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' CIÊNCIA Ataque A.contra Descobertas sobre ação de neurotransmissores ajudam a entender e tratar distúrbios psíquicos freqüentes RICARDO ZORZETTO ubitamente, o coração dispara. Falta ar e sobrevém uma ater- radora certeza de que se vai mor- rer. Meia hora mais tarde, de maneira tão inesperada quanto surgiu, sem nenhum motivo aparente, esse estado de ansiedade extre- ma desaparece. Após a primeira crise, que geralmente surge entre o final da adoles- cência e os 40 anos, as certezas e as segu- ranças se esvaem como se, de um momen- to a outro, um mundo de tranqüilidade desmoronasse. Assim, a pessoa passa a vi- ver sob a ameaça constante de um outro ataque repentino, sem hora nem local para acontecer. As transformações químicas e biológicas que disparam e, ao mesmo tem- po, alimentam essas duas alterações emo- cionais - a mais amena, a ansiedade, ea mais profunda, a crise de pânico - são agora mais bem compreendidas e poderão ser combatidas de maneira mais eficiente, como resultado dos estudos sobre as subs- tâncias glutamato e óxido nítrico feitos por pesquisadores da Faculdade de Medi- cina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto. 30 • FEVEREIRO DE 2003 PESQUISA FAPESP 84 A equipe do médico gaúcho Francisco Silveira Guimarães comprovou, em expe- rimentos com ratos e em seres humanos, o envolvimento do glutamato e do óxido nítrico, cujas funções no sistema nervoso central ainda eram pouco conhecidas, nas manifestações de ansiedade, pânico e tam- bém em outro distúrbio emocional, a de- pressão, caracterizada por uma sensação de desânimo e de tristeza profundos e per- sistentes. Antes, só havia indícios dessa participação, não uma definição do papel específico que desempenham em cada problema. Guimarães verificou pela primeira vez a participação do óxido nítrico na ansie- dade, um desequilíbrio que afeta 4% da população adulta brasileira - quase 5 mi- lhões de pessoas no país apresentaram pe- lo menos um episódio clinicamente iden- tificado de ansiedade, marcado, em um de seus sinais mais flagrantes, por uma preo- cupação exagerada e persistente com fatos corriqueiros (será que o dinheiro vai dar até o fim do mês? Será que hoje consegui- rei fazer todas as coisas que tenho que fa- zer?). A equipe de Ribeirão Preto verificou

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Page 1: Ataque A.contra - Pesquisa Fapesp · timulante do sistema nervoso central. Richard Bandler, na Austrália, e o pró-prio Graeff observaram que apenas a injeção do glutamato, sem

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I'

CIÊNCIA

AtaqueA.contra

Descobertas sobre ação deneurotransmissores ajudam a entendere tratar distúrbios psíquicos freqüentes

RICARDO ZORZETTO

ubitamente, o coração dispara.Falta ar e sobrevém uma ater-radora certeza de que se vai mor-rer. Meia hora mais tarde, demaneira tão inesperada quantosurgiu, sem nenhum motivo

aparente, esse estado de ansiedade extre-ma desaparece. Após a primeira crise, quegeralmente surge entre o final da adoles-cência e os 40 anos, as certezas e as segu-ranças se esvaem como se, de um momen-to a outro, um mundo de tranqüilidadedesmoronasse. Assim, a pessoa passa a vi-ver sob a ameaça constante de um outroataque repentino, sem hora nem local paraacontecer. As transformações químicas ebiológicas que disparam e, ao mesmo tem-po, alimentam essas duas alterações emo-cionais - a mais amena, a ansiedade, e amais profunda, a crise de pânico - sãoagora mais bem compreendidas e poderãoser combatidas de maneira mais eficiente,como resultado dos estudos sobre as subs-tâncias glutamato e óxido nítrico feitospor pesquisadores da Faculdade de Medi-cina da Universidade de São Paulo (USP)em Ribeirão Preto.

