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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA PPG EM ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE RICARDO MIRANDA NACHMANOWICZ Aspectos lógicos na música clássica do século XVIII: o modelo recognitivo enquanto aparato epistemológico da autonomia do discurso musical instrumental. Ouro Preto 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETOINSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA

PPG EM ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE

RICARDO MIRANDA NACHMANOWICZ

Aspectos lógicos na música clássica do século

XVIII: o modelo recognitivo enquanto aparato epistemológico da autonomia do discurso musical instrumental.

Ouro Preto

2012

RICARDO MIRANDA NACHMANOWICZ

Aspectos lógicos na música Clássica do

século XVIII: o modelo recognitivo enquanto aparato epistemológico da autonomia do discurso musical instrumental.

Dissertação apresentada ao Mestrado em Estética e Filosofia da Arte da Universidade Federal de Ouro Preto, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Linha de pesquisa: Estética e Filosofia da Arte

Orientador: Prof. Gilson Iannini

Ouro Preto2012

N122a Nachmanowicz, Ricardo Miranda. Aspectos lógicos na música clássica do século XVIII [manuscrito] : o modelo

recognitivo enquanto aparato epistemológico da autonomia do discurso musical instrumental / Ricardo Miranda Nachmanowicz - 2012.

viii, 188f.: il. color. Orientador: Prof. Dr. Gilson de Paulo Moreira Iannini.

Coorientador: Prof. Dr. Eduardo Soares Neves Silva. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de Filosofia,

Artes e Cultura. Programa de Pós-graduação em Filosofia. Área de concentração: Estética e Filosofia da Arte.

1. Música - Filosofia e estética - Teses. 2. Estética - Teses. 3. Lógica - Teses. 4. Juízo (Estética) - Teses. 5. Juízo (Lógica) - Teses. I. Universidade Federal de Ouro Preto. II. Título.

CDU: 111.852:78.01

Catalogação: [email protected]

AGRADECIMENTOS

Agradeço a meu orientador Gilson Iannini pela liberdade de trabalho. A meu co-orientador Eduardo Soares pelo rápido entendimento e avaliação.

Agradeço a meus colegas de turma. Entre eles em especial: Rafael Abras, Lucas Marinho, Cláudia Dalla, Fran Alavina e Marcela Tavares.

Agradeço aos professores da UFOP assim como o departamento como um todo que vêm permitindo um ambiente de trabalho único e bastante gratificante. Em especial aos professores: Cíntia Vieira, Bruno Guimarães e Imaculada Kangussú.

Agradeço a um mote que sempre me faz abrir as páginas certas. A certo magista que envolve nossa vista a cada página. E às súbitas extensões de nosso pensamento em livros.

À CAPES, pelo apoio financeiro sem o qual seria impossível este trabalho.

Este trabalho é dedicado a Rameau, e à ciência de nos fazer perceber gravitações em música.

Resumo

A dissertação consiste em uma investigação de caráter epistemológica acerca da experiência musical, e em especial, da música instrumental tonal clássica produzida no século XVIII. A relação estabelecida foi que o objeto musical escolhido pode ser compreendido a partir do paradigma transcendental kantiano e de seu fundamento para o conhecimento, quer seja um fundamento lógico, determinante ou recognitivo. Contudo, esta mesma vinculação possui um impedimento na própria obra kantiana, que reserva um outro fundamento para o objeto musical, o estético. A dissertação conclui que a relação entre o fundamento lógico kantiano para o conhecimento e as técnicas e artifícios da produção musical instrumental clássica possuem uma complementaridade teórica que não possui o mesmo paralelo no fundamento estético kantiano.

Resume

The dissertation consists of an investigation about the epistemological character of musical experience, and in particular, instrumental classical tonal music produced in the eighteenth century. The relationship was established that the music-object chosen can be understood from the Kantian paradigm and its transcendental foundation for knowledge, whether a rationale, determining or recognition. However, this same binding has an impediment in his own work, Kant reserving another musical foundation for the musical object, the aesthetic. The dissertation concludes that the relationship between the Kantian logical foundation for the knowledge and the techniques and tricks of classical instrumental music production are complementary, and that has no parallel in the same Kantian aesthetic grounds.

