aspectos políticos e a história da televisão brasileira

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173 Aspectos políticos e econômicos da te- levisão brasileira Aspectos políticos y económicos de la Televisión brasileña Ivonete da Silva LOPES 1 Resumo: O artigo apresenta a história da televisão aberta do Brasil sob os aspectos políticos e econômicos. Sustenta que o Estado contribuiu de forma direta para a formação do oligopólio, que ainda caracteriza o setor, por meio da distribuição das concessões, durante o regi- me militar para os aliados políticos; com investimento na infraestrutura tecnológica que permitiu às emissoras que atuavam no âmbito local se organizar em redes; e através do apoio financeiro e político que favoreceu a permanência de certas emissoras e a retirada de outras do mercado. Essas práticas não foram completamente dissipadas na histórica recente do país que teve gover- nantes de diferentes matizes políticas, contudo poucas ações foram empreendidas para democratizar o cenário midiático. Palavras-chave: televisão, mercado televisivo, oligopó- lio, regulação. Resumen: El artículo presenta la historia de la televisión en Brasil en los aspectos políticos y económicos. Argu- méntase que el Estado ha contribuido directamente a la formación del oligopolio, que aun caracteriza al sector, a través de la distribución de las concesiones durante el régimen militar a sus aliados políticos, con las inversiones en infraestructura tecnológica que permitió a las emiso- ras se organizarse en redes. También mediante el apoyo financiero y político que favorecía la retención de ciertos emisoras y la retirada de otras del mercado. Estas prácti- cas no han sido completamente disipadas en los recientes gobiernos del país, que tuvo presidentes de diferentes matices políticos, pero pocas acciones se han tomado para democratizar el panorama mediático. Palabras clave: televisión, mercado televisivo, oligopo- lio, regulación. 1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). A história da televisão brasileira está vinculada ao poder econômico e político. Surgiu, em 1950, como mais um empreendimento dos Diários e Emissoras As- sociados de Assis Chateaubriand que na época reunia 15 emissoras de rádio, além de jornais, revistas, editora de livros e agências de notícias (JAMBEIRO et al, 2004). Dessa maneira, já nasce fazendo parte de um conglome- rado comunicacional e de uma concentração cruzada de propriedade, ou seja, de vários veículos de comunicação pertencentes a um mesmo proprietário. Chateaubriand além de empresário poderoso, sempre teve laços políticos fortes, eleito senador pelo seu Estado natal, a Paraíba 2 e, posteriormente, pelo Ma- ranhão por meios nada ortodoxos. Segundo Sérgio Capa- relli (1982, p.57), o forte de Chateaubriand decididamen- te não era o seu lado empresarial, “mas a capacidade de tirar o máximo proveito de uma situação política relati- vamente fluida, da qual participou diretamente, para ir estendendo a sua rede de veículos de comunicação pelo país, numa mistura de sagacidade, audácia e oportunismo ao mesmo tempo”. Chateaubriand domininou a primeira fase da televisão, considerada de 1950 até a entrada da Globo no mercado, em 1965. Fase denominada por Sérgio Ca- parelli (1982) como a do “Império de Chateaubriand” e por César Bolaño de “mercado concorrencial” . Nesse período houve crescimento pequeno desse meio de co- municação. No ano posterior à instalação da Tupi, a te- levisão chegou ao Rio de Janeiro e nos anos seguintes a Porto Alegre, Curitiba, Salvador, Recife, Campina Gran- de, Fortaleza, São Luís e Goiânia (PRIOLLI, 2003). Mes- mo estando presente em vários estados, a televisão era regional, cada emissora produzia seu próprio conteúdo, e filmes estadunidenses preenchiam a grade de progra- mação. O alcance do sinal constituia um problema para o aumento da audiência, os telespectadores podiam captar o sinal num raio máximo de 100 quilômetros do local onde estava instalado o transmissor de imagens. Com a invenção do videoteipe na década de 1960, a produção realizada no eixo São Paulo-Rio de Janeiro passou a ser gravada e distribuída às emissoras espalhadas pelo Bra- sil. Segundo Caparelli (1982), a fase inicial foi mar- cada pelo oligopólio de Chateaubriand e pela presença 2 Segundo o livro “Chatô, o Rei do Brasil”, de Fernando Moraes, Chateaubriand resolver ser senador pela Paraíba em 1951, no entanto as eleições haviam ocorrido no ano anterior. Com apoio do então presidente, Getúlio Vargas, motivou a reunúncia do senador eleito e seu suplente com a garantia de cargos públicos para ambos e, assim, novas eleições foram convocadas e Chateuabriand eleito. Em 1954, a prática anterior foi novamente aplicada, mas agora em outro estado, o Maranhão.

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Aspectos políticos e econômicos da te-levisão brasileira Aspectos políticos y económicos de la Televisión brasileña

IvonetedaSilvaLOPES1

Resumo: O artigo apresenta a história da televisãoabertadoBrasilsobosaspectospolíticoseeconômicos.SustentaqueoEstadocontribuiudeformadiretaparaaformaçãodooligopólio,queaindacaracterizaosetor,pormeiodadistribuiçãodasconcessões,duranteoregi-memilitarparaosaliadospolíticos;cominvestimentonainfraestruturatecnológicaquepermitiuàsemissorasqueatuavamnoâmbito local seorganizaremredes;eatravésdoapoiofinanceiroepolíticoquefavoreceu apermanênciadecertasemissorasearetiradadeoutrasdomercado. Essas práticas não foram completamentedissipadasnahistórica recentedopaísque tevegover-nantes de diferentesmatizes políticas, contudo poucasaçõesforamempreendidasparademocratizarocenáriomidiático.

Palavras-chave: televisão,mercadotelevisivo,oligopó-lio,regulação.

Resumen: ElartículopresentalahistoriadelatelevisiónenBrasilenlosaspectospolíticosyeconómicos.Argu-méntasequeelEstadohacontribuidodirectamentealaformacióndeloligopolio,queauncaracterizaalsector,atravésdeladistribucióndelasconcesionesduranteelrégimenmilitarasusaliadospolíticos,conlasinversioneseninfraestructuratecnológicaquepermitióalasemiso-rasseorganizarseenredes.Tambiénmedianteelapoyofinancieroypolíticoquefavorecíalaretencióndeciertosemisorasylaretiradadeotrasdelmercado.Estasprácti-casnohansidocompletamentedisipadasenlosrecientesgobiernosdelpaís,quetuvopresidentesdediferentesmatices políticos, pero pocas acciones se han tomadoparademocratizarelpanoramamediático.