30 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84

A equipe do médico gaúcho FranciscoSilveira Guimarães comprovou, em expe-rimentos com ratos e em seres humanos,o envolvimento do glutamato e do óxidonítrico, cujas funções no sistema nervosocentral ainda eram pouco conhecidas, nasmanifestações de ansiedade, pânico e tam-bém em outro distúrbio emocional, a de-pressão, caracterizada por uma sensaçãode desânimo e de tristeza profundos e per-sistentes. Antes, só havia indícios dessaparticipação, não uma definição do papelespecífico que desempenham em cadaproblema.

Guimarães verificou pela primeira veza participação do óxido nítrico na ansie-dade, um desequilíbrio que afeta 4% dapopulação adulta brasileira - quase 5 mi-lhões de pessoas no país apresentaram pe-lo menos um episódio clinicamente iden-tificado de ansiedade, marcado, em um deseus sinais mais flagrantes, por uma preo-cupação exagerada e persistente com fatoscorriqueiros (será que o dinheiro vai daraté o fim do mês? Será que hoje consegui-rei fazer todas as coisas que tenho que fa-zer?). A equipe de Ribeirão Preto verificou

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que as duas substâncias, atuando emconjunto com outras, acionam os me-canismos que levam ao transtorno dopânico, um distúrbio no qual os indi-víduos apresentam mais de uma crisepor semana. Estima-se que cerca de1,6% dos brasileiros tenha apresen-tado transtorno do pânico pelo me-nos uma vez durante a vida, de acor-do com um estudo coordenado porLaura Andrade, do Instituto de Psi-quiatria da USP,e publicado em julhode 2002 na Social Psychiatry andPsychiatric Epidemiology. O trabalhomostra também que, por razões aindanão totalmente compreendidas, asmulheres são 2,3 vezes mais propen-sas que os homens a desenvolver ansie-dade e pânico e 1,6 vez mais propen-sas a ter depressão.

Comunicação entre neuromos - Noorganismo, o glutamato e o óxido nítri-co atuam como mensageiros químicos- são os chamados neurotransmissores-, conduzindo informações de uma cé-lula nervosa (neurônio) a outra. É des-sa comunicação entre os neurônios quedepende todo o funcionamento do or-ganismo, do pensamento e ações cons-cientes, como os movimentos da mãode quem toca um instrumento, a pro-cessosinvoluntários, como a respiração.No sistema nervoso central, formadopelo cérebro e por órgãos agregados,como o tronco encefálico, o cerebelo ea medula espinhal - responsáveis, emconjunto, pela manutenção geral do or-ganismo -, há outros neurotransmisso-res, a serotonina, a noradrenalina e oácido gama-aminobutírico (Gaba), maisbem estudados, que também influen-ciam o funcionamento dos neurônios.A falta ou excesso de qualquer um de-les altera o bem-estar emocional.

Os resultados dos estudos da USPde Ribeirão Preto facilitam, em primei-ro lugar, a compreensão dos mecanis-mos de ação de alguns medicamentosque aumentam a quantidade de seroto-nina no sistema nervoso central, umadas estratégias mais adota das atual-mente para combater a ansiedade, opânico e a depressão, os problemas psí-quicos mais comuns atualmente. Entreos mais usados está o fármaco fluoxeti-na, base do famoso Prozac, lançado em1986,que faz com que esseneurotrans-missor permaneça mais tempo em açãoantes de se degradar.

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Resposta imediata: diante do gato, o ratose sente ameaçado e produz mais óxido nítrico

Ao mostrar como e onde o gluta-mato e o óxido nítrico atuam, o traba-lho da equipe de Guímarães abre novasperspectivas de desenvolvimento deoutras drogas que, no futuro, poderãoser empregadas em associação com asatuais na terapia da ansiedade e da de-pressão, que acomete 16% dos brasilei-ros, de acordo com o estudo de Laura.Remédios que atuem sobre o glutama-to ou o óxido nítrico poderiam aindaservir como alternativa aos antidepres-sivos existentes, que aplacam o proble-ma em algumas semanas. É inegável:proporcionam uma melhor qualidadede vida principalmente quando asso-ciados a um acompanhamento psicote-rápico de longo prazo, voltado à buscadas causas mais profundas desses dese-quilíbrios e de novas formas de lidarcom os problemas do dia-a-dia.

