atas das 3ªs conferências do museu de lamego/citcem

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CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM 2015 as MOVIMENTOS POLÍTICOS E SOCIAIS NO DOURO FOTO: Arquivo da Imagem/Lamego Atas das 3 ENTRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA 20 de julho (nos 100 anos do Motim de Lamego)

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Entre movimentos políticos, sociais e revoluções, as 3ªs Conferências do Museu de Lamego/CITCEM evocaram em 2015 o Motim de Lamego, nos 100 anos da revolta que levou à morte de doze pessoas. As Atas refletem a reflexão em torno do Motim de Lamego, recuando ao dia em que mais de 5 mil pessoas se uniram junto da Câmara Municipal de Lamego em sinal de revolta e de defesa da denominação de origem do vinho do Porto, contra as imitações que o Tratado luso-britânico de 1914 facilitava, ao considerar como vinho do Porto qualquer vinho oriundo de Portugal e não apenas do Douro.

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Page 1: Atas das 3ªs Conferências do Museu de Lamego/CITCEM

CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM2015

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MOVIMENTOS POLÍTICOS E SOCIAIS NO DOURO

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Atas das 3

ENTRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA

20 de julho

(nos 100 anos do Motim de Lamego)

Page 2: Atas das 3ªs Conferências do Museu de Lamego/CITCEM

Geraldo Coelho Dias

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ATAS das 3as

Disponível online em www.museudelamego.pt

CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM - 2015

ABREVIATURAS

CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e MemóriaDL – Diocese de LamegoDRCN – Direção Regional de Cultura do NorteEMT – Espaço Miguel Torga FLUP – Faculdade de Letras da Universidade do PortoFLUP/GI – Grupo de Investigação: Memória, Patrimó-nio e Construção de Identidades da Faculdade de Le-tras da Universidade do Porto

IHC/FCSH/UNL – Instituto História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Univer-sidade Nova de LisboaML – Museu de Lamego RAD – Rádio Alto Douro RDP – Rádio Difusão Portuguesa UM – Universidade do Minho ULP/CEAUP – Universidade Lusófona do Porto/Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto

MOVIMENTOS POLÍTICOS E SOCIAIS NO DOURO, ENTRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA

(NOS 100 ANOS DO MOTIM DE LAMEGO)

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ORGANIZAÇÃOML-DRCN / CITCEM-FLUP

COMISSÃO ORGANIZADORAAlexandra Isabel Falcão (ML-DRCN)Gaspar Martins Pereira (FLUP-CITCEM)Luís Sebastian (ML-DRCN)Paula Montes Leal (FLUP-CITCEM)

COORDENAÇÃO EDITORIALAlexandra Isabel Falcão (ML-DRCN)Luís Sebastian (ML-DRCN)

CONFERENCISTAS António Monteiro Cardoso (IHC/FCSH/UNL)Augusto Macedo (RDP e RAD)Carla Sequeira (CITCEM-FLUP)Célia Taborda da Silva (ULP/CEAUP)Gaspar Martins Pereira (CITCEM)João Luís Sequeira (EMT)José Viriato Capela (UM)Otília Lage (CITCEM-FLUP/GI)

REVISÃOAlexandra Isabel Falcão (ML-DRCN)

DESIGN E COMUNICAÇÃOLuís Sebastian (ML-DRCN)Patrícia Brás (ML-DRCN)

COMUNICAÇÃOPatrícia Brás (ML-DRCN)

GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS E FINANCEIROS Paula Duarte (ML-DRCN)

SECRETARIADO Patrícia Brás (ML-DRCN)Teresa Sequeira (ML-DRCN)

LOGÍSTICA Paula Pinto (ML-DRCN)

CONCEÇÃO E COMPOSIÇÃO GRÁFICA Pe. Hermínio Lopes (DL)

IMAGEM DE CAPA © Arquivo de Imagem/Lamego

EDIÇÃO © Museu de Lamego – Direção Regional de Cultura do Norte

DATA DE EDIÇÃO Dezembro 2015

e-ISBN978-989-99516-0-0

O conteúdo dos textos, direitos de imagem e opção ortográfica

são da responsabilidade dos autores.

APOIOS: Casa de Santo António de Britiande Diocese de Lamego Escola de Hotelaria e Turismo do Douro – Lamego ESTGL - Escola Superior de Tecnologia e Gestão, Lamego Hotel LamegoLiga dos Amigos do Museu de Lamego Município de Lamego Quinta de MosteirôSoltaGiga

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Mesa-redondaMOVIMENTOS POLÍTICOS E SOCIAIS NO DOURO, ENTRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA

Otília Lage (CITCEM - FLUP/GI: Memória, Património e Construção de identidades) Gigantes do Douro, memória e património histórico: lutas em defesa da Região Vinhateira (séculos XIX-XX).. ............................................................ 09

Augusto Macedo (jornalista aposentado; ex-Director da Rádio Alto Douro e da RDP-Norte) Douro Vinhateiro - Fragmentos de Abril ............................................................................... 21

Painel 1 REVOLTAS E REVOLUÇÕES NO DOURO OITOCENTISTA

José Viriato Capela (Univ. Minho) As Invasões Francesas e a Restauração Nacional de 1808 - o Juiz do Povo e Junta dos Prudentes de Viseu ....31

António Monteiro Cardoso (IHC/FCSH/UNL)A Revolução Liberal no Douro ............................................................................................ 39

Célia Taborda da Silva (Universidade Lusófona do Porto/CEAUP) Ação coletiva no Douro: a propósito das movimentações da “Maria da Fonte” .................................... 47

Painel 2 O MOTIM DE LAMEGO DE 1915

Carla Sequeira (CITCEM/FLUP; Bolseira Pós-Doc. da FCT) Antão de Carvalho e os motins do Douro de 1914-1915 .............................................................. 59

João Luís Sequeira (DRCN; Espaço Miguel Torga) O motim de Lamego e a causa do Douro na vida e obra de Pina de Morais .......................................... 67

Gaspar Martins Pereira (CITCEM/FLUP) O motim de Lamego, um momento histórico de consagração da denominação de origem «Porto» para os vinhos generosos da Região Demarcada do Douro ............................................................................. 75

Índice

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Mesa redondaMOVIMENTOS POLÍTICOS E SOCIAIS NO DOURO, ENTRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA

Otília Lage Augusto Macedo

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Gigantes do Douro, memória e património histórico:

lutas em defesa da Região Vinhateira (séculos XIX- XX)

texto: Otília Lage

[email protected]

Fig.1 - Trabalhadores do Douro. Fotografia do fotojornalista Leonel de Castro1

1 Créditos desta e restantes fotos incluídas nesta comunicação cedidos pelo autor, a quem se agradece. Redução do formato original, à escala, da nossa responsabilidade, procedimento seguido em todas as fotografias.

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Nota biográfica:

Maria Otília Pereira Lage é pós-doutorada em Estudos Sociais e Históricos (2010, UC), Doutorada em Historia Moderna e Contemporânea (2001) e Mestre em História das Populações (1995, UM), Licenciada em História (1976, UP), Pós-Graduada em Biblioteconomia, Arquivística e Documentação (1979, UC) e especializada em Administração Escolar (1992, IPP). Foi Professora Associada da Universidade Lusófona do Porto, encontrando-se aposentada. Actualmente é investigadora do CITCEM - FLUP/GI: Memória, Património e Construção de identidades.

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INTRODUÇÃO

Quer se que queira, quer não, o trabalho histórico ins-creve-se no interior (e não fora) das lutas socioeconômicas

e ideológicas (Michel du Certeau)2

No título “Gigantes do Douro” evoca-mos simbolicamente, o homónimo filme por realizar, do cineasta Manuel de Oliveira, notável defensor cultural

do Douro, assinalando o centenário do Motim de La-mego de 20 de Julho de 1915, apogeu sangrento das “marchas da fome” geradas na miséria extrema de uma multidão de trabalhadores, é marco histórico dos movimentos de afirmação da denominação de origem

2 CERTEAU, 1978:34.

“Douro” e impulsionador do “Movimento de Paladi-nos do Douro”.

Para se conhecer esse passado subterrâneo de su-blevações e lutas das populações anónimas e sofridas que em revolta contra a desigualdade abissal e injusti-ça social, construíram a história moderna e contem-porânea da Região Vinhateira do Douro, não se pode esquecer o que ficou esquecido (Marc Augé, 1988).

Fig. 2 - Vindimador em paisagem duriense pelo olhar de fotojornalista

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1. Aproximação socio-histórica à Região Demarcada Duriense, arena de movimentos sociais e políticos desde o liberalismo à De-mocracia

O Douro, uma das primeiras regiões vitivi-nícolas demarcadas do mundo é um espa-ço de regulação sócio-institucional estatal

alvo de medidas protecionistas ditadas pelas filosofias políticas do despotismo iluminado (meados do séc. XVIII), regime que se iria alterar no liberalismo (séc. XIX), sendo depois retomado (séc. XX) com a dita-dura franquista e, de forma restritiva, corporativista e duradoura, com o Estado Novo e sua política de re-gulamentação e controlo dos sectores da produção e comercialização dos vinhos do Douro. “Caso único na organização pré-corporativa do Estado Novo, a Casa do Douro nascia com a reivindicação social e regional e não por imposição estatal. Talvez por isso mais de 40 anos depois, após a revolução democrática do 25 de Abril de 1974, será a única organização a sobreviver à queda do Estado Novo e da organização corporati-va”3, alterando-se progressivamente em sua orgânica e funções com as políticas de integração de Portugal na CEE e a globalização dos mercados.

1.1.Condições determinantes e dominantes dos movimentos sociais e políticos durienses

O Alto Douro, a primeira zona do capitalismo agrário-comercial em Portugal apresenta uma posição e identidade social “intermédia”4 ou “conjuntural”5 originada numa agricultura de viticultura intensiva as-sente no trabalho de jornaleiros pobres, trabalhadores sazonais, camponeses sem terra e pequenos proprie-tários dominados por grandes proprietários e lavra-dores, ricos e influentes donos de quintas e explora-ções agrárias onde tem sido determinante a posição e acção de poderosas elites nacionais e estrangeiras que controlam a produção e o negócio dos vinhos, e em especial do Vinho do Porto, principal produto da Re-gião com lugar proeminente mantido na exportação nacional.

“A desregulação desenfreada, o intervencionismo excessivo, as crises de superprodução e demagogia,

3 MOREIRA, 1996: 77-94.

4 PARKHURST, 1977:183-191.

5 LAGE, 2009.

tudo isso se conheceu nos séculos XIX e XX”6, em di-ferentes conjunturas definindo processos diferencia-dos que se ilustram nos seguintes gráficos elaborados com base em quadros numéricos construídos a partir de uma cronologia das crises, agitação político-social e organizações autónomas regionais7.

6 BARRETO, 2014: 274.

7 Dadas as limitações de espaço não se inclui a cronologia demasiado extensa e os quadros numéricos.

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A análise dos gráficos permite configurar um qua-dro social de contradições dominantes, principais e se-cundárias, que decorrem de características da história da Região Duriense:

- Sucessão de crises seguida de intensa conflitua-lidade social recorrente face às difíceis condições de vida, marcada por protestos sociais e políticos, vio-lentos ou pacíficos, progressivamente organizados e ideologicamente politizados, com aliados nas elites regionais;

- Claro posicionamento geopolítico derivado de o Vinho do Porto ser um produto de antiga e vasta ex-portação para mercados de países do centro da econo-mia e sistema mundo capitalista;

- Situação de intensa exploração do trabalho con-testada e publicamente denunciada, inclusive por es-critores, muitos deles durienses, como Miguel Torga, João de Araújo Correia, Domingos Monteiro, Pina de Morais, António Cabral, Manuel Mendes, Alves Redol e outros.

1.2. Estado actual da Região do Douro VinhateiroPersistem na Região Duriense, enormes diferen-

ças sociais e desigualdades, não só fundiárias e em vi-nha, mas também de produção, e grande polarização: os maiores 600 agricultores/empresas detém quase 1/3 da área total da região, onde 3/4 das explorações têm menos de 1ha e só uma percentagem de 1% dos 25.000 viticultores produzem mais de 150 pipas cada um, quando no extremo oposto mais de 2/3 produ-zem menos de 5 pipas8. Mantém-se o obsoleto sistema monopolista de formação dos preços do vinho assente num contrato entre vendedor e comprador (em que o preço só se conhece depois da vindima e da entrega do vinho), contribuindo a desorganização da lavoura

8 BARRETO, 2014:261.

para a perpetuação do sistema em que só o comércio está organizado9

Porque no Douro há muito poucos lavradores que vivam da agricultura, do vinho e da vinha. (…) Os verdadeiros agri-cultores emigraram ou sobreviveram com dificuldades que encobriram e encobrem por vergonha. (…) 92% dos lavrado-res são inviáveis (…) e hoje 80% das boas terras durienses estão nas mãos de grandes empresas.

Esta a voz crítica aspirando tornar-se causa pú-blica, representativa da situação actual da Lavoura Duriense. 10

9 BARRETO, 2014:261.

10 Entrevista a J.M.L., em Santa Marta de Penaguião, Maio de 2015. O entrevistado, neto de comerciante e filho de funcionário público, é pro-dutor do Douro, dono de uma pequena quinta próxima da Régua, com turismo rural de habitação.

Fig.3 - Tradicional pisa das uvas no Douro Vinhateiro

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2. Para a história social dos protestos no Douro oitocentista e contemporâneo

No espaço regional duriense definiu-se um sistema tradicional de relações económi-cas e sociais marcado pela oposição de

interesses entre viticultores, comerciantes e exporta-dores e pela posição intermédia entre assalariados e pequenos lavradores. Região de monocultura agrária e produção voltada para o comércio internacional, o Douro sempre registou protestos populares e movi-mentos interclassistas, “primitivos” ou “modernos”, violentos ou pacíficos, com características diferentes nos diversos processos e conjunturas económico-so-ciais dos dois últimos séculos. Nas dinâmicas de pro-testo reflectiram-se as políticas dos sucessivos regimes, principais mudanças políticas e sócio-institucionais, acordos comerciais com o estrangeiro e flutuações dos mercados. Essas dinâmicas interferiram na alteração de leis polémicas e lesivas dos interesses regionais e na oscilação das políticas nacionais: livre cambismo e proteccionismo estatal, respectivamente contestado ou reclamado pela Região.

2.1.Sublevações “pré-modernas” oitocentistasA acção política no Douro foi sobretudo conduzi-

da por problemas e interesses económicos. As elites de notáveis da sociedade duriense, então acentuada-mente endogâmicas e muito ligadas ao Porto e Gaia, desenvolviam os seus negócios na base das relações familiares mais importantes, o que favoreceu a gran-de concentração de riqueza e negócios na elite agrária duriense com fortes ligações ao poder político e claro apoio às correntes mais conservadoras, em oposição à grande fragilidade financeira de pequenos e médios produtores.

a) Na primeira metade do séc. XIX o Douro vive uma forte conflitualidade social e politica: acções re-voltosas e protestos violentos de milícias de paisanos, guerrilhas rurais com apoio de membros do clero, re-voltas de massas populares (camponeses, assalariados rurais, artesãos, trabalhadores dos serviços, pequenos proprietários e comerciantes) e levantamentos arma-dos contra os invasores franceses e os poderosos locais colaboracionistas: “afrancesados”, “jacobinos” e “ju-deus. Com os motins gerou-se o banditismo e a cri-minalidade contra militares de alta patente, morgados ricos, juízes e elementos do clero, evoluindo a revolta

de cariz político para contestação à ordem social do antigo regime” e a subversão das hierarquias tradicio-nais.

b) A Revolução Liberal (1820-34) faz-se sentir também na região duriense, verificando- se resistên-cias da sociedade camponesa, manifestações popu-lares pró e contra o regime nascente, hostilidade às novas instituições, insurreições absolutistas no Baixo Corgo e guerrilhas liberais no Cima Corgo. Problemas com o comércio dos vinhos e a crise vinícola originam movimentos peticionários às Cortes, e sucedem-se os protestos contra a cobrança de impostos, direitos se-nhoriais e encargos excessivos, administração, recru-tamento e expedições para o Brasil. Novos e grandes investimentos no Douro como os de António Ber-nardo Ferreira e suas inovações técnicas (moinhos hidráulicos, tulhas gigantes…) suscitam acções de sa-botagem dos moleiros, semelhantes ao ludismo. Gru-pos rurais mais favorecidos da sociedade rural ousam também reivindicar, acabando por condicionar a legis-lação vintista. Questões político-religiosas, não alheias ao processo de desamortização dos bens da igreja, ori-ginam manifestações que culminam no “cisma” entre a cúria romana e o estado português acompanhado de fenómenos marginais: incêndio dos mosteiros de Sal-zedas e S. Pedro das Águias e queima de registos de aforamento e contratos enfitêuticos.

c) Com a vitória dos Cartistas (1836), abre-se novo período intervencionista no comércio do vinho do Porto, fase difícil da vida duriense marcada por mo-vimentações cartistas e setembristas, oposição entre proteccionismo e livre-cambismo, guerrilhas políti-cas, tumultos anti-fiscais e levantamentos violentos. A Revolta da Maria da Fonte alastra a Trás-os-Montes e Douro liderada pela nobreza e alta burguesia, em con-frontos com o exército, constituição de Juntas Gover-namentais e erupções miguelistas. A Junta do Porto domina a margem direita do Douro, palco de lutas da Patuleia e instabilidade gerada pela miséria, banditis-mo e agressividade contra a sobrecarga fiscal. As ma-nifestações militares Cabralistas (1842) para restaurar a Carta Constitucional fazem-se sentir intensamente no Douro, com adesão popular e a organização de ho-mens armados, a favor da rainha (Lamego, Vila Real, Tabuaço) ou dos Revoltosos (Sanfins, Foz-Côa). Ter-minada a guerra civil (Convenção de Gramido) con-tinuam os distúrbios políticos e sociais e as guerrilhas que se agravam com a crise comercial de 1848-49, nova conjuntura duriense difícil dada a estagnação do

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negócio dos vinhos.d) A acção pragmática e utilitarista da Regeneração

abre uma fase de estabilidade política mais liberal no comércio e assiste-se no Douro ao enriquecimento de grandes proprietários como D. Antónia Ferreira en-quanto que o oídio e a cólera atingem vinhas e homens (1852) mantendo-se a situação de miséria, falta de tra-balho e exíguos salários. Em 1866, lavradores e comer-ciantes associam-se na Companhia Comercial dos La-vradores do Douro que é aplaudida em toda a Região. Verifica-se uma das “mais profundas alterações sociais e transferência de propriedade de toda a história do Douro”. As doenças da vinha (filoxera e míldio) e a crise provocada pela filoxera (1872) contribuem para intensificar a miséria e a desgraça dos mais débeis, favorecendo vultuosos investimentos capitalistas no Douro Superior e a penetração inglesa na Região onde convivem, em situações sociais chocantes, jornaleiros, assalariados e pequenos proprietários, em condições penosas de vida e trabalho, com grandes patrões e in-fluentes famílias de produtores e negociantes, o que se reflecte em agitação social11.

Com a construção do caminho-de-ferro (1873) dá--se uma grande afluência ao Douro de trabalhadores nacionais e galegos entre os quais surgem frequentes lutas e distúrbios.

e) De 1865 a 1908, a complexa situação comercial vitivinícola, a liberalização e a concorrência acentuam a conflitualidade entre lavradores e negociantes do Douro e de outras regiões do país. A elevação do cus-to de vida e o desemprego no sector vinícola causado pelo grande declínio das exportações tornava a vida cada vez mais difícil para as classes trabalhadoras. Os tanoeiros (cerca de 8.000), grupo vital no sistema do vinho do Porto12, uniram-se numa associação de classe (1889) que depressa ascendeu a cerca de 1000 membros13. Com a substituição dos “salários fixos” por “pagamentos à tarefa” sucederam-se as greves de tanoeiros (1890-95) que mobilizaram mais de 800 tra-balhadores, o que significou um avanço na força asso-ciativa sócio-profissional.

11 CRUZ, 2010: 52-87.

12 Ver CARDOSO, 1994: 27.

13 BENNET, 2010: 323-324.

2.2. “Novos” movimentos sociais, políticos e ins-titucionais no Douro contemporâneo

Se na segunda metade de oitocentos a instabilidade social no Douro não resultou em grandes manifesta-ções de violência, o mesmo não vai acontecer nos iní-cios do séc. XX, marcados por intensa e violenta tur-bulência social e política14.

a) Nos inícios do séc. XX, com o agravamento da crise de exportações, fraudes e falsificações dos vinhos da região, vão proliferar no Douro os movimentos de defesa regional, reclamação da marca Porto15 para os vinhos do Douro, regresso ao proteccionismo, exclu-sivo da barra do Douro e porto de Leixões e assiste-se ao ressurgimento da Comissão da Defesa do Douro e comissões concelhias de defesa da “genuinidade do vinho do Porto”, à fundação de vários sindicatos agrí-colas e comissões16, realização de comícios e reuniões. Sucedem-se as representações de notáveis e câmaras durienses às cortes, as denúncias nos jornais e, em vários locais, motins e revoltas populares contra im-postos e concorrência dos vinhos e aguardentes do sul, com invasão de armazéns de vinho, repartições de fi-nanças e queima de matrizes e papéis. Assinalando de forma sangrenta o cume da crise e dos agudos confli-tos sociais, o Motim de Lamego contra o artigo 6.º do Tratado de Comércio Luso-Britânico, que prejudicava o escoamento dos vinhos durienses mobiliza popula-ções de várias freguesias, elementos do clero e forças partidárias, sendo violentamente reprimido (12 mor-tos e feridos). Pouco antes, dera-se na região vitiviní-cola do Languedoc (Montpellier, 10 de Junho 1907), violenta revolta de mais de 600.000 viticultores, com réplicas (Champagne, Abril 1911) e consequências po-líticas nacionais.

Devido à crise vitícola nacional a cultura da vinha é condicionada no Douro. E a miséria, fome, desem-prego e emigração que despovoava as aldeias do Cima Corgo, a diminuição considerável da produção de vinho generoso no Baixo Corgo e Douro Superior, a generalizada crise social, de produção e comércio le-varam os produtores a reclamar leis de protecção aos

14 Ver desenvolvimentos em SILVA, 2010: p.88-139 e BENNETT, 2010: 280-334.

15 Em 1911 é aprovada a Convenção de Washington para a defesa das marcas de origem.

16 Após uma forte pressão das várias “comissões de defesa”, registada em 1906, constitui-se na Régua, em 1907, a Comissão de Viticultura do Douro formada por Júlio Vasques, António Montes Champalimaud e outros no-táveis da região.

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vinhos durienses, reivindicações de que mais tarde se fará eco João Franco17 com medidas proteccionistas semelhantes às de Pombal.

A grande instabilidade política nacional e inter-nacional da I Guerra Mundial, em que Portugal par-ticipa, reflecte-se no Douro que vive uma conjuntura económica e comercial muito difícil, de crise viníco-la, estagnação do comércio dos vinhos com o encer-ramento de mercados internacionais e a concorrên-cia desleal de outras regiões vinhateiras do país, que agrava a conflitualidade social e política e intensifica o espírito regionalista duriense de personalidades locais que vão liderar o Movimento dos Paladinos do Douro.

Nas décadas de 1920-1930, ressurge a questão da marca Porto e sucedem-se os protestos (numerosas reuniões, grande Comício na Régua, a 14 de Junho 1923 e encerramento simbólico de instituições) sob liderança de autarcas, viticultores, comerciantes e in-dustriais locais que contestam a falta de fiscalização das fraudes e a entrada de vinhos do Sul na região de-marcada, em Gaia e na barra do Douro. Verifica-se a adesão duriense à Revolta do Reviralho no Porto con-tra a ditadura militar, e ocorrem acções conspiratórias em que se destaca o militar e escritor duriense Pina de Morais que consegue a adesão de unidades militares de Vila Real, confrontos na Régua e intentonas em Ali-jó e Valpaços com o apoio dos Partidos Radical, De-mocrático, Esquerda Democrática, Acção Republicana e Seara Nova.

b) De 1926 a 1949, sucedem-se ciclos de resistência ao Estado Novo, e continuam no Douro os protestos populares, a manifestação de pretensões regionais e a agitação. O Movimento dos Paladinos do Douro, lide-rado por notáveis republicanos regionalistas, em que se destaca Antão de Carvalho, afirma-se na defesa da legislação vinícola duriense, considerada avançada a nível mundial, reivindica a reforma institucional, em comícios, reuniões e comissões de estudo e defende o regresso ao regime constitucional por «via pacífica». As elites durienses dividem-se entre Situacionistas e Opositores, ao regime do Estado Novo sobrelevando a

17 Golpe de estado em 1907 e início da ditadura de João Franco que impõe novo regime geral para a produção, venda, exportação e fiscalização dos vinhos, reserva a barra do Douro para os vinhos do Porto, alarga a RDD e cria a CVRD para controlo da lavoura e comércio dos vinhos do Douro. A 1 de Fevereiro de 1908, dá-se o Regicídio, segue-se a demissão de João Franco a que sucede Ferreira do Amaral que diminui a área da RDD (as freguesias substituem os concelhos), e cria o Grémio dos Exportadores do Vinho do Porto e a Comissão agrícola comercial dos vinhos do Douro.

defesa dos interesses vitícolas regionais.As miseráveis condições de vida e de trabalho das

gentes do Alto Douro, proletários assalariados com uma alimentação tão deficiente “que não existe em mais nenhuma região vinícola do globo”18 e as gritan-tes diferenças sociais geram uma consciência de mi-séria inconformada e revolta latente manifestada em “protesto social” sob diversas formas de relaxe religio-so, descristianização e “abandono das práticas religio-sas”.

c) Com a II Guerra Mundial agrava-se a situação política em Portugal e desencadeia-se um clima de agi-tação social que o Governo reprime ferozmente. No pós-guerra inicia-se um segundo ciclo de resistência à ditadura do Estado Novo que dissolve a Assembleia Nacional e anuncia eleições legislativas e presiden-ciais, o que é visto pela oposição, como oportunidade de mudança de regime. A ARS (Aliança Republicana Socialista)19 e o MUD (Movimento de Unidade De-mocrática), ilegalizado em 1948, encontram grande adesão no Douro onde se criam delegações concelhias de diversos quadrantes políticos e eminentes vultos locais, como Antão de Carvalho, João de Araújo Cor-reia ou Carlos Richter. Porém, os descontentamentos regionais durienses são mantidos a níveis suportáveis pela Casa do Douro e Junta Nacional do Vinho, or-ganismos do Estado cujos mecanismos medeiam os impactos negativos da produção vinícola e funciona-mento dos mercados. Elites políticas e económicas e agentes vinculados às instituições zelam pelo sistema e interesses hegemónicos na região.

Nos anos 1950 e 1960, torna-se problemática a falta de mão-de-obra assalariada devido à forte emi-gração local reflectida na diminuição da população activa agrícola e consequente crise de trabalho. Os fluxos migratórios inter-concelhios durienses perdem intensidade, diminuem as idas para o Douro onde o trabalho era de sol a sol com meia hora ou menos de pausa para almoço e as actividades agrícolas nas quin-tas deixam de ser asseguradas por assalariados recru-tados nas proximidades. Intensifica-se o êxodo rural, o raio de acção de procura de trabalhadores alargou-se e passaram a existir cardanheiros não só nas vindimas

18 PEREIRA, 1954: suplemento.

19 A ARS, dirigida por Norton de Matos, candidato às eleições presidên-cias de 1949, Tito de Morais e outros elementos de diferentes quadrantes políticos formam a Frente Única nacional de oposição ao regime defenden-do uma via pacifica de mudança, através de eleições.

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mas noutras tarefas ao longo do ano. As populações de várias localidades lutam contra a florestação dos bal-dios e ocorre viva oposição de uma aldeia de Sabrosa à GNR e à Pide, contra a prisão política de proprietário duriense.