Palabras clave:televisión,mercadotelevisivo,oligopo-lio,regulación.1DoutorandanoProgramadePós-GraduaçãoemComunicaçãodaUniversidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista da Fundação deAmparoàPesquisadoEstadodoRiodeJaneiro(Faperj).

Ahistóriadatelevisãobrasileiraestávinculadaaopodereconômicoepolítico.Surgiu,em1950,comomaisumempreendimentodosDiárioseEmissorasAs-sociadosdeAssisChateaubriandquenaépocareunia15emissorasderádio,alémde jornais,revistas,editoradelivroseagênciasdenotícias(JAMBEIROetal,2004).Dessamaneira,jánascefazendopartedeumconglome-radocomunicacionaledeumaconcentraçãocruzadadepropriedade,ouseja,deváriosveículosdecomunicaçãopertencentesaummesmoproprietário.

Chateaubriand além de empresário poderoso,sempre teve laçospolíticos fortes, eleito senadorpeloseuEstadonatal,aParaíba2e,posteriormente,peloMa-ranhãopormeiosnadaortodoxos.SegundoSérgioCapa-relli(1982,p.57),ofortedeChateaubrianddecididamen-tenãoeraoseuladoempresarial,“masacapacidadedetiraromáximoproveitodeumasituaçãopolíticarelati-vamentefluida, da qual participoudiretamente, para irestendendoasuarededeveículosdecomunicaçãopelopaís,numamisturadesagacidade,audáciaeoportunismoaomesmotempo”.

Chateaubriand domininou a primeira fase datelevisão,consideradade1950atéaentradadaGlobonomercado,em1965.FasedenominadaporSérgioCa-parelli(1982)comoado“ImpériodeChateaubriand”eporCésarBolañode“mercadoconcorrencial” .Nesseperíodohouvecrescimentopequenodessemeiodeco-municação.NoanoposterioràinstalaçãodaTupi,ate-levisãochegouaoRiodeJaneiroenosanosseguintesaPortoAlegre,Curitiba,Salvador,Recife,CampinaGran-de,Fortaleza,SãoLuíseGoiânia(PRIOLLI,2003).Mes-moestandopresenteemváriosestados,a televisãoeraregional,cadaemissoraproduziaseupróprioconteúdo,efilmesestadunidensespreenchiamagradedeprogra-mação.Oalcancedosinalconstituiaumproblemaparaoaumentodaaudiência,ostelespectadorespodiamcaptaro sinal num raiomáximode 100quilômetros do localondeestavainstaladootransmissordeimagens.Comainvençãodovideoteipenadécadade1960,aproduçãorealizadanoeixoSãoPaulo-RiodeJaneiropassouasergravadaedistribuídaàsemissorasespalhadaspeloBra-sil.

SegundoCaparelli(1982),afaseinicialfoimar-cadapelooligopóliodeChateaubriandepelapresença2 Segundoo livro “Chatô, oRei doBrasil”, deFernandoMoraes,ChateaubriandresolversersenadorpelaParaíbaem1951,noentantoaseleiçõeshaviamocorridonoanoanterior.Comapoiodoentãopresidente,GetúlioVargas,motivouareunúnciadosenadoreleitoeseusuplentecomagarantiadecargospúblicosparaambose,assim,novaseleiçõesforamconvocadaseChateuabriandeleito.Em1954,apráticaanteriorfoinovamenteaplicada,masagoraemoutroestado,oMaranhão.

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docapitalnacionalnasempresas.Caberelembrarquenaépocaasempresasnãopodiam tercapital estrangeiro3.Bolaño (2004) sublinhaqueapesardaconcentraçãodatelevisãoemtornodosDiáriosAssociados,oquepode-riasignificaralgumavantagemnaconcorrênciaemrela-çãoàsempresasdemenorcapitalfinanceiro,omercadobrasileiro era relativamente competitivo. As emissorasaindaqueintegrassemomesmoconglomerado“sópo-deriamfuncionarcomopequenasempresasisoladasemsuascidades,concorrendoemnível local pelos anun-cianteseaudiência.Afragilidadedecapitalcolocava-asnumaposiçãodedependênciaemrelaçãoaosanuncian-teseassuasagências”(BOLAÑO,2004,p.103).

Naanálisedoautorhaviaumacertamobilida-denomercado,asbarreirasserestringiambasicamenteaconseguiraconcessãojuntoaoGovernoFederalparainstalarumcanaldetelevisão.Entreasempresasconsti-tuídasnaépocahaviaaTVPaulista,criadaem1952,dodeputado federalOswaldoOrtizMonteiro, que poste-riormentefoirepassadaàsOrganizaçõesVictorCosta;aTVRecord,em1953,propriedadedePauloMachadodeCarvalho–quejáeraconcessionáriodaRádioRecord4,eaExcelsior,em1960;dogrupoempresarialSimonsen.Ocenárioapontadoindicaquedesdeagênesedatele-visãoasrelaçõespolíticaseocapitaleconômicoforamfundamentaisparaoestabelecimentoemanutençãodasemissoras.Asprincipaisdelaspertenciamaempresáriosdacomunicaçãoouaconglomeradoseconômicos,comoaExcelsior.NesseperíodoopapeldoEstado,segundoBolaño(2004)ficavarestritoadistribuiçãodasconces-sões,semintervirnaorganizaçãodosetor.

A contribuição do Estado para a formação do oligopólio televisivo

Profundas transformações marcaram a traje-tóriadatelevisãoapartirdogolpemilitarde1964.Aocontráriodaprimeirafase,operíodofoicaracterizadopela forte intervenção estatal.A interferênciapode serapontada,nomínimo,emtrêsaspectos:1)acriaçãodainfraestruturatecnológicacomaqualfoipossívelode-senvolvimentonacionalpormeiodaformaçãoderedes;2)opoderdeconcederaoutorga,censuraroconteúdo3AEmentaConstitucionalnº036/2002mudouaregraeestabeleceque“pelomenossetentaporcentodocapitaltotaledocapitalvo-tantedasempresasjornalísticasederadiodifusãosonoraedesonseimagensdeverápertencer,diretaouindiretamente,abrasileirosnatosounaturalizadoshámaisdedezanos,queexercerãoobrigatoriamenteagestãodasatividadeseestabelecerãooconteúdodaprogramação”.Disponívelonlineem:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consti-tuicao/emendas/emc/emc36.htm4PauloMachadodeCarvalhotambémfoichefedadelegaçãobrasi-leiranaCopadoMundo.

edistribuirapublicidadegovernamental;e3)atravésdaconcentraçãodopoder que facilitouao regimevigen-teescolherosatoresquepermaneceriamnomercadoecontribuirparaaretiradadeoutros.

