assobiar em público

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Assobiar em público é uma recolha de 22 contos, alguns dos quais inéditos, de Jacinto Lucas Pires

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ASSOBIAR EM PÚBLICO

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Título: Assobiar em público

© Jacinto Lucas Pires e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2008

ISBN 978-972-795-268-7

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Jacinto Lucas Pires

Assobiar em público

Antologia de contos

Cotovia

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Índice

Assobiar em público

PARA AVERIGUAR DO SEU GRAU DE PUREZA

PalavrasSombra e luzBrancoO ciúmeA voz ou a pedraDlim dlãoO vazioUns olhos

ALGO DE ALGODÃO

Florença-a-Flor-que-Pensa

ABRE PARA CÁ

O rato roeu a rolha da garrafa do rei da RússiaA mulher paradaComédia com final felizAs minhas fériasA minha história mal contadaFumo o último cigarro do maçoUm pontinho entre os olhos

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E MAIS ALGUMA COISA

Tudo e mais alguma coisaFrediA expressão “dores de crescimento nas socie-dades contemporâneas” no âmbito da sociolo-gia actualTóquio, composiçãoL

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Assobiar em público

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Rosa, um homem muito magro, de cinquentaanos, bigode, fato e gravata, e chapéu à antiga, estána Praça de Espanha, no passeio, à espera do sinalverde para os peões. É quase noite, e os automóveisjá passam com os faróis acesos. Rosa pensa pensa-mentos estranhos que não têm nada a ver com nadaenquanto vai olhando as luzes rápidas. Amarelos ebrancos. Há uma nuvem por cima dos prédios aolonge, e o homem assobia uma canção de Natal. Tal-vez seja isso que faz esta história começar. É umrisco assobiar em público, ainda para mais quaseà noite. Talvez seja isso que lança a personagemRosa vida adentro. Durante o assobio, virando orosto ligeiramente levantado para a direita e para aesquerda, à coca de qualquer público possível,seguindo a praxe do assobiador clássico, o homemvê uma coisa a brilhar no chão. À direita, atrás, umbrilho no chão escuro. Reformulemos: uma qual-quer coisa seja o que for a brilhar como o diabo narelva negra. Rosa hesita, decide ir ver o que é. Osautomóveis param e o sinal abre para os peões, masRosa dá meia volta e vai em direcção àquela espécie--de-luzinha no chão. Anda e anda, mas o brilho

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parece cada vez mais longe. Como se andasseparado: Rosa às vezes não percebe mesmo quemundo é este. É este o tipo de frases, acrescentemosem aparte, que o fazem rir, ao nosso pobre indiví-duo-Rosa. Na terra escura da Praça de Espanha acoisa do breve brilho aparentemente inalcançável,de modo que o homem muito magro pensa emdesistir, diz para si próprio ah não é nada, nunca énada, mas a verdade é que continua o caminho.Mais um passo e está lá. Mas, ao pôr esse último péno chão: escorrega, destrambelha-se e malha. Cai nalama e fica na lama. Bate com o rabo e as costas, maso que começa a doer-lhe é a cabeça, atrás das orelhase debaixo do cabelo quer-lhe parecer. Com o seufato bastante, digamos, estragado, arrasta-se até aotal brilho. Olha-o com atenção. É uma daquelas coi-sas de metal que se arranca das latas para as abrir edepois se deita fora. Ainda assim, Rosa pensa talvezarranje um uso qualquer pra isto. E levanta-se.Quando se põe de pé é que repara que uma pernaestá muito mais alta que a outra, há algo de espan-tosamente errado com a normalmente confiávelperna esquerda. Olha para baixo, mas está tudomuito escuro. Caiu a noite na Praça de Espanha háuns minutos. Apalpa com as mãos a própria perna esó assim é que tem a certeza: meteu-a num buraco.Afundou-se até ao joelho. Puxa-a com força, e nada.Volta a puxá-la, nada. Grita e puxa ao mesmotempo, o velho truque, e nada, nada, nunca nada.O que vale é que Rosa é o tipo de português suave.

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Faz hum-hum e olha à volta. Não passa ninguém,quase já nem passam carros, só um ou outro rápidosdemais. E então senta-se. O rabo fica muito frioassim directamente na lama ou lá o que é aquilo,mas aos poucos vai aquecendo. Rosa habitua-se. Porsorte, traz no bolso umas batatas e uns restos de tou-cinho. Mas não se atira logo à bruta. Olha as estre-las, ouve barulhos irreproduzíveis aqui. Espera umtempo até ficar com fome mesmo a sério. E só nessaaltura é que come. Rosa às vezes tem uns pensa-mentos bastante estranhos, por exemplo quedebaixo da terra bichos iguais a vermes ou como éque se diz comem-lhe a perna devagarinho-doce-mente até ao osso, e nesses momentos o que faz épôr uma batata inteira na boca.

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