Desenvolve-se a Rede de Adegas Cooperativas Durienses com 24 adegas e 15.000 associados, que irão mais tarde, reunir-se na UNIDOURO, protagonista social de peso.

No início da década de 1970, as crises endémicas de falta de trabalho continuam a sentir-se no Douro, e os trabalhadores manifestam resistência a patrões e poderes públicos, em atitudes subtis de oposição, dis-simulação nas actividades quotidianas, num registo escondido” diferente de formas explícitas de agitação e afrontamento violento de grupos subordinados contra os poderes dominantes (J. Scott, 1985, 1990).

d) No período pós 25 de Abril de 1974, a democra-tização do país reflecte-se também no Douro que en-tra num “processo de fermentação” mantendo-se, com mudanças sócio-institucionais, os dois pilares organi-zativos fundamentais: o Instituto do Vinho do Porto e a Casa do Douro. São tempos conturbados política e socialmente: saneamento dos dirigentes da Casa do Douro, extinção dos grémios da lavoura e Grémio dos Exportadores do Vinho do Porto e intervenção dos partidos políticos na vida da Região.

Na Régua, uma multidão de viticultores ameaça atirar da varanda da Casa do Douro o elemento do MFA (capitão Pardal) indigitado para a comissão li-quidatária deste organismo, e elegem, em plenário, uma comissão de gestão a que sucede uma comissão instaladora para a eleição dos corpos sociais, reclama-ção dos viticultores.

e) Em 1975, é restabelecido o direito de liberda-de sindical e o ordenamento jurídico das associações sindicais, o que favorece o desenvolvimento dos mo-vimentos associativo, cooperativista e sindical. É fun-dada a Associação dos Agricultores da Régua e criado o Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas do Distrito de Vila Real. As empresas de vinho do Porto de Gaia e os exportadores, produtores e engarrafadores de vinhos, constituem, respectivamente: a AEVP (Associação de Empresas de Vinho do Porto), instituição privada com 16 associados que representa cerca de 90% da comer-cialização de Vinho do Porto; e a ANCEVE (Associa-ção Nacional de Exportadores de Vinhos e Bebidas Espirituosas).

A par da dinâmica associativa de agentes regionais

prosseguem no Douro as mudanças político-adminis-trativas e sócio-institucionais e surge no sector vitivi-nícola da RDD um novo modelo de autorregulação, esboço de interprofissionalismo, idêntico ao de regiões vitivinícolas europeias, com representação de todas entidades intervenientes na fileira.

De 1970 para 1980, há uma subida elevada dos sa-lários que se reflecte nos custos de produção da viticul-tura duriense, o que aliado ao êxodo rural, influencia-rá a mecanização da produção. Inicia-se a revolução contemporânea do Douro com a alteração das condi-ções técnicas e tecnológicas da produção e comerciali-zação, em estreita cooperação do tecido empresarial e Universidade (IPVR e UTAD) e o aumento de produ-tores reconhecidos movimento que prossegue até fim dos anos 1990. A revolução social tinha-se já vindo a operar com as revoltas populares, as diversas formas de protesto e o êxodo rural, modalidade de oposição popular in–extremis e decisiva.

Na década de 1980 é criada na Régua a ADVID (Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense), impulsionadora de uma acção de experi-mentação, estudo e divulgação de novas técnicas de vitivinicultura, é fundada, com vocação diferente, a Confraria do Vinho do Porto, congregando comer-ciantes, exportadores e quadros no activo e é consti-tuída (1986) a AVEPOD (Associação de Viticultores e Engarrafadores dos Vinhos do Porto e Douro), para defesa dos viticultores/engarrafadores que passam a exportar directamente do Douro e a criar um canal de diálogo in loco com a lavoura.

No início dos anos 1990, são constituídas a União de Viticultores do Douro, a Confraria dos Enófilos, com 36 confrades, para valorização e promoção dos produtos vínicos da RDD e a Vitidouro (Associação dos viticultores aderentes do PDRITM). Surge nova onda de protestos contra a proposta do governo de alteração dos Estatutos da Casa do Douro tida como “concentracionista”, “estatizante” e “afrontamento a re-gião”.

Já nos anos 2000, é fundada a Lavradores de Fei-toria, uma associação de 20 lavradores que tratam e comercializam em conjunto os seus vinhos.

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3. Pensar os movimentos sociais e políti-cos na dimensão geopolítica do Douro

A ambiguidade, fragmentação, amplitude e múltiplas variações e critérios de análise dos movimentos sociais - formas autóno-

mas de expressão violenta ou pacifica de diferentes grupos, comunidades e colectividades, não redutíveis a uma forma superior/ sintetizadora e germes das mu-danças, revitalizações e (re)configurações que mol-dam as sociedades -, especificamente no mundo rural agrícola, fazem do seu estudo um tema historiográfico controverso em que se não dispõe de modelos analíti-cos únicos.

A partir da definição das “vantagens comparativas ou relativas” proposta pela economia clássica de David Ricardo20 com o advento do liberalismo económico21 se poderá explicar a monocultura do vinho na Região Duriense, elemento determinante da mesma. A sua es-trutura político-económico-social e a diversidade de conjunturas e quadros sócio-institucionais e culturais determinam uma complexidade e heterogeneidade dos movimentos sociais e políticos, de natureza nada convencional.

20 RICARDO, 1817.

21 Este axioma da economia clássica objecto de numerosos estudos es-pecializados exigiria todo um desenvolvimento que não cabe neste artigo.

Se os movimentos sociais e políticos do Douro, no período do liberalismo em que coexistem diferentes ti-pos de protesto, podem interpretar-se na linha do pen-samento de Thompson da “economia moral”, isto e, em situações de emergência que levavam à obrigação “mo-ral” de protestar”22 devendo ser vistos na apreensão de pontos de convergência específicos e redes em que se constituíram, melhor será analisar na concepção da “rebeldia primitiva”23 de Hobsbawm a coexistência das acções de agitação social arcaicas, como as guerrilhas, com reivindicações modernas como as dos tanoeiros de Gaia, no fim do séc.XIX. Os movimentos de contes-tação que se sucedem no centro e periferias da Região Demarcada Duriense ganham outra inteligibilidade, se interpretados no campo da sociologia histórica de I. Wallerstein que à luz da luta de classes e do jogo de poderes que operam na estrutura do sistema mundo capitalista24 permite esclarecer as suas características gerais e significado histórico. Nestes se poderão iden-tificar então as seguintes dinâmicas: contestação da legitimidade do estado, de cariz progressista na arena política, marcada pela repressão e/ou cedências; osci-lação entre protestos violentos e compromissos sociais permeada pelos efeitos de acumulações de funções dís-pares; dificuldade destes levantamentos se manterem por muito tempo em alto nível; protestos que deixam um legado, mudando sempre alguma coisa na políti-ca, para melhor; muitos, conservadores, que se juntam aos levantamentos, não fortalecem os seus objectivos, antes os pervertem; todos ocorrem na luta geopolítica, o que exige perceber as suas consequências em termos de sistema mundo25.

22 SILVA, 2007: 35

23 SILVA, 2007: 26-27.

24 WALLERSTEIN, 2012.

25 LAGE, 2013: 221 – 229.

Fig. 4 - Cultivo da vinha nos socalcos do Douro

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Considerações finaisEsboçou-se, numa perspectiva cívica empenha-

da, um roteiro das movimentações sociais e políticas ocorridas na Região Vitivinícola do Douro, do Libera-lismo à Democracia, que nos convida a concluir:

Mas o Douro merece mais – … as proporções da monta-nha e a estatura do homem dessas bandas não se contemplam a frio, obrigam por força a cismar… [no] destino deste homem tão indigente como heróico, diante de cujo trabalho e sacrifí-cio temos de nos vergar com respeitosa admiração26.

A cartografia dos protestos sociais e políticos durienses ao longo de 200 anos, seguindo um prin-cípio explicativo integrador assente em contributos da história social e da sociologia histórica, possibilita uma inteligibilidade esclarecedora do processo social e histórico em que se inscreve a fragmentação dos fe-nómenos sócio-políticos. A energia popular e regional libertada pela sucessão desses movimentos políticos e sociais diferentes, contraditórios e complexos, per-sistiu no inconsciente colectivo regional com traços duradouros e mantém-se transformada alicerçando a emergência de novas lutas durienses como as que hoje se manifestam, mais complexas e globalizadas.

A investigação historiográfica nacional deste tema não é ainda abundante, apesar da boa literatura entre-tanto produzida. Disso se ressente também a pesqui-sa feita, que embora em extensão e diversidade, não é ainda suficiente, seja pela exiguidade de fontes consul-tadas seja pelo desigual aprofundamento e densidade.

26 MENDES,1964:10 e 24-25.

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Douro VinhateiroFragmentos de Abril

texto: Augusto MacedoEx-Jornalista da RDP

[email protected]

Resumo: O trabalho retrata o clima emocional da época,

aborda a evolução comportamental da sociedade ci-vil e lembra ocorrências no Alto Douro Vinhateiro no período da revolução de Abril de 1974. O autor, jovem jornalista nesse período, relatou para a rádio e para os jornais acontecimentos como: a primeira greve de trabalhadores rurais, a tentativa de ocupação de uma quinta, a alfabetização em programa de rádio pelo MFA - Movimento das Forças Armadas, as primeiras eleições, a constituição dos primeiros movimentos rei-vindicativos do Douro e sequente alteração no modelo de regulação através da alteração dos estatutos da Casa do Douro.

Palavras-chave: Revolução; MFA; Douro Vinhateiro; Abril.

Abstract: The work portrays the emotional climate of the

time, addresses behavioural change in civil society and recalls events in the Alto Douro Wine Region during the April 1974 revolution. The author, a young jour-nalist at the time, reported on radio and in the press on events such as: the first farm labourers’ strike, the attempted occupation of a farm, a literacy radio broad-cast by the MFA (Armed Forces Movement), the first elections, the constitution of the first Douro protest movements and the resulting change in the regulatory model through amendment of the statutes of the Casa do Douro.

Keywords: Revolution; MFA; Douro Wine Region; April

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Nota biográfica:

Augusto Macedo, jornalista desde 1974, Curso Superior de Jornalismo, CENJOR, e Pós-graduação em Direito da Comunicação, pelo Instituto da Comunicação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Trabalhou para diversos órgãos de comunicação: Rádio Alto Douro, que dirigiu durante 16 anos, Radio Clube Português, Radio Comercial e no grupo RDP (Atena 1, Antena 2, Antena 3 e RDP Internacional).

Foi delegado em Trás-os-Montes do Primeiro de Janeiro e posteriormente correspondente do Diário de Noticias. Participou na criação do Jornal Público sendo colaborador regular até 1991.

Aposentou-se como Diretor da Delegação do Norte da Radiodifusão Portuguesa.

Na sociedade civil participou na direção de diversos grupos culturais: Centro Cultural Regional de Vila Real, Teatro de Ensaio Transmontano, Liga de Amigos do Alto Douro Património da Humanidade e outros.

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Agradeço o convite do Museu de Lamego e da equipa Centro de Investigação Trans-disciplinar - Cultura, Espaço e Memória,

com referência particular ao professor Gaspar Mar-tins Pereira. Incluir-me entre os oradores, homens de ciência e investigação, que se debruçaram sobre os movimentos políticos e sociais no Douro, é para mim uma honra que espero não desmerecer.

O que vos trago é o testemunho do jovem, que à época, aprendia a profissão de jornalista.

Comecei a trabalhar como profissional, na rádio, como locutor, animador de emissão em 1970. Punha a música a correr, fazia a apresentação dos artistas, lia uns textos de natureza ambígua, visando um auditório muito heterogéneo.

Foi na Guiné-Bissau, ou Guiné Portuguesa, como então se dizia, que tive a minha primeira experiências como repórter. Acompanhei o General Spínola, nas vi-sitas a quartéis, nas chegadas e nas despedidas de con-tingentes militares e ainda no acompanhamento do Congresso do Povo, que decorreu durante alguns dias no Palácio do Governador em Bissau em 1973. Inicia-tiva com objetivo de criar uma classe política com al-guma afectividade naquela província, correspondendo a uma estratégia de autodeterminação do agrado do General Spínola, que assentava no reconhecimento das culturas tradicionais e do intrincado conjunto tri-bal em que se organizavam.

À pergunta tantas vezes repetida: onde estavas no 25 de Abril? Eu respondo: em Bissau. Era o comandan-te do paiol de Bissau. Situação de grande vulnerabili-dade e com os homens sob meu comando a festejar, o último serviço, em estado de grande embriaguez. Era suposto embarcarmos de avião daí a dois dias para a metrópole. Foi um dia bem difícil, de resto o início de um período de guerra com muitas proezas e perigosas peripécias a merecer uma outra conversa, num outro contexto e ocasião.

A nota serve como justificação implícita para a falta de apontamentos sobre o período imediato do 25 de Abril até a Julho de 74.

Cheguei no início de Julho, aborrecido com a re-volução, por me ter obrigado a mais de dois meses de Guiné, e porque a primeira greve nacional, envolveu os correios, deixando-nos sem comunicações com a família, em tempo de muitas incertezas.

Cumprindo um preceito legal, apresentei-me na

Rádio Alto Douro, para recuperar o meu posto de tra-balho. Já integrava o quadro de trabalhadores antes de ingressar no serviço militar obrigatório e portanto tinha como certo o emprego. Assim foi de facto, não sem o sobressalto de passar por nova avaliação. Nes-se espaço temporal, o Rádio Clube Português, tinha adquirido a Rádio Alto Douro. Já tinha havido sanea-mentos e os novos dirigentes hesitaram na justeza de manter essa obrigação. A nova gestão requereu testes de voz, leitura de textos e avaliação de cultura geral. Cumprida a avaliação, comecei a trabalhar na emisso-ra da liberdade, com profissionais muito reputados e em programa de grande audiência nacional. No CDC – Clube das Donas de Casa. Em Lisboa o Júlio Isidro, no Porto a Maria Isolda, na Régua, Augusto Macedo. O trabalho de maior responsabilidade consistia no lançar do folhetim radiofónico “Simplesmente Maria”. Programa de grande audiência, com publicidade ca-ríssima, comparado às novelas que hoje lideram nos canais de televisão. Como diferentes eram os tempos! Os programas eram autónomos e os cruzamentos de voz muitos raros. As ligações técnicas para diálogos em direto eram muito caras e por isso raras. Entrava em antena depois do noticiário das 13.00 e o programa chegava até as 16.00 horas.

Antes pontificava o “Espaço de Dinamização Cul-tural”, do Movimento das Forças Armadas. Militares do Quartel de Lamego; Capitão Pardal, os Sargentos Monteiro e Ludovico e ainda o soldado que mais tarde viria a integrar a equipa da Rádio Alto Douro: o Antó-nio Manuel Correia.

Era um programa de alfabetização. Através da rá-dio os militares ensinavam, em tese, os fundamentos da democracia. Tiravam dúvidas que os ouvintes ex-pressavam em cartas dirigidas ao MFA – Movimento das Forças Armadas e em telefonemas para os estú-dios. Há que dizer, que no início, os programas eram construídos de forma muito simples e tinham a velei-dade de fazer chegar o pensamento do MFA e até o de justificar todas as suas derivas, junto da população que encara a revolução com algum distanciamento.

Julgo que é da natureza humana, uma certa descon-fiança dos movimentos de rotura política. Já assim foi no passado. A implantação da República em 1910, em Santa Marta de Penaguião, tendo como base a narrati-va do jornal Comércio do Porto de dois de Novembro: “sem sobressaltos, sem estranheza, e sem entusiasmo, quase um mês depois”.

A Régua desse período era um centro social muito

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interessante. Entreposto comercial de excelência, com uma procura que congestionava as ruas centrais dos Camilos e Ferreirinha. Todos os dias milhares de pes-soas vinham à Régua, tratar de negócios do sector do vinho e da vinha.

À quarta-feira, dia da feira semanal, eram frequentes os encravamentos do trânsito com longos concertos das sonoras buzinas. Os comboios andavam repletos no vale do Douro. Havia gente do Pocinho, de Barca D’Alva, de Baião, Marco de Canavezes, de Cinfães e muitos outros lugares, sobretudo do Douro Vinhateiro, cujo relacionamento comercial hoje nos parece improvável.

O programa apontava para esta população, que passou a ir à com frequência à Rádio Alto Douro. Des-de as jovens, para ir dar um beijinho aos locutores, à população rural que pretendia expor os seus proble-mas ao MFA. Os políticos queriam falar com os co-mandantes. Chegavam queixas e pedidos de apoio para vários fins: água, arranjos de caminhos, aberturas de estradões e com frequência o pedido de apoio para transporte de doentes.

O programa serviu também de suporte a denúncias de supostos comportamentos, comprometedores da revolução. Por iniciativa dos novos governadores civis, as câmaras foram destituídas e a gestão dos municípios e das juntas de freguesia, passou a fazer-se por comis-são administrativa. Porém, as nomeações eram por ve-zes contestadas, dando lugar a demissões e a novos in-digitados. Em Vila Real, no pequeno espaço temporal até às primeiras eleições autárquicas de 76, a câmara conheceu três presidentes. Na freguesia de Godim, na Régua, o presidente da Junta era um homem de Salazar, o célebre Chico Camoca, com tanta autoridade que, um ano depois da revolução, continuava intocável.

Neste caldo social, viveu-se o que se designou por «Verão Quente», com situações de profundo mal-estar e conflitos graves.

Havia uma parte da população que se manifestava com entusiasmo dando cobertura e apoio directo às iniciativas do MFA, mas havia também quem as deplo-rasse. Os partidos que entretanto se iam consolidando acentuavam clivagens com palavras e actos públicos. Vincava-se o sentido de Esquerda e de Direita. Gente que tinha abraçado a revolução afastava-se. Adorme-ciam socialistas e acordavam salazaristas de novo.

Questionava-se a presença dos militares nos estú-dios da Rádio Alto Douro. O jipe e o unimog parados à entrada tornaram-se símbolos da ocupação militar da

estação emissora. Os militares passaram a permanecer durante mais tempo, fazendo da discoteca, a sua sala de trabalho permanente. Nós, os trabalhadores, éra-mos alvo preferencial de calúnias e responsabilizados por tudo o que se ouvia nas rádios nacionais. Bom e mau. Um disco, do Pedro Barroso, com uma letra que atingia os “doutores”, e que ainda nem tinha chegado sequer à Régua, inspirou uma crónica muito agressiva de um médico, que nos responsabilizava pelo texto e gerou uma campanha anti Rádio Alto Douro.

A Vera Lagoa, líder de audiência de Direita, publi-cou uma notícia, acusando-nos de hastearmos, lado a lado e com igual dignidade, a bandeira nacional e a bandeira do Partido Comunista. Grande aparato, pro-cesso interno de averiguações, para constatar que não existia, nem nunca tinha existido, mastro nenhum que permitisse o hastear de qualquer bandeira.

Todos os dias chegavam informações sobre inicia-tivas da sociedade civil para ocupar a estação emisso-ra. Os comerciantes da Régua combinaram concretizar um boicote comercial à Rádio Alto Douro, que vivia da publicidade. A estação emissora ficou apenas com o anúncio da Casa Ermida, comércio de ferragens, ma-teriais de construção e lavoura, que não concordando com a posição dos colegas, manteve a sua publicidade.

O Partido Socialista, liderado pelo Dr. Camilo Bo-telho, que mais tarde viria a ser Governador Civil de Vila Real, logrou concretizar uma ocupação simbólica dos estúdios, dizendo pretender evitar a ocupação por forças da direita que sabiam eminente.

Aos estúdios da Rádio Alto Douro chegaram de-zenas de militantes socialistas. Tocaram à porta e meteram logo o pé, - à Martim Moniz -, para que se não fechasse. O colega que os recebeu, Alfredo Alve-la, prestigiado jornalista, que vindo de Lisboa dirigia a Rádio naquele período, prontificou-se a recebê-los, não como ocupantes, mas como convidados. Entram uns tantos que a casa era pequena e não cabiam to-dos. Logo se compreendeu que a presença dos polí-ticos constituía um gesto agressor que não seria acei-te. Contactada a hierarquia pelo telefone, a direcção do RCP – Rádio Clube Português, a cuja empresa pertencíamos, promoveu uma reunião de emergência com o MFA. Fomos todos para o Porto e nos estúdios do RCP da Rua Tenente Valadim, em presença de altos dirigentes militares da Região Norte, (General Corvacho e Major Delegado) a situação foi pacificada com um comunicado conciliador, lido aos microfones da emissora da liberdade e distribuído depois pela

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imprensa.Vivemos um período de grande insegurança. A

presença dos militares não chegava. Passamos a ter a presença da Polícia de Segurança Pública de noite. Si-tuação que se arrastou para lá do 25 de Novembro de 1975 e só desapareceu com a reabertura da Rádio Alto Douro depois da sua nacionalização.

Hoje o que nos parece complexo e estranho, na ocasião foi vivido com absoluta normalidade.

Era jovem, tinha chegado da guerra há relativa-mente pouco tempo, e sentia que os acontecimentos me propiciavam as melhores condições para a profis-são de jornalista.

Com muito entusiasmo e espírito de equipa com-batíamos as correntes mais radicais, que nos empur-ravam para situações pantanosas ou pouco claras, e procurávamos ganhar a confiança dos ouvintes em es-paços recreativos e desportivos. A contestação ao tra-balho era produzida por um grupo pequeno, compa-rado com os apoios que nos chegavam dos diferentes pontos da região.

Foi incontestavelmente um período muito rico de episódios de toda a espécie. Dos mais genuínos e ingé-nuos actos de ternura, compreensão e bondade, até às peripécias burlescas, ridículas e perigosas.

O sentido de perigo, nem sempre teve correspon-dência com a realidade.

O dia mais longo e difícil foi o 1 de Junho de 1975. O Governo tinha nomeado, ainda em 1974, uma

Comissão Liquidatária para a Casa do Douro, lidera-da pelo engenheiro Serpa Pimentel, com nove pessoas. Constou, no final do mês de Maio, que o governo se preparava para nomear uma nova direcção para a Casa do Douro, presidida pelo Capitão Pardal e afecta ao Partido Comunista.

Logo foi criado um movimento social, liderado pelo médico Luís Roseira, do Partido Socialista, e pelo professor Fernando Pinto do Partido Popular Demo-crático, hoje PSD, que se opôs a esta determinação.

Um carro invulgar, de matrícula luxemburguesa, com potente aparelhagem de som, percorreu aldeias e vilas mobilizando lavradores de todo o Douro, para uma manifestação impeditiva de arrebatarem a Casa do Douro à lavoura duriense.

O carro era conduzido pelo André da Cumieira, meu companheiro de infância, bem conhecido pela força e convicção que punha em todas as causas que abraçava. Era impressionante a capacidade de mobi-lização. Calava a cassete gravada, agarrava-se ao mi-

crofone dirigindo-se de forma directa e vibrante às pessoas que observava, impelindo-as a comparecer na Régua. Conseguiu uma mobilização extraordinária.

Mais do que a Rádio Alto Douro, o Rádio Clube Português, nos seus noticiários, tinha feito a defesa da anunciada deliberação do governo. Nesse dia, 1 de Ju-nho de 75, foi com naturalidade que uma equipa de reportagem chegou para cobrir a posse da nova direc-ção da Casa do Douro, com os meios adequados para a transmissão em directo. Carro parado logo no cima da rua da Alegria, junto à porta lateral, para ser mais fácil o acesso às escadas e elevador e transportar os mate-riais para o salão nobre onde a sessão iria decorrer. Es-colheu-se o local para a posto de reportagem, mesmo junto à varanda, para que desta se pudesse cobrir tam-bém o que se passava na rua.

A um dado momento ouvimos berros sincopados: «hei, hei, hei…» – fomos ver: a multidão arrastava o Citroën Dyane do Rádio Clube Português. Sobressai de entre a multidão a voz do engenheiro Daniel Car-neiro: – «que estão a fazer? O carro está aberto!... Se é para o atirar ao rio basta destravá-lo». Ato contínuo, entrou dentro do carro, pô-lo a trabalhar e fugiu com ele guardando-o numa garagem comercial.

A multidão começou a gritar: «jornalistas rua, fora…» dirigindo-se para as escadas de acesso ao sa-lão nobre. Militares do CIOE – Centro de Instrução de Operações Especiais de Lamego, sob comando de um dos sargentos, barram-lhes o caminho já no segundo lance de escadas, ameaçam abrir fogo e só conseguem a retirada com recurso ao som ameaçador do bater das culatras das espingardas G3 ao introduzir bala na câ-mara.

Em todo este tempo líderes dos movimentos polí-ticos envolvidos estão em conversações nas salas con-tíguas de direcção. O salão nobre enche-se de gente, utilizam a mesa central, (peça muito frágil, de grande valor decorativo que ainda hoje existe), como palco e ouvem-se inflamados discursos.

A contestação é violenta de tal maneira que o en-genheiro Armindo Martinho, director destituído pelo Governo Provisório, ajuíza que toda aquela gente pre-tende o modelo anterior, pensa que afinal o querem a ele, sobe para cima da mesa e tenta falar. Ouve-se uma vaia monumental: «fora, rua, fascista…» é mes-mo agredido com alguns socos e tem muita dificulda-de em sair do improvisado palanque. Apelos à ordem de Luís Roseira e Fernando Pinto, também em cima da mesa, dando conta de negociações com o MFA através

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do Major Delegado da Fonseca. Saber-se-á depois que intervieram também três

importantes ministros sem pasta. Luís Roseira tinha como interlocutor Mário Soares, Fenando Pinto, Ma-galhães Mota e nas teses do Partido Comunista o pró-prio Álvaro Cunhal.

Enquanto tudo isto se passa, o grupo dos jornalis-tas da rádio estava a trabalhar junto do topo poente da sala. À esquerda a Emissora Nacional, mais à di-reita, junto ao varandim, a equipa do Rádio Clube Português e da Rádio Alto Douro. À época só havia um canal de televisão e os meios técnicos de então não permitiam directos. Lembro-me de andar a tentar saber o que se passava junto das salas de direcção, e ver um colega e amigo da escola secundária, (Augusto Boanerges) funcionário da Casa do Douro, dirigir-se a mim muito preocupado, para me prevenir de que havia um grupo de manifestantes, que tinha definido a estratégia de ir comprimindo lentamente o nosso grupo de trabalho contra a varanda, para depois atirar o nosso chefe (Carlos Ruela) para a rua. Corri para o sargento, e este avisado, criou de imediato um cordão de segurança com militares à volta do espaço onde se concentrava a comunicação social. Na sequência deste acontecimento, Carlos Ruela até aí director da Rádio Alto Douro, visivelmente transtornado, saiu prote-gido por militares e abandonou a Casa do Douro. O seu traumatismo foi de tal ordem que veio depois a ser internado para tratamento numa Casa de Saúde do Porto.

Todos queriam falar. Discursos inflamados e con-traditórios na linha de pensamento. Luís Roseira e Fer-nando Pinto repetiam os apelos à ordem até à chegada das notícias do Governo de Lisboa: depois de várias discussões entre as partes interessadas, foi decidido constituir uma Comissão de Gestão, com dez pessoas, que passou a gerir a Casa do Douro, assim constituí-da: Cap. Esmeraldo Joaquim Delgado Pardal; Dr. João Fernandes da Cunha Sousa Machado; Dr. Adelino Carlos Vilela Pereira Portela; Dr.ª Maria Manuela Ro-drigues da Silva Oliveira; Eng.º António José Cardoso Sequeira; Eng.º António José Borges Mesquita Montes; José da Silva Gouveia; Jorge Alberto de Carvalho San-tos Silva; Arq.º José Alberto Cleto Sampaio e António Augusto Santos Grácio. No meio de lavradores técni-cos do sector e políticos estava, pela primeira vez, um cavador da vinha. Dizia-se que ganhava num mês o que os seus pares não ganhavam num ano.