OEstadoinvestiunaexpansãodatelevisãoim-plantando,em1968,oSistemaNacionaldeTelecomuni-caçõeseaEmbratel,criadaumanoantes.Assim,opro-jetodeintegraçãonacionalfoipossívelcomacriaçãoda redebásicademicroondasque interligou asváriasregiõesdopaísporsistemadetelefoniaetransmissãodeTV,rádioedados(PRIOLLI,2003).

Conforme Caparelli (1982), a medida benefi-ciou o setoreconômicocomoumtodo.As indústriaspassaramadispordeummeiodecomunicaçãonacionale,potencialmente,poderiamvendermaiseampliarseufaturamento,benefícioqueatingiutambémosmeiosdecomunicação.O investimento feitopelogoverno tevemotivaçõespolíticase,principalmente,visava a segu-rançanacionalquesignificavaaproteçãodasfronteirascontra a pretensa ameaça comunista. Amodernizaçãodastelecomunicaçõesfacilitouaintegraçãodopaísaumaeconomiademercado.

Alémdo investimentona infraestrutura tecno-lógica,aproduçãodosreceptoresfoinacionalizadaeosgovernosmilitares também abriram crédito para esti-mular a compra.ConformedemonstraBolaño (2004)aevoluçãodostelevisoresemusonoBrasil5.Em1964,poucomenos de 1,7milhão de aparelhos estavam emusonopaís,dosquais336milaindaerampretoebran-co.Seisanosdepoisototalerade4,5milhões(816milpretoebranco)eem1979ovolumechegavaaquase17milhões,sendoquedessetotalpróximode1,6milhõeseramaparelhospretoebranco.

AatuaçãodoEstadono setorbuscavao con-sensopolítico em tornodonovo regime, enquantoosempresários, umamaior rentabilidade econômica. “Noentanto,[essas]sãoocorrênciasdesuperfície,poisgeral-menteosinteressesdoEstadoedessesgruposfinalmen-teserearticulam”(CAPARELLI,1982,p.11).Asprinci-paisemissorasestavamnoeixoRiodeJaneiro-SãoPaulo,onde também localizavam-se os principais empresas eagênciaspublicitárias.Dessaforma,alémdaconcentra-çãoeconômicaocorreutambémaconcentraçãogeográ-fica,comessasduascidadescomocentroprodutoresdeconteúdoparatodoopaís.

Asredesdetelevisão,emborafuncionassemdeforma rudimentar antesde1969, coma cópiadepro-gramas de sucesso e a sua venda a outras emissoras,

5OautorreferidoconstruiuatabelacombasenosdadosdaAbinee–AssociaçãoBrasileiradaIndústriaEletroeEletrônica.

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somenteapartirdesdeano rompe-seo isolamento re-gional e homogeneiza-se a programação. Equacionadoo problema de infraestrutura, as emissoras precisavamgarantir aaudiência.DeacordocomMarildoNercoli-ni(2011,p.16),aalternativafoiinvestiremumformatodeprogramaçãoaindasemparâmetroseosprofissionaisoriundosdeoutro meiodecomunicação.Segundooau-tor:“Nãoédeseestranhar,porexemplo,quetrêsdasprincipaisestratégiasusadasnamontagemdaprograma-çãoestivessemdiretamentevinculadasafórmulasdesu-cessoprovenientesdorádio:programasmusicais,futebolenovelas”.

Deoutrolado,paragarantiraestruturanacio-nalizada, a afiliação foi a estratégia adotada.Amedi-dareduziaoscustosdeinstalaçãopelointeriordopaís,porémdriblavaalegislação.ODecreto-leinº236/1967quecomplementaemodificaoCódigoBrasileirodeTe-lecomunicações (CBT), de 1962, estabelece limites depropriedade.Cadaemissorapodia ternomáximo dezemissorasemtodoterritórionacional,sendonomáxi-mocincoemVHFeduasporEstado. Atravésdaafi-liação, as emissoras conseguiram expandir seu sinalpelopaís,aomesmotempoesseinstrumentotornou-sepraticamenteasaídaparaamanutençãodasemissoraspequenas(BOLAÑO,2004).Paraafiliar-se,ocanallo-calpodeapenasretransmitiraprogramaçãodaemissoralíder,denominadanoBrasil,como“cabeçaderede”.

Priolli(2003,p.20)chamaaatençãoparaalógicadomodeloeconômicodatelevisão.Segundooautor,“agestãocomercialprivada,semprereguladopelanecessi-dadedereduzircustoseampliarlucros,[...]reduziuasestações regionaisameras repetidorasdeprogramação“nacional”vindadoRioedeSãoPaulo”.Alémdaafilia-çãoserumnegóciofavorávelàsemissorascentrais,enfa-tizaJambeiro(2001)queaTVassumiuumpapeldedes-taqueparalegitimaçãodaspropostasdoregimevigenteemrelaçãoàpolítica,àeconomiaeàculturae,também,foicriadaparapromoverasegurançanacionaleviabilizarodesenvolvimentoindustrial.

Aprimeiratarefafoipromoverarápidaindus-trializaçãodopaís,criandoassimoportunidadesdetra-balho;asegundafoiestimularummercadodeconsumoemmassaparabensmateriaisesimbólicos.“Acimadasduastarefas–etambémacimadequalqueroutracoisa–estavaodesejodeesmagarqualquertipodeatooupen-samento socialista e esquerdista,mesmoquando ‘mas-carado’comodemocrático”(JAMBEIROetal,2001,p.73-74).

