que se recusam a participar desse ciclo. Não
aceitam embranquecer querem ser o que são e ter sua diferença contemplada.
Negra e Atriz?
O que acontece com a subjetividade quando essas fronteiras se encontram: mulher,
negra e atriz? Sendo a artista ainda hoje marcada como desviante, insubordinável, subversiva,
boêmia, vagabunda. Retomando à ideia de perguntas supostamente ingênuas “Você é atriz?”
“Qual o seu trabalho de verdade?” “Você é atriz então chora ai!” “Você é atriz, quando vamos
te ver na globo?” São questionamentos que visam deslegitimar a experiência da mulher negra
enquanto artista. Representam a resistência da sociedade ao trânsito, ao deslocamento do
“lugar de negro”.
Beatriz Nascimento diz “é preciso imagem para identidade, é preciso tornar-se visível”
(Gerber e Nascimento, 1989, transcrição nossa). O corpo-documento da mulher negra artista
é o registro de suas marcas, é a matéria que torna visível todas essas problemáticas de raça na
cena teatral. Território de narrativas polifônicas que se contradizem, se chocam o tempo
inteiro, é fronteirizo. Transita entre o visível da exposição cênica e o invisível do processo
histórico cultural.
No início deste trabalho dissemos que artistas são pessoas que dão vida ao inanimado,
dão ao mundo a possibilidade do sonho, do delírio, do futuro. O encontro do corpo-
documento negro com a arte teatral faz “renascer” a possibilidade de sonhar com outros
papeis sociais, outras formas de participação. “Olha sinceramente foi o teatro que me fez
renascer! Foi o teatro, porque quando eu subia no palco pra fazer uma peça, eu logo lembrava
que eu era a negra preta, que eu era não sei o que, achava que a plateia estava reparando em
mim.” (Linda Duraes, 2017)
Obviamente não desejamos romantizar a arte teatral. O teatro sendo parte da sociedade
possui estruturas fundadas em posições hierárquicas e não está isento de posturas machistas e
racistas. Mas estar presente no teatro é uma possibilidade de reação a uma vida inteira de
experiências racializadas. Com dezesseis anos de idade e várias participações em intervenções
e peças teatrais na sua cidade, Maria Eduarda se coloca de forma contundente: “Eu posto a
foto com meu figurino e falo que é a única época do ano que eu posso ser quem eu realmente
sou” (Maria Eduarda Nunes, 2018).
Podemos perceber o quanto a experiência de mulheres negras no teatro parecem ser
potencializadoras: “Agora quanto artista isso que minha amiga falou foi muito forte, d’eu ser
a primeira professora mulher e negra da cidade. Não, não. É. É muito lindo. Isso é muito
lindo. É uma conquista que você tem que... (silêncio)” (Vitoria Cardoso, 2017, grifo nosso).
Considerações Finais
O corpo em cena e o desejo de manter-se nela parecem contar que essas mulheres
encontram-se não apenas com a arte teatral, mas também com elas mesmas. Termos como
renascer, ser quem realmente sou, assumir minhas raízes, sou negra, sou preta, fazem parte
de um vocabulário comum, um vocabulário que não era possível antes da trajetória no teatro.
O corpo negro e o teatro emergem como dois territórios que formam um terceiro, um devir,
uma possibilidade de novos encontros.
Se somos entre negros e negras mais de 54% da população do país, a negritude estaria
em outros lugares sociais se houvessem mais oportunidades de encontros potentes, se
democracia racial e justiça social fossem realidades mais próximas da realidade atual. Se hoje
são as negras que majoritariamente sofrem violência física e as violências invisíveis (verbal,
epistêmica, simbólica e assédios) se fossem as que majoritariamente concluem os estudos,
como seria a face do teatro nacional? Do cinema nacional? Entendemos que os méritos e
vitórias das mulheres negras são geracionais, e mesmo as menores conquistas devem ser
valorizadas principalmente porque não são garantidas eternamente, periodicamente é preciso
renovar lutas e conquistas, o cenário político atual de perda de direitos trabalhistas e
educacionais que atingem diretamente o corpo negro nos prova esse fato. O extermínio tão
violento, tão brutal de Mariele Franco também sinaliza para a barbárie que está em curso. Os
direitos e os corpos, a subjetividade e a voz são territórios em disputa. E hoje mais do que
nunca esses corpos históricos se fortalecem para gritar que o papel que cabe ao corpo negro é
não aceitar qualquer papel que nos seja imposto. O orgulho e honra aos ancestrais, como
podemos sentir na fala de artistas negras é basilar para enfrentar qualquer gesto, discurso,
atitudes de espaços, instituições, grupos, coletivos, companhias que nos insinue a cozinha, a
faxina, os bastidores, a subalternidade e a submissão como sendo seu destino.