A liderança do grupo foi quase naturalmente assu-

mida pelo Capitão Pardal. Se muitos o continuam a re-lacionar com o período desagradável da vida do Dou-ro, pessoalmente dele guardo as grandes preocupações de natureza social e a defesa que entendia dever fazer dos sectores mais desprotegidos. O empenho para fa-zer nesse ano o escoamento dos vinhos, foi notável. A operação que parecia impossível, pelo boicote, ou pelo menos falta de colaboração dos comerciantes de Gaia, teve consequências inteiramente salutares para a lavoura duriense. Ele e o engenheiro Mesquita Mon-tes, que partilhavam nessa altura o mesmo gabinete, fizeram o levantamento de todos os armazéns parti-culares do Douro, mandaram reparar cubas e tonéis, conseguiram escoar toda a colheita do ano anterior, garantindo o vasilhame necessário para a produção do ano da revolução.

O modelo de governação da Casa do Douro sofreu muitas vicissitudes. Os seus estatutos foram alterados. As eleições nem sempre foram pacíficas. A democrati-zação da Casa do Douro, então anunciada, merecia um estudo profundo, que sugiro como tese de sociólogo.

Primeira greve.Em Setembro de 1974, fui alertado por colega

da redacção de Lisboa, de que havia um movimento de greve, na vindima de uma Quinta, em Casais do Douro.

Carregado com o gravador, (na época o gravador de reportagem pesava cerca de sete quilos), dirigi-me a Casais do Douro, freguesia de Ervedosa do Douro no concelho de S. João da Pesqueira.

Caminhei para o terreiro interior, vulgar ainda hoje nas quintas tradicionais do Douro, e naquele espaço, a escassos metros dos lagares e da casa dos proprietá-rios, encontrei um grupo de trabalhadores, não muito numeroso, que exigia garantias para que o trabalho da pousa, o pisar das uvas, fosse pago de forma comple-mentar ao trabalho da jorna diária. Perante a presen-ça do jornalista, o líder que claramente me esperava, abandonou a persuasão dos companheiros para falar comigo.

Alto, rosto seco dourado pelo sol, impressiona-va quando abria a boca: muito desdentado, tinha um dente que dançava com o seu exaltado falar, ameaçan-do cair a todo o momento. A convicção dos restantes não era grande. No grupo havia mesmo quem mani-festasse pena da situação do patrão: «Não fosse o vinho estragar-se por causa da greve».

O líder insistia na necessidade de não trabalharem e dizia-se convencido, «de que no dia seguinte, em to-

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das as quintas do Douro se iria passar igual». Queriam receber mais dinheiro quando além da acarta das uvas, durante o dia, também tivessem que as pisar à noite.

Nesse dia não houve lagarada. Os proprietários não apareceram, desprezaram o movimento e no dia seguinte facilmente arranjaram outros trabalhadores e fizeram o vinho. Alguns dos grevistas participaram no trabalho sem que lhes fosse dada qualquer garantia para pagamento extra. A primeira greve pouco mais foi do que uma notícia. No entanto, progressivamen-te este trabalho foi reconhecido e pago complemen-tarmente. Fiquei desiludido. Quando fui averiguar da evolução dos acontecimentos, soube da greve, mas fi-quei sem saber se o dente do líder dos grevistas tinha caído ou não.

Primeira ocupação de uma quinta.Já em 1975, depois de muitas ocupações de pro-

priedades no Alentejo, acordei certa manhã com a notícia de que nesse dia se daria a primeira ocupação de uma Quinta no Douro. A informação, embora in-tegrando o noticiário, tinha um certo ar festivo, dizia--se que se tratava de uma quinta abandonada, que um grupo de trabalhadores iria passar a explorar. Não es-tranhei quando chegou o pedido de Lisboa para fazer-mos a cobertura do acontecimento. Os pormenores da convocatória mostravam mão profissional. Tinha hora marcada e local de encontro estabelecido. Era a Quinta da Telhada, junto a Nogueira, no alto da estrada que ligava Vila Real à Régua por Vilarinho dos Freires. Lá chegados, encontramos um grupo de pessoas clara-mente à espera dos jornalistas. O grupo avançou para a entrada da Quinta como quem vai para um piqueni-que. Porém, ainda antes do portão de entrada, da su-posta Quinta abandonada, um outro grupo, bem me-nor em número, mas, mais parecido com verdadeiros trabalhadores rurais correu para nós, bem munidos de enxadas e varapaus. Varreram num ápice o grupo ocu-pante. Jornalistas incluídos.

Houve notícia da eminente ocupação e notícia da não ocupação de facto.

No chamado «Verão Quente», raro era o dia em que não havia um acontecimento relevante e de denúncia abjecta. Esquerda e direita provocavam-se.

Lembro as armas escondidas do Moura Borges. Denúncia anónima chega à GNR – Guarda Nacio-

nal Republicana, informando que o engenheiro Moura Borges, pessoa tida como próxima do Partido Comu-nista – PCP, foi visto a esconder armas, tipo G3, na Quinta da Igreja.

A Guarda Nacional Republicana avança para Fon-telas, cerca a quinta e o próprio Capitão Bernardi-no vai verificar a existência das espingardas. Perante a inexistência de qualquer arma, é o próprio Moura Borges que incita que elas podem estar no interior dos santos no altar. O capitão, conhecido homem de Igre-ja, ajoelha-se, reza, e só depois ganha coragem para ir constatar que as imagens são de madeira, nada po-dendo esconder. Ao lado o Moura Borges ri de forma insidiosa.

As provocações deste homem eram permanen-tes. Lopes Cardoso, Ministro da Agricultura, veio ao Douro para tratar de assuntos relacionados com a Real Companhia Velha. Foi convidado a visitar uma pro-priedade do Moura Borges, engenheiro agrícola muito inovador, que tinha investido em patamares mecanizá-veis, os primeiros do Alto Douro, com vinha regada e citrinos nos taludes. Aproximava-se a comitiva quan-do um dos fotógrafos entrou no interior da proprieda-de, andando de costas, para fazer uma fotografia com o cortejo a entrar. Sai a correr, interrompe o grupo, e alerta que do lado de dentro, só visível do interior, está um grande letreiro a dizer: «À saída todos os FP limpem bem os pés para deixarem a terra a quem a trabalha». No chão, em jeito de tapete, estavam umas correntes de ferro, para sacudir os pés.

O bom senso nem sempre esteve presente e o pe-ríodo viveu imensas situações caricatas a raiar a ane-dota.

Uma denunciada de abuso de um agricultor de Bo-ticas, que veio à Régua pedir para a GNR não ir mais à sua povoação. Explicou que foi visitado por um ca-pitão da GNR, que lhe pediu um copo de vinho para matar a sede. Ele, por delicadeza e hábito de trans-montano, ofereceu-lhe logo pão e presunto para acom-panhar. O graduado gabou o presunto, que era uma delícia, e ele delicadamente pô-lo à vontade: «coma sr. capitão o presunto é seu, não faça cerimónia». Perante isto o capitão respondeu imediatamente: «se o presunto é meu como-o em casa». Agradeceu, chamou o solda-do condutor e ordenou-lhe para o guardar. O lavra-dor do Barroso disse que na ocasião não teve reacção, mas quando comentou o caso com os vizinhos, soube que o mesmo capitão e com a mesma situação, já tinha trazido mais presuntos.

Era frequente, ir gente à rádio à noite levar de co-mer e beber às forças de segurança que ali se encon-travam: vinho do Porto, cervejas, sandes e comida de recurso. Numa das noites, um dos apoiantes, apanhou

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um soldado distraído, pegou-lhe na arma, uma G3, e foi exibir-se armado para o café Stop, na rua da Fer-reirinha.

As situações de denúncias apareciam, por vezes com tal rigor e pormenores, que eram levadas a sério. Em determinada ocasião chegou ao MFA a informa-ção de que pessoa importante tinha levantado todo o dinheiro da sua conta e da adega que dirigia e se preparava para fugir. Os militares confirmam a infor-mação junto de um empregado bancário e avançaram para o impedir.

Chegaram na hora em que o caixão do visado saia para o cemitério. O homem tinha morrido e a viúva para evitar dificuldades burocráticas tinha de facto le-vantado todo o seu dinheiro. Mas, só o seu dinheiro.

As peripécias nem sempre tiveram graça e em mui-tos casos foram mesmo bem dramáticas.

O assassinato do padre Max e da Maria de Lurdes são exemplo disso mesmo. O padre Max morreu mui-to jovem, aos 33 anos. Era muito popular. Entrevistei--o poucos dias antes da sua morte em Vila Real onde era professor. Lembro o seu entusiasmo em criar um programa de preparação para os jovens das aldeias e de apoio aos adultos. «Antes de emigrarem, os adultos, precisavam de saber falar francês». A Maria de Lurdes, que veio a morrer com ele, acompanhava-o nessa fatí-dica noite depois de darem explicações na Cumieira.

Os excessos são sempre condenáveis. Houve mui-tos nesse período, vivemos picos de tensão por coisas verdadeiramente mesquinhas. Nas primeiras eleições os comícios deram origem a apedrejamentos das cara-vanas partidárias e até a tiros intimidatórios. Reporto a minha experiência. Ainda comigo em África, o meu carro conduzido por familiar meu, integrado na cara-vana do PPD, foi apedrejado em Murça, depois de um comício em Mirandela. Mais tarde, dispararam dois tiros de caçadeira, de uma caravana partidária, para a porta da casa do meu pai em Sarnadelo, Santa Marta de Penaguião, porque membro da Comissão Adminis-trativa da Junta de Freguesia de Sever, tinha pedido a demissão por não concordar com a política de obras.

Ao terminar este relato, cujo interesse será apenas o de ilustrar factos vividos, que podem colorir teses mais profundas sobre este período, quero apresentar um voto de gratidão, a muitas figuras anónimas, que se empenharam em campanhas de solidariedade, apoio social e actos de apaziguamento e pacificação.

Homens e mulheres que deram o seu melhor no apoio a outros sem nada pedir.

O facto mais relevante deste período foi o da so-lidariedade. Havia felicidade no apoio aos outros. Só em actos de guerra observei espírito de fraternidade semelhante. O mais elevado que conheci.

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Revoltas e Revoluções noDouro oitentistaJosé Viriato CapelaAntónio Monteiro Cardoso Célia Taborda da Silva

Painel 1

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As Invasões Francesas e a Restauração Nacional de 1808

o Juiz do Povo e Junta dos Prudentes de Viseu

texto: José Viriato CapelaLab 2 PT/UMinho

AS INVASÕES FRANCESAS EM PORTUGAL

Não é de todo homogéneo o tempo, nem uniformes os processos históricos que se vivem e desenrolam em Portugal entre

1807 e 1811 sob o impacto das três invasões francesas que assolaram o território. Deixando de parte a 3.ª in-vasão, de menor impacto territorial, torna-se necessá-rio distinguir mais claramente a primeira da segunda invasão, nos seus condicionalismos próprios, nas suas continuidades, mas também descontinuidades e rotu-ras.

1. A Primeira e a Segunda Invasões

Comparemo-las nos seus aspetos essen-ciais, desde logo nos agentes e contex-tos. A 1.ª invasão de finais de 1807 é uma

ação conjunta de franceses e espanhóis, resultado

de um acordo de conquista e partilha do território português. A 2.ª invasão, de março de 1809, é uma ação exclusivamente francesa porque se rompera a colaboração entre espanhóis e franceses. Ao tempo da 2.ª invasão a conquista e integração de Espanha está agora também nos horizontes franceses. As vicissitudes da invasão e conquistas de Soult em Portugal correm em relação direta com as vicissitudes da presença e domínio dos franceses em Espanha (designadamente da duração do governo pro-francês de José Bonaparte). Em 1807-08, portugueses e espanhóis são em grande parte inimigos, estão em pólos opostos. Os espanhóis são invasores e conquistadores, acordam-se com os franceses na divisão e anexação de Portugal. Em 1809 defendem a causa comum de libertação da Península e são aliados na Guerra Peninsular que agora assim deve ser chamada. São também bem diferentes os termos

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Nota biográfica:

José Viriato Eiras Capela é, desde 1998, Professor Catedrático do Departamento de História da Universidade do Minho. É membro do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», da Real Academia Galega e da Academia Portuguesa de História. É, ainda, membro do Conselho Consultivo da Revista Lusitana Sacra e membro efectivo do Conselho Científico da Comissão Portuguesa de História Militar, entre outros. Entre 2000 e 2009 foi, Pró-Reitor e Vice-Reitor da Universidade do Minho e, finalmente, Presidente do Conselho Cultural dessa Universidade.

Tem como principais áreas científicas de interesse, com larga produção científica, a História Moderna e Contemporânea de Portugal e a História das Instituições da Cultura e das Mentalidades. Como outra área científica de interesse tem a História do Municipalismo português.

Está envolvido na publicação sistemática das Memórias Paroquiais de 1758 para todo o país, estando já publicados os Distritos de Braga, Viana do Castelo, Vila Real, Bragança, Porto, Viseu, Aveiro/Coimbra e Guarda (em tratamento o distrito de Lisboa e Setúbal).

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das suas realizações. A 1.ª invasão é uma invasão pacífica. Os franceses dizem vir como libertadores (das instituições de Antigo Regime e do jugo e monopólio dos ingleses); assim também são vistos por afrancesados-ilustrados portugueses, que são poucos. As autoridades promoverão bom acolhimento dos invasores e tudo farão para evitar conflitos. A 2.ª invasão é uma ação militar, com fortes efetivos e meios; envolve organização da defesa e mobilização civil contra o invasor; provoca fortes confrontos militares, mortes, devastações, incêndios, fuzilamentos …

Comparemo-las também na sua extensão e medi-das políticas. A 1.ª invasão conquistará e dominará Portugal no seu conjunto, com a instalação do gover-no em Lisboa e guarnições e governos militares por todo o País. O Norte a partir do Porto será ocupado e dominado por tropas e guarnições espanholas. En-volve a partir de 1 de fevereiro de 1808 uma forte inte-gração e “afrancesamento” das instituições, com pro-gramas de reforma “revolucionários” para Portugal, a saber: 1 – Contribuições gerais (muito gravosas, sem respeito pelos privilégios e ordenamento social-fiscal tradicional); 2 – Reformas administrativas à francesa (corregedores-mores e vontade de proceder à reforma administrativa e territorial, que acabasse com a admi-nistração de Antigo Regime). 3 – Proposta de Código Civil, uma Constituição e novo rei para Portugal.

A 2.ª invasão entra pelo Norte, conquistará o Porto, não se configurará como domínio nacional. A forte re-sistência das populações, a atuação e apoio ingleses, as vicissitudes da guerra francesa em Espanha, não per-mitem o projeto de conquista de Portugal; Soult pou-co avançará para além do Porto. A curta duração do domínio francês de Soult no Porto (29 março a fim de abril) não permitiu desenvolver grandes projetos para Portugal, tirando a vontade de Soult de aí ser coroado rei e para tal ter mobilizado e encenado o beija-mão e as aclamações de deputações nortenhas.1

2 – A resistência e a Restauração de Portugal (1808)

Como é sabido, os programas de integração de Portugal no Sistema Continental francês e Império Napoleónico sempre tiveram em

conta a participação e a plataforma espanhola. Por isso

1 CAPELA; MATOS; BORRALHEIRO, 2009.

as vicissitudes e caminhos da invasão e conquista, e logo da resistência e luta pela independência em Por-tugal sempre devem ser articuladas ao que se passa em Espanha. A 1.ª invasão é, como referimos, ação con-junta de franceses e espanhóis. O fim da 1.ª invasão e o início das Aclamações no Porto (a partir de 6 de ju-nho de 1808) estão associados e são estimulados pelo rompimento das relações entre franceses e espanhóis. A partida das guarnições espanholas do Porto incen-tivaram e convidaram os portuenses a rebelar-se e a fazer causa comum da guerra dos espanhóis e povos peninsulares contra os franceses, inimigos, invasores e conquistadores comuns. Depois, os obstáculos ao de-senvolvimento do programa de Soult em Portugal têm que ver com as dificuldades dos franceses em Espanha e a não chegada de complementos de forças francesas estacionadas em Espanha para auxiliar as manobras de Soult em Portugal.

A resistência na 1.ª invasão e a expulsão dos fran-ceses é, no essencial, uma ação da luta das Províncias, do corpo da Nação. Nelas relevará sobretudo a ação das Províncias mais afastadas do centro do controlo e dominação político-militar do governo de Junot em Lisboa. E em particular das Províncias mais próximas de Espanha, que se articulam mais diretamente com o movimento de independência e das Juntas Espa-nholas, que deflagrará depois do 2 de maio. É o caso das Províncias do Norte, do Minho, Trás-os-Montes e Beiras e também do Algarve, cujas Juntas se articu-lam ativamente com os territórios espanhóis vizinhos e suas Juntas.

O movimento de Aclamação do príncipe regen-te pelo Norte de Portugal e reino terá seu ponto de partida com o Grito do Porto a 6 de maio, com mais forte eco em terras e Províncias fronteiriças nortenhas de Valença, Melgaço, Chaves e em geral pelas terras transmontanas. Depois destas primeiras Aclamações que são em geral espontâneas, populares, de base con-celhia, expressão do mais profundo sentimento de in-dependência do povo português, o movimento tomará uma feição e organização institucional onde emerge o papel dos principais centros político-militares das Províncias nortenhas. O Porto tomará a iniciativa, seguido das cabeças dos governos militares – Viana e Bragança – das cabeças das terras de 1.º governo ad-ministrativo – sedes de comarcas e concelhos de juízes de fora com assento em Cortes - onde se constituem as Juntas de Governo provinciais e governos políticos municipais mais alargados.

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Este movimento da Restauração Nacional decorre a par da Revolução Espanhola do 2 de maio, como se disse e do seu Movimento Junteiro. Mas arranca em Portugal quando se torna mais gravosa a governa-ção e administração francesas: cobrança efetiva dos impostos (com a especialmente gravosa e atentadora para o clero e as comunidades da recolha da prata das igrejas), e abertura do processo de plesbicito de uma Constituição à francesa para Portugal e após abolição da Casa de Bragança, proposta de um rei da família de Napoleão, para Portugal.

Esta Revolução vai ter como pano de fundo e su-porte, o papel e ação política e social, dos concelhos. Usurpado o governo legítimo, os concelhos em obe-diência à Lei e Constituição tradicional Portuguesa, assumem pelos braços da Nação o governo do reino que deterão provisoriamente, para reintegrar no Sobe-rano, logo que a nação e Portugal se tiverem libertado do “jugo” da usurpação, tirania e conquistas france-sa e napoleónica. A ação de Libertação correrá pelas Juntas, dos concelhos, das comarcas e províncias; fi-nalmente pela Junta do Porto, depois do acordo e pro-tocolo com as demais Juntas nortenhas que assumirá o plano superior do governo e a libertação de Portugal. O Porto, o Norte comandará o processo de Restaura-ção da Independência Nacional, a que o exército e os ingleses ajudarão a dar conclusão com as batalhas da Roliça e Vimeiro, a assinatura da Convenção de Sintra e final partida de Junot (setembro de 1808).

Nas Juntas Provisionais tomarão assento, ao lado, ou por sobre, os camaristas dos concelhos, os bra-ços da Nação, clero, nobreza e povo, os magistrados das instituições políticas e militares régias nacionais, quando existentes nas terras (corregedores, desem-bargadores, militares). Vão presididas pelos bispos das dioceses, pelos mais altos comandos militares das Províncias ou pelos mais altos magistrados régios nas terras. No final é a recomposição mais extensa do po-der e ordem política e social da Monarquia Portuguesa que nelas se realiza. A Junta do Porto de 1808, pre-tende organizar-se mesmo como um Congresso para o Governo da Nação para que concorrerão Deputados nomeados pelas Juntas de Viana e Bragança. Pode ver--se aí uma composição política ao modo das Cortes tradicionais ou uma pré-composição de um Sinédrio e Cortes Constituintes.

E as Juntas, com o Porto à cabeça, terão como ta-refas essenciais: Aclamação e Restauração dos Direitos Reais e Nacionais da Monarquia Portuguesa; reorgani-

zação do poder político e sobretudo o militar; manu-tenção da ordem social, paz social, dentro do quadro da conservação da ordem social antiga, que conterão nalguns casos programas revolucionários.

3 – A vaga das Aclamações nortenhas e transmontanas

Em 5/6 junho de 1808 inicia-se, no Norte, o ciclo das Aclamações “inorgânicas” e “es-pontâneas” logo seguido da 2.ª vaga de Acla-

mações institucionais e a constituição das Juntas pós 18 de junho desse ano de 1808 – com a constituição da Junta do Porto - que se encerra na final Restauração, com a libertação de Lisboa, a assinatura da Convenção de Sintra a 30 de agosto de 1808, entre franceses e in-gleses, e a partida de Junot.

As primeiras Aclamações iniciadas no Porto e Cha-ves são iniludivelmente um movimento de origem militar ou paramilitar. Adscrevem-se-lhe logo – se é que não o suportam de início – elementos de todas as classes, e em massa as classes populares. No Porto são as guarnições da Foz, Matosinhos, Castelo do Quei-jo, com o apoio da população da cidade e os militares de um brigue inglês ancorado fora da barra. Deixe-mos aqui de lado o movimento dos Levantamentos e Aclamações na Província Minhota e fixemos, parti-cularmente, os da Província de Trás-os-Montes. Em particular por Chaves onde o movimento de revolta e revolução ganha pioneirismo.

Em Chaves a iniciativa da revolta é dos “conjura-dos”, os funcionários da Administração dos Provimen-tos de boca da tropa – organização paramilitar que tra-ta do abastecimento da tropa – que se viram afastados pela entrada em cena de um arrematante do assento do referido fornecimento. Neste caso a origem está numa reivindicação profissional: a substituição do ser-viço de fornecimentos ao Exército. A organização da revolução dos funcionários da referida “Administra-ção” toma a forma de “conjuração”, à 1640, invoca uma organização prévia, secreta, e um plano de desenvol-vimento. Que progressivamente tem em vista enlaçar todas as ordens da sociedade, em ações de amplitude política e social crescente e que se articulará também ao desenvolvimento das ações noutras terras da Pro-víncia, culminando também na constituição da Junta flaviense a 25 de junho. A espontaneidade não está de

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facto aqui presente, bem pelo contrário, os conjurados que reúnem em Assembleia, são presididos pelo Ad-ministrador que é o chefe da Revolta.

Organizam-se e consagram-se à causa da Restaura-ção com a imposição solene do tope da Nação, em que numa fita escarlate se lê a inscrição: «vencer ou morrer pela Religião e pelo Príncipe Regente». Mobilizarão os militares, o juiz de fora, os camaristas, a nobreza e de-mais estados para a causa da Restauração; pretendem despertar em todos os flavienses o mais decidido Pa-triotismo e organizar um governo de confiança popu-lar; festejam com jubilo a chegada pelo correio da no-tícia da Aclamação do Porto do dia 6; contactam com o Governador da Província, Sepúlveda, em Bragança, mas sobretudo com Vila Real e Francisco da Silveira, para participarem na defesa contra a entrada dos fran-ceses pelo Douro (pelos dias 19). Festejaram a notícia da Aclamação e constituição da Junta do Porto do dia 18 e promoveram a constituição da Junta Flaviense em 25 de junho.

Papel significativo foi também o desempenhado pelo General Sepúlveda Governador da Província mi-litar de Trás os Montes a partir da Proclamação do dia 11 de junho, com o seu envio às terras da Província e convite do povo para aclamar D. João e a iniciar a causa da defesa da Província. Na sequência da sua Proclama-ção multiplicam-se os gestos, os vivas e proclamações. E a Província parece aclamar em uníssono D. João e preparar-se para expulsar o invasor e a defender-se de novas investidas. Tal situação e clima estará depois na origem – como é dito – da nova e decisiva ação por-tuense do dia 18. Parecendo sufocada e contida, a Re-volução portuense desde as jornadas revolucionárias entre 5 e 8 de junho, com o estímulo das Aclamações e insurreições gerais transmontanas, em especial de Vila Real iniciadas no dia 15 para 16 (a que podemos tam-bém juntar às de Viana, nos mesmos dias) – levanta-se de novo a ação popular e militar portuense na Aclama-ção do dia 18, que se firmará na criação da sua Junta Provisional Suprema.

A partir do Porto as Aclamações retomarão – agora maioritariamente conduzidas pelos poderes e elites lo-cais tradicionais - com todo o vigor por todo o Norte. Com elas a constituição do movimento das Juntas que se organizará e suportará em definitivo a Restauração.

Fixemos a cronologia da constituição das principais juntas nortenhas. Algumas delas já em relação com as movimentações nas terras que vêm de 5/6 de junho

e que retomam por meados do mês (dias 15 e 16 em Vila Real, Viana e outras partes), mas a maior parte na sequência da criação da Junta do Porto de 18 de Junho:

Na Província do Minho - Porto, 18; Guimarães, 20; Viana, 19; Braga, 20; Barcelos, 21.

Na Província de Trás-os-Montes - Bragança, 21; Vila Real, 23; Chaves, 25; Torre de Moncorvo, 25; Mi-randa do Douro, 27; Lamego, 23; Viseu, 30.

4 – Centralidade de Vila Real na Revolução transmontana e beiraltina

Em Trás-os-Montes a Junta de Bragança, destinada em princípio a exercer um papel político e militar geral sobre a Província,

governada pelo General Sepúlveda, viria de facto a desempenhar um papel pouco relevante. Negaram--se em geral as terras a corresponder à nomeação de Deputados para a sua Junta, como foi solicitado. As resistências à liderança e centralidade brigantina são grandes, vêm das áreas mais periféricas à Província e também das mais articuladas ao Porto e à Província do Minho, das principais terras que buscam outra(s) cen-tralidade(s) políticas para a região. De um modo geral a unanimidade é geral no sentido que o único centro de governo regional nortenho tem de estar no Porto. E em relação com a maior e mais rápida articulação e comunicação com o Porto, é que se devem organi-zar os centros políticos para a defesa da Província. Isto sem embargo, do poder próprio militar do Governo das Armas da Província e do seu quartel em Bragança.

Vila Real, logo no auto de Aclamação de 23 de Junho, exprimiria a sua adesão à Junta do Porto, sal-vaguardando a autoridade militar do General da Pro-víncia. Na vereação seguinte, confrontada com o ofí-cio do tenente-general da Província, com data de 25 de Junho, «sobre enviar um deputado à Junta reunida na cidade de Bragança», responde que fizera termo de união à Junta do Porto, ficando deste modo «incompa-tível» nomear alguém para Bragança.

Chaves é absolutamente favorável ao governo da Junta do Porto, sem limitações. Como alega, a Provín-cia não tem meios económicos, nem rendas para su-portar os seus cinco regimentos; precisa do auxílio do Porto e da Província do Minho: Precisamos do socorro do Porto e Província do Minho (...) é necessário que o governo das Províncias do Norte seja uniforme. Propõe mesmo que o governo geral das armas da Província se

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transfira e coloque o seu quartel general em Vila Real, ponto central das comunicações com toda a Província, com o Porto e com o Minho e da defesa militar da Pro-víncia, cujas ameaças vêm, por então, das partes das margens do Douro. Sempre em Vila Real se deve esta-belecer um posto militar para mais facilmente se co-municar com a Junta e Regência da cidade do Porto e transmitir as suas ordens a todos os lados da Província transmontana. Chaves militaria ativamente por esta solução e programa que aliás enviou, com os termos da sua Proclamação, às câmaras cabeças de comarca da Província para decidirem se estão conformes com a deliberação desta câmara. Em conformidade com esta posição, negou-se Chaves a nomear um seu represen-tante para a Junta de Bragança, como se lhe tinha re-querido.

Conhecemos o posicionamento de Mirandela face às requisições de Bragança e reações à proposta de Chaves. É de parecer favorável ao voto da câmara de Chaves a fim de que a Junta de Bragança e mais Juntas provinciais fiquem subalternas à da cidade do Porto. A fundamentação é a das circunstâncias que concorrem para que a segunda cidade do país reúna os meios eco-nómicos, de defesa e de união das Províncias do Norte para sacudir com a causa comum, o jugo da dominação e usurpação. E concorda também com a proposta e ar-gumentos de Chaves de estabelecer quartel-general em Vila Real e concentração da defesa no Douro.