OEstadoaocriarainfraestruturaquepermitiuaintegraçãodasemissorasemredes,concentravaopoder

deoutorgarasconcessões–oquecertamentenãoseriadistribuídoàspessoasqueeram inimigasdo regime.EporessarazãoéqueMuriloCésarRamos(2000)carac-terizaessaépoca,naqualaconteceuodesenvolvimentodosistemadecomunicaçãobrasileiro,pelocompadrio,patronagem,clientelismoepatrimonialismo.Essas ca-racterísticas que associadasaumaestruturapolíticaesocial arcaica e/ou anti-moderna, desenvolveu peloBrasil e se sofisticoupormeiodo rádioeda televisão.Ou seja, esses meios de comunicação serviram comoinstrumentos de reforço de dominação e manutençãodeinjustiçassociais,bemcomosimultaneamenteforaminstrumentosdereforçoideológicoparaumgrupoeco-nômico-político-militar que estava governando o paísantidemocraticamente.

O sistema de concessões adotado não contri-buiu para favorecer o pluralismo ideológico existentenopaís,mas,aocontrário,reforçouomonopóliodentrodeumblocoideológicoidentificadocomoadoutrinadeSegurançaNacional.“Afiltragemdosdetentoresdecon-cessõesfavoreceumacensuraindireta,operadapelaraiz,eeventualmente,háfacilidadesparadifusãodaideologiadosgruposdominantesnoaparelhodeEstado”(CAPA-RELLI,1982,p.165).

Alémda censura indireta atravésdaqual eramescolhidos os concessionários de televisão e rádio, osmeiosdecomunicaçãoeramsempreavaliadospeloSer-viço Nacional de Informação, da Polícia Federal, dosCentrosdeInformaçõesdasForçasArmadasedosin-formantes (SIMÕES, 2003). E atingia até as emis-soras mais afinadas como regime, como éo casodaTVGlobo,quenadécadade1970,apesardetransmitirnotíciasemfavordogovernomilitaremseustelejornaise“maisqueasoutrasredestinhaboasrelaçõescomosmilitares–sofreucensuradenaturezamoral,econômicaepolítica,emsuastelenovelas,telejornaiseprogramasdeentretimento”(JAMBEIRO,2001,p.81). O governomilitarnãoapenasproibiaaveiculaçãodedeterminadoconteúdocomotambémpodiaprender.ALeideSegu-rançaNacional,porseulado,estabeleceuqueousodequalquermeiodecomunicaçãodemassaparafomentarasubversãocontraaordempúblicaesocialpodiaacarretarde15a30anosdeprisão.

OcontroledoEstadosedavademúltiplasfor-mase,talvez,umadasmaiseficientesfosseafinanceira.GlaucioAryDillonSoares(1989)apontaqueaspressõeseconômicasporpartedosmilitaresforamfundamentaisparasilenciarosveículosquenãocomungavamcomoregime.CitaoexemplodoCorreio da Manhã, queemumeditorialexplicavaasituaçãovivenciada:“Apublicidade

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doEstado,financiadapeloscontribuintes, representan-do36%dototaldomercadopublicitário,foisonegadamaciçamente a uma instituição com quase 70 anos derelevantesserviços(...)”6,conformeafirmaotexto:

Premiavam, com o dinheiro do povo,o apoio político à ditadura, e puniam,tambémcomodinheirodopovo,aque-lesqueseopunhamaela.[...]Numpaísemque oEstado desempenha umpa-pel econômicoefinanceiro fundamen-tal, houve até efeitos secundários, istoé, empresas privadas que, diretamentecoagidas ou simplesmente receosas dasuspensão de negócios com o Estado,suspenderamasuaprópriapublicidade(SOARES,1989).

ConformedemonstrouSoares(1989),oEstadocomomedidaderetaliação,alémdenãorepassarverbaspublicitáriasaindacoagiaempresasprivadasafazê-lo,di-ficultandosobremaneiraamanutençãofinanceiradessasempresas.Umadasemissorasprejudicadasporestapolí-ticafoiaTVExcelsior,quepertenciaaogrupoSimonsen–donodaPanairdoBrasil,concessionáriodoPortodeParanaguáeexportadordecafé.Bolaño(2004),explicaqueaExcelsiorfoioprimeirograndeinvestimentofei-tonaindústriatelevisiva,em1960.Doisanosdepois,aemissora atua agressivamente nomercado, comprandoumamodernaaparelhagemecontratandoosmelhoresprofissionais com altos salários. No entanto, quandoameaçatomaraliderançadeaudiência,ogrupocomeçaaterproblemascomoregimemilitar:“PerdeaconcessãodoportodeParanaguá,eaPanairdoBrasilsobreinter-vençãofederal,deformaquesãocortadasaspossibilida-desdefinanciamentoàtelevisão[...]”(Ibidem,p.107).

Sem autonomia financeira para manter-se nomercado,poisasfontesdefinanciamento(asoutrasem-presasdoGrupoSimonsen)tinhamsidocortadas,aTVExcelsiorfechaasportasem1970.Segundoaediçãonº345deIsto É Dinheiro7,Simonsennãoeradeesquerdaenemtinhamuitaproximidadecomopresidentedepostopelos militares, JoãoGoulart. “Como tantos empresá-rios,eragovernistapornecessidade.Emagostode1961,quandoJâniorenuncioueadireitatentouimpedirapos-

6 Disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_10/rbcs10_02.htm7TextodeIvanMartins“Umempresárioqueninguémquerlembrar”,disponívelemhttp://www.istoedinheiro.com.br/noticias/7952_UM+EMPRESARIO+QUE+NINGUEM+QUER+LEMBRAR

sedeseuvice,Simonsenengajou-seaoladodalegalida-de,arranjando inimigosentremilitareseconspiradorescivis”(MARTINS,2004,online).Osmotivospelosquaishavia sidoperseguidopelosmilitares foram explicadosnesse mesmo periódico pelo advogado de Simonsen,SauloRamos. Segundo ele: “Havia a pressãodas em-presasamericanasdecaféorquestradaporHerbertLevy;haviaaVarigquequeriaabocanharaPanairehaviaosDiáriosAssociados,quetinhamódiodaExcelsior.Mili-coalgumagüentariatantapressão”(ibidem).