Só os remédios não curam definiti-vamente esses transtornos emocionais,que, na visão de psicanalistas, são pro-blemas típicos das últimas décadas, umperíodo em que prevalecem valorescomo individualismo, consumismo euma sucessão vertiginosa de eventosque se sobrepõem, como se cada diafosse curto demais para as tarefas pla-nejadas. "Há uma tendência de essas al-terações emocionais surgirem em socie-

dades mais individualistas, nas quais aspessoas têm menos garantias assegura-das pela cultura e pelos laços sociais':afirma o psiquiatra e psicanalista Má-rio Eduardo Pereira, diretor do Labora-tório de Psicopatologia Fundamentalda Universidade Estadual de Campinas(Unicamp). "Conseqüentemente, vive-se mais intensamente o desamparo:'

nsiedade, pânico e depressãoresultariam assim de uma es-pécie de descompasso entre asmudanças da vida (menostempo para ver os amigos emais trabalho, por exern-

plo) e a capacidade de os sereshumanosseadaptarem a elas,numa visão compar-tilhada por Márcio Giovannetti, presi-dente da Sociedade Brasileira de Psica-nálise de São Paulo (SBPSP).Ana MariaSigal,psicanalista e professora de psica-nálise do Instituto Sedes Sapientiae, emSão Paulo, observa diariamente os efei-tos do modo de viver contemporâneo."Nós, psicanalistas, constatamos hojenos consultórios um aumento conside-rável de pacientes que se queixam decrises de ansiedade e pânico", diz ela.

Embora as causas específicasda an-siedade, do pânico e da depressão aindanão estejam muito bem definidas, mé-

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dicos e psicólogos concordam: essesdistúrbios surgem em conseqüência deuma combinação de três fatores. Emprimeiro, entram os estopins biológi-cos, ou seja, a predisposição genética desofrer um desses desequilíbrios em al-gum momento da vida. Seguem-se osfatores emocionais - pessoas mais vul-neráveis ou mais sensíveis aos fatos darealidade tendem a ser vítimas mais ha-bituais da ansiedade e da depressão. Porfim, as razões ambientais, a exemplo dadificuldade de adaptação às transfor-mações da sociedade. "Não existe umacausa única para esses problemas emo-cionais, mas uma integração desses trêsfatores", afirma a psicóloga MariângelaGentil Savoia, do Ambulatório de An-siedade do Instituto de Psiquiatria daUSP. ''Apenas um dos fatores, isolada-mente, não é suficiente para o distúrbiose manifestar."

Num estudo com 43 portadores dotranstorno do pânico e outros 29 vo-luntários saudáveis, Mariângela avaliouo número de situações estressantes queos participantes viveram no ano ante-rior à primeira crise e constatou: o quevariava não era o número de eventos,mas a forma como as pessoas lidavamcom eles e o valor que lhes atribuíam.O principal desses fatores foi a perda de

suporte social, mais precisamente, deum parente ou amigo, um ano antes daprimeira crise de pânico. "Quem tempânico apresenta estratégias poucoadaptadas para enfrentar as situaçõesadversas", diz a psicóloga. "Em geral,não tentam resolver o problema, maso evitam:' Por isso, o uso de medica-mentos pode não ser a solução defini-tiva, mas ajuda o paciente a encarar otratamento conjunto, com remédios epsicoterapia.

corre que para conseguir umremédio que atue de maneiraseletiva sobre o glutamato ouo óxido nítrico e cause me-nos efeitos colaterais aindaserão necessários anos de

pesquisa, alerta Guimarães. Mas algu-mas dessas novas drogas mais seletivasjá estão surgindo. Uma delas é a me-mantina, que parece agir sobre umamolécula à qual o glutamato se liga e,assim, inibir sua atividade. Produzidadesde 1989 pelo laboratório alemãoMerz, foi reapresentada na Europa emoutubro do ano passado com uma novafinalidade: combater o mal de Alzhei-mer, doença que provoca degeneraçãodo sistema nervoso central e perda dememória. Talvezno futuro a memanti-