O certo é que estas propostas vieram a ser acolhi-das. A concentração e reforço militar de Vila Real vi-ria de facto a fazer-se com a criação e instalação em Vila Real, por finais do ano do Exército de Observa-ção para a Defesa da Província de Trás-os-Montes e Beira Alta (vereação de Vila Real, assento de 14 de dezembro de 1808).

Coincidentes com Chaves, no outro extremo da Província, por razões idênticas aos das terras do pólo oposto da Província, são as propostas de Miranda. Chega a nomear representante à Junta de Bragança. Mas logo advoga que se deveria reorganizar o plano da defesa da Província, indo ao encontro de propostas mais de acordo com uma maior centralidade organiza-tiva e defensiva. Aliás chega a vias de facto, ao desvin-cular-se de Bragança e constituir unia Junta particular para a sua defesa, porque da Junta Provincial não vem apoio. E vai mais longe, ao estabelecer um acordo de defesa e segurança pública com a Junta de Zamora, pela defesa e protecção da região de onde vem a par-ticular ameaça de guerra mas também do bandoleiris-

mo2.

5 – A invasão e a Restauração em Viseu e Lamego3

O Levantamento Geral das Províncias Nor-tenhas, em articulação com a final procla-mação da Restauração e constituição da

Junta do Porto, fez movimentar o exército de Loison, que a 17 de junho já sai de Almeida, em direção ao Porto para sufocar o levantamento da cidade. «Levava 2600 homens (com 100 de cavalaria), intentava domar o Porto, todo o país além Douro, tendo de fazer frente a toda a Beira Alta» (…). Na marcha achou tudo pacifi-co até Lamego, onde chegou a 20 e no dia seguinte ainda conseguiu passar o Douro na Barca da Regua.

Mas, as dificuldades da marcha são patentes, pro-movidas sobretudo pela resistência das populações, no quadro das suas ordenanças e milícias e com o ânimo dos párocos.

«Era quasi tudo paisanagem, algumas milícias e muita pouca tropa de linha, porque a não havia. Os clérigos e os religiosos faziam uma parte muito conside-rável desta expedição, e deve-se-lhes muito, não só pelo valor e atividade que despregavam, mas também pelo entusiasmo que sabiam inspirar aos povos. Um religioso autorizado e resoluto, um abade ou mesmo um cura, à frente do seu povo, valia por um general: as suas or-dens eram obedecidas sem réplica. Este mesmo espirito manifestou-se no clero por toda a parte do reino: era a consequência de uma guerra que tomava os caracteres de guerra de religião e da pátria».

As tropas de Loison, passado Lamego, entraram em Viseu, sem resistência dos poderes da terra. Tal como noutras terras, também aqui se avaliou a capacidade de resistência da terra. Florêncio José Correia de Melo, governador das Armas da Província, convoca uma Junta para decidir da resistência ou entrega da cidade. O general e o vereador mais velho da câmara votam pela resistência; o corregedor, o juiz de fora e demais camaristas pela recepção amigável. E assim se decidiu. Entraram os franceses, não pediram boletos, acampa-ram no Campo da Feira. Mais tarde o povo amotinado 2 CAPELA; MATOS; BORRALHEIRO, 2008.

3 Seguimos neste ponto, diretamente, a informação contida em José Acúrsio das Neves (1983) - História geral da invasão dos franceses em Portugal e da restauração deste Reino. «Obras completas de José Acúrsio das Neves», volume 2, tomos, III, IV, V, (Tomo III, cap. XVIII; Tomo IV, cap. XLV), Porto: Edições Afrontamento.

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substituirá revolucionariamente os poderes constituí-dos pelo modo como as autoridades tinham recebido Loison e a sua tropa.

Loison e seu exército retrocederão para Almeida, ficando à saída a ideia de que iriam no encalço de Coimbra por terem tomado a estrada de Mangualde, até próximo de Celorico. É então que a 30 de junho Viseu procederá à Aclamação Nacional do príncipe regente e à constituição da sua Junta, num modo to-talmente tradicional. Pelo mesmo tempo, o fizeram os de Foz Côa e outras terras; Lamego tinha-o feito a 23 como se referiu. Na Aclamação e Junta participaram a convocatória das autoridades constituídas com a assis-tência do bispo, general, corregedor, juiz de fora, cama-ra, clero, nobreza e povo.

6 – Juiz do Povo e Junta dos Prudentes de Viseu

Tem-se vindo a referir que neste processo de Levantamento e Restauração da Indepen-dência Nacional e expulsão dos Invasores,

por sob um unanimismo que acaba por ser vitorioso, e em proveito das classes tradicionais que repõem e recuperam o poder na constituição das Juntas – even-tualmente com o alargamento da representação a ou-tras classes sociais – está presente, ora ativo, ora a lar-var o movimento mais profundo, subterrâneo mesmo, a revolução das classes populares. Nuns casos tomam a iniciativa da ação, noutros o trajeto do movimento, chegando a desencadear também a sua revolução po-lítica e social contra a ordem Feudal, Absolutista, dos poderes régios e locais, nas terras e nas câmaras. Em algumas terras a Restauração e os novos Governos constituirão a mais ou menos tempo, Governos Revo-lucionários, de rotura, usurpação e substituição dos poderes tradicionais. Aconteceu em muitas terras de diferentes hierarquias, mas nem sempre estes movi-mentos e governos vieram ao registo e às Memórias da Revolução e Restauração.

Em Acúrsio das Neves na sua História Geral da In-vasão dos Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino, apesar da fixação “conservadora” dos factos da Restauração e da constituição das Juntas, ainda são relatados os factos mais populares, revolucionários destes movimentos, incluindo os seus gestos e tem-pos de duração. É o caso do relatado para Viseu, onde por causa dos termos em que se fizera a “acomodação dos franceses” e dos termos da reconstituição do po-

der pela Junta em 30 de junho, se relata, a constitui-ção de um governo revolucionário, do juiz do povo, na sequência de um levantamento geral do povo no imediato à aclamação e constituição da Junta. De facto relata, no dia seguinte, a 1 de julho, ter-se apresentado no palácio episcopal, onde se reunia a Junta presidida pelo bispo, como juiz eleito pelo povo. E perante os factos e movimento popular, as autoridades e o escri-vão da câmara não só dão juramento e posse ao juiz do povo mas também aos 24 que ele apresenta para o governo da cidade. Este novo poder é realçado e pro-clamado no auge das revoltas e motim de 11 de julho, no «ajuntamento de mais de 3000 pessoas que naquela manhã de 11 de julho se levantaram em massa na pra-ça do Colégio e adro da Sé a fim de desempenhar as funções determinadas no Regimento dado a semelhan-tes cargos nas maiores, mais bem regulados cidades do Reino…, isto é, constituir no juiz do povo e na Junta dos 24 todo o poder da cidade. Decidem a prisão do general, requerem também a prisão do juiz de fora e deposição dos camaristas. Tudo fizeram com ordem do corregedor da comarca, ordenada pelo bispo sob imposição do juiz do povo e amotinados.

Contra a câmara e autoridades o povo elege um juiz do povo, que refere A. das Neves era emprego que não costumava haver naquela cidade, adiantando-se a indicar o indivíduo que para isso destinavam e dois advogados que lhe dariam acessória... Homem que foi feito juiz do povo a quem o escrivão da camara passou a lavrar o auto de juramento, ficou sendo mais que Bispo e mais que General, refere. E a quem o bispo proclama-do Generalíssimo Bispo e o General adjunto que lhe foi nomeado, António da Silveira Pinto da Fonseca, não se animaram a repelir ou resistir tal pretensão.

Este juiz do povo vai acompanhado desde a sua posse, a 2 de julho, de 24 indivíduos, que se anuncia-ram, nomeados pelo juiz do povo para constituírem uma Junta, a quem foi dado juramento e posse. Pelo arbítrio desta notável Junta, baptizada com o nome da Junta dos Prudentes, se ficou regendo a cidade. Nada que espantasse José Acúrsio das Neves que descreve na sua História Geral movimentos revolucionários da mesma natureza, tal como o que descreve desenvolvi-damente para a vila e concelho dos Arcos, na provín-cia do Minho. Não fixa A. das Neves, como o faz para aquela vila alto-minhota, a ação política e as medidas tomadas pelo juiz do povo e Junta dos 24 dos Pruden-tes de Viseu. Certamente, ao modo do que se verifi-cou para os Arcos, registar-se-iam ao mesmo tempo

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medidas e gestos de um programa revolucionário e conservador que afastasse as ditaduras e opressões dos poderosos das terras e fosse ao encontro dos anseios dos povos que um governo de naturais e populares de-veria realizar em muitos casos já movidos pelos ventos da Revolução de 1789. Singular é que aqui em Viseu se recorresse ao figurino de uma instituição – o juiz do povo e os 24 - que na história de Portugal, do seu go-verno civil e político, desempenhou em Lisboa e nou-tras maiores cidades do Reino, ações decisivas em prol da população e da defesa do reino.

A notícia destes eventos, em Viseu, chegando ao Porto, logo moveu as autoridades a agir. Expediram--se ordens ao provedor de Lamego datadas de 20, 21 e 25, para que passasse logo a Viseu a informar-se de tudo. Na sequência do informe à Junta do Porto, pela Relação foi determinado (9 setembro) se fizesse soltar o general e juiz de fora e reintegrar nos seus empre-gos; que os oficiais da câmara e o capitão-mor fossem igualmente reintegrados, mandando prender os réus de que tratava o Provedor de Lamego (…) e proceder a devassa. Foram pois restabelecidas as autoridades le-gítimas.

Mas na entrada de novo os Franceses no Porto (2.ª invasão) o povo força tumultuariamente as cadeias a 22 de março de 1809, libertando todos os réus que nelas se achavam. Informa A. das Neves, que alguns deles se têm depois reconduzido à prisão; de outras não houve notícia. Isto é, o governo viseense entrava de novo na normalidade institucional e a Restauração seguia a Ordem Geral do Reino.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CAPELA, José Viriato; MATOS, Henrique e BOR-RALHEIRO, Rogério (2008) – O Heróico Patriotismo das Províncias do Norte. Os concelhos da Restauração de Portugal. Braga: Casa-Museu de Monção, Universi-dade do Minho.

CAPELA, José Viriato; MATOS, Henrique; BOR-RALHEIRO, Rogério (2009) – Sempre Fiel e Leal. O Porto na restauração nortenha e defesa da independên-cia nacional (1808-1809), PORTO: Área Metropolitana do Porto.

NEVES, José Acúrsio (1983) - História geral da in-vasão dos franceses em Portugal e da restauração deste Reino. «Obras completas de José Acúrsio das Neves», volume 2, tomos, III, IV, V. Porto: Edições Afronta-mento.

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A Revolução Liberal no Douro

texto: António Monteiro CardosoIHC/FCSH/UNL

[email protected]

Resumo: A revolução liberal de 1820 desencadeou na re-

gião do Douro um forte conflito entre os apoiantes da Companhia das Vinhas do Alto Douro e os que sus-tentavam a sua extinção.

Essa oposição predominava no Cima Corgo, em contraste com o Baixo Corgo, onde a Companhia ti-nha grandes apoios. A isso veio acrescer uma profun-da divisão política, com um Cima Corgo liberal e um Baixo Corgo absolutista.

Daí que, quando a partir de 1823 se desencadeiam as revoltas absolutistas, seguidas de uma guerra civil, o Douro vai assistir a fortes conflitos armados entre vizinhos.

É conhecido o papel da família Silveira, que deu ao Douro a imagem de zona forte do miguelismo, esquecendo as guerrilhas liberais que se levantaram por três vezes no Cima Corgo e as centenas de prisões que sofreram.

Palavras-chave: Companhia das Vinhas; Cima Corgo; Baixo Corgo; Revolução liberal.

Abstract: The 1820 liberal revolution unleashed in the Dou-

ro region a strong conflict between the supporters of the Company of Alto Douro Viticulture and  those that supported their extinction.

This opposition predominated in Cima Corgo, in contrast to the Baixo Corgo, where the Company had great support. It reinforced a deep political divide, with a liberal Cima Corgo and an absolutist Baixo Corgo.

Hence, when from 1823 the absolutist uprisings begun, followed by a civil war, the Douro faced strong armed conflict between neighbors.

The role of the Silveira family  is well known, it contributed to the Douro’s  reputation as a region of supporters  of D. Miguel, forgetting the liberal guer-rillas which stood up three times in the Cima Corgo and the hundreds of arrests they suffered.

Keywords: Company of Alto Douro; Cima Corgo; Baixo Corgo; Liberal revolution.

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Nota biográfica:

António Manuel Monteiro Cardoso é Doutorado em História Moderna e Contemporânea pelo ISCTE-IUL, com a tese A Revolução Liberal em Trás-os-Montes (1820-1834). O Povo e as Elites, em 2005, e investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade de Lisboa (IHC/FCSH/UNL). Como investigador, tem-se dedicado ao estudo dos movimentos sociais, nomeadamente na região duriense, tendo publicado:

— «O debate sobre a Companhia e as atitudes políticas no Douro (1820-1834)». In O Douro Contemporâneo. Porto: GEHVID, 2006, pp. 39-53.

— A Revolução Liberal em Trás-os-Montes (1820-1834). O Povo e as Elites. Porto: Edições Afrontamento, 2007.

— «A questão da livre navegação no Douro e a crise de 1840 entre Portugal e Espanha». In Entre discursos de centro e práticas de fronteira. Lisboa: IELT – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e Edições Colibri, 2009, pp. 53-72.

— «Alves Redol: um olhar sobre o Douro». In Alves Redol. O Olhar das Ciências Sociais. Lisboa: Edições Colibri, 2014, p. 353-367.

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A revolução liberal desencadeada no Por-to com o pronunciamento militar de 24 de Agosto de 1820 inaugura uma época de movimentações políticas e militares,

que culminaram numa cruenta guerra civil entre li-berais e miguelistas, somente concluída formalmente com a convenção de Évora Monte em 26 de Maio de 1834.

Como acontece sempre nestas lutas civis travadas à escala nacional, o conflito principal, de cariz dinástico e de regime político, desencadeia ou agudiza violen-tos confrontos a nível local, envolvendo as populações como sucedeu de forma notória na região do Douro.

Na origem desse conflito que dividiu profunda-mente a região e colocou vizinhos contra vizinhos, aldeias contra aldeias, numa luta verdadeiramente fra-tricida, está a diferente posição das populações quanto à Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, fundada pelo marquês de Pombal, em 1756, ou seja em relação à venda do vinho, vital para a sobrevi-vência dos viticultores durienses, sempre ameaçados pela escassez da procura.

De facto, muitos viticultores do Baixo Corgo apoia-vam a Companhia, que lhes assegurava a exportação dos vinhos, pois grande parte deles ficara dentro da demarcação de “vinhos de feitoria”, únicos que se po-diam exportar, enquanto os produtores do Cima Cor-go opunham-se-lhe radicalmente por entenderem que constituía um entrave para a sua atividade.

A rivalidade entre estas sub-regiões remontava aos finais de setecentos, uma época de prosperidade do vinho do Porto, devido à maior procura inglesa. Para responder ao aumento das exportações, alargou-se a zona de produção dos “vinhos de feitoria” que se ex-pandiu para leste, através das “demarcações subsidiá-rias”, fixadas entre 1788 e 1791, no reinado de D. Ma-ria I, que passaram a incluir algumas áreas do Cima Corgo.

Porém, poucos anos depois, logo que a procura dos vinhos diminuiu, a rivalidade entre as duas sub-regiões extremou-se a tal ponto que, em 1797, um conjunto de câmaras do Baixo Corgo (Penaguião, Mesão Frio, Fon-tes, Godim e Lamego) pediram que ficasse sem efeito a demarcação subsidiária. A isto se opôs com sucesso a câmara de Alijó, sustentando que ali se produziam

melhores vinhos do que na demarcação primordial.Anos mais tarde, a revolução de 1820 vai encontrar

o Douro numa conjuntura de crise, pois a colheita ti-nha sido abundante, a procura diminuíra e a Compa-nhia não tinha meios económicos para comprar todo o vinho aprovado.

A situação agudizou-se com a abertura das Cortes constituintes em Janeiro de 1821, onde entrou na or-dem dia a discussão da reforma da Companhia, cujos privilégios, segundo alguns deputados, chocavam com os princípios constitucionais.

O ataque à Companhia partiu do que virá a ser o seu principal inimigo, o deputado Girão, de seu nome completo, António Lobo Barbosa Ferreira Teixeira Gi-rão, morgado de Vilarinho de S. Romão, que defendeu que lhe fossem retirados os seus exclusivos, começan-do pelo do fabrico e venda da aguardente. Seguiu-se a apresentação de uma representação assinada por 600 cidadãos do Porto para que se abolisse o privilé-gio da venda exclusiva nas tabernas da cidade. Estava em aberto a sua extinção na prática, pois a Companhia não podia sobreviver sem os seus privilégios.

O debate nas Cortes depressa se repercutiu no Douro, que se movimentou contra e a favor da Com-panhia, através do envio às Cortes de numerosas peti-ções e pela circulação de inúmeros folhetos e de cartas na imprensa da época, que chega a publicar números especiais para dar a conhecer rapidamente a marcha dos debates parlamentares.

O estilo desta propaganda é apaixonado, com os opositores a lembrarem que a Companhia nascera num “berço de sangue” e no sangue havia de morrer (aludindo à repressão dos motins do Porto, em 1757), enquanto os apoiantes falam dela como o banco, que há 70 anos faz a fortuna dos lavradores do Douro.

Os opositores da Companhia eram quase todos liberais convictos, como o deputado Girão e grande parte dos lavradores do Cima Corgo, pois a sua extin-ção só era possível se o sistema constitucional se man-tivesse.

A Companhia colheu apoio de alguns deputados liberais destacados, oriundos do Baixo Corgo, como por exemplo, o abade de Medrões, Inocêncio Antó-nio de Miranda, autor do célebre “Cidadão Lusitano”, que foi posto no Index e o deputado António Pereira Carneiro Canavarro, proprietário em Santa Marta e capitão-mor de Peso da Régua. De resto, a Companhia favorecera o pronunciamento liberal de 1820, sobretu-do através de José Ferreira Borges, um dos homens do

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“Sinédrio”, homem muito ligado à Companhia, da qual foi secretário.

No entanto, quando as Cortes avançaram num sen-tido claramente liberal, especialmente com a aprova-ção da Constituição de 1822, a Companhia e muitos dos seus apaniguados no Douro passaram a apostar no derrube do regime constitucional, envolvendo-se nas revoltas absolutistas e mais tarde no apoio a D. Miguel.

A primeira revolta armada contra o regime liberal, iniciada em Vila Real em 23 de Fevereiro de 1823, veio evidenciar a divisão política profunda existente no Douro.

À testa desta revolta, encontra-se Francisco da Silveira, segundo conde de Amarante, natural de Canelas, apoiado por um círculo de fidalgos durienses, mais exatamente do Baixo Corgo, quase todos oficiais de cavalaria e parentes entre si. Os títulos de visconde com que mais tarde foram recompensados ilustram a sua origem geográfica: António da Silveira (visconde de Canelas), Gaspar Teixeira (visconde do Peso da Régua), Bernardo da Silveira (visconde da Várzea [de Abrunhais]), entre outros.

Os revoltosos tiveram um sucesso inicial, porque conseguiram sublevar as tropas de Bragança e prin-cipalmente de Chaves, onde dispunham de grande influência e existia descontentamento pela abolição pelas cortes do foro militar, que os subalternizava em relação aos magistrados. Obtiveram uma vitória na ba-talha do monte de Santa Bárbara, perto de Chaves, ao atacarem de surpresa uma força liberal, mas acabaram por ser forçados a retirar para Espanha, perseguidos por tropas constitucionais, numericamente superiores.

Apesar da derrota, esta revolta valeu ao Douro, des-de 1823, a reputação de uma região onde dominava o absolutismo e onde a população se opusera em massa às tropas constitucionais.

Trata-se de uma ideia que perdura até hoje, mas que só poderá aplicar-se à família Silveira e aos fidal-gos do Baixo Corgo, seus partidários e dependentes e que passa pela omissão da atitude política prevalecente no Cima Corgo.

De facto, a revolta do Conde de Amarante suscitou imediata oposição no Cima Corgo, onde uma com-panhia de milícias se reuniu em Alijó com o intuito de atacar os revoltosos de Vila Real, ao mesmo tempo que os seus emissários eram fortemente hostilizados, como sucedeu na feira de Favaios.

Esta polarização entre as duas sub-regiões do Dou-ro firmou-se ainda mais na rebelião seguinte, nos anos

de 1826-1827, desta vez contra o juramento da Carta Constitucional, promovida de novo por Francisco da Silveira, que entretanto obtivera o título de Marquês de Chaves, que surge em campo acompanhado dos re-voltosos de 1823.

Esta movimentação traduziu-se numa invasão por tropas portuguesas a partir de Espanha, para onde ti-nham desertado ao longo do ano de 1826, como forma de se oporem à Carta, que o governo mandara jurar.

Tratou-se de uma invasão à escala nacional, que permitiu aos absolutistas que entraram por Trás-os--Montes apoderar-se temporariamente do norte do país, chegando a aproximar-se do Porto. Desta vez, os revoltosos não hesitam em mobilizar centenas de pes-soas como guerrilhas em povos “fiéis” como Canelas, Covelos, Covelinhas, Penajóia, Mesão Frio e Cidade-lhe, todos no Baixo Corgo.

Ficou célebre o gesto da marquesa de Chaves, que fugiu de noite de Vila Real para Galafura, onde reuniu mais de duas mil pessoas, à frente das quais marchou em cortejo, que entrou de surpresa em Vila Real. Es-tava achado um ícone da lealdade do Douro à causa realista, mas a verdade é que isto ocorria em aldeias de jornaleiros e pequenos lavradores na dependência dos Silveiras.

Esquece-se mais uma vez que havia um outro Douro ferreamente constitucional no Cima Corgo, os “patriotas voluntários” de Vale de Mendiz, Celeirós, Castedo e Sanfins, armados e fardados na cidade do Porto, que ajudaram a desalojar as forças do Marquês de Chaves que tinham ocupado Foz Tua.

A tomada do poder por D. Miguel como rei abso-luto em Março de 1828 e a revolta militar liberal que se seguiu no Porto em Maio daquele ano provocaram uma guerra civil, na qual se manifestou mais uma vez a divisão política do Douro.

Assim, enquanto no Baixo Corgo, os fidalgos que participaram nas revoltas anteriores, agora liderados por Gaspar Teixeira, visconde de Peso da Régua, mar-charam na direção de Amarante para atacar as tro-pas liberais, arrastando milicianos e guerrilheiros, no Cima Corgo levantava-se a famosa guerrilha constitu-cional de Vale de Mendiz, comandada por António da Veiga e Sousa, alferes de ordenanças do Castedo, que juntou mais de 500 homens armados oriundos de um conjunto de povoações situadas entre o Tua e o Pinhão.

Era a terceira vez que o Cima Corgo se armava con-tra as tentativas antiliberais no Douro, mas essa parte da história nunca é contada, mas apenas a “adoração”

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CovelinhasFolgoza

Armamar

Povoações com maior número de réus processados nas devassas de 1828

Régua

Lamego

Penaguião

Cumeeira

Justes

BA

I XO

CO

RG

O

C I M A C O R G O

Vila Real

Mezão Frio

Barqueiros

Gouvinhas

Tabuaço

Cachãoda Valeira

S. João daPesqueira

Rio

Corg

o

Rio

Ceira

Rio Tanha

Rio Varoza

Rio Pinhão

Rio Torto

Rio

Tua

Rio TavoraRio Tedo

Rio Douro

Rio Douro

Rio Douro

Rio

Teix

eira

Galafura

Vilar de Maçada

Barcos

Sabrosa

Castedo

Cotas

Vilarinho deS. Romão

Vale de Mendiz

Favaios S. Mamede de RibatuaCeleirós

AlijóSanfinsCheires

fanática do povo pelos Marqueses de Chaves, na senda da descrição pitoresca de Oliveira Martins no “Portu-gal Contemporâneo».

Para combater esta guerrilha, agora intitulada ba-talhão de voluntários do Senhor D. Pedro IV, os mi-guelistas levantaram guerrilhas de sinal contrário, que cometeram roubos, incêndios, estragos e prisões tumultuárias às mãos dos voluntários realistas de Vila Real, comandados por um barbeiro, conhecido por “Foguete”, célebre pelas suas atrocidades.

Também na margem esquerda do Douro ocorre-ram violentos confrontos entre guerrilhas constitucio-nais e miguelistas, que envolveram choques armados entre povoações. Em Moimenta da Beira formou-se uma guerrilha liberal, com cerca de 60 homens, à qual se uniram constitucionais de Tarouca, Trevões e de Barcos, mas acabaram batidos por uma guerrilha mi-guelista de Tabuaço, armada pelo juiz de fora.

Com a derrota do exército liberal, consolidou-se o poder de D. Miguel, que envia ao Porto uma alçada, munida de poderes para processar e julgar os apoian-tes da rebelião de 16 de Maio de 1828.

Embora a rebelião tivesse carácter militar, implicou a cumplicidade e apoio de muitos civis, contra os quais deviam ser abertas devassas em todas as terras, a cargo dos corregedores, juízes de fora e outras autoridades, sob a direção dos membros da Alçada.

Estas devassas constituíram a maior purga política alguma vez levada a cabo em Portugal, implicando a

pronúncia de cerca de 10.000 pessoas em todo o país. Se alguns dos réus lograram escapar, sobretudo exilan-do-se do país, muitos milhares atulharam as prisões, de tal modo que houve que recorrer a todo o tipo de fortificações militares para os encarcerar. Ficaram cé-lebres pela crueldade dos carcereiros e pelas péssimas condições prisionais o forte de S. Julião da Barra, junto ao Tejo ou a cadeia da Relação do Porto. Raro é o caste-lo em Portugal que não serviu de presídio para os presos políticos liberais, acusados pelo crime de rebelião.

Essas devassas permitem-nos agora saber, apesar das omissões, qual o número de réus acusados, a sua proveniência geográfica e o seu emprego ou modo de subsistência.

Esta análise permitiu-nos concluir que, com o im-pressionante resultado de 903 pronunciados pelo cri-me de rebelião, as devassas tiradas na comarca de Vila Real assumiram enorme amplitude que terá represen-tado a mais intensa repressão política da história con-temporânea portuguesa

Para compreendermos esta vaga repressiva, há que considerar que a comarca de Vila Real abrangia uma área extensíssima, que incluía grande parte da área vinhateira situada entre o Corgo e o Pinhão, ou seja as povoações dos concelhos de Alijó e Favaios, onde se tinham formado guerrilhas liberais nos anos ante-riores. Para entender melhor a distribuição geográfica das povoações com maior número de réus processados nas devassas de 1828, intercalamos o seguinte mapa.

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Nestas povoações, a mobilização liberal atingiu transversalmente os vários grupos sociais, tanto in-cluindo proprietários, lavradores, padres e bacharéis como simples jornaleiros, todos eles constitucionais aguerridos, de que é exemplo a família Torga, formada pelo pai e dois filhos, naturais de Sanfins, condenados a pesadas penas de degredo.

Claro que esta polarização política comporta ex-cepções, como a povoação de Cumieira, no concelho de Santa Marta, que embora situada no Baixo Corgo teve 64 pessoas perseguidas nas devassas.

As devassas atingiram também figuras, que se ti-nham distinguido na época liberal, como o ex-deputa-do Girão, o arqui-inimigo da Companhia, que esteve escondido cinco anos e dois meses em Lisboa, quase sempre num desvão de escada, aproveitando para es-crever o seu livro de contos, intitulado Histórias de Meninos, para Quem não For Criança, publicado logo em 1834.