EnquantoperseguiaaExcelsior,ogovernomili-tarfacilitavaavidadaTVGloboqueentrouemfuncio-namentoem1965,noRiodeJaneiro.Eem1966adquireaTVPaulista.Naépocaogrupojáeraproprietáriodeoutrosveículosdecomunicação:ojornalearádioGlo-bo.Emboraa legislaçãobrasileira proibisse aentradadecapitalinternacionalnosmeiosdecomunicação(nor-maalteradaem2002,comaemendaconstitucionalnº36quepermite30%decapitalestrangeironasempresasderadiodifusão)8,oogrupoGloboassinouacordocomoGrupoTime/LifenaordemdeU$1,5milhãodedolá-res.Ocontratopreviaassistência técnica,administrativa(comercialecontábil),eensinavaprocessosmodernosrelacionadoscomaprogramaçãoenoticiários.Aemisso-raentrounomercadocomumacondiçãoprivilegiadaemtermosderecursosfinanceirosedeorientaçãodeumaempresaestabelecidanomercadoestadunidense,ondeaindústriaculturaleramaisdesenvolvida.

Os concorrentes denunciaram e o congressonacionalcriouumaComissãoParlamentardeInquérito(CPI)paraapurarosfatos.Em1966,aCPIindicouqueaGloboinfringiuaConstituiçãoFederal equeaem-presa estadunidense estavaparticipandodaorientaçãointelectualeadministrativadaTVGlobo.Osparlamen-tares, então, sugeriram ao poder executivo cassar asconcessões, ou seja, seguir a punição estabelecidaparaessedispositivoconsitucional.“Porém,omarechalCas-teloBranco,[...]emvezdecassaraconcessãoatravésdoContel[ConselhodeTelecomunicações],deuumprazodenoventadiasparaqueaemissoraregularizassesuasi-tuação”(CAPARELLI,1982,p.29).

NositeMemória Globoconstaque,emoutubrode1967,oconsultor-geraldaRepúblicaAdroaldoMes-quitadaCostaemitiuumparecersobreocontratoGlo-bo/Time-Life,considerandoainexistênciadesociedadeentreasempresasouqualquerinterferênciadaempresadosEstadosUnidosnaGlobo:

8EmendaConstitucionaln.36.Dsiponívelem:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc36.htm

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A situação daTVGloboficou oficial-mentelegalizada.Mesmoassim,Rober-toMarinhoresolveuencerrarocontratodeassistênciatécnicacomoTime-Lifeeressarciuogrupoamericanododinhei-rodesembolsado.Através de empréstimos, tomados em bancos nacionais,eempenhan-dotodososseusbenspessoais, pôsfimaoacordocomoTime-Lifeemjulhode1971 (MEMÓRIA GLOBO, grifo daautora)9.

O episódio mostra como o Estado foicondescedente com a TV Globo, porque mesmoexistindoamparolegalparaacassaçãodasconcessões,aopçãofoipordarumprazoparaquearegularização.SegundooMemória Globo, o acordo foifinalizadocomempréstimo contraído nos bancos brasileiros. Emboranãoexistareferênciasobrequaisforamessasinstituiçõesfinanceiras, há uma probabilidade dos bancos estataisteremcontribuídoparaqueadívidafossesaldadacomaTime/Life.

Com recursos internacionais eo apoiodogo-verno militar à permanência da Globo no mercado,a condição hegemônica dos Diários Associados, quemarcouosprimeirosanosdessemeiodecomunicaçãonoBrasil, foisubstituídapelanovaemissora.SegundoCaparelli (1982), a RedeTupi não conseguiu superarsuasprópriasdificuldades; a empresahavia crescidoàsombradegovernospopulistasenãoseadaptouànovarealidade.

Emjunhode1980,ogovernoJoãoBatistaFi-gueiredo interveio na Tupi, retirando as concessões.Cinco grupos semostraram interessados. Foram eles:1)HenryMaksoud,donodeumconglomeradoatuantetambémnaindústriaculturalcomarevistaVisão;2)ogrupoAbrildosetorderevistasdaAbril,commaisde40títulosecercade50porcentodatiragem;3)ogrupoJornaldoBrasil,quepossuiatambémemissorasderádio;4)oGrupoSilvioSantos,quejáatuavanatelevisão;e5)oGrupoBloch,queeditavaaManchete,fotonovelasseoutrasrevistas(ibidem,p.57).

CaparelliindicaqueogrupoAbrilfoipreteridoporqueexistiamoutrosconcorrentesmaisafinadoscomoregime,comoSilvioSantoseoGrupoBloch.AlémdossetecanaisdaTupi,foramincluídosoutrosdoisnoedital.OGrupoSilvioSantosficoucomquatrocanais

9OCasoTime-Lifedisponívelem:http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,5270-p-21890,00.html

e oGrupoBloch comos outros cinco. Formavam-se,assim,maisduasredesdetelevisão.SilvioSantosqueeraconcessionáriodoCanal 11doRiode Janeiro, aTVS,tambémpossuiaametadedaTVRecorddeSãoPaulo,ecomasnovoscanaisdistribuídosficoucomduasemisso-rasemcadacidade–oqueeraproibidoporlei.SegundoBolaño(2004),nofinalde1985,ogrupoJornaldoBrasilcompraapartedeSilvioSantosdaRecord.

Chegou-se aofinal do regimemilitar com143geradorasdetelevisão,enquantotrêsanosantesdogolpeeramapenas23(PIERANTI,2007).Nessamesmaépo-caforamcriadasasredesdetelevisão,quecomoaRedeGlobo,aTVBandeirantes,oSBT–SistemaBrasileirodeTelevisãoeaTVManchete10.Asemissorasacimaci-tadasestavamorganizadasemredesqueretransmitiamo conteúdo gerado nos centros produtores do Rio deJaneiroeSãoPauloparatodoopaís.

Redemocratização e radiodifusão

A partir do primeiro governo que sucedeu operíodoautoritário,tendocomopresidentedaRepúbli-ca José Sarney (1985-1990), percebe-se que no perío-do de transição para o estabelecimento da democracianão houve uma ruptura commodelo anterior na áreadacomunicação.ConformeLeonardoAvritzer(1995),ademocracianãopodeserentendidacomosimplesmen-te a ausência de autoritarismo, do estabelecimento deeleiçõeslivres-adoPresidentedaRepúblicatinhasidoindireta-edagarantiradedireitoscivis.Mesmocomaincorporação desses elementos na sociedade brasileira,nogovernodopresidenteSarneyasconcessõespúblicasda radiodifusão foram ostensivamente utilizadas comomoedapolítica.ConformeOthonJambeiro(2000),Sar-neynegociou418concessõesderádioetelevisãoparagarantiraaprovaçãopeloCongressoNacionaldoman-datode cinco anosparaPresidentedaRepública.Nototal,essegovernodistribuiu1028concessõesderádioeTV,númeroquerepresenta30%dasconcessõesou-torgadasdesde1922noBrasil.