Famílias superprotetoras- Mesmo essa droga ideal,que atue sobre o glutama-to ou o óxido nítrico, nãobasta. "De forma isolada,nenhum medicamento re-solve o pânico, a ansiedadee as fobias", observa Gio-vannetti, da SBPSP. "Osremédios ajudam, mas nãomodificam a essência quegera o problema, porque ohomem é um ser bioló-gico, psíquico e social. Aexistência de cada um denós não reage apenas a fa-

tores orgânicos", comenta o psicana-lista. O psiquiatra Mário EduardoPereira chegou a uma conclusão se-melhante à de Giovanetti durante otratamento de portadores de transtor-no de pânico na Unicamp. "Em geral,os medicamentos eram úteis para con-trolar as crises, mas isso era insufici-ente para o tratamento clínico dessesindivíduos", afirma. "Muitos pacientestinham medo de começar a usar a dro-ga; outros, quando paravam o trata-mento, apresentavam novas crises, quegerava a necessidade do uso continu-ado do medicamento."

Disposto a entender melhor o pro-blema, Pereira embarcou em 1995paraum doutorado em psicanálise na Uni-versidade Paris VII, na França. Ao ava-liar, agora sob o ponto de vista da psi-canálise, portadores de transtorno depânico atendidos da universidade entre1984 e 1995, constatou a predominân-cia de dois grupos distintos: o daquelesprovenientes de famílias superproteto-ras, que viveram sempre num ambienteseguro,sem nunca ter de fato enfrentadopor si mesmos a realidade da falta de ga-rantias da existência;e outro, com carac-terísticas opostas, de membros de famí-liasque encaravam os fatos do cotidianocomo aterradores. "Começamos então

na ou medicamentos se-melhantes possam ajudar aresolver também ansieda-de, pânico e até mesmo de-pressão, com a vantagemde não provocar alucinaçõ-es como outra droga usadaapenas experimentalmen-te, o AP-7, abreviação deácido 2 amino 7 fosfono-heptanóico.

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a compreender que, do ponto devista clínico, o tratamento medi-camentoso só faz sentido caso setenha uma visão mais ampla doindivíduo", comenta Pereira. "Épreciso saber como surgem as cri-sese quais as dimensões simbóli-cas e pessoais envolvidas em suavida em conexão com os ataques:'

o gato e a depressão - Tais con-clusões se unem na busca de so-luções que incluem novos medi-camentos e a compreensão dosmecanismos biológicos da ansie-dade, do pânico e da depressão.No laboratório de Francisco Gui-marães, na USP de Ribeirão Pre-to, é comum ver técnicos injetan-do medicamentos diretamenteno cérebro dos ratos ou ratos an-dando em labirintos suspensosou em gaiolas,frente a frente comgatos. Foram esses alguns recur-sos de trabalho que permitiram a essegrupo de pesquisa avaliar as alteraçõesno comportamento dos roedores apósinjeções de glutamato e óxido nítricoem áreas do sistema nervoso central as-sociadas ao medo, como a substânciacinzenta periaquedutal dorsal, con-junto de neurônios situado no troncoencefálico, entre o cérebro e a medulaespinhal.

s primeiras pistas que leva-ram Guimarães a estudar oglutamato e, posteriormente,o óxido nítrico surgiram nasegunda metade dos anos80. Na época, o pesquisa-

dor gaúcho era aluno de doutorado dopsiquiatra Antônio Zuardi e do psico-farmacologistaFredericoGraeff,que ha-via demonstrado que a serotonina, quan-do aplicada diretamente na substânciacinzenta periaquedutal, diminuía as res-postas de ansiedade diante de situaçõesque despertam o medo. "Faltava saberqual neurotransmissor agia estimulan-do essa região",explica Guimarães.