Também vários sacerdotes optaram pelo liberalis-mo, como o abade de Medrões, Inocêncio António de Miranda, ex-deputado às Cortes, Frei Faustino de S. Gualberto, um agostinho descalço, natural de Peso da Régua, condenado a dez anos de degredo para a ilha do Príncipe, por ter pregado no Porto contra D. Mi-guel, sem falar num jovem frade da Granja de Alijó, Frei António Alves Martins, que se tornaria célebre, anos depois como bispo de Viseu e influente político liberal.

Com o declinar da causa miguelista, cujas tropas não conseguiram entrar no Porto e com uma nova conjuntura internacional favorável ao liberalismo de-corrente da revolução de 1830 em França, os liberais durienses voltaram à luta, que se traduziu em evasões espetaculares das principais cadeias, como sucedeu em Vila Real em Maio de 1832, onde fugiram 40 pre-sos por um túnel subterrâneo, embora alguns tenham sido recapturados.

Acresce que, no Douro, muitos que esperavam be-neficiar com o reforço dos poderes da Companhia, sob o reinado de D. Miguel, cedo se desiludiram porque aquela passou a “separar” grandes quantidades de vi-nho, ou seja, a rejeitá-los no acto de prova, o que sus-citou protestos das câmaras de Santa Marta, Godim e Fontes e levou a protestos violentos na feira da Régua de 1832, quando os lavradores presentes, incitados por dois clérigos, ameaçaram os caixas e o deputado da

junta encarregada das compras, obrigando-as a fugir para o Porto.

Reprovando embora os desacatos, o juiz de fora de Santa Marta rogava que se acudisse aos clamores dos “infelizes lavradores do Douro”, juntando uma exposi-ção, em que se culpava a Junta da Companhia, por ter instaurado na região uma “bárbara desigualdade”, pois os que tinham o vinho aprovado vendiam a pipa a pre-ços elevados, enquanto os que os outros eram forçados a aceitar preços irrisórios.

Os favorecidos eram os deputados da Junta e os poderosos, que incluíam até os “liberais mais afama-dos”, a quem não faltavam os meios de subornar os provadores, enquanto os “Desvalidos, os Realistas, os Lavradores” ficavam na miséria, muitos deles obriga-dos a vender as uvas, por não terem dinheiro para a vindima.

Nestas circunstâncias, concluía-se que o Douro, que em 1823 era conhecido em todo o reino pela sua “realeza”, distinguia-se agora pelo seu liberalismo, ob-servando com espanto que, de 1828 em diante, a “de-serção do Realismo” era muito mais considerável do que o tinha sido nos tempos constitucionais.

Embora possa haver aqui algum exagero, a verdade é que quando, em Abril de 1834, o exército constitu-cional avançou para Trás-os-Montes, atravessando po-voações do Baixo Corgo, célebres pelo apego à causa miguelista e onde sempre deparara com forte resistên-cia, tal não sucedeu desta vez.

Além disso, esse exército integrava o batalhão transmontano, uma força de cerca de 350 homens, grande parte dos quais tinham tomado parte na céle-bre guerrilha de Vale de Mendiz e povoações vizinhas, mais uma vez, sob o comando de António da Veiga e Sousa, do Castedo.

Após o final da guerra civil em 1834, assistiu-se a uma desforra dos liberais que tinham sido perseguidos nos anos anteriores, verificando-se roubos e saques de casas de conhecidos miguelistas e ao homicídio de ou-tros, como o célebre “Foguete” linchado em Vila Real, do corregedor da comarca, Albano de Vasconcelos, que dirigira as devassas e os irmãos Pinto Moreira, de Santa Marta, miguelistas exaltados.

Com o passar dos anos, a paz voltou ao Douro, para mais tarde se romper com violência, por ocasião da Maria da Fonte e da “Patuleia”, mas isso é o tema de outra conferência.

Quanto ao período compreendido entre 1820 e 1834, marcado politicamente pela luta entre liberais,

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predominantes no Cima Corgo e absolutistas, depois chamados miguelistas, prevalecentes no Baixo Corgo, tudo isto com óbvias excepções, resultou em grande parte da sua atitude face à Companhia. Contudo, seria redutor analisar as opções políticas, unicamente com base nesta questão, sem ter em conta as características económicas e sociais específicas das duas sub-regiões durienses.

De facto, o Baixo Corgo era uma zona de influên-cia, por excelência, da propriedade eclesiástica e nobi-liárquica, onde dominava uma fidalguia mais antiga. No fundo, foi para os proteger que foi fundada a Com-panhia, que aí comprava a maior parte dos vinhos.

O panorama alterou-se com a expansão da vinha para o Cima Corgo, onde passaram a produzir-se vi-nhos de cor escura, pagos a bom preço pelos negocian-tes do Porto, pelo que não careciam da Companhia para escoar os vinhos, constituindo até um entrave ao desenvolvimento da sua atividade.

O Cima Corgo, sobretudo a área entre o Pinhão e o Tua, converteu-se numa área de eleição de negocian-tes-proprietários, movendo-se constantemente entre o Douro e o Porto, onde possuíam casas, armazéns e escritórios, uma espécie de empresários – viticultores que tudo tinham a ganhar com a extinção da Com-panhia e a instauração do regime constitucional. Ou seja, uma área de penetração na esfera da produção dos homens de negócios do Porto, nacionais e ingleses.

Organizados como verdadeiras empresas de base familiar, alguns destes proprietários lançam-se em plantações arrojadas no Douro Superior, dando ori-gem a importantes quintas, cuja produção introdu-ziam clandestinamente na demarcação com facilidade e depois livremente após a vitória liberal de 1834.

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Ação coletiva no Douro: a propósito das movimentações da “Maria da Fonte”

texto: Célia Taborda Silva Universidade Lusófona do Porto

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Resumo: No Douro, foi intensa a ação coletiva durante o

período de instauração do liberalismo (1834-1851), motivada por razões políticas, económicas, sociais e religiosas, fruto da instabilidade política que se vivia no país. A falta de controlo estatal contribuiu para a afirmação dos poderes locais, propiciando a que an-tigos notáveis ao serviço do miguelismo pudessem ir mantendo a sua influência junto das populações En-tre as variadas ações conflituais ocorridas nesta época, destacou-se o movimento da “Maria da Fonte”, por es-tar inserido numa revolta popular de dimensões na-cionais.

Esta revolta, embora tenha eclodido no Minho, ra-pidamente se manifestou no Douro, e não apenas pelo efeito contágio. Nos relatórios dos governadores civis para o Ministério do Reino ficou evidenciado que, desde 1845, havia movimentações das elites para pre-parar uma revolta na região duriense.

Através das ações que ocorreram na região, va-mos analisar a “Maria da Fonte” no Douro e refletir sob as peculiaridades do movimento neste território, pois não foi por acaso que em Vila Real se formou a 1.ª Junta revolucionária.

Palavras-chave: Liberalismo, Douro, Ação coleti-va, “Maria da Fonte”

Abstract: In the Douro, was intense collective action during

the period of introduction of liberalism (1834-1851), motivated by political reasons, religious, social and economic, the result of political instability that lived in the country. The lack of State control served to the affirmation of local authorities, providing what former notable serving “miguelismo” could go while main-taining their influence with the various populations Between conflicting actions that occurred at this time, the movement of the “Maria da Fonte”, be inserted in a popular uprising of national dimensions.

This uprising, although it has hatched in Minho, quickly manifested itself in the Douro, and not just by contagion effect. Civil governors reports to the Min-istry of the Kingdom was evidenced that since 1845, there was movement of the elites to prepare a revolt in the Douro region.

Through the actions that occurred in the region, we will analyze the “Maria da Fonte” in the Douro and reflect under the peculiarities of the movement in this country, because it was not by chance that in Vila Real graduated the first revolutionary Junta.

Keywords: Liberalism, Douro, Collective Action, “Maria da Fonte”

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Nota biográfica:

Célia Maria Taborda da Silva é Professora Auxiliar na Universidade Lusófona do Porto. É doutorada em História Contemporânea pela FLUP, com uma tese intitulada: «Movimentos Sociais no Douro no período de implantação do Liberalismo (1834-1855)». Tem várias publicações científicas na área da ação coletiva e movimentos sociais em revistas portuguesas e estrangeiras, bem como tem participado em conferências sobre a temática.

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O Antigo Regime não se desintegrou de um momento para o outro, nem a so-ciedade liberal o substituiu repentina-mente, levando o seu tempo a implan-

tar-se, por razões que passam quer pelo arcaísmo da própria estrutura social portuguesa quer pelo atraso a nível económico e cultural.

Além de lenta, a transformação também não foi pacífica. Na verdade, se em algumas situações o mun-do rural e a sociedade provinciana do reino reagiram com apatia à implementação do liberalismo, noutras responderam com violência aos ventos de moderni-dade. Assim, este período de transição fez-se acompa-nhar de múltiplas e diversificadas situações conflituais, principalmente nos campos, mais profundamente ar-reigados aos seus ancestrais tradicionalismos.

No Douro, foi intensa a ação coletiva durante o pe-ríodo de instauração do liberalismo (1834-1851)1, mo-tivada por razões políticas, económicas, sociais e reli-giosas, fruto da instabilidade política que se vivia no país. A falta de controlo estatal serviu para a afirmação dos poderes locais como uma grande força, propician-do a que antigos notáveis ao serviço do miguelismo pudessem ir mantendo a sua influência junto das po-pulações. Entre as variadas ações conflituais ocorridas nesta época, destacou-se o movimento da “Maria da Fonte”, por estar inserido numa revolta popular de di-mensões nacionais.

A vida na província, pouco dada a mudanças, custava a adaptar-se à nova dinâmica política, que pretendia introduzir alterações nos hábitos e costumes instituídos. Com efeito, com a vitória do liberalismo, iniciou-se uma nova fase na Administração Pública, visando a formação de um sólido aparelho de Estado para sustentar e consolidar o poder político da burguesia ascendente.

Com o cabralismo (chegada ao poder de Costa Ca-bral), em 1842, acentuaram-se as reformas estruturais que vinham a ser executadas pelos governos liberais anteriores. António Bernardo da Costa Cabral, mal conquistou o poder, tomou uma série de medidas ten-dentes à reestruturação da administração e finanças, com vista à modernização do país. De março de 1842

1 SILVA, 2005.

a inícios de 1844, foi publicado o novo código admi-nistrativo, a constituição da Guarda Nacional, a gestão económica das câmaras municipais, os vencimentos dos funcionários, a lei sobre as estradas de 26 de julho de 1843, o projeto de lei sobre a instrução pública de 4 de março de 1844, a lei sobre o imposto relativo à transmissão da propriedade 2.

O descontentamento popular não tardou a mani-festar-se. As reformas mais polémicas, contudo, foram as tributárias. Em 19 de abril de 1845, foi publicado o diploma sobre as contribuições diretas de repartição, que operava uma profunda transformação no siste-ma fiscal, substituindo uma série de impostos por três tributos: predial, de maneio e pessoal. A lei foi pos-ta em execução a 16 de fevereiro de 1846, sendo de imediato contestada. Para o povo, como refere Olivei-ra Martins, o imposto era considerado a «ladroeira» dos homens de Lisboa. Os camponeses começaram a desconfiar dos empregados do Estado que lhes batiam à porta para inquirir dos seus bens e a entrarem em confronto com eles. A contribuir para o desagrado so-breveio a execução das leis de saúde, que decretava a obrigatoriedade dos enterramentos nos cemitérios, e o imposto do covato, provocando uma transformação das atitudes relativas às práticas ligadas à morte e aos enterros. Por tudo isto, não foi com indiferença que as populações rurais viram ruir o Portugal antigo, para elas o verdadeiro, o ditoso, o bom, mais uma vez, nas palavras de Oliveira Martins, substituído por um novo e desconhecido Portugal.

Todo o dissabor gerado por estas medidas de Cabral foi aproveitado pela oposição setembrista e miguelista, estando bem patente a sua intervenção no movimento popular da “Maria da Fonte” e na guerra civil que se lhe seguiu, a Patuleia. Esta revolta, embora tenha eclo-dido no Minho, rapidamente se manifestou no Douro, e não apenas pelo efeito contágio. Nos relatórios dos governadores civis para o Ministério do Reino ficou evidenciado que, desde 1845, havia movimentos de notáveis para preparar uma revolta na região.

Através das ações que ocorreram na região, va-mos analisar a “Maria da Fonte” no Douro e refletir sob as peculiaridades do movimento neste território, pois não foi por acaso que em Vila Real se formou a 1.ª Junta revolucionária.

2 RIBEIRO, 1993:107-129.

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A REVOLTA DA “MARIA DA FONTE” NO DOURO: ESPONTANEIDADE OU CONTÁGIO?

A revolução da “Maria da Fonte” começou no Minho em março de 18463 e desde logo se colocaram várias questões acerca

dos factos e da sua interpretação, questões essas que permaneceram ao longo dos tempos na historiografia nacional.

Alguns autores coevos forneceram os primeiros elementos explicativos, inclinando-se para a tese da espontaneidade, como J. P. Roby, A. Teixeira de Ma-cedo e o padre Casimiro4. Oliveira Martins5 também considerou que a revolta explodiu de um modo es-pontâneo, mas que, em seguida, foi aproveitada pelos partidos políticos da oposição, sobretudo pelos setem-bristas. Seria Camilo Castelo Branco quem primeiro emitiu opinião diferente no seu romance A Brasileira de Prazins e, mais tarde, em Maria da Fonte6, afirman-do que a «gentalha» agiu por influência de algum clero setembrista. Apesar da pertinência das observações de Camilo, foi-se difundindo, até praticamente aos nos-sos dias, o carácter espontâneo da sublevação.

Os historiadores foram, ao longo dos tempos, en-contrando várias justificações para o movimento. No final da década de sessenta e nos anos setenta, Victor de Sá, Miriam Halpern Pereira e Manuel Villaverde Cabral destacaram na revolta o seu caráter antifeudal, antisenhorial e anticapitalista7. Estes autores centra-ram as suas perspetivas de análise na importância dos fatores económicos e sociais, num cenário de desmo-ronamento de um mundo agrário pelo recuo do co-munitarismo face ao individualismo capitalista que se instalava, mas sem deixarem totalmente de lado a espontaneidade das primeiras manifestações. A antro-póloga Joyce Riegelhaupt8 defendeu o mesmo, subli-nhando, além disso, o carácter antiestatal dos protes-tos pela ingerência do Estado na vida quotidiana e na organização do ritual das comunidades camponesas. José Manuel Sobral, num texto introdutório aos Apon-3 Sobre a revolta da Maria da Fonte na Póvoa de Lanhoso ver as obras de CAPELA & BORRALHEIRO, 1996:11. Idem, 1999: 19. E também RO-RICK, 1984:118-119.

4 ROBY, 1846. MACEDO, 1880, CASIMIRO, 1883.

5 MARTINS, s/d: 143-148.

6 CASTELO BRANCO, 1996.

7 SÁ, 1978:276-296; PEREIRA, 1983:293-4; CABRAL, 1976:134-52.

8 RIEGELHAUPT, 1981:29-39.

tamentos do padre Casimiro, também admite o eclodir espontâneo da revolta, referindo-se aos «quadros de sociabilidade local»9. Estudos realizados sobre as ati-tudes mentais das populações perante a morte e o seu culto10 permitem entender o modo como o processo de laicização da vida local promovido pelos cabralis-tas, ao fazerem aplicar as leis de saúde e ao reformarem as confrarias, pode ter desencadeado uma resistência ativa contra o ministério cabralista. Luísa Tiago Oli-veira11, em 1989, defendeu igualmente a espontanei-dade nos «primeiros tempos» e a ausência de um «en-quadramento político» definido.

Na região duriense, a questão da espontaneidade, em nosso entender, não se coloca, não obstante muitos dos levantamentos terem ocorrido no início de maio12, portanto dentro do período cronológico considerado como a primeira fase, a das revoltas espontâneas. Mas perguntamos, como João Antunes Estêvão, se as revol-tas alastraram de terra em terra e de concelho em con-celho, como poderiam continuar a ser espontâneas13? A resposta, para certos autores, reside na ausência de contradição entre o contágio e a espontaneidade, afir-mando que esta se continuou a verificar porque não houve uma liderança a nível nacional14; logo, em ter-mos de macro-história, pode falar-se de revoltas es-pontâneas. Agora, em termos micro-históricos, a nível de cada comunidade, para utilizarmos a linguagem dos antropólogos, essa hipótese já não parece ser tão viável, e no Douro ainda menos, pois o gérmen do des-contentamento há muito que fervilhava entre os po-vos. Desde o ano anterior, os governadores civis quei-xavam-se de que as «massas» se vinham pronunciando muito contra os impostos15. O governador civil de Vi-seu avisava o governo do impacto negativo que tinha causado nas massas o imposto das estradas, afirmando inclusive que alguns homens do povo tinham tomado

9 Ver SOBRAL: 1986, no Prefácio aos Apontamentos do padre Casimiro, nota 65.

10 FEIJÓ et al., 1985.

11 OLIVEIRA, 1989:161.

12 Para Riegelhaupt e Luísa Oliveira, a primeira fase, que para estas auto-ras e outros foi a espontânea, vai de março até maio de 1846.

13 ESTEVÃO, 1998:130.

14 Hobsbawm duvida da existência de movimentos camponeses nacio-nais, afirmando que a norma é a existência de um conglomerado de mo-vimentos locais e regionais, cuja unidade é momentânea e frágil. Conferir, HOBSBAWM, 1976: 18.

15 A.N.T.T., A.S.E., Ministério do Reino. Livro 2. Processo 357.

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parte na última revolta, na esperança de verem derro-gada a lei de 26 de julho de 1843, pela vitória dos re-voltosos. O governador fazia algumas «considerações» acerca das múltiplas resistências que apareceriam se executassem aquela lei sem nenhuma alteração16. O governador da Guarda chamava a atenção para o mes-mo facto, por considerarem os povos que «não estava na justa proporção para com as classes proletárias ser um tributo novo e grande em proporção ao que o povo está habituado a pagar»; por isso, esperavam a vinda de D. Miguel para lhes fazer justiça17. Os povos acha-vam aquele imposto demasiado pesado, por obrigar os homens a trabalhar quatro dias por ano na construção de estradas e ruas entre Lisboa e as cidades distritais ou, não querendo ou não podendo fazê-lo, a pagar 400 réis de taxa anual durante 10 anos18.

O governador de Vila Real, em setembro de 1845, em relatório confidencial para o Ministério do Rei-no, dizia que «os colligados da opposição andão mais animados, tem frequentes reuniões e fazem espalhar pelos povos, que se as Cortes derem apoio ao Minis-tério e este tiver maioria no Parlamento, que em tal caso haverá revolução, que dizem ser inevitável que está tudo preparado, tem dinheiros avultados, e todos os recursos para a levar a effeito». A difusão da ideia de revolução a acontecer proximamente corria por todo o lado, sobretudo nas feiras19. O administrador do concelho de Vila Flor comunicava para o de Murça que os «anarchistas tentão por todo este mês sublevar os Povos contra o Governo». Sabendo as intenções do “inimigo”, aumentaram os efectivos militares em Vila Real e Alijó e mandaram um Destacamento para Vila Flor20.

Terá sido a eficácia dos administrativos e do exérci-to que impediu a oposição de fazer a dita revolução em 1845, na região duriense, para que se dizia preparada? Ou será que as notícias que espalhavam sobre os meios que tinham para a fazer não passavam de propaganda intimidatória21?16 Idem, ibidem. Processo 357, nº159.

17 Idem, ibidem. Processo 357, nº13.

18 Idem, ibidem.

19 Idem, Livro 2. Processo 226-230, nº230.

20 Idem, ibidem, nº223.

21 Que a oposição, nomeadamente a miguelista, tinha optado pela via subversiva como resistência ao Estado era um facto, mas, segundo José Brissos, a «organização sediciosa destinada a cumprir este objectivo teve uma difícil maturação mercê dos entraves resultantes da falta de meios fi-

Os administradores de Alijó e Murça comenta-vam igualmente que, de dia para dia, o espírito dos povos contra o governo piorava por causa do lança-mento da décima e da contribuição para as estradas22. As operações a que as Juntas de Lançamento da Déci-ma procediam consistiam nas medições e avaliações da terra, que era uma maneira nova de fazer tombos e de calcular o imposto. Ora, o campesinato e a fidal-guia local, que vivia essencialmente da terra, ficaram alarmados por se prever um grande aumento dos im-postos e até outros perigos desconhecidos que para a gente simples sempre vinham associados à subida dos encargos para com o Estado. Esses receios eram am-pliados pelo clima de tensão gerado pela descida de preços dos produtos agrícolas resultante do aumento da produção23. Para o governador Civil de Vila Real, os causadores de desconfianças e receios nos povos ti-nham sido os «sequazes do uzurpador»24.

Destes documentos pode inferir-se que a oposição se mantinha atuante no Douro e desde 1844, portan-to, quase todos os levantamentos que ocorreram na região foram previamente preparados pela oposição miguelista e setembrista que ia passando a mensagem de revolta, por via oral, numa cadeia de transmissão hierárquica que partia do clero e da nobreza ou de ou-tros homens com influência social até chegar às mas-sas populares. Daí concordarmos com Rui Feijó quan-do ele diz que nesta revolta há a coexistência de vários movimentos sociais, havendo uma mobilização rural e uma urbana, diferindo nos objetivos e nas formas de que se revestiram25. Consideramos que a maioria dos movimentos durienses, dentro desta classificação, fo-ram urbanos.

Nesta região houve um claro aproveitamento po-lítico do descontentamento que os impostos estavam a causar junto dos contribuintes. O governador civil de Vila Real, no mês de abril, dizia que, nos concelhos do Douro, os «mal intencionados tratão de desvairar o Povo para que não pague as contribuições»26. Resta nanceiros e, sobretudo, da ausência de uma liderança imediata, susceptível de coordenar os recursos possíveis e promover, por assim dizer, a indispen-sável dinâmica multiplicadora das influências». BRISSOS, 1997: 84.

22 A.N.T.T. A.S.E., Ministério do Reino, Livro 2. Processo 756-828.

23 Vivia-se numa época de estagnação do mercado de produtos agríco-las, pelo que qualquer imposto era sentido de forma muito mais dramática pelos trabalhadores rurais. JUSTINO, 1981: 467-474.

24 A.N.T.T., A.S.E., Ministério do Reino, Livro 2. Processo 226-230.

25 FEIJÓ, 1981: 183-191.

26 Arquivo Municipal de Mesão Frio. Correspondência Recebida pelo Ad-ministrador no ano de 1846.

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a dúvida acerca do motivo pelo qual não terão agido mais cedo. Mas pensamos que o problema esteve na dificuldade de encontrar um líder regional, o que con-seguiram em Vila Real, embora somente a nível dis-trital, mas foi suficiente para aí se formar a 1.ª Junta revolucionária.

A forte liderança desta Junta acabou por lhe dar uma amplitude provincial. Em Trás-os-Montes não houve mais nenhuma e a de Braga assumiu um carác-ter local, tendo-se formado no Minho várias Juntas.

OS LEVANTAMENTOS POPULARES

Os primeiros motins da “Maria da Fonte”, como foi referido, aconteceram na Póvoa de Lanhoso, entre 19 e 24 de março, na

freguesia de Fonte Arcada, quando um grupo de mu-lheres impediu o pároco da freguesia de sepultar um cadáver fora da igreja, fazendo-o elas mesmas dentro do templo27. A notícia depressa chegou às autoridades locais que, por sua vez, a comunicaram para o Minis-tério do Reino.

Tais eventos também não passaram despercebi-dos ao cônsul britânico no Porto que rapidamente se apressou a comunicá-los ao seu governo. A 10 de maio enviava um relatório para Inglaterra onde informava do distúrbio popular que tinha ocorrido no Minho e reportava os acontecimentos no Douro28.

O cônsul britânico tinha, igualmente, notícias de que cerca de 3000 insurretos se encontravam em Cas-telo de Paiva e que não existia força militar entre eles e o Porto, temendo que, se resolvessem entrar no Porto, a cidade ficasse a saque, porque a força que a cidade tinha não era suficiente para a defender. Dizia também que as respeitáveis classes de cidadãos não se tinham pronunciado a favor ou contra as autoridades, mas que muitos estavam extremamente insatisfeitos e ansiosos que os senhores Cabral fossem afastados do poder, o que ele pensava aconteceria em breve29.

Os primeiros motins na província de Trás-os-Montes ocorreram nos dias 13 e 16 de abril30, principalmente nas freguesias do concelho de Ruivães, utilizando os mesmos métodos, a queima de processos.

27 Sobre esta revolta do Minho, ver CAPELA & BORRALHEIRO, 1996.

28 Ver sobre o assunto SILVA, 2005: 161.

29 Public Record Office, GB, FO 63 626 (nº13).

30 A.N.T.T., A.S.E., Ministério do Reino, Maço 2090.

O administrador interino do concelho de Ruivães dizia que não havia partido político nestes revoltosos, cujo fim principal era fazer constituir «autoridades suas» para os livrarem dos seus crimes, pelo que com aquela gente não podia haver «moderação e boas maneiras; força e só força os poderá conter». Este administrativo pedia providências para Vila Real, pois os efetivos que tinha não chegavam para evitar sangue31.

João Augusto Marques Gomes32 refere que os primeiros tumultos que se verificaram em Ruivães foram a propósito dos enterramentos fora das igrejas, mas, segundo os documentos que encontrámos, depressa houve um aproveitamento da situação, por parte de indivíduos de baixa condição social, para benefício próprio.

O que aconteceu em Ruivães não se passou no Douro, onde a maioria dos pronunciamentos populares foram aproveitados, alguns mesmo preparados e comandados pelas elites locais.

Em 5 de maio, a revolta deu-se em Mirandela e Murça33. Dali os populares dirigiram-se para Vila Real, onde entraram na tarde de 10 de maio, em número superior a mil, estando mais de metade armados34. Cerca de 400 homens desarmaram a tropa estacionada em Vila Real e tomaram conta do local35. As forças populares comandados pelo «seu heróico chefe», o senhor D. Fernando de Sousa Botelho, foram recebidas pelos habitantes de Vila Real com entusiasmo e regozijo36, pelo que o governador civil, não tendo força para obstar a este movimento, se retirou para Chaves. O povo elegeu então uma Junta Governativa, segundo o cônsul britânico composta por algumas das mais influentes pessoas do distrito de Vila Real, com poderes administrativos e judiciários. Para presidente foi eleito D. Fernando de Sousa Botelho, filho do conde de Vila Real, proprietário do solar de Mateus, tendo como «companheiros e membros» António da Veiga e Sousa e Sebastião José de Carvalho Moutinho.

Na correspondência do consulado inglês de 12 de maio, o cônsul dizia que tinha havido no domingo levantamentos no Douro, em Alijó, Favaios, Provesende, Sanfins e S. Mamede e que os seus gritos

31 Idem. Livro 3. Processo 204, nº1.

32 GOMES, 1889: 18.

33 Idem, ibidem.

34 Idem, ibidem.

35 Public Record Office, GB, FO 63 626 (nº15).

36 Arquivo Municipal de Mesão Frio. Correspondência Recebida.

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foram a favor da rainha e da Carta enquanto clamavam «morram os Cabraes», «nada de contribuições»37. Em Favaios desarmaram 70 soldados e depois foram para Vila Real, expulsando as tropas, tendo algumas ido para a Régua38.

No dia 13 de maio, pronunciou-se Mesão Frio. A Câmara foi dissolvida e a Junta de Vila Real nomeou para ela outros cidadãos. Os povos amotinados das aldeias vizinhas deitaram fogo à maior parte dos papéis daquela administração, conseguindo o escrivão, já «prevenido e acautelado», salvar os «principais papeis e rois», mas não conseguiu evitar que queimassem os papéis das contribuições das estradas, mesmo assim com grande risco para a sua integridade física39.

A 14 de maio, o referido cônsul, em relatório para Londres, contava que, na Régua, as autoridades tinham conseguido levar com elas alguns documentos sobre os novos impostos, mas que cerca de 50 homens armados ainda destruíram muita coisa, insultaram constitucionais, entraram na casa de muitos e ameaçaram tratá-los como eles haviam tratado os miguelistas40.