Ao resistir com orgulho a mulher negra incomoda, porque onde estiver o seu corpo vai
denunciar o racismo, onde estiver uma ou duas mulheres negras geram o mal estar, o
incômodo da branquitude quando tem que reconhecer as injustiças sociais e as desigualdades
entre classes, onde estiver esse corpo é o documento que registra os olhares e movimentos,
mas é também o anúncio de novas possibilidades de transformação do mundo. A utopia do
novo nos pertence, pois como brilhantemente exemplifica Angela Davis (2016) com sua vida
e sua teoria: nós somos a maior prova de que as opressões são indissociáveis, para combater o
racismo, é preciso combater a pobreza e também o machismo, o sexismo, a homofobia, mudar
os índices de escolaridade, de acesso a empregos, acesso a moradia, combater o genocídio, o
feminicídio.
Não existe uma fórmula mágica para a sociedade se tornar menos racista, sabendo
disso, sem perder e sem temer, mulheres negras estão agarradas às unhas com essa construção
de uma nova utopia, o que existe é a luta. Também é de Angela Davis (2016) a máxima que
diz que Quando as mulheres negras se movimentam toda a estrutura se move com elas! Então
rachando as estruturas expusemos essa pesquisa com o desejo de que muitos encontros e
projetos transformadores floresçam no sentido de fortalecer e multiplicar as experiências
produtivas e alegres de mulheres negras artistas, militantes, acadêmicas, em rede, em
coletividade. Essas mulheres que contrariando as estatísticas saem dos escombros dessa
sociedade bárbara, saem do lado invisível da fronteira pra dizer: Nós existimos! Não somos
mudas. Nossas línguas selvagens nunca mais se permitirão ser decepadas.
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RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo:
Imprensa Oficial/Instituto Kuanza, 2007.
RATTS, Alex; RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010.
ORI. Documentário. Direção e Produção de Raquel Gerber. Roteiro Beatriz Nascimento. São Paulo:
Raquel Gerber, 1989. Disponível em: <https://negrasoulblog.wordpress.com/2016/08/25/309/>.
Acesso em 10 de março de 2018.
Entrevistas:
CARDOSO, Vitória. Entrevista I. [Novembro, 2017]. Entrevistadora: Daiana de Moura. Sorocaba, São
Paulo, 2017. Arquivo.mp3 (73 min.). A entrevista na íntegra se encontrará transcrita nos apêndices da
pesquisa de mestrado Mulher Negra EnCena: Performances de Encontros e Devir pelo PPGED –
Ufscar-Sorocaba.
DURAES, Linda. Entrevista I. [Novembro, 2017]. Entrevistadora: Daiana de Moura. Sorocaba, São
Paulo, 2017. Arquivo.mp3 (73 min.). A entrevista na íntegra se encontrará transcrita nos apêndices da
pesquisa de mestrado Mulher Negra EnCena: Performances de Encontros e Devir pelo PPGED –
Ufscar-Sorocaba.
LEÃO, Ismênia. Entrevista I. [Fevereiro, 2018]. Entrevistadora: Daiana de Moura. Sorocaba, São
Paulo, 2017. Arquivo.mp3 (76 min.). A entrevista na íntegra se encontrará transcrita nos apêndices da
pesquisa de mestrado Mulher Negra EnCena: Performances de Encontros e Devir pelo PPGED –
Ufscar-Sorocaba.
NUNES, Maria Eduarda. Entrevista I. [Fevereiro, 2018]. Entrevistadora: Daiana de Moura. Sorocaba,
São Paulo, 2017. Arquivo.mp3 (55 min.). A entrevista na íntegra se encontrará transcrita nos
apêndices da pesquisa de mestrado Mulher Negra EnCena: Performances de Encontros e Devir pelo
PPGED – Ufscar-Sorocaba.
NUNES, Solange. Entrevista I. [Fevereiro, 2018]. Entrevistadora: Daiana de Moura. Sorocaba, São
Paulo, 2017. Arquivo.mp3 (55min.). A entrevista na íntegra se encontrará transcrita nos apêndices da
pesquisa de mestrado Mulher Negra EnCena: Performances de Encontros e Devir pelo PPGED –
Ufscar-Sorocaba.