Um dos candidatos era o glutama-to, o principal mensageiro químico es-timulante do sistema nervoso central.Richard Bandler, na Austrália, e o pró-prio Graeff observaram que apenas ainjeção do glutamato, sem exposição auma situação ameaçadora, produzia ma-nifestações que parecem associadas àsreações do pânico em humanos. Mas

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esses indícios eram insuficientes paracomprovar que a alteração observadano comportamento dos animais decor-ria da ação do glutamato. "Ainda nãodava para saber se, nas situações quegeram ansiedade e pânico, a taxa de glu-tamato aumentava nessa região do sis-tema nervoso central': explica o pesqui-sador.Num estudo em colaboração comGraeff, José Carlos de Aguiar e Antoniode Padua Carobrez, hoje pesquisadorda Universidade Federal de Santa Cata-rina (UFSC),Guimarães utilizou o AP-7, que inibe a ação do glutamato e éempregado há quase 20 anos em testescom animais em laboratório.

Eles colocaram os ratinhos em umequipamento chamado labirinto emcruz, uma plataforma em formato deX a 50 centímetros do solo, com doisbraços abertos e outros dois protegi-dos por paredes. Por geralmente teremmedo de altura e de espaços abertos,os ratos buscam as partes fechadas, algosemelhante ao que ocorre com alguémque tem medo de altura e é colocadona sacada de um prédio. Constataramque os roedores tratados com AP-7pareciam ter perdido o medo: saíamdas áreas protegidas e visitavam duasvezes mais as regiões abertas do labi-rinto, em comparação com os ratinhosque receberam apenas uma injeção deágua e sal - o resultado confirmava aparticipação do glutamato como umestimulante da ansiedade: "Se esse neu-

rotransmissor não exercesse um papelfisiológico ativo na ansiedade, os rati-nhos teriam se comportado de manei-ra semelhante, evitando sair para asregiões abertas': afirma Guimarães. "Osratos tratados perderam o medo e al-guns até mesmo chegaram a cair daplataforma", comenta.

As provas - Em 1991,o farmacologistainglês Iohn Garthwaite, da UniversityCollege, em Londres, sugeriu, num es-tudo publicado na Trends in Neurosci-ence, que a ação do glutamato no cére-bro poderia ser, em parte, decorrenteda produção de óxido nítrico - um gásque, além de atuar como mensageiroquímico no sistemanervoso central, fun-ciona como dilatador dos vasos sangüí-neos em outras regiões do corpo. Noano seguinte, a equipe de Steven Vin-cent, da Universidade da Colúmbia Bri-tânica, no Canadá, deu um passo adi-ante e mapeou de maneira indireta -por meio da detecção de uma enzimaque produz esse neurotransmissor, aóxido nítrico sintase - as regiões do sis-tema nervoso central em que esse gásatuava. Ali havia mais uma pista: nasubstância cinzenta periaquedutal dor-sal, a enzima estava presente em grandequantidade - um indício da participa-ção do óxido nítrico nas manifestaçõesde ansiedade e pânico.

Com essas informações em mãos,Guimarães e outros dois pesquisadores

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Um dos centros do medo:a substância cinzenta periaquedutal(área escura), contendoneurônios (ao lado)que possuem a enzima produtorade óxido nítrico

da USP em Ribeirão, Elaine Del Bel eGustavo Ballejo, aplicaram na substân-cia cinzenta periaquedutal de ratinhosoutros compostos que inibiam a açãoda enzima produtora de óxido nítrico.Ao observar que os roedores ficarammenos ansiosos quando colocados nolabirinto em cruz, mostraram que oóxido nítrico realmente estimulava asreações de ansiedade e pânico. Para com-provar a influência desse gás neuro-transmissor, no entanto, era necessáriover se o oposto também acontecia, ouseja, ao aumentar a quantidade de óxi-do nítrico na substância cinzenta peri-aquedutal, induziam-se reações de an- .siedade e pânico.

Rúbia Weffort de Oliveira, aluna dedoutorado de Guimarães, injetou naperiaquedutal de roedores diferentesdoses de dois compostos que liberamóxido nítrico - o c\oridrato de 3 mor-folinosilnomina e complexo óxido ní-trico dietilamina. Em seguida, colocoucada um dos animais isoladamente emuma arena com paredes plásticas de 40centímetros de altura e constatou: quan-to maior a dosagem dos compostos,mais intensa a reação dos ratinhos. Comdoses mais elevadas, os ratinhos dispa-ravam a correr em círculos e, num lan-ce de desespero, tentavam - e por vezesconseguiam - escapar da arena. Rúbiaconstatou também que, se tratasse osratinhos com azul de metileno, com-posto com efeito contrário ao dos dois

medicamentos, osanimais não apre-sentavam sinaisnem de ansiedadenem de pânico.