A 16 de maio, Lamego encontrava-se cercada por tropas, mas a cidade estava pronta para a revolta41 que, de facto, aconteceu. A 17 de maio dava-se um pronunciamento popular em Lamego. Há muito que os povos premeditavam um levantamento por causa dos impostos, mas a força armada tinha conseguido até à data evitá-lo. O detonador foi o anúncio de uma taxa para as obras do convento da Graça. No dia 16, uma multidão das freguesias vizinhas acorreu a Lamego, armada dos mais diversos utensílios. O exército conseguiu a custo contê-los, mas, quando se levantaram tumultos dentro da urbe a favor dos amotinados, as autoridades prometeram uma reunião para o dia seguinte em que decidiriam as resoluções a tomar. No dia 17, as autoridades locais colocaram-se ao lado do povo e decidiram enviar uma representação à rainha, pedindo a demissão do Ministério e providências para que fossem aliviadas as contribuições42.

Em maio, também em Freixo de Espada à Cinta e em Alfândega da Fé se estabeleceram Juntas Provisórias,

37 Public Record Office. FO 63 626.

38 Idem, ibidem.

39 Arquivo de Mesão Frio. Correspondência Recebida no ano de 1846.

40 Public Record Office. GB. FO 63 626.

41 Idem, ibidem.

42 COSTA, 1975: 170.

que pouco depois se dissolveram, e o governador de Bragança nomeou novas autoridades administrativas que «merecessem a estima e confiança dos Povos», dizendo que tinha recebido provas de afeição e de adesão aos novos ministros nomeados43.

Na cidade de Viseu instalou-se a Junta provisória a 15 de Maio, sendo o seu presidente o Barão da Várzea do Douro.

PARA CONCLUIR: COMO PODEMOS CLASSIFICAR OS MO-

TINS DURIENSES?

Nos motins do Minho, embora praticamen-te todos os autores fujam a explicações monocausais, pôs-se muito a tónica ex-

plicativa em aspetos soteriológicos, na alteração dos hábitos religiosos dos povos, crenças e de afetividade, para com os seus parentes falecidos. No Douro, por es-tranho que pareça, não encontrámos nenhum motim ou sequer qualquer alteração da ordem, neste período, por causa da questão dos enterramentos nos cemité-rios e não foi com certeza por sentimentos anímicos diferentes relativamente a esta questão, pois eles verifi-caram-se em anos anteriores.

Também não foram movimentos antissenhoriais do género dos de Antigo Regime, como alguns autores referem para o Minho, já que nem sequer aparecem as inimputáveis mulheres à frente dos motins. Nos docu-mentos que utilizámos nunca apareceram diferencia-das. Se, por acaso, houve participação feminina, ela foi tão insignificante que não mereceu destaque.

O seu carácter político ficou já bem demonstrado, pelo que não se encaixa nos movimentos pré-políticos e pré-capitalistas, igualmente aventados para as re-voltas do Minho. Nesta região, houve um sentimento antiliberal inequivocamente marcado pela participa-ção dos miguelistas. Havia nesta zona muita nobre-za provinciana que era manifestamente adepta de D. Miguel, como havia muitos ex-oficiais miguelistas que residiam na área e que iam tentando minar o sistema com pequenos levantamentos desde a implantação do liberalismo. Desta vez, os liberais cartistas, pelas mãos de Cabral, quiseram modernizar muita coisa em pou-co tempo, o que foi interpretado como uma ameaça, não só para o campesinato menos esclarecido como

43 A.N.T.T., A.S.E., Ministério do Reino. Livro 3. Processo 179.

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para outras classes com interesses instalados. Por ou-tro lado, a oposição estava toda contra Cabral. A luta contra o cabralismo fez, inclusive, esquecer diferenças ideológicas e aproximou miguelistas de liberais mais radicais, como os setembristas. O objetivo era derru-bar o cabralismo.

A “Maria da Fonte” no Douro foi um movimento político e urbano, marcadamente antiestatal, pelas me-didas legislativas que vinham sendo implementadas e eram consideradas injustas44. Os povos revoltaram-se contra um Estado que não lhes dava nada e os amea-çava naquilo que lhes era “sagrado”, a subsistência e a crença. A revolta contra o cabralismo deixou aflorar uma série de animosidades em relação à ordem vigen-te, aquilo que James Scott chama de «registo escondi-do»45, muitas delas derivadas da própria “questão vi-nhateira”, sempre descurada, na opinião dos durienses, pelos governos liberais.

A novidade desta rebelião é que, pela primeira vez, os populares se revoltam contra o Estado, entendido como um poder negativo, como já havia acontecido na Europa.

FONTES: Arquivo Nacional da Torre do Tombo (A.N.T.T).

Fundo do Arquivo das Secretarias de Estado (A.S.E). Ministério do Reino: Livro 2 (Processos: 226-230, 357, 756-828); Livro 3 (Processos: 179, 204).

Arquivo Distrital de Viseu (A.D.V.) Correspon-dência expedida para o Ministério do Reino. Livro 10, 1845-1847.

Arquivo Municipal de Mesão Frio. Correspondên-cia Recebida pelo Administrador no ano de 1846.

Arquivo Inglês. Public Record Office. GB. FO 63 626.

44 Ver, a propósito do Minho, a opinião de SILVA, 1996: 143-157.

45 SCOTT, 1990: 111.

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Painel 2

O MOTIM DE LAMEGO DE 1915Carla Sequeira

João Luís Sequeira

Gaspar Martins Pereira

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Antão de Carvalho e os motins do Douro de 1914-1915

texto: Carla Sequeira

Investigadora do CITCEM. Bolseira de Pós-Doutoramento da FCT

[email protected]

Resumo: Em 1914-1915, a Região Demarcada do Douro

confrontou-se com um clima de forte efervescência social em consequência da crise comercial e de su-per-produção então vivida. A par das iniciativas ins-titucionais, empreendidas pelas municipalidades, pela Comissão de Viticultura Duriense e pelo representante do poder central, suceder-se-iam movimentações po-pulares em diversos concelhos, atingindo, por vezes, características de verdadeiros motins. No presente tra-balho, deter-nos-emos na acção de Antão de Carvalho enquanto líder do movimento regional, caracterizado pela convergência entre acções populares e das elites locais, em defesa da denominação de origem «Porto».

Palavras-chave: Alto Douro; Denominação de origem; Movimentações sociais; Elites

Investigação desenvolvida no âmbito do projecto de pós-doutoramento «Antão Fernandes de Carvalho e a República no Douro», inserido no pro-jecto do CITCEM «O Douro Vinhateiro na Primeira República: Defesa da Denominação de Origem e Construção de uma Identidade Regional». Tra-balho financiado por Fundos Nacionais através da FCT (Bolsa de Pós-Dou-toramento, co-financiada pelo Fundo Social Europeu através do Programa Operacional Potencial Humano – POPH/ QREN). Texto escrito segundo a ortografia anterior ao AO90.

Abastract: In 1914-1915, the Douro Demarcated Region was

confronted with strong social unrest as a result of the commercial crisis. Abreast of the institutional initia-tives undertaken by municipalities, the Douro Viticul-ture Commission and the representative of the central government, popular movements occurred in several localities, forming sometimes true riots. In this paper, we analyze the action of Antão de Carvalho as leader of the regional movement, characterized by the con-vergence of popular actions and local elites, in defense of «Porto» appellation of origin.

Keywords: Alto Douro; «Porto» appellation of origin; social movements; Elites

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Nota biográfica:

Carla Sequeira é doutorada em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2010). É investigadora do CITCEM (Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço & Memória»), onde desenvolve a sua actividade no grupo «Memória, Património e Construção de Identidades». É Bolseira de Pós-Doutoramento da FCT, com o projecto «Antão Fernandes de Carvalho e a República no Douro», integrado no projecto do CITCEM «O Douro Vinhateiro e a Primeira República». A sua área de especialização situa-se no âmbito da história social, institucional e política do Alto Douro.

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OS MOTINS DO DOURO EM 1914-1915

A agitada conjuntura social que se vivia no Douro desde finais do século XIX agravou--se particularmente em 1914. A legislação

reguladora não era cumprida com rigor e os vinhos do Porto e de mesa «Douro» continuavam a sofrer a con-corrência desleal dos vinhos do Sul, com a consequen-te dificuldade de escoamento dos vinhos durienses e abaixamento dos preços. Gerar-se-ia, então, um clima de forte efervescência social, exigindo-se, do Governo, o cumprimento rigoroso da legislação vinícola, maior fiscalização sobre a entrada de vinho do Sul no Dou-ro e em Gaia, a par da garantia das marcas «vinho do Porto» e «virgens do Douro», quer em Portugal quer no estrangeiro.

O movimento regional em defesa da denomina-ção de origem «Porto» ficaria caracterizado por dois tipos de actuação. A par das iniciativas institucionais, empreendidas pelos notáveis e organismos regionais, suceder-se-iam acções populares, atingindo, por vezes, características de verdadeiros motins.

Perante a conjuntura de crise vivida e a demora do Governo na tomada de medidas, a agitação popular ia crescendo, assim como o receio de graves desordens. Em vários concelhos do Alto Douro os sinos tocavam a rebate e a população dirigia-se em massa à Câma-ra Municipal a solicitar auxílio. Foi o que aconteceu na Régua, em Junho de 1914. Inúmeros lavradores do concelho dirigiram-se à Câmara, pedindo a sua intervenção junto do Governo no sentido de serem decretadas providências que minorassem os efeitos destruidores decorrentes das intempéries que se ha-viam registado. Dias mais tarde, em resposta ao repto lançado por Bernardino Zagalo durante um comício de lavradores, a população do concelho voltaria a ma-nifestar-se junto à Câmara, que se encontrava reunida, empunhando bandeiras negras e exigindo medidas por parte do poder central. Acontecimentos idênticos ocorreram no concelho de Alijó. Em várias fregue-sias, os sinos das igrejas tocaram a rebate e a popula-ção reuniu-se junto à Câmara, no momento em que esta se encontrava reunida, mostrando-se disposta a não pagar contribuições ao Estado até que o Governo atendesse as reclamações regionais; ao mesmo tempo, exigia-se que a Câmara encerrasse em sinal de protes-to, atitude que deveria ser imitada pelos restantes mu-nicípios do Douro. No mês seguinte, movimentações

CRISE VITÍCOLA E SOCIAL NA REGIÃO DURIENSE

No início do século XX, a maior parte das regiões vitícolas europeias atravessou uma fase de crise comercial e vitícola, propícia

ao agravamento da conflitualidade social e à eclosão de movimentos de revolta.

Neste contexto, as movimentações dos viticultores assumiram um carácter marcadamente sectorial, corporativo e regionalista, apesar de nelas convergirem, quase sempre, vários movimentos sociais com diferentes interesses, motivações e formas de intervenção.

A liderança destas movimentações sociais foi assumida pelas elites locais, canalizando os descontentamentos populares para a reivindicação política da intervenção do Estado, através de medidas de repressão às fraudes e de regulação da produção e do comércio de vinhos.

Na região do Alto Douro, em crise desde o último terço do século XIX, assistiu-se igualmente a um agravamento da conflitualidade social, manifestada, em particular, contra os «inimigos externos» (exportadores de Gaia menos escrupulosos, acusados de praticarem fraudes e falsificações através da utilização de vinhos do Centro e do Sul do país nas lotações de vinhos do Porto).

Em consequência, multiplicaram-se os movimentos de influências e as reivindicações de medidas protectoras da viticultura regional, defendendo-se o regresso aos princípios da política pombalina. Exacerbou-se um forte espírito regionalista, formaram-se Comissões de Defesa do Douro e prenunciava-se um ambiente de «revolta latente».

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populares ocorridas no Pinhão assumiriam caracterís-ticas de maior violência quando o povo, amotinado, invadiu a quinta da Barca, arrombando tonéis e lan-çando fogo a um armazém de vinhos1. Era o prenún-cio das movimentações populares a que se assistiria, motivadas pelo tratado de comércio entre Portugal e a Grã-Bretanha.

O tratado entre Portugal e a Inglaterra, celebrado a 12 de Agosto de 1914, propunha-se acabar com a enorme concorrência que o vinho do Porto enfrentava no mercado britânico, face a falsificações e imitações estrangeiras, mas, o seu artigo 6º estabelecia como vi-nho do Porto qualquer vinho produzido em Portugal e não na sua legítima região de origem, abrindo cami-nho às falsificações nacionais.

De imediato se desencadeou um forte movimento de contestação junto do Governo. Na Região Duriense as acções institucionais empreendidas acabariam por denunciar, numa primeira fase, a confrontação entre o Baixo Corgo e o Cima Corgo quando, ao pedido de reunião apresentado pela Câmara de Alijó no sentido de se preparar um forte movimento de contestação re-gional, Antão de Carvalho (presidente da Câmara da Régua e da Comissão de Viticultura da Região Durien-se) respondeu com o silêncio2. Não se tratava, contudo, de um silêncio inoperante. Antão de Carvalho tinha uma estratégia política. Acabaria, assim, por se assistir a várias frentes de acção institucional, que se comple-mentariam: às acções iniciadas pela Câmara de Alijó na Região Demarcada do Douro3, Antão de Carvalho contraporia iniciativas junto do poder central. A estra-tégia posta em prática na Região, com o envio de tele-gramas e representações, era apoiada na participação parlamentar, com destaque para Antão de Carvalho, que procurava usar o seu cargo de Senador no sentido de estabelecer uma forte rede de influências parlamen-tar sobre o poder instituído, de modo a possibilitar a concretização da defesa da marca regional «Porto».

Os primeiros sinais de cedência ao movimento duriense por parte do Governo surgiram em inícios de Janeiro de 1915. Nessa data, Antão de Carvalho foi convocado, juntamente com outros parlamentares afectos à causa do Douro, para uma reunião com o ministro dos Negócios Estrangeiros, que se mostrava disposto a elaborar a aclaração reivindicada, definin-1 Segundo a imprensa da época, a população tencionava repetir tais ac-tos em outras quintas, tendo sido travada pelas forças policiais.

2 Cf. A missão de Alijó. «Cinco de Outubro», 16 Dezembro 1914, p. 1.

3 Cf. SEQUEIRA, 2011: 291-293.

do como «vinho do Porto» o vinho produzido na Re-gião Duriense. Em poucos dias, o referido aditamen-to (conseguido por acordo entre Antão de Carvalho, Carlos Richter, os exportadores ingleses, a Associação Comercial do Porto, Sousa Júnior, Bernardo Lucas, Se-rafim de Barros, Torcato de Magalhães e Afonso Cos-ta) seria elaborado e aprovado pela Câmara dos Depu-tados, conjuntamente com a aprovação da ratificação do Tratado.

Apesar destes desenvolvimentos, os ânimos não acalmaram. Como noticiava a imprensa da época, anunciavam-se graves perturbações, fruto da ansieda-de gerada pela demora em serem atendidas as reclama-ções regionais. Desde Março de 1915, sucediam-se, no Alto Douro, manifestações, comícios e tumultos, por vezes com acções violentas, de contornos semelhantes às que haviam ocorrido, com as mesmas motivações de defesa da denominação de origem, em 1911, na região de Champagne, e que eram conhecidas no Alto Douro, através da imprensa. Por exemplo, em Peso da Régua propagou-se o rumor de que algumas pipas de vinho do Bombarral, depositadas na estação de caminho-de--ferro com destino a Tarouca, seriam depois reintro-duzidas na Região Duriense para serem exportadas como vinho do Porto. Tal bastou para que os sinos tocassem a rebate em diversas freguesias e centenas de populares, invadindo a estação de caminho-de-ferro, destruíssem as referidas pipas. Em reunião extraordi-nária da Comissão de Viticultura da Região Duriense, em Abril, considerou-se que os factos ocorridos eram altamente prejudiciais à causa regional e, após inqui-rição aos vogais concelhios, decidiu-se publicar uma moção em que se declarava não existir na região vinho estranho a ela, de modo a acalmar os ânimos.

Tratava-se de uma posição institucional da qual partilhava Antão de Carvalho, tal como demonstrara em situação análoga, em 19064. Antão privilegiava a acção institucional, pondo ao serviço do Douro e da questão duriense a sua rede de sociabilidades políticas. Nesse âmbito se insere a recepção ao seu amigo pessoal e correligionário político, Afonso Costa, na Régua, em Maio de 1915. Em campanha eleitoral para as eleições legislativas de Junho de 1915, Afonso Costa proferiu um discurso com diversas referências à situação do Douro e à incapacidade do Governo em salvaguardar os interesses do sector vitícola junto da diplomacia britânica. Desta forma, parecia colocar-se ao lado das

4 Cf. SEQUEIRA, 2011: 233.

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reivindicações durienses na questão do tratado mas, na verdade, não passava de uma estratégia com vista às eleições legislativas agendadas para Junho, como de-monstrariam os acontecimentos posteriores.

Os protestos em torno do tratado ganhariam novo fôlego a partir de inícios de Junho. O boato de que o tratado ia ser ratificado sem a aclaração aprovada no Parlamento conduziu a uma nova vaga de agitação popular. Sucediam-se manifestações em várias locali-dades. No concelho de Alijó, o povo organizou uma manifestação de protesto. Em Sabrosa, os sinos toca-ram a rebate; uma grande multidão reuniu-se junto à Câmara, onde foi hasteada uma bandeira negra, para ouvir António Augusto Regueiro afirmar que era pre-ciso que o Douro acordasse da sua inércia e reagisse até onde «as circunstâncias o exigissem»5; receava-se, por isso, que a ordem viesse a ser alterada. Em Mesão Frio, havia também grande alvoroço e descontenta-mento mas a Comissão de Defesa do Douro conseguiu orientar os acontecimentos no sentido de um protesto ordeiro

Em simultâneo, os notáveis aproveitavam o perío-do de campanha para as eleições legislativas de 13 des-se mês, no sentido de comprometer as diversas forças partidárias. Ao mesmo tempo que a «missão de Alijó» percorria o Douro apelando ao boicote eleitoral, An-tão de Carvalho, na qualidade de presidente da Câma-ra Municipal da Régua e da Comissão de Viticultura Duriense, procurava pressionar os poderes públicos. Em 8 e 9 de Junho teve lugar novo comício de viticul-tores. Assumindo-se como líder do movimento, Antão de Carvalho enviou um telegrama com as exigências regionais ao Governo. De seguida, fez distribuir uma circular por todas as câmaras, sindicatos e vogais da Comissão de Viticultura, estabelecendo um prazo para as reivindicações serem atendidas, findo o qual todas as autoridades administrativas, entretanto encerradas, se demitiriam. A força do movimento duriense e a ameaça de abstenção eleitoral, levariam Afonso Costa a prometer que patrocinaria a causa duriense no Parla-mento desde que pudesse contar com o apoio ao Parti-do Democrático. Tratava-se, pois, de um jogo político ambivalente: influenciar os resultados eleitorais em função dos benefícios para a causa duriense. O protes-to seria suspenso nas vésperas das eleições e o Partido Democrático obteria as maiorias em todos os círculos eleitorais do Douro, à excepção de Sabrosa e Tabuaço.

5 A questão do Douro. O tratado com a Inglaterra. «O Comércio do Por-to», 8 Junho 1915, p. 2.

Pelo círculo de Vila Real foram eleitos Jerónimo Matos, como senador, e João Carlos de Melo Barreto, como deputado. Jerónimo de Matos pertencia à elite política próxima de Antão de Carvalho e representava a sua continuidade a nível parlamentar. A candidatura de João Carlos de Melo Barreto (antigo regenerador e próximo de Teixeira de Sousa) fora patrocinada pelo Directório do Partido Republicano Português e apoia-da por Antão de Carvalho, como estratégia em bene-fício da causa regional. Melo Barreto propunha-se, de facto, pugnar «pela justíssima causa da infeliz região» duriense6. Antão de Carvalho pedia-lhe, expressamen-te, que estabelecesse, com os deputados eleitos pelos concelhos que formavam a Região, uma estratégia ca-paz de fazer vingar as reclamações regionais, prome-tendo apoio regional à acção parlamentar:

ao primeiro rebate levantará um protesto que há-de ficar memorável na história das lutas económicas e po-líticas do país7.

Esse protesto regional ocorreria em breves sema-nas, quando o compromisso assumido pelo Partido Democrático em período eleitoral não foi respeitado. Cedendo maioritariamente aos interesses da viticul-tura do Sul, o Parlamento acabaria por votar contra a aclaração ao artigo 6.º do tratado, contrariando a reso-lução parlamentar de Janeiro de 1915.

O Alto Douro, através dos seus órgãos represen-tativos, estava decidido a não aceitar aquela decisão. Multiplicaram-se, de novo, as acções de pressão e de protesto institucionais. Antão de Carvalho procurava alargar a base de apoio parlamentar, tendo consegui-do que os deputados pelo Porto passassem a constituir uma frente comum na defesa dos interesses regionais. Ao mesmo tempo, acompanhado de Vítor Macedo Pinto e na qualidade de representantes da Comissão de Viticultura Duriense, promovia sucessivas reuniões com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, com o pre-sidente da Associação Comercial do Porto e da Câma-ra Municipal do Porto. Todos reconheciam a necessi-dade de medidas que garantissem a genuinidade dos vinhos durienses e da respectiva marca.

Nos inícios de Julho realizou-se, na Câmara Muni-

6 Melo Barreto viria a ter uma acção importante no debate sobre o Trata-do, ocorrido entre 6 e 8 de Julho, na Câmara dos Deputados. Cf. SEQUEI-RA, 2014: 142-143.

7 ACD – Fundo da Comissão de Viticultura Duriense, carta de Antão de Carvalho para João Carlos Melo Barreto, 20 de Junho de 1915.

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cipal do Porto, uma reunião decisiva em que participa-ram várias câmaras do Douro, associações comerciais do Norte, vereadores da Câmara do Porto e lavradores durienses. Foi nomeada uma comissão, liderada por Antão de Carvalho, para se deslocar a Lisboa a fim de negociar com o Governo. À semelhança do movimen-to de Junho, os serviços administrativos, agrícolas e industriais seriam suspensos em diversos concelhos8 e tal situação comunicada por telegrama ao Governo, pressionando-o a atender as reclamações durienses.

Estas acções institucionais foram acompanhadas por nova uma vaga de agitação popular. Em Santa Marta de Penaguião e Peso da Régua, os tumultos ad-quiriram características de autêntico motim, com o incendiar das Conservatórias e Repartições de Finan-ças. Em Carrazeda de Ansiães, a população de diversas aldeias invadiu a estação de caminho-de-ferro do Tua, destruindo, a golpes de machado, cascos com aguar-dente do Sul.

Foi neste contexto de grande exaltação que se de-sencadeou o «motim de Lamego». A 20 de Julho de 1915, a população de várias aldeias e freguesias do concelho dirigiu-se à cidade de Lamego, manifestan-do-se em frente ao edifício da Câmara; no momento em que a comissão de representantes se encontra-va reunida com a Comissão Executiva da Câmara, a multidão foi atacada, inesperadamente, pelas forças policiais, daí resultando doze mortos e vinte feridos9. No dia seguinte, registavam-se acções amotinadas em Armamar, onde uma multidão, reunida a toque de si-nos, invadiu a repartição da Fazenda, atirando livros e papéis para a rua e incendiando-os de seguida. Con-firmava-se, assim, a preocupação do correspondente da Régua junto do jornal O Comércio do Porto: «Se ao Douro não for feita justiça, não sei o que sucederá»10.

Face aos acontecimentos, Antão de Carvalho, assu-miu uma postura de comprometimento institucional. Em reunião da Câmara da Régua, afirmou ser necessá-rio não deixar «no esquecimento os trágicos sucessos de Lamego, as suas vítimas e mártires gloriosos da nos-sa causa»11 e, por isso, propunha que fossem identifica-8 Como veio a acontecer em Murça, Moncorvo, Pinhão, Freixo de Espa-da à Cinta, Mesão Frio, Alijó, S. João da Pesqueira; Meda, Régua e Sabrosa.

9 Cf., a este respeito, PEREIRA & SEQUEIRA, 2004: 59-77; SEQUEIRA, 2011: 290-300.

10 Interior. Régua, 21. «O Comércio do Porto», 25 Agosto 1915, p. 1-2.

11 AMPR – Livro de Actas das Sessões da Comissão Exe-cutiva da Câmara Municipal do concelho de Peso da Régua, 1914-1916, fl. 68v-69.

dos os órfãos e viúvas decorrentes dos acontecimentos, a quem deveria ser atribuído um subsídio mensal para o seu sustento, pago pelas câmaras municipais. Além disso, faria aprovar por aclamação, na reunião entre a Comissão de Viticultura e representantes de sindicatos agrícolas e câmaras municipais, ocorrida a 21 de Agos-to de 1915, a moção apresentada por Torcato de Ma-galhães em que se considerava a brutalidade do ataque das forças policiais no «motim de Lamego» como um «atentado contra as legítimas reclamações que então e agora o Douro vem fazendo colectivamente»12.

Esta atitude era consentânea com a posição assu-mida perante o chefe do Governo. Os tumultos da Ré-gua e Santa Marta haviam ocorrido no momento em que a Comissão de delegados do Douro, nomeada na reunião ocorrida na Câmara Municipal do Porto, se encontrava reunida com os membros do Governo. Ao tomar conhecimento do que se passara, o Presidente do Ministério declarou que não podia conferenciar com os «representantes dos incendiários». Antão de Carvalho protestou,

declarando-se solidário com todas as manifestações do Douro e afirmando que o Governo pode suspender a conferência, mas há-de ir concluí-la à Régua com ele e com os seus representados13.

Tais declarações levaram a que o Governo desistisse da sua pretensão, assegurando mesmo a melhor von-tade em atender as reclamações durienses. No final, a Comissão de representantes conseguiria a elaboração de uma proposta de lei em que ficaram garantidos os interesses da região do Douro. Continuaram, por isso, as iniciativas institucionais com vista à sua aprovação. No momento em que o Parlamento se preparava para votar o projecto apresentado pelo Governo14, Antão de Carvalho exortava as Câmaras Municipais, Juntas de Paróquia e demais organismos da Região a manterem--se «muito prevenidos e atentos, velando as armas dia

12 ACD – Fundo da Comissão de Viticultura Duriense, Livro de Actas da Comissão de Viticultura da Região Duriense, 1915-1917, fl. 73.

13 Idem, fl. 78.14 O projecto proibia a exportação para Inglaterra de todos os vinhos licorosos excepto os de Porto, Carcavelos, Moscatel e Setúbal; segundo a imprensa portuense, teria por base um esboço apresentado por Antão de Carvalho no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na sequência da reu-nião de organismos durienses, ocorrida em inícios de Julho, em que se decidira avançar com um projecto deste teor como forma de contornar a possibilidade da aclaração não vir a ser incluída no texto do Tratado.

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e noite»15, pressionando, por telegrama, a Câmara dos Deputados a aprovar o referido projecto.

O apelo de Antão de Carvalho tinha fundamento. O ministro dos Negócios Estrangeiros apoiava a causa do Douro mas o Governo não dispunha de força sufi-ciente para se impor. Em carta de 27 de Julho de 1915, Alfredo de Sousa informava que havia sido enviado para a Mesa da Câmara dos Deputados o projecto go-vernamental, mas que tinha também sido apresentado um contra-projecto, elaborado por deputados do Sul, estabelecendo, entre outras coisas, a autorização de produção de vinhos licorosos no Centro e Sul de Por-tugal, com designação de origem, desde que não uti-lizando a palavra «Porto». Previa-se, pois, um debate difícil. Por isso, Antão de Carvalho encetou uma série de iniciativas tendentes a pressionar os poderes pú-blicos. Por um lado, conseguiu mobilizar a imprensa portuense no apoio ao movimento regional, através da publicação de artigos nos jornais O Primeiro de Janei-ro e A Montanha. Por outro lado, procurando colher uma base de apoio alargada, solicitou solidariedade institucional aos administradores de todos os conce-lhos estranhos às regiões directamente interessadas no tratado, através do envio de telegramas ao Parlamento, bem como do apoio dos deputados e senadores pelo respectivo círculo. Antão de Carvalho enviaria, ainda, na qualidade de presidente da Comissão de Viticultura Duriense, da Câmara da Régua e de antigo Senador da República, um telegrama ao presidente da Câmara dos Deputados, pedindo que fosse feita justiça ao Douro através da aprovação do projecto do Governo. Insistia em que a Região apenas reclamava o que lhe pertencia legitimamente e pedia ao Parlamento que tornasse efi-caz a lei votada em Janeiro, que aprovara o tratado de comércio com a Inglaterra.