O exemplo apresentado ratifica que a entradadopaísno regimedemocráticonão excluiu aspráticasanteriores,indoaoencontrodaanálisefeitaporAvritzerdademocratizaçãobrasileira.Paraoautor,operíododetransição apresenta como características a persistênciadocomportamentonãodemocráticodaselitespolíticasque continuaram utilizando estratégias patrimonialistasou corporativistas.Avritzer (2007, p.2) asserta que: “A

10Apósafalênciaaemissorafoivendida,etransformou-senaRedeTV.

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introduçãodepráticasdemocráticasconduz,namelhordashipóteses,àdisputaentreduasdiferentesculturaspo-líticas[democráticaeantidemocrática]”.Asaídadoregi-meautoritárionãorepresentaarupturacomaspráticasantidemocráticasdegoverno,podendoocorrerdisputasentreelasnonovosistemapolítico.

Emrelaçãoàcomunicação,percebe-seapersis-tênciadaspráticasantidemocráticas.AlémdogovernoSarney, umoutro exemplo emblemático para pensar oprocessoaquipropostoéodoex-presidentedaRepúbli-ca,FernandoHenriqueCardoso(1995-2002).Odiscursoduranteasuagestãoeradecolocarfimaousohistóricodasconcessõesparabeneficiaraliadospolíticos.Naquelaépoca,oministrodasComunicações,SérgioMotta,utili-zavacomoexemplonegativoogovernodeJoséSarney(1985-1990),que concedeuconcessõesde rádio e tele-visão para 91 parlamentares do Congresso Nacional,visandoficar cinco anosnomandatodePresidentedaRepública.

Apartirdeentão,asconcessõesparaasTVsco-merciaispassaramaserconcedidaspormeiodelicitação.Enquanto encerrava-seoperíododousodasoutorgasparabeneficiaraliadospolíticos,iniciava-seoutro.Agoraamoedadebarganhapolíticapassaramaserasconces-sõesdeTVsEducativas.Atéasegundametadedadécadade1990,as20geradorasestavamvinculasàsuniversi-dades públicas e governos estaduais e retransmitiam aprogramaçãodasTVEducativadoRiodeJaneiroedaTVCulturadeSãoPaulo.

O governo de Fernando Henrique Cardoso(1995-200)adotouamesmamedidaquehaviacriticadoemSarney.Antesdaaprovaçãodaemendaconstitucionalquegarantiriaasuareeleição,distribuiu1.848retransmis-sorasdetelevisão.Entreelas,asdeTVsEducativas.Paratornar essamodalidade deTV mais atrativa aos inte-ressespolíticos,asregrasforamflexibilizadas.Primeira-mente, foi autorizada a inserçãode15%deconteúdopróprio e veicular apoio institucional.No ano 2000, aflexibilidadeaumentou,eoscanaisforamautorizadosaoperarcomtotalidadedeconteúdolocal.Ressalta-sequemesmopodendogerartodooseuconteúdo,essascon-cessões continuaram a ser distribuídas sem licitação àsorganizaçõesnão-governamentaisesemfinslucrativos.Enquantoasregraseramrígidas,sendopossívelapenasretransmitiraprogramaçãodascabeças-de-rede,asTVsEducativas permaneceram vinculadas ao Estado pormeio,principalmente,dasuniversidadespúblicas.

Asalteraçõesacimarelatadasocorreramnaépo-cadareformagerencialdoEstadobrasileiro,efoimar-cada por privatizações e repasse de serviços que eram

prestadospeloEstadoparaorganizaçõesnão-governa-mentais.Apretensãodo governo reformadorde Fer-nandoHenriqueCardosoeradeixaroEstadomaisefi-cienteeaeconomiamaisestável,alémdepretensamenteaprofundarademocracia.Eessaampliaçãodademocra-cia se daria com a participaçãoda sociedade civil, tidacomoterceirosetor,ouseja,comorepassepeloEstadodealgunsserviçosparaseremexecutadospororganiza-ções não-governamentais (ONGs) – consideradas poressegovernocomomaiseficientesparaprestarserviçosnaáreasocialecientífica.

Na avaliação desse período, caracterizado pelaexacerbaçãodoneoliberalismo,MarcoAurélioNogueira(2005)reiteraquenosanos1990haviaumamovimenta-çãofavorávelàsubstituiçãodoEstadopela“sociedadecivil” na solução de diferentes problemas sociais. No-gueira (2005, p.86) questiona: “seria a ‘sociedade civil’(...),capazdegerarascondiçõesparaumconviverdigni-ficante,justoeigualitário?”

Setomadocomoobjetodeanáliseacomunica-ção,adesregulamentaçãodasnormasparaasemissoraseducativase,praticamente,aretiradadoEstadodopro-cessoeoseurepasseàsfundaçõesnão-governamentaise semfins lucrativos, pode-se afirmar queo setor nãoficoumaisdemocráticocomagestãodessasemissoraspororganizaçõesnão-governamentais.Éoqueapontaa pesquisa realizadapormim, Ivoneteda SilvaLopes(2010)11,sobreadistribuiçãodasconcessõeseducativasàsfundações.Percebeu-sequeaflexibilizaçãodasregrasprovocouacorridadediversosgrupospolíticos,empre-sariais e religiosos embuscadessasconcessões,oqueresultouna implantaçãodemaisde100geradorasemtodooBrasil.