Nesse trabalho,publicado em 2000no Brain ResearchBulletim, os pes-quisadores conse-guiram tambémmapear as áreas ex-citadas pelo óxidonítrico. Pela detec-ção de uma proteí-na presente emmaior quantidadeapenas nas célulasnervosas ativas, vi-ram que o aumen-to do óxido nítricona região peria-quedutal estimu-lava neurônios

não apenas dessa área, mas tambémem outras porções do sistema nervosocentral ligadas ao circuito do medo e daansiedade, como a amígdala, responsá-vel pela memória de eventos desagra-dáveis, e o hipotálamo, centro que con-trola reações neurovegetativas, como arespiração, os batimentos cardíacos e ocomportamento de fuga.

Faltava, porém, confirmar se eramrealmente as situações de estresse queaumentavam a produção da' enzimaprodutora de óxido nítrico. Ao imobili-zar os roedores em gaiolas, em uma si-tuação de estresse severo para o rato,verificaram o aumento do número deneurônios que produziam a tal enzimana região periaquedutal, de acordo comartigo publicado no ano passado naNeuroscience and Biobehavioral Revi-

o PROJETO

Neurobiologia deRespostas Comportamentaisa Eventos Aversivos

MODALIDADEProjeto temático

COORDENADORFRANCISCO SILVEIRA GUIMARÃES -Faculdade de Medicinade Ribeirão Preto/USP

INVESTIMENTOR$ 278.831,34 e US$ 129.952,32

ews. Esse resultado complementou otrabalho que havia sido recentementepublicado na revista NeuroReport porSilvana Chiavegatto, Cristo foro Scavo-ne e Newton Canteras, do Instituto deCiências Médicas da USP, mostrandoque a exposição dos ratos a um gatoaumentava a produção de óxido nítri-co nessa região do sistema nervosocentral.

Choques e fuga - Em paralelo a essesexperimentos, Guimarães investigou seo glutamato, o principal neurotrans-missor estimulante do sistema ner-voso central, poderia influenciar oaparecimento de uma alteração emo-cional com características pratica-mente opostas às da ansiedade, a de-pressão. A suspeita era que, de modosemelhante ao que ocorre na regiãoperiaquedutal- em que a serotonina eo glutamato têm funções contrárias (oprimeiro inibe os circuitos do medo eda ansiedade, ao passo que o segundoestimula) -, o mesmo se verificasse nohipocampo, área cerebral ligada à me-mória de eventos desagradáveis, queprovocam estresse e a conseqüente pa-ralisação do animal.

Em outro experimento, os ratos re-cebiam choques elétricos nas patas e,no dia seguinte, primeiro ouviam umsinal sonoro e depois sentiam o cho-que, de modo que existisse a possibili-dade de fuga. Como normalmente o es-tresse aumenta a taxa de glutamato nohipocampo, os animais não saíam dolugar. Cláudia Padovan, aluna de dou-torado, verificou que os ratos aprendiama fugir após a aplicação no hipocampode uma substância que inibe a ação doglutamato. Sâmia [oca, outra aluna dedoutorado de Guimarães, constatouefeitos semelhantes ao do inibido r deglutamato ao injetar nos animais omedicamento zimelidina, semelhante àfluoxetina, que aumenta a quantidadede serotonina no sistema nervoso cen-tral. "No hipocampo, a serotonina pa-rece atenuar o impacto emocional doseventos estressantes, facilitando a adap-tação ao estresse e combatendo a de-pressão, enquanto o glutamato teriaefeito oposto", diz Guimarães. Seu pla-no é partir agora para estudos mais re-finados e avaliar a ação do óxido nítri-co e do glutamato em outras regiões dosistema nervoso associadas ao pânico eà ansiedade. •

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