Porém, o projecto não passaria na Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, formada maioritariamente por representantes do Sul. A questão seria encerrada apenas em Maio de 1916, ao ser ane-xada uma adenda ao tratado, nos termos reivindicados pelo Alto Douro.

15 AMPR – Livro de Actas das Sessões da Comissão Executiva da Câmara Municipal do concelho de Peso da Régua, 1914-1916, fl. 68v-69.

CONCLUSÕES

Como refere Otília Lage, a Região Durien-se tem sido, «desde a época moderna (…) um espaço de forte tensão social e palco

de recorrentes manifestações populares»16. No caso particular em apreço, as movimentações sociais do Douro em 1914-1915, inscrevem-se no ambiente ge-ral de crise e revolta que, desde finais do século XIX, se vivia nas principais regiões vitícolas europeias. Por outro lado, tendo uma raiz e motivação comuns, as ac-ções populares ocorridas ao longo daqueles dois anos teriam contribuído para o processo de «construção identitária» do Douro Vinhateiro17. Um marcado ca-rácter regionalista sobrepôs-se a diferentes motivações sociais, contribuindo para reforçar o espírito de uma difícil unidade regional, baseada nos interesses vinha-teiros, sobre as divisões naturais e administrativas do território.

Nos protestos durienses de 1914-1915 convergiram uma empenhada intervenção das elites regionais – as-segurando uma direcção ao movimento e represen-tando-o nas negociações com outro sectores e com o poder central – e uma forte mobilização popular, ca-racterizada pela emergência de diversos tumultos ou motins localizados. Porém, nem sempre foi pacífica a relação entre as elites e o povo, que comparecia em massa aos comícios promovidos por notáveis locais, mas desencadeava, de forma aparentemente espon-tânea, tumultos e motins que suscitavam uma atitu-de reservada ou, mesmo, condenatória das elites, que aconselhavam a não praticar violências que em nada serviam a causa do Douro.

No caso concreto de Antão de Carvalho, a sua ac-tuação enquanto líder do movimento de defesa regio-nal em 1914-1915 revelou a existência de uma estraté-gia política de capitalização da rede de influências que criara, a favor da causa duriense. Sendo essencialmen-te um regionalista, as suas fortes ligações políticas fo-ram postas ao serviço do movimento de defesa regio-nal, dos vinhos do Douro e da sua região produtora.

Contudo, embora mantendo uma atitude de reser-va relativamente às movimentações populares, viria a partilhar da percepção regional quanto ao «motim de Lamego», visto como gesto heróico em defesa dos

16 LAGE, 2013: 222.17 LAGE, 2013: 228.

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interesses da região. Em artigo de homenagem, publi-cado no jornal da Régua, A Defesa do Douro, em 1925, afirmava:

A causa triunfou e foram eles os vencedores. Que o Douro nunca os esqueça, pagando a dívida sagrada, ainda em aberto, da merecida consagração aos mortos obscuros, que, em verdade, são os seus mais excelsos e nobre paladinos. Glória aos Mártires!18

18 CARVALHO, Antão de – Glória aos mártires! «A Defesa do Douro». 26 Julho 1925, p. 2. Também publicado em SEQUEIRA, 2014: 263.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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LAGE, Maria Otilia Pereira (2013) – Revoltas po-pulares no Douro Vinhateiro (Carrazeda de Ansiães e Lamego), no final da Monarquia e início da República: representações sociais e identidades a partir da impren-sa da época, In Actas das 1ª Conferências Museu de Lamego/ CITCEM. História e Património no/ do Dou-ro: investigação e desenvolvimento. Lamego: Museu de Lamego – Direcção Regional de Cultura do Norte, p. 221-229.

MARQUES, A. H. Oliveira (1975) – Afonso Costa. Lisboa: Editora Arcádia.

MARQUES, A. H. Oliveira (1978) – História da Primeira República Portuguesa. As estruturas de base. Lisboa: Iniciativas Editoriais.

SEQUEIRA, Carla (2003) – O vinho do Porto e as movimentações sociais nos anos de 1914-15. «Douro – Estudos & Documentos», vol. VIII (15), 1º tomo. Por-to: GEHVID, p. 77-86.

PEREIRA, Gaspar; SEQUEIRA, Carla (2004) – Da Missão de Alijo ao Motim de Lamego: crise e revolta no Douro Vinhateiro em inícios do século XX. «Revista da Faculdade de Letras – História», III Série, vol. 5. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p. 59-77.

SEQUEIRA, Carla (2011) – O Alto Douro entre o livre-cambismo e o proteccionismo: a «questão durien-se» na economia nacional. Porto: CITCEM/Edições Afrontamento.

SEQUEIRA, Carla (2014) – Antão Fernandes de Carvalho e a República no Douro. Porto: CITCEM.

SiglasAMPR – Arquivo Municipal de Peso da RéguaACD – Arquivo da Casa do Douro

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Aquando da ocorrência dos fatídicos acontecimentos junto à Câmara de La-mego, no dia 20 de Julho de 1915, João Pina de Morais era um oficial do exér-

cito português em início de carreira, recentemente chegado ao Regimento de Infantaria 13, de Vila Real. Nessa altura com 26 anos, o então aspirante Pina de Morais, depois de uma infância assumidamente feliz passada entre Valdigem e a casa de Quintião, em Cam-bres, havia já passado pela formação liceal no Colégio de Lamego e no Liceu de Viseu, de 1900 a 1906. Se-guiu-se, em 1907, a matrícula na Academia Politécnica do Porto, onde conviveu com personalidades proemi-nentes do republicanismo português e do movimento da Renascença Portuguesa. Em 1911, Pina de Morais

O motim de Lamego e a causa do Douro na vida e obra de Pina de Morais

texto: João Luís Sequeira Rodrigues

Espaço Miguel Torga

deslocou-se para a Escola de Guerra, em Lisboa, onde concluiu a sua formação militar.

A análise da diversa documentação utilizada na re-constituição biográfica do autor de Sangue Plebeu per-mite-nos inferir com segurança que o sangrento episó-dio de Lamego chocou profundamente Pina de Morais. Desde logo porque seis das vítimas eram conterrâneos de Pina de Morais, da aldeia de Cambres, no concelho de Lamego. O escritor fez questão de nos apresentar individualmente os mártires do motim no texto intro-dutório ao conto No Douro, incluído na obra Sangue Plebeu. Neste conto o escritor homenageia os traba-lhadores durienses, naquele que é por muitos consi-derado como o mais inspirado texto da sua produção literária. Escreveu, então, Pina de Morais:

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Nota biográfica:

João Luís Sequeira Rodrigues nasceu em Vila Real, em Junho de 1966. Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa. É mestre em Cultura Portuguesa pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. É autor das obras João Pina de Morais: Vida, Pensamento e Obra; Pina de Morais – Crónicas no Jornal de Notícias (1942-1950); Viajar com... Pina de Morais. Coordenou a publicação do livro Obra Poética de Aires Torres.

Para além da atividade docente e do exercício de funções na Direção Regional de Cultura do Norte, trabalha atualmente no Espaço Miguel Torga.

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árvores, tudo. Lá vem a Ester. Tem envelhecido muito. Os olhos são fundos sem fim, a figura esquarteja-se dum cubismo impressionante. Toda a gente tem cara, para ter uma máscara é preciso ter sofrido ou amado muito, o que é – ao fim! – a mesma coisa. É uma heroína, tem criado onze filhos, um colosso de trabalho, milhões de canseiras, fome às vezes, sei lá o quê. Falo-lhe do «Abo-no de Família». Para ninguém seria mais justo. É como se lhe falasse das Pirâmides do Egipto ou de Einstein.2

Anos mais tarde, no dia 20 de Outubro de 1949, numa crónica intitulada Miséria Dourada, também publicada no Jornal de Notícias, escreveu Pina de Mo-rais:

Aquela paisagem traduz a alma de toda aque-la gente. Há paisagens para ver, sim, só para ver, e outras para amar. Aquela, a do Douro, é para conviver, para irmanar e, muitas vezes, para en-sinar. Ali pode fazer-se uma lição. É preciso pro-curar sob a beleza da expressão, o significado do esforço ingente daquele trabalho, como em ne-nhuma parte do Mundo. E a lição ensina como se irmanam os homens e a terra, quando os seus destinos – são o mesmo destino.3

Pelo teor destas passagens poderemos aquilatar da enorme comoção que a chacina cometida em Lamego, em Julho de 1915, terá provocado em Pina de Morais. Desse choque nos deu conta António Pinto Machado no artigo João Pina de Morais – Soldado Poeta e Poe-ta Soldado, publicado no Boletim da Casa Regional da Beira-Douro, publicado em 1953, dias após o faleci-mento do escritor. Nesse texto, o autor afirmava mes-mo que os acontecimentos de Lamego terão estado na génese da opção de Pina de Morais pela escrita. Escre-veu, então, o Director do Palácio de Cristal:

Vejo-te aspirante do 13, na ardência dos anos em 1915.

Choravas a meu lado a tristura dos aconteci-mentos de Lamego, com trabalhadores da terra ceifados quando pediam apenas Pão.

A tragédia forjou o escritor.4

Será certamente exagerada a afirmação de Pinto Machado se entendermos que a pulsão inicial da ac-tividade literária de Pina de Morais se tenha ficado a dever exclusivamente ao sangrento acontecimento de

2 MORAIS, 1945b: 1.

3 MORAIS, 1949b: 1.

4 MACHADO, 1953: 41.

A 20 de Julho de 1915 caíram mortos, por uma causa justa e grande, a causa da sua ter-ra, do seu pão e do prestígio do Vinho do Porto, duma maneira trágica e covarde, onze durienses, dez homens e uma mulher, humilíssimos traba-lhadores da gleba. Foram eles:

Maria da Silva Loureiro, Bernardo Pinto, Francisco Guedes, Francisco dos Santos Araújo, José Gomes Rabito, Manuel da Silva, de Cambres; José Cardoso, de Parada do Bispo; José da Rede, de Souto Covo; Maximiano Ferreira, de Valdi-gem; António Ribeiro, de Figueira; e Manuel Cor-reia, de Britiande.1

Para além da partilha da origem geográfica, é tam-bém certo que a sensibilidade social e sentido de res-ponsabilidade perante os mais desfavorecidos de que Pina de Morais deu mostras ao longo da sua vida cí-vica e literária, terá também contribuído para ampliar a comoção perante a tragédia de Lamego. Na verdade, uma das marcas de personalidade mais evidentes em Pina de Morais é a proximidade aos seus semelhan-tes, o sentimento de verdadeira fraternidade que nu-tria por aqueles que o rodeavam, independentemente da sua condição. Em Pina de Morais são múltiplas as evidências do profundo conhecimento que o escritor tinha das pessoas da sua aldeia, das famílias, da sua forma de vida, dos seus usos e costumes, dos ardis de que se socorriam para iludir a fome e a miséria, mas também a assombrosa capacidade de trabalho de que os durienses sempre deram mostras e que está na gé-nese da paisagem humanizada do vale do Douro.

Este traço de personalidade de Pina de Morais en-caixa perfeitamente no perfil ideológico do movimen-to da Renascença Portuguesa que o autor interiorizou durante a sua permanência, enquanto estudante, na Academia Politécnica do Porto e sobressairá nos mo-mentos cruciais da sua vida, da luta em prol da região do Douro e dos durienses, na guerra das trincheiras, ou no exílio. Este sentimento de unidade fraterna que o aproximava dos seus conterrâneos e da terra do Douro pode ser exemplificado num artigo intitulado Crónica Banal da Minha Aldeia, publicado no Jornal de Notícias em 13 de Setembro de 1945. Afirmava, en-tão, Pina de Morais:

Sigo a minha volta pelo povoado. Podia ir de olhos fechados, conheço tudo, as pedras, as casas, as vozes, as

1 MORAIS, 2003: 11.

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Lamego. Na verdade, já antes da sua ocorrência Pina de Morais publicara textos na imprensa. Assim, em 1913, ainda aluno da Escola de Guerra, Pina de Morais iniciou colaboração em jornais regionais como Posta Rural, de Baião e Folha de Viana, de Viana do Caste-lo. Nas crónicas de costumes e episódios da vida mili-tar narradas nesses jornais o autor de Ao Parapeito já denotava talento para a criação literária e dava mostra das influências estéticas e preocupações sociais que futuramente iriam marcar os seus livros e crónicas.

Porém, se analisarmos o percurso cívico e literário de Pina de Morais na sua totalidade poderemos com segurança afirmar que o Motim de Lamego, nas suas causas e consequências, terá tido um papel determi-nante nas opções políticas e literárias que assumiu ao longo da vida. A tragédia acontecida nessa data aos seus irmãos durienses, associada ao contexto de injustiça política e social que esteve na sua génese, fi-zeram com que Pina de Morais assumisse a luta pela defesa da região do Douro e do seu povo como uma das causas maiores da sua acção enquanto político e escritor. Na verdade, julgo que a quase totalidade da obra literária de Pina de Morais tem como premissa e finalidade a defesa do povo, dos mais desfavorecidos da sociedade, entre os quais se contavam as gentes do Douro. Poder-se-á afirmar que em Pina de Morais a actividade da escrita teria uma função instrumental, constituía-se como um veículo privilegiado de asser-ção dos seus posicionamentos ideológicos e políticos. Este princípio está patente tanto na diarística da I Grande Guerra com Ao Parapeito (1919) e O Soldado Saudade na Guerra Grande (1921), nos quais defendia a participação de Portugal na guerra e as virtudes do soldado português, como nas novelas durienses de A Paixão do Maestro (1922); Sangue Plebeu (1942) e Vi-das e Sombras (1949). Nestes textos assume a defesa da causa dos trabalhadores rurais do Douro e a denún-cia das más condições de vida a que a ineficiência do Estado e a incompetência dos sucessivos governos os sujeitava.

O próprio autor nos dá conta deste sentido de dever em relação ao seu torrão natal num artigo que publicou no Jornal de Notícias em 31 de Março de 1949, intitulado O Vinho do Porto. Afirmou Pina de Morais nesse texto:

[…] Sobre mim pesa a responsabilidade de ser duriense, e, portanto, de me considerar na obri-gação de ser útil ao meu torrão. Como filho da região duriense tenho a obrigação de a servir o

melhor que souber. E é isso que venho fazendo sempre que é possível.5

É neste contexto que deveremos inserir e interpretar uma obra como Sangue Plebeu e, em particular, o conto No Douro, no qual Pina de Morais narra ma-gistralmente a sua versão do Motim de Lamego, cuja responsabilidade tem sido objecto de controvérsia ao longo de décadas. No Douro é um texto notável, na forma e no conteúdo. Neste conto, para além de dar uma perspectiva dos acontecimentos trágicos do Mo-tim de Lamego, Pina de Morais revela um profundo conhecimento da região. Do ponto de vista geológico e geográfico e, principalmente, de todas as dimensões do trabalho de cultivo da vinha e produção do vinho. Neste texto o autor revela um raro poder de observa-ção que se traduz na meticulosa descrição das diversas fases do trabalho do cultivo da vinha ao longo do ano, acentuando permanentemente a dimensão humana da paisagem duriense. No Douro é, para além de tudo, uma homenagem à gleba duriense, a todos aqueles que, ao longo de séculos, transformaram uma região inóspita no clima e no chão, numa paisagem única pela beleza e monumentalidade. Não parece ser intenção de Pina de Morais entrar na polémica da identificação dos culpados da tragédia. Coerente com a sua postu-ra de defesa dos trabalhadores, o autor narra-nos os acontecimentos do Motim na perspectiva das vítimas, daqueles que clamando por trabalho e pão, tiveram a metralha como resposta.

Daí que este conto se constitua também como um libelo acusatório às autoridades portuguesas por, não apenas, desprezarem o trabalho e os incontáveis sacri-fícios de um povo que consumia a sua vida na criação do produto de maior valor e projecção internacional da economia portuguesa, como contribuía para o seu desprestígio ao adoptar medidas legislativas que co-locavam em risco a qualidade do Vinho do Porto e a sobrevivência das populações, como era o caso da cláusula 6ª do tratado de comércio a estabelecer entre Portugal e a Inglaterra, em 1914, que abria a possibili-dade de incluir a designação Porto em vinhos produ-zidos fora da Região Demarcada do Douro.

Esta atitude nefasta aos interesses da sua região é claramente denunciada por Pina de Morais, em No Douro quando afirma o seguinte:

Os poderes públicos abandonam à sua sorte o

5 MORAIS, 1949a: 1.

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produto mais rico do País, aquele que podia dar o oiro que chegasse para equilibrar os orçamentos. Cada litro de vinho que se falsifica é um dia de fome para uma criança do Douro, e uma tigela de caldo que se rouba, tal como se a arrancassem das mãos esquálidas que a seguram.6

Publicado em 1942, Sangue Plebeu é um livro que inclui oito contos inspirados em acontecimentos e pessoas reais, habitantes da localidade de Portelo de Cambres. Todas as novelas têm como cenário o Douro.

Sangue Plebeu era um projecto antigo de Pina de Morais como se comprova pelo facto de três dos oito contos já terem sido objecto de publicação anterior em revistas literárias. Assim, ainda que com textos dife-rentes, as novelas intituladas O Rouxinol e A Audiência do Diabo foram editadas na revista A Águia, respecti-vamente em 1922 e 1924; e O Ferrugento saiu na Seara Nova, em Julho de 1922. Este facto comprova que, sen-sivelmente duas décadas antes da publicação daque-la que é uma das suas obras mais inspiradas, já Pina de Morais dava mostras de concentrar na região e no drama do povo duriense a sua produção literária. Esta inferência é reforçada pelo teor de uma entrevista dada por Pina de Morais, em Janeiro de 1927, ao jornal do Rio de Janeiro A Noite, aquando da sua passagem pelo exílio no Brasil. Afirmou, na época, o escritor quando questionado sobre a natureza da actividade que desen-volvia na vida social portuguesa:

A política tem merecido grande parte da mi-nha actividade. Representei o Porto na Câmara Federal, durante diversas legislaturas e trabalhei intensamente na imprensa defendendo os meus princípios, tendo sido mesmo director político de um diário. Depois, a literatura. Tenho feito a literatura dispersiva da imprensa e da observa-ção. Tendo participado da Grande Guerra como capitão, escrevi “No Parapeito” onde procurei fi-xar flagrantes e o espírito geral daquela sangren-ta partida das nossas tropas. Tenho concluído, agora, um livro de costumes “Sangue Plebeu”, no qual pretendo ter feito em três novelas a vida re-gional do Norte7.

Estes factos fazem recuar cerca de vinte anos a in-tenção de Pina de Morais editar um livro exclusiva-

6 MORAIS, 2003: 28.

7 MORAIS, 1927.

mente dedicado à região do Douro e ao seu povo. Este Facto aproxima temporalmente a opção artística e ideológica do autor dos acontecimentos do Motim de Lamego e recoloca Sangue Plebeu numa época em que a sua actividade em prol da defesa do Douro foi ampla e diversificada.

Na verdade, nos anos que se seguiram ao Motim de Lamego, Pina de Morais intensificou a atenção às ques-tões durienses. Não foi apenas no plano artístico que o escritor assumiu como prioritária a causa duriense. Pina de Morais foi uma personalidade multifacetada que dedicou à actividade política a parte substancial dos seus esforços. E foi precisamente enquanto políti-co que Pina de Morais ergueu a sua voz em defesa da causa duriense.

Assim, em 1923, enquanto deputado e colaborador no jornal O Primeiro de Janeiro, opôs-se fortemente à intenção do governo de Álvaro de Castro em lançar um novo imposto sobre o vinho, conhecido como a Base V do Parecer nº 607. Com este imposto, no qual o vinho não era tido como um produto de primeira necessidade, o governo pretendia gerar mais um con-tributo para o equilíbrio das finanças do Estado. Con-tudo, esta proposta acabou por não ser concretizada devido à controvérsia que, então, se gerou.

Em 1925, Pina de Morais voltou a desempenhar um papel relevante em prol da agricultura duriense quando, juntamente com elementos do grupo dos Pa-ladinos do Douro, denunciou publicamente as fraudes na produção do Vinho do Porto devido à introdução de aguardentes provenientes de regiões estranhas ao Douro, o que para além de adulterar o produto, provo-cava a ruína dos agricultores durienses.

Nessa altura, Pina de Morais era já uma persona-lidade respeitada na região do Douro em virtude do conhecimento profundo e transversal que detinha de toda a orgânica que envolvia o Vinho do Porto, desde a produção à comercialização, mas também pelo facto de ter um projecto fundamentado para a reorganiza-ção do sector do vinho do Douro. Projecto esse que ti-nha como objectivo central a protecção dos pequenos agricultores e trabalhadores rurais.

Este reconhecimento, aliado à condição de depu-tado, justificam a presença de Pina de Morais em di-versos comícios e outras acções públicas que aconte-ceram na região duriense em meados da década de 20 do século passado. O prestígio do escritor determinou também, em Novembro de 1926, a sua designação, por parte da Comissão de Viticultura da Região do Douro,

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para membro da Comissão de Representantes Escolhi-dos encarregada de proceder à fiscalização e avaliação do funcionamento do Entreposto de Gaia, entretanto criado.

Pina de Morais assumiu funções na Comissão de Representantes Escolhido numa época particularmen-te agitada da política e da sociedade portuguesa e, por consequência, da sua própria vida.

Assim, a primeira metade da década de 20 ficou marcada pela degenerescência do regime republica-no, que culminou no golpe de 28 de Maio de 1926 e consequente imposição do regime da ditadura. Pina de Morais, que durante esses anos combateu, como depu-tado e na imprensa, os abusos do Partido Republicano, viu-se confrontado com a tomada do poder, pela força, por parte de um governo que contrariava os princípios mais elementares da República e da Democracia. Daí que, integrado no movimento do Reviralho, se tenha envolvido na preparação de um contra-golpe revolu-cionário tendente à reposição da ordem republicana em Portugal. Esse golpe aconteceu entre os dias 3 e 7 de Fevereiro de 1927, no Porto. Contudo, divisões, de-sentendimentos e traições intestinas levaram a que o golpe se tenha gorado, o que levou Pina de Morais a iniciar um período de exílio que passou por Espanha, Brasil e França.

Porém, a distância física não implicou um afas-tamento de Pina de Morais em relação à questão do Douro. Pelo contrário, afastado do Exército o escritor encontrou na comercialização de vinhos em França a sua fonte de subsistência. Esta actividade profissio-nal permitiu a Pina de Morais alargar conhecimentos relativamente à vertente da comercialização e expor-tação do Vinho do Porto. Ao comercializar vinhos, pôde constatar a diferença de estratégias e ambição comercial entre outros países produtores de vinho e Portugal, e dessa análise concluiu do enorme prejuízo e consequente pobreza social que a ausência de uma política económica eficaz no sector do vinho por par-te das autoridades portuguesas, causava à população duriense.

A participação de Pina de Morais na tentativa de golpe de 3 de Fevereiro custou-lhe um exílio de cinco anos e um afastamento da imprensa que durou quin-ze anos. Na verdade, só em 1942, o escritor retomou actividade regular nos jornais ao assinar uma crónica semanal no Jornal de Notícias. Nessas crónicas, Pina de Morais analisou a evolução da II Grande Guerra, escreveu sobre política internacional e assuntos de or-

dem ideológica e reflectiu sobre a vida social e urbanis-mo da cidade do Porto. Mas foi também oportunidade de voltar a escrever com regularidade sobre a questão do Douro, com especial incidência na organização ins-titucional que regia a produção e comercialização do Vinho do Porto.

Assim, nas mais de três de dezenas de crónicas pu-blicadas na primeira página do Jornal de Notícias du-rante os oito anos que durou a sua colaboração, Pina de Morais insistiu na necessidade de uma reorganiza-ção do sector do Vinho do Porto e, principalmente, na urgência da adopção de uma estratégia mais ambicio-sa de comercialização do vinho, que fizesse chegar o nosso maior produto de exportação a novos países e novos mercados. Segundo Pina de Morais, nem o es-tabelecimento do Entreposto de Gaia, nem a criação da Casa do Douro, em 1932, resolveram os problemas da lavoura duriense, pois, na perspectiva do escritor, o principal condicionamento do Vinho do Porto residia na exportação, o que se repercutia, em última análise, na continuada situação de pobreza económica e social dos trabalhadores rurais e das suas famílias

Para Pina de Morais, era indispensável que o Go-verno português e instituições como o Instituto do Vi-nho do Porto e o Grémio dos Exportadores de Vinho do Porto, assumissem uma política expansionista do Vinho do Porto, aproveitando a conjuntura económi-ca e política saída da II Grande Guerra, visto que, na sua opinião e tendo em conta o conhecimento que ti-nha do mercado internacional, Pina de Morais estava convicto que o Vinho do Porto superava em qualidade os vinhos concorrentes, oriundos de outros países. Po-rém, tradicionalmente, as instituições reguladoras do negócio do Vinho do Porto recorriam a um processo inverso, sempre que a produção de uvas ultrapassava as previsões, ou seja, optavam pela queima do vinho excedentário, o que regulava o mercado, mas também limitava a expansão do produto e contribuía para o empobrecimento das populações. Em diversos arti-gos Pina de Morais manifestou a sua oposição a este procedimento. Assim, em Fevereiro de 1944, publicou uma crónica intitulada Agro-Economia – O Novo de-creto sobre o Plantio da Vinha, na qual afirmou:

O sistema de deixar de produzir porque o pro-duto abunda, o preço baixa e as compensações à cultura desaparecem, é evidentemente uma solu-ção. Mas é uma solução trágica, a última, a mais triste porque se baseia em estancar uma fonte de riqueza. Fonte de riqueza que atrás de si acarreta

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um verdadeiro cortejo de irremediáveis prejuí-zos.8

Mais tarde, no artigo O Douro e o Vinho do Porto, publicado em 6 de Setembro de 1945, o escritor reforça esta ideia ao afirmar o seguinte:

A queima dos vinhos no Douro é o inimigo número um da região e do vinho do Porto. Não se deu conta da sua gravidade porque se queima-vam pequenas quantidades, exactamente como se não dá conta da toxidade desse produto quan-do ministrado em pequenas porções. Mas hoje, o problema da queima dos vinhos do Douro apre-senta duma maneira iniludível a sua insensatez económica. E de tal forma que a sua tendência conduziria ao esmagamento de muita possibili-dade de exportação. […] Impõe-se a revisão de todos os princípios económicos que enfermam os estatutos do conjunto – Vinho do Porto – e pro-mover o seu aperfeiçoamento.9

Porém, numa crónica intitulada Política Económica – O Vinho, publicada anteriormente, em 22 de Outu-bro de 1942, Pina de Morais colocava a tónica na di-mensão social e política subjacente à estratégia limita-tiva do governo Português relativamente ao sector do Vinho do Porto, apontando as suas consequências ao nível da pobreza a que condenava a população. Escre-veu Pina de Morais nesse artigo:

É o nosso país de tal maneira vinícola, que a sua produção conduza fatalmente a uma crise endémica de vinho? A nossa produção é tão vasta que leve o produtor a viver na inquietação permanente de não saber se poderá cobrir as suas despesas de granjeio e as suas próprias?