Asituaçãoapontaparaanecessidade,conformaalertou AntonioGramsci (1999),dediferenciarentreosmovimentosouassociaçõesorgânicas,relativamentepermanentes,dosqueoautorcaracterizoucomomovi-mentosdeconjuntura.Essesseapresentamcomooca-sionaiseenvolviampequenosgruposdirigentesepesso-asresponsáveispelopoder.Ouseja,asTVsEducativas,na suamaioria, foramdistribuídas àsorganizaçõesqueforamcriadas instrumentalmentepararequererascon-cessões.Associaçõesquepodemserconsideradascomoespaçoparaafirmaçãodeinteressesegoístasecorporati-

vos,segundoNogueira:

11Discussão sobre omodelo de política de comunicação, especi-ficamente sobre a distribuição de concessões educativas na disser-taçãodisponívelonlineem:http://www.bdtd.ndc.uff.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3789

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Asociedadecivilqueemergedessavi-são [neoliberal] é despolitizadora: nãose dispõe como um espaço de organi-zação de subjetividades, no qual podeocorrerelevaçãopolíticadosinteresseseconômico-corporativosou,emoutrostermos,a‘catarse’,apassagemdoplano‘egoístico-passional’paraoplano‘ético-político’(NOGUEIRA,2005,p.102).

Operfildosconcessionárioseducativosnãoco-laboraparaemancipaçãodasociedade,masretrataoin-teressedegruposcominteressesprivados.Dessaforma,ogoverno,aodescentralizaragestãodasTVEducativas,nãocorroborouparaaampliaçãodademocracia.Con-formeargumentaAngelaVieiraNeves,“nemsempreadescentralizaçãoacarretamaiordemocracia,poisnãoésemprequeoprocessodeprocessodepartilharopodereasdecisõespúblicascomapopulaçãochegaaosmuni-cípios”(NEVES,2008,p.13).

Avanços e recuos no cenário televisivo

Desdearedemocratização,acriaçãodaEmpre-saBrasildeComunicação(EBC),gestoradaTVBrasil,talvez tenha sidoumadasúnicasações implementadascompotencialparacontribuircomoprocessodedemo-cratização da comunicação.Contudo, a cultura políticaindicaumahibridez12,pormesclaraçõesquepodemserconsideradas importantes para a democratizar o setor,sem,noentanto,alterarainfraestruturaquemantémaconcentraçãomidiática.

Para sustentar a afirmação acima, basta citarqueaTVBrasilfoiconstituída,semnoentanto,regu-lamentaremleioqueseriaacomplementaridadeentrepúblico,privadoeestatal, presentenoArtigo223,docapítuloVdaConstituiçãoFederal. Aregulamentaçãopoderia indicarapossibilidadedeequilíbrionadivisãodasconcessões,quedesdeaorigemdatelevisãonoBrasilforamconcedidaspeloexecutivofederalaosetorpriva-do.Contudo,oreferidotextosugereumadivisãoentreestatalepúblicoprovavelmentenatentativadeevitaroque havia ocorrido no período autoritário, no qual asduasinstânciasestavamimbricadas.12O conceito de hibridação cultural é a forma como deNéstorGarciaCanclini(1997)buscaentenderasrelaçõessociaisnaAméricaLatina.Oautorasvêdeumaformamaiscomplexa,caracterizadasnamodernidadepelarupturadefronteirasrígidas,rejeitandoasimplifi-caçãodicotômicaentretradicionalemoderno,popularemassivo,lú-dicoeracional.Assim,aapropriaçãodetalnoçãopelaCiênciaPolíticadestacaqueaspráticasautoritáriasnãosãoexcludentesnoperíododemocrático,maspressupõeahibridizaçãonaculturapolíticavigenteimbricandocomponentesautoritárioscomdemocráticos.

O fato é que a complementaridade geradife-rentes interpretações.O texto “Sistemapúblicode co-municaçãonoBrasil:as conquistas e os desafios”, pro-duzidopeloObservatóriodoDireitoàComunicação13,apresenta alguns posicionamentos sobre essa questão.ParaValérioCruzBrittos(2009),omodelodeveriaseroutro,porque,segundoele,aseparaçãoentreopúblicoeoestatalacabaindicandoqueestatalnãoépúblico.“[...]quandooEstadoentraparaproverserviçospúblicosàpopulação,sejaparaasaúdeoueducação,nãodeixadesercaracterizadocomopúblico.Então,quandotemosacomunicaçãoestatal,emqualquerplano,elaénecessaria-mentepública”.Oautorsugerequeoidealépensarqueaexistênciadeumsistemaprivadoeumpúblico,po-dendoessesergeridopeloEstado,enãodivididoentrepúblicoeestatal.

OreferidoartigoéconsideradopeloprofessorMurilo César Ramos como uma saída que beneficiouprincipalmenteo segmentocomercial-privado,pois su-gereaexistênciadeumsistemaprivado.Eleexplicaquenãoexistesistemaprivadoderadiodifusão;oqueháéaconcessãopeloEstado,queautorizaroprivadoaex-plorarcomercialmenteoserviçopúblicodeTVerádio:“Esta suposta complementaridade acabou sendo umaarmadilha,porqueaparentaterumsistemaprivado[...].Advogandoaexistênciadosistemaprivado,osradiodi-fusorescomerciaisqueremamáximasegurançajurídicacomamáxima liberdadedemercado”(RAMOS,2009,p.12).

Ambos os argumentos são pertinentes para odebate sobre comunicação pública. Aqui, concorda-secomBrittosqueoestataldeveserpúblico,acrescentandoqueograndedesafiodademocratizaçãobrasileiraéexa-tamenteeste:tornarpúbliconosentidodesocializarasdecisõesestatais.EmrelaçãoaRamos,defatoaradiodi-fusãodeveriaserentendidacomopública,portanto,des-deasuagêneseelatemsidoconsiderada,erroneamente,comoprivadaenãocomoalgoquepertençaatodana-ção.Assim,oEstadocontribuipararatificaratelevisãocomo negócio privado ao deixar de criar mecanismosefetivosparagarantiraparticipaçãopopularetambémpornãoestabelecercritériosparaavaliaçãoperiódicadousodessasconcessõespelosetorcomercial.

Retornando à questão da complementaridade,emboranãoexistanotextoconstitucionalodetalhamen-toou,aposteriori,regulamentaçãodoartigodefinindoaexpressão,otermoindicaoequilíbrionaradiodifusãoentre osmeiosdecomunicaçãogeridospela iniciativa

13 Disponível em: www.direitoacomunicacao.org.br/content.php?option=com...task...

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privadaeosetorpúblicoounão-comercial.Sugeremu-dançanainfraestrutura,oquepoderiaferirosinteressesdosgruposhegemônicosdacomunicação.A exemplodaArgentina14, onde,depoisdemuitapolêmica envol-vendoogovernodapresidenteCristina KirchnereoGrupoClarín,foiaprovadopelosdeputados,emsetem-brode2009,oprojetodeLeideServiçosdeComunica-çãoAudiovisuais.Nelesepercebeavançosnosentidodademocratizaçãodamídia,garantindoadivisãodoespec-trorespectivamenteem33%paraosetorestatal,privadoesemfinslucrativos.