Cuidamos que não. Cuidamos que dentro des-te problema se abriga um erro económico crasso e que infelizmente ainda o mesmo problema não foi encarado pelo seu verdadeiro prisma. Cremos que o país é vinícola porque produz felizmente vi-nho, mas não é um país que produza exagerada-mente. Cremos, pelo contrário, que nunca houve pletora de vinho, embora as crises sejam tanta vez tremendas.

Afirmamos pelo contrário que a nossa pro-dução é, em geral, deficitária e que nunca devia

8 MORAIS, 1944: 1.

9 MORAIS, 1945a:1.

haver crise.[…] É que o nosso país é um país fragilmente

vinícola onde ninguém bebe vinho. Porque não gostam? Não. Porque não podem bebê-lo, não têm recursos para o fazer. Este é que é o facto insofismável. Sendo a quase totalidade da nação constituída por trabalhadores, estes não podem beber vinho às suas refeições, porque o preço do trabalho é muito baixo. Esta asserção levar-nos--ia a largas considerações, o que nos forçaria a abandonar o problema de que estamos tratando. Não me recorda de ver tratado este assunto com a nudez indispensável com que o estamos fazendo.

Tenho alguns amigos espalhados pelo estran-geiro. Há relativamente pouco tempo recebi a vi-sita de um deles, francês.

Arrasou-me de perguntas a que eu respondia como podia. Por fim, rematou desta forma:

- Os senhores o que exportam é mão-de-obra, é trabalho. No dia em que pagarem como se paga em França o trabalho, não haverá nada para ex-portar. A mim fazia-me espécie, que os senhores vendessem a água-raz em Bordéus mais barata do que a produzida nas landes que vizinham a cidade.

Esta frase é duma realidade iniludível e bate como o jacto de luz das lanternas furta-fogo so-bre toda a rede da nossa organização económica e sobretudo sobre a nossa exportação.10

É evidente que, dado o contexto político vivido na época em Portugal, as ideias de Pina de Morais sobre o funcionamento da estrutura orgânica do sector do vi-nho do Porto não foram aceites pacificamente pelo po-der instituído. Foram vários os artigos objecto de polé-mica por parte dos responsáveis institucionais e outros foram mesmo censurados. Mas nem por isso Pina de Morais deixou de expressar as suas ideias. Ao longo da sua participação no Jornal de Notícias foi sempre apresentando propostas que, genericamente, visavam a melhoria das condições de vida dos trabalhadores rurais durienses. Entre essas propostas podemos ainda mencionar a criação de um Banco do Vinho do Porto, a urgência de formação de enólogos e a necessidade de abolir a duplicação de grémios de lavradores no Dou-ro.

10 Morais, 1942: 1.

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Um século passado sobre o trágico Motim de La-mego, parece absolutamente apropriado lembrar nesta data os humildes trabalhadores agrícolas assassinados quando apenas reivindicavam trabalho e pão, bem como as circunstâncias sociais e políticas em que estes actos bárbaros aconteceram. Neste contexto, é tam-bém justo recordar a figura de João Pina de Morais, um exemplo de coragem e civismo que assumiu o pa-pel de cronista dos acontecimentos ocorridos junto à Câmara de Lamego, não apenas para homenagear os seus irmãos durienses mortos, mas também para que nos lembremos sempre que no Douro, por trás da be-leza da paisagem e da excelência do vinho está o tra-balho e o sacrifício de gerações de homens e mulheres que, desde há mais de dois séculos e meio, criaram uma região única no mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MACHADO, A. Pinto (1953) - João Pina de Morais – Soldado Poeta e Poeta Soldado. «Boletim da Casa Re-gional da Beira-Douro», Fevereiro de 1953.

MORAIS, Pina (1927) – «Jornal a Noite», Rio de Janeiro.

MORAIS, Pina de (1942) – Política Económica – O Vinho. «Jornal de Notícias», Porto, 22 Outubro, p. 1.

MORAIS, Pina de (1944) – Agro-Economia – O Novo decreto sobre o Plantio da Vinha. «Jornal de Notí-cias», Porto, 24 Fevereiro, p. 1.

MORAIS, Pina de (1945a) – O Douro e o Vinho do Porto. «Jornal de Notícias», Porto, 6 Setembro, p.1.

MORAIS, Pina de (1945b) - Crónica Banal da Mi-nha Aldeia. «Jornal de Notícias», Porto, 13 Setembro, p. 1.

MORAIS, Pina de (1949ª) - «O Vinho do Porto». Jornal de Notícias, Porto, 31 Março, p 1.

MORAIS, Pina de (1949b) - Miséria Dourada. «Jor-nal de Notícias», Porto, 20 Outubro, p.1

MORAIS, Pina de (2003) – Sangue Plebeu, 2ª Edi-ção. Lamego: Museu do Douro/Câmara Municipal de Lamego.

SOUSA, Fernando de (1988) – A Memória de um Século. «Jornal de Notícias» (Edição Comemorativa do Primeiro Centenário do Jornal de Notícias). Porto.

RODRIGUES, João Luís Sequeira (2007) – João Pina de Morais – Vida, Pensamento e Obra. Porto: Edi-ções Caixotim.

RODRIGUES, João Luís Sequeira (selecção, coordenação e notas) (2009) – Pina de Morais – Cróni-cas no Jornal de Notícias (1942 – 1950). Fafe: Editora Labirinto.

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O motim de Lamego, um momento histórico de consagração da denominação

de origem «Porto» para os vinhos generosos da Região

Demarcada do Douro

texto: Gaspar Martins Pereira

INTRODUÇÃO

O motim de Lamego de 20 de Julho de 1915 constituiu o culminar do movimento de contestação duriense ao Tratado de co-

mércio luso-britânico de 1914, em particular ao seu artigo 6.º, cuja redacção desprezava a origem regional do vinho do Porto, admitindo que essa designação pudesse ser usada em Inglaterra por qualquer vinho produzido em Portugal. Num contexto de crise co-mercial do vinho do Porto, que enfrentava, desde fi-nais do século XIX, uma intensa concorrência nos mercados europeus, em que proliferavam falsificações baratas, os durienses reagiram com um vasto conjunto de movimentações, tanto das elites vinhateiras como das camadas populares, em simultâneo com o sector exportador, como poucas vezes tinha acontecido, para

defender a denominação de origem «Porto» e o seu uso exclusivo pelos vinhos generosos produzidos na Região Demarcada do Douro. O desfecho sangrento do motim de Lamego transformou esse acontecimento num momento histórico de consagração da denomi-nação de origem, elevando os seus actores à condição de heróis-mártires da causa regional.

Nesta breve comunicação, pretendemos apenas destacar o carácter épico da revolta de Lamego, que justifica este momento de celebração, buscando per-ceber o seu significado histórico, em comparação com outros movimentos sociais que ocorreram no Douro e em outras regiões vitícolas europeias no início do sé-culo XX.

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Nota biográfica:

Gaspar Martins Pereira é Professor catedrático do Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigador do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço & Memória». Tem desenvolvido investigação nas áreas de História Urbana, História Social, História Empresarial e História da Vinha e do Vinho. É autor de diversas obras, de que se destacam, entre as publicações mais recentes, Uma vida pela liberdade: Artur Santos Silva, 1910-1980 (Porto, 2010), Crise e Reconstrução. O Douro e o Vinho do Porto no século XIX (coord., Porto, 2010), Roriz. História de uma Quinta no Coração do Douro (Porto, 2011), Alves Redol e o Douro. Correspondência para Francisco Tavares Teles (org., Porto, 2013), Unicer, uma longa história (Leça do Balio, 2014).

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MEMÓRIA E ESQUECIMENTO

Deve dizer-se que a importância deste acon-tecimento histórico, apesar do destaque que lhe conferiu a imprensa da época,

por vezes com interpretações contraditórias, foi, de-pois, continuamente abafada, por razões ideológicas, quer pelos republicanos mais intolerantes, que viam na participação de alguns monárquicos um ataque à República, quer pelos adeptos do Estado Novo, que privilegiavam uma ideia de ordem social contrária a todas as formas de manifestação e de intervenção cívi-ca. É certo que, ainda durante a Primeira República, é possível assinalar uma ou outra comemoração tímida da revolta de Lamego. Por exemplo, no décimo ani-versário dos acontecimentos, o semanário reguense A Defesa do Douro publicou um número especial de homenagem aos «mártires da causa do Douro»1. Com destaque de caixa, integrada no próprio cabeçalho e sob o título «Como se deu a carnificina», pode ler-se uma declaração de João Carlos Guedes, que participa-ra activamente na revolta:

Ninguém melhor do que eu sabe como as coisas se passaram e por isso também ninguém melhor sabe que nenhuma razão plausível houve para aquele procedimento.

Não posso dizer quantos foram os feridos por estilhaços de bombas; posso só dizer que, diante de mim, no hospital, os médicos reconheceram haver ferimentos por estilhaços de bombas. Al-guns foram mortos, a tiro, das janelas das trasei-ras da casa da Câmara quando fugiam!2

Logo a seguir, a toda a largura da primeira página, evocavam-se, com destaque a negro, as doze pessoas mortas na revolta:

20-VII-1915Os mártires da causa do DouroDa freguesia de Cambres:

— Bernardo Pinto, que deixou viúva e dois filhos; Maria da Silva, que deixou viúvo e seis fi-lhos; José Gomes Rabito, que deixou viúva e um filho; Francisco dos Santos Araújo, que deixou

1 A Defesa do Douro. Peso da Régua, ano I, n.º 30, 26.07.1925. Este nú-mero do jornal inclui artigos de Júlio Vilela, Antão de Carvalho, A. de Sou-sa, Vieira da Costa, Torcato de Magalhães, Nuno Simões, Amâncio Queirós e A. Regueiro.

2 Idem, ibidem.

viúva e dois filhos; Francisco Guedes, solteiro; Pe-dro da Silva, que deixou viúva.

Da freguesia de Valdigem: — Uma mulher, mendiga; Maximiano Ferreira da Silva, que dei-xou viúva e filhos.

Da freguesia de Figueira: — António Ribeiro, que deixou viúva e 4 filhos.

— Um rapaz, de maior idade, de Sande.— José da Rede, que deixou viúva e três filhos,

de Almacave.— Um rapaz, solteiro, de Britiande.3

Justificando a homenagem promovida pelo semanário A Defesa do Douro, o seu director, Júlio Vilela, considerava que os durienses não podiam esquecer aquele momento:

20 de Julho de 1915 é uma data que o Douro não deve, não pode esquecer. O sangue vertido nesse dia, alarmando os governantes, obrigou-os a atender as reclamações, aliás justíssimas, que o Douro fez em prol da aclaração da base VI desse tratado [de comércio com a Inglaterra].

Quem nos diz que, sem ele, sem esse sangue inocente se obteria a vitória?! Quem pode afir-mar que não era necessário aquele golpe brutal da Fatalidade e do Destino para que justiça fosse feita ao Douro?!

Eis porque é preciso relembrar essa data. Agora, mais do que nunca, é forçoso não esque-cer essas vítimas, lembrando-se o Douro de que, estando na eminência de ver denunciado o tra-tado de comércio que foi a causa daquela tragé-dia, ninguém lhe pode afiançar que, para defesa do pão de seus filhos, não seja preciso derramar mais sangue, atirando-se para uma luta ingente, formidável, talvez a maior de quantas tem sus-tentado!4

O tom de todos os artigos desse número do jornal é de idêntica consagração dos heróis-mártires da causa do Douro, que, em 20 de Julho de 1915, tinham contri-buído, decisivamente, para a vitória do movimento de protesto contra o artigo 6.º do tratado luso-bitânico, obrigando o governo a proceder à aclaração daquele artigo, assumindo que a denominação de vinho do Porto pertencia em exclusivo aos vinhos generosos produzidos na região do Douro. Alguns artigos do jor-

3 Idem, ibidem.

4 VILELA, 1925: 1.

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nal que temos vindo a citar historiam o movimento duriense, desde a «missão de Alijó», chefiada por Tor-cato de Magalhães, em finais de 1914, passando pelos grandes comícios vinhateiros, por campanhas de im-prensa e pelas representações e negociações junto do Governo e do Parlamento, lideradas pelas elites regio-nais, até às manifestações populares que se verificaram em várias vilas do Douro na Primavera e no início do Verão de 1915.

As homenagens promovidas em 1925, como se de-preende das palavras que citámos de Júlio Vilela, assu-miram a revolta de Lamego como um momento-chave da defesa dos interesses regionais, no contexto de reac-tivação do movimento duriense, que viria a estender--se até 1932 e a estar na origem da fundação da Casa do Douro, já no limiar do Estado Novo.

Nos anos quarenta, numa conjuntura de abertura intelectual e também de uma renovada atenção aos dramas sociais e humanos da viticultura duriense, agravados por uma nova crise comercial do sector do vinho do Porto, a consagração dos mártires da revolta de Lamego seria reafirmada e fixada na narrativa literá-ria. Primeiro, com a evocação feita por Pina de Morais no conto inicial do seu livro Sangue Plebeu, publicado em 1942. Em jeito de apresentação ao conto No Dou-ro, Pina de Morais refere-se às «esquecidas efemérides da Região demarcada do Douro», homenageando os «humilíssimos trabalhadores da gleba» que «caíram mortos, por uma causa justa e grande, a causa da sua terra, do seu pão e do prestígio do Vinho do Porto, duma maneira trágica e covarde»5. E, adiante, propõe que seja erguido um monumento em sua memória: «não quero que este lancinante heroísmo se perca, não quero que a ingratidão de nós todos continue»6.

Poucos anos depois, o consagrado escritor ribate-jano Alves Redol dedicaria à revolta de Lamego o vo-lume Vindima de Sangue, desfecho do «Ciclo Port Wi-ne»7. Na prosa neo-realista de Alves Redol, a narrativa literária, ancorada na memória regional e na pesquisa de muitas fontes documentais da época, contextualiza amplamente os movimentos populares de 1914 e 1915, revelando-nos, para lá da trama ficcional, a conjuntura política e económica nacional e internacional, as con-

5 MORAIS, 1942: 9.

6 MORAIS, 1942: 10.

7 Os três volumes do «Ciclo Port Wine» — Horizonte Cerrado; Os Ho-mens e as Sombras; Vindima de Sangue — foram publicados, respectiva-mente em 1949, 1951 e 1953, com reedições posteriores. A 5.ª edição foi lançada no presente ano (Lisboa: Ed. Caminho, 2015).

dições de vida dos pequenos viticultores durienses e a profunda crise que os atingia, as diferenças sociais e territoriais dentro da região demarcada, os conflitos entre os produtores e os negociantes, bem como entre o Douro e as regiões do Sul, cujos vinhos mais baratos eram misturados com vinhos generosos do Douro e se introduziam no circuito exportador sob a denomina-ção «Porto»8.

Apesar dessas tão vivas narrativas literárias, re-flectindo a importância que assumiu na memória regional, bem como da abundância de fontes para o seu estudo9, o movimento duriense foi, durante muito tempo, desprezado pelos historiadores. Mesmo obras de grande fôlego ignoraram a revolta de Lamego ou, quando muito, concederam-lhe escassas linhas, como, por exemplo, a História de Portugal, dirigida por Da-mião Peres10. Por vezes, o movimento duriense apare-ce-nos obscurecido por interpretações incongruentes. Numa obra recente sobre a I República pode ler-se:

As vagas de assalto são sobretudo um resultado da conjuntura de guerra e não podiam ser dela dissociadas. A prova surge em Julho de 1915, quando o que tinha co-meçado por ser um movimento exclusivamente urbano se alarga às zonas rurais. Começam nesse mês as “revol-tas camponesas”, com as populações rurais a “invadi-rem” Lamego para assaltar armazéns e destruir tudo o que lhes cheirasse a Estado que encontrassem pela fren-te, a começar na câmara municipal.11

A verdade é que a historiografia regional só muito recentemente tem vindo a gerar um bom conjunto de estudos e análises mais detalhadas, solidamente alicer-çadas nas fontes, incluindo o motim de Lamego e o contexto histórico em que ocorreu12.

8 PEREIRA, 2014.

9 Além das inúmeras referências existentes na imprensa e outras fontes da época, vale a pena destacar a compilação documental feita por PEREI-RA, 1949.

10 PERES, 1954: 118-119.

11 TELO, 2010: 328.

12 Em especial, SEQUEIRA, 2000; SEQUEIRA, 2003; PEREIRA & SE-QUEIRA, 2004; SEQUEIRA, 2011; LAGE, 2014.

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A CONSAGRAÇÃO DA DENOMINAÇÃO DE ORIGEM «PORTO» PARA OS VINHOS GENE-ROSOS DA REGIÃO DEMARCADA DO DOURO

Em finais do século XIX e no início do sécu-lo XX, a região vinhateira do Douro atra-vessou um dos períodos mais dramáticos

e também mais épicos da sua história. Desde 1863, a filoxera tinha alastrado, lentamente, a partir do seu foco inicial, em Gouvinhas, reduzindo a «mortórios» todo o vinhedo regional. A partir da década seguinte, multiplicaram-se os tratamentos, à base de sulfureto de carbono, numa tentativa desesperada para salvar as videiras. A mudança radical do sistema de cultivo, lançada ainda em 1876 por Joaquim Pinheiro de Aze-vedo Leite Pereira, com a plantação de porta-enxertos americanos, só viria a difundir-se nos anos noventa, com um movimento impressionante de replantações, que ultrapassou, numa década, mais de 20 mil hectares de vinhas13.

O movimento foi comum a todas as regiões vitíco-las da Europa14 e teve importantes impactos técnicos, económicos e sociais, além de alterar profundamente a paisagem de algumas dessas regiões, como aconteceu no Douro. Porém, esse período coincidiu, também, com grandes alterações nos mercados, em que se in-tensificava uma concorrência agressiva, com práticas pouco escrupulosas de contrafacção dos vinhos das denominações mais prestigiadas. Por toda a Europa, produziam-se «vinhos do Porto» industriais, tal como «Madeiras», «Xerez», «Champagnes» e outros, que inundavam os mercados com imitações baratas, con-correndo, de forma desleal, com os vinhos genuínos dessas denominações de origem.

Assim, as principais regiões vinhateiras, após gran-des investimentos no combate às doenças da videira e na replantação das vinhas, passaram a enfrentar cres-centes dificuldades de escoamento dos seus vinhos e a depreciação dos respectivos preços, o que gerou situa-ções críticas de miséria e um clima de crescente con-flitualidade social. Ficou célebre a revolta vinhateira do Languedoc francês, em defesa dos vinhos naturais contra os vinhos falsificados. Na Primavera de 1907, o movimento chegou a reunir mais de meio milhão de pessoas, em Montpellier, atingindo um desfecho dra-

13 Cf. PEREIRA, 1989; MARTINS, 1991; PEREIRA, 2009.

14 Veja-se, por exemplo, GARRIER, 1989.

mático em Narbonne, onde foram mortos seis popu-lares pela tropa enviada para reprimir os manifestan-tes15. Menos trágicos, mas não menos violentos, foram os acontecimentos ocorridos em várias localidades da região de Champagne, entre Janeiro e Junho de 1911, em torno da demarcação da região e, também, con-tra as fraudes praticadas por negociantes. As caves de diversos negociantes, suspeitas de guardarem vinhos provenientes de outras regiões, foram incendiadas e registaram-se tumultos em vários locais, chegando a erguer-se barricadas, quando o governo enviou a tropa para travar a revolta vinhateira16.

Nas movimentações vinhateiras do Douro de 1914 e 1915, verificam-se muitas das características que marcaram as revoltas do Midi francês e da Champag-ne, onde o que estava em causa era o combate à fraude que campeava no sector vinícola e também, no segun-do caso, a defesa da identidade territorial da denomi-nação de origem.

Revoltas sectoriais e territoriais, uniram, essencial-mente, os viticultores contra os «inimigos» externos e os representantes locais desses interesses externos, que responsabilizavam pela crise: os negociantes que usavam práticas fraudulentas, os viticultores de outras regiões que usurpavam a denominação de origem ou os produtores de álcool industrial usado para substi-tuir a aguardente vínica. Foram revoltas regionalistas, cumulativas e corporativas, em que convergiram di-versos movimentos sociais com diferentes interesses, motivações e formas de intervenção. Se as elites regio-nais se distinguiram nas campanhas de imprensa, nos Congressos Vitícolas e nas reuniões de viticultores, nas representações junto do Governo ou do Parla-mento, nas negociações e nos discursos nos comícios vinhateiros, ou ainda nas acções desencadeadas pelas câmaras municipais (demissão das vereações, encerra-mento dos serviços, telegramas ao governo, colocação de bandeiras negras ou bandeiras a meia-haste, etc.), as movimentações populares assumiram um carácter mais violento e iconoclasta, como o incêndio de pipas de vinho ou aguardente de outras regiões nas estações de caminho-de-ferro e em armazéns de traficantes ou a destruição de edifícios das finanças.

Muitos destes aspectos são também visíveis nas movimentações do Douro de 1914 e 1915. Mas o caso duriense assume, simultaneamente, algumas caracte-

15 LACHIVER, 1988: 467-471.

16 GUY, 2003: 158-185.

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rísticas singulares que merecem ser destacadas. Em primeiro lugar, a revolta duriense de 1914-1915

situa-se na continuidade de uma longa série de mo-vimentações em defesa da denominação de origem, remontando a finais do século XIX, com a criação de Comissões de Defesa do Douro, realização de comí-cios vinhateiros, representações ao poder central, cria-ção de uma imprensa regionalista, etc. Em geral, todos esses movimentos coincidiam na reivindicação de me-didas de regulação do comércio, repressão das fraudes e contrafacções, regresso à demarcação da região pro-dutora (abolida em 1865) e à exclusividade da deno-minação «Porto» para os vinhos generosos produzidos na região do Douro. Após a reposição da legislação reguladora pelo governo de João Franco, em 1907, os movimentos de protesto centraram-se no combate à fraude e à concorrência desleal, defendendo a exten-são e cumprimento da legislação da denominação de origem. No final da Monarquia, o agravamento da cri-se comercial, fazendo agravar as condições de vida no Douro, com o empobrecimento dos pequenos viticul-tores e o desemprego entre os jornaleiros, fez emergir um espírito de «revolta latente» e algumas formas de agitação popular mais violentas, incendiando reparti-ções locais das finanças, como aconteceu em Alijó, em Janeiro de 1909, em Murça, em Fevereiro de 1909, e em Carrazeda de Ansiães, em Abril de 1910, ou des-truindo pipas de vinho de outras regiões em estações do caminho-de-ferro, como no Tua, ainda em Abril de 191017. Após a instauração da República, os movimen-tos durienses ganharam novos contornos, utilizando, frequentemente, as redes de influências partidárias, a par de uma maior actividade da renovada Comis-são de Viticultura da Região do Douro. Sobretudo a partir do início de 1914, intensificaram-se as acções de protesto e as reclamações durienses, com grandes comícios vinhateiros (como o de 10 de Maio de 1914, na Régua), ocorrendo também diversos tumultos po-pulares, com ataques a armazéns suspeitos de fraudes. A assinatura do tratado de comércio luso-britânico, em 12 de Agosto de 1914, seria o pretexto para uma nova vaga de movimentações, que viria a culminar em Julho de 1915, no motim de Lamego, face às hesitações governamentais em proceder à aclaração do já referido artigo 6.º. Assim, as velhas motivações de denúncia da fraude e de reivindicação de medidas de protecção da região vinhateira e de regulação da denominação de

17 Cf. SEQUEIRA, 2011: 281-282.

origem associaram-se à luta contra o tratado de Co-mércio com a Inglaterra, colocando-se já não apenas nos planos regional e nacional mas também no plano internacional, o que decorre da vocação exportadora dos vinhos generosos do Douro.

Em segundo lugar, as características da vitivini-cultura duriense, com as conhecidas dificuldades de cultivo da vinha em terrenos de encosta, os ele-vados custos de armação do terreno, de plantação e de granjeio, a par da maior dependência da popu-lação da monocultura da vinha e da colocação dos seus vinhos no circuito exportador, acentuaram os efeitos da crise comercial e conferiram grande dra-matismo à situação vivida no Douro em finais do século XIX e princípios do século XX, transfor-mando a «questão duriense» numa das grandes questões nacionais da época. Para lá dos objectivos e motivações que, em cada momento, impeliam à acção colectiva, foi a complexa e multifacetada «questão duriense» que esteve subjacente à longa continuidade das movimentações regionais. Nesta perspectiva, valeria a pena explorar, em estudo mais alargado, as motivações que mobilizavam as comunidades rurais durienses não apenas decorrentes das dificuldades e necessidades conjunturais mas, sobretudo, em torno de razões mais profundas, que poderíamos associar ao que consideravam os seus «direitos sagrados» e a uma consciência das desigualdades e injustiças provocadas pela economia de mercado. Nos protestos das camadas populares, que se intensificavam em contextos de crise de subsistências, as ideias tradicionais de «negócio honesto», de «preço justo» e de «bem comum», que Edward Thompson traduziu no conceito de «economia moral da multidão», legitimariam as acções violentas de revolta contra práticas ou situações consideradas indignas18.

Um terceiro aspecto a destacar prende-se não só com uma forte intervenção das elites vinhateiras e das diversas instituições locais e regionais (câmaras muni-cipais, sindicatos vitícolas, Comissão de Viticultura da Região Duriense, etc.) mas também com uma nítida e excepcional aliança sectorial entre os viticultores do Douro e os negociantes do Porto-Gaia. Desde o iní-cio dos protestos contra o tratado luso-britânico, as posições tradicionalmente divergentes da produção e do comércio uniram-se na defesa da aclaração do ar-

18 THOMPSON, 2008. A versão inglesa, sob o título The Moral Economy of the English Crowd in the Eighteenth Century, foi publicada na revista Past & Present, n.º 50, 1971, p. 76-136.

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tigo 6.º. Pode dizer-se, por isso, que os movimentos de 1914-1915 tiveram o condão de unir todo o sector do vinho do Porto, o que raras vezes aconteceu na sua história. Trata-se, por isso, de um momento histórico de consagração da denominação de origem. Por um lado, os produtores durienses assumiram para os seus vinhos generosos a denominação «Porto», a que sem-pre se tinham oposto, preferindo designá-los por «vi-nhos finos do Douro». Por outro lado, os negociantes do Porto-Gaia abandonaram as suas reservas em rela-ção ao uso exclusivo da denominação «Porto» para os vinhos produzidos na Região Demarcada do Douro.

NOTA FINAL

No dia em que ocorreu o motim de Lame-go, uma comissão de representantes do Douro, chefiada por Antão de Carvalho,

reuniu-se em Lisboa com o Ministro dos Negócios Es-trangeiros, que se comprometeu a atender às reivindi-cações durienses de aclaração do artigo 6.º do tratado luso-britânico. A vitória desse movimento reivindica-tivo decorreu de um vasto e diversificado conjunto de acções que, durante vários meses, agitou a região de-marcada, a par da pressão exercida na imprensa e jun-to do poder central por representantes do Douro. Mas a memória regional evocaria os «mártires de Lamego» como os principais «heróis» desse duro combate em defesa da denominação de origem. A vitória tinha sido «selada com sangue» e, por isso, sacralizada. Como evocaria, dez anos mais tarde, Antão de Carvalho:

Glória aos Mártires! Em Lisboa, o Douro falava ao Governo da Re-

pública na voz mais enérgica e sonora, defenden-do os seus direitos sagrados.

As palavras dos comissionados foram sim-ples eco retumbante das reclamações regionais na porventura mais bela e formidável campanha que haja agitado a alma da forte gente transmon-tana e beirã.

Era solene o momento. Instantaneamente os clamores irados conver-

teram-se em silêncio. Caíra sobre nós a dor. Estávamos ungidos pelo sangue dos mártires. A causa triunfou e foram eles os vencedores. Que o Douro nunca os esqueça, pagando a dí-

vida sagrada, ainda em aberto, da merecida con-sagração aos mortos obscuros, que, em verdade, são os seus mais excelsos e nobres paladinos.

Glória aos Mártires!19

19 CARVALHO, 1925: 2.

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