Acomplementaridadepoderiamudarocenáriomidiádicobrasileiro.Hoje,osdoisprincipaisgruposte-levisivos,GloboeRecord (essaamais antigaemissoradopaís,criadaem1953)expandiramsuaáreadeatuação.Segundooportaldainternet“DonosdaMídia”,àGloboestãovinculados35grupos regionais,quecontrolamototalde340veículosdecomunicação.Desuaproprieda-desãocincoemissorasdetelevisãonocanalaberto(Glo-boRiodeJaneiro,SãoPaulo,BeloHorizonte,BrasíliaeRecife).ÉdonadaGloboSat,amaiorprogramadoradeTVpagadaAméricaLatina.Possuihegemonianoseg-mentodaTVporassinatura(NET-cabo,Sky-satélite)com cerca de 80%domercado.Detém sete canais:GNT,Multishow,SportTV1e2,Viva,GloboNewseFutura.Alémdosetortelevisivo,aindaintegraogrupo:10emissorasderádio,daGloboFilmes,nomercadoedi-torialatuacom17revistasequatrojornais.Aindapossuiumagravadora,a SomLivre,eoportaldaInternet,oG1.

ÀRedeRecord,asegundamaiorredeemaudi-ência,estãoafiliados30grupos.Controladiretaouin-diretamente142veículosdecomunicação15.Natelevisãoaberta possui 18 emissoras próprias e 46 afiliadas; naTVporassinatura,aRecordNews,RecordInternacio-nal;duasrádios:RecordeAleluia,alémdaRecordEn-tretenimentoeRecordMobile,eoportaldainternetR7.Quatrojornais(CorreiodoPovo,FolhaUniversal,FolhaVitóriaeHojeemDia).

Se tomarmos como padrão de análise as duasprincipaisredesdetelevisão,aGlobo,com122emisso-ras (própriaseafiliadas),eaRecordcom60emissorasprópriaseafiliadas,asduasorganizaçõesdetêm43%das421geradorasdetelevisãoabertanoBrasil.Emrelaçãoàaudiência,asduasredesficaramem2009com39,2%nohorárionobre, entre18e24horas.Quantoao fa-14 Informações sobre o projeto disponível em:http://www.d i re i toacomunicacao.org.br/content .php?opt ion=com_content&task=view&id=481215Informaçõesdisponívelnosite“DonosdaMídia”http://donos-damidia.com.br/rede/21398

turamento,aRedeGlobodeteve44,4%eRedeRecord16,9%dototaldereceitasdosetorem2009(KIELING,2010).

Aconcentraçãodepropriedadedas indústriasinfocomunicacionais,sejapelapossedapossediretadasempresasporumumúnicogrupoeconômicoouatra-vésdasafiliações regionais, trazcomoconsequênciaaunificaçãodalinhaeditorialquereduzadiversidadein-formativa.MartínBecerraeGuillermoMastrini (2009)advertemque,nesses casos,dificilmenteos integrantesdamesma rede assumem posições divergentes.O quesignifica que as associações regionais estendem paratodoopaísalinhaeditorialditadapelosconglomeradoscentrais,noBrasillocalizadosprincipalmentenoRiodeJaneiroeSãoPaulo.

Nestesentido, BecerraeMastrini (2009,p.35)apontamoutroproblema:aconcentraçãogeográficadaproduçãodeconteúdos:“Esteimpactotambíendebilitaelespaciopúblicoyempobreceladisposicióndedistin-tasversionessobre lorealporpartede lasaudiencias/lectores, condenandoauna subrepresentaciónavastossectores que habitan el ‘interior’ de los países”. EsseaspectoécomumnoBrasil,eservecomoexemploasimagens apresentadas pela teledramaturgia são focadasprincipalmentenoRiodeJaneiroedifundidasparatodoopaís;alémdomodeloderedequeabrepoucoespaçoàsafiliadasparaaveiculaçãodeconteúdosgeradosnos

respectivosestados.

Considerações finais

A concentração dos meios de comunicaçãoem poucos grupos familiares/ empresariais e a faltademecanismosdeparticipaçãopopularnosetortalvezestejamentreosexemplosmaisexplícitosdacontradiçãodademocratizaçãodopaís.Desdeaformaçãodooli-gopóliodatelevisãoaberta,duranteoregimeditatorialmilitar(1964-1985),poucofoialterado,pelocontrário,osgruposhegemônicosformadosnaqueleperíodoex-pandiram seus negócios e tornaram-se conglomeradosmultimidiáticos.Assimcomotambémforammantidasasregrasqueregulamentamaradiodifusão(rádioetele-visãoaberta),quepermanecempraticamentesemelhan-tes,apesardaredemocratizaçãodasociedadebrasileiraterocorridohámaisdeduasdécadas.

Omarcoregulatório,estabelecidoem1962,pormeiodoCódigoBrasileirodeTelecomunicações(CBT),sofreualteraçõesduranteoregimemilitare,hoje,apesardedefasadoemrelaçãoàstransformaçõestecnológicasepolíticas,suamanutençãoédefendidapelosempresários

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dosetor, eosgovernospouco têmfeitopara alterar asituação.

Outroaspectocríticoéararaparticipaçãosocialnadefiniçãoegestãodaspolíticasdecomunicação,queconstituie-seemumgrandedesafioàsociedadebrasilei-ra.Embora reconheçamos a necessidade demudançasestruturaisnosetorparaqueeladefatosedemocratize,acriaçãodeumaredepúblicapodecontribuirparaesteprocesso. Conforme lembra Coutinho(2004, p.323)16 que a conquista de espaços democráticos contribuirápara o avanço da democratização. “É preciso lembrarsempre:umaefetivademocratizaçãodaculturanoBrasil,que transceda a alta cultura dos intelectuais e atinja asmassas,temcomopontodepartidaumademocratiza-çãodosmeiosdecomunicação”.

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