Sumário

INTRODUÇÃO.........................................................................................................01

A Estética musical de um ponto de vista epistemológico 02

Do projeto da dissertação enquanto uma correspondência entre a musica instrumental clássica e o modelo de conhecimento kantiano, e não um estudo acerca do comentário de Kant a respeito da arte musical. 21

SEÇÃO 1: O lógico e o estético................................................................................36

CAPÍTULO I - Estatuto e conteúdo do juízo estético puro. 44

1. O juízo estético. 471.1. O estatuto do juízo da beleza. 501.1.1. O conteúdo expresso no juízo da beleza. 561.1.2. A hipotipose. 601.1.3. A ligação do estatuto da beleza a um conteúdo belo. 62

2. Os objetos da arte e o objeto da complacência da beleza. 672.1. Entre a beleza e a idéia estética: uma arte do inexponível. 692.2. Limites de um sistema do juízo de gosto. 73

3. A divisão entre lógica e estética implicada na separação entre natureza e arte. 773.1. O ponto de cisão entre o lógico e o estético representado pelo parágrafo §9. 79

CAPÍTULO II – Estatuto do juízo determinante: a legalidade da unidade sintética da apercepção. 84

1. A apercepção enquanto autoconsciência. 861.1. Os produtos das faculdades. 88

2. Estatuto e conteúdo do juízo determinante. 892.1. A exibição esquemática e simbólica dos juízos. 93

3. O entendimento: a espontaneidade do conhecimento. 943.1. A representação da faculdade do entendimento. 963.1.1. Conceito: definição do termo. 993.2. O esquematismo. 101 4. As representações das faculdades em relação à síntese

da apercepção. 1044.0.1. O objeto. 1054.0.2. Os atos das faculdades transcendentais do conhecimento. 1084.1 A representação da sensibilidade: a intuição. 1094.2. O produto da imaginação: o esquema. 1114.3. A representação do entendimento: o conceito. 113

5. Limites, interferências e ultrapassagem das legalidades. 1155.1. Pensando o fenômeno musical a partir de um modelo recognitivo do conhecimento. 119

SEÇÃO 2: Extrato lógico-musical.....................................................................123

CAPÍTULO III – Análise do estatuto musical. 124

1. Os diversos modos em que podemos reivindicar conceitospara uma experiência: a recognição aplicada a objetos. 128

1.1. Análise da constituição de objetos visuais. 1321.1.1. Análise categorial de um objeto visual. 1331.1.2. Atos lógicos, gênero e espécie: análise lógica sob o exemplo das garrafas. 1351.1.3. Propriedades conceituais de um objeto visual. 1381.2. Diferença entre objetos sonoros e musicais. 1411.3. Objetividade e subjetividade musical. 1441.3.1. Relação espaço-temporal dos objetos. 145

2. Análise lógico-musical: correspondência transcendental dos elementos musicais. 1532.1 Análise lógica sob um exemplo da música instrumental clássica. 155

3. Graus de síntese e ajuizamento sobre um objeto empírico. 1623.1 Cópula de predicados. 164

CONCLUSÃO 166

1. A hipótese de Hanslick. 166

2. A condição sine qua non da experiência musical. 170

3. Considerações gerais. 174

BIBLIOGRAFIA..............................................................................................178

ANEXO.............................................................................................................188

Introdução

1

A estética musical de um ponto de vista epistemológico

Na música há sentido e conseqüência, mas

musical; é uma linguagem que falamos e

entendemos, mas que não somos capazes de

traduzir. Há um conhecimento profundo em aludir

também a “pensamentos” nas obras sonoras e,

como no falar, o juízo dextro distingue aqui

facilmente pensamentos verdadeiros de simples

palavrório.

(Eduard Hanslick)

A filosofia conduziu-se historicamente por um modelo de conhecimento norteado por

uma primazia do órgão da visão. Se por um lado Platão criticava aquilo que aparecia à

vista como uma ‘cópia’ ou ‘casca’ do real, em seu mito da caverna dá o máximo

significado à luz que ‘faz ver’ as idéias. As metáforas a este respeito são abundantes e

o repertório da filosofia e mesmo da linguagem ordinária o demonstram: iluminismo,

iluminar, esclarecer, fazer ver, visão, etc. Ver, enquanto conhecer, é de fato uma

metáfora que nos rendeu muitos frutos:

Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propormos operar coisa alguma, preferimos, por assim dizer, a vista aos demais. A razão é que ela é, de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre. (Metafísica 980 A: 2001-2)

Antes de qualquer coisa detenhamo-nos ante a um embate entre nossos órgãos

dos sentidos. Comecemos apenas por dar atenção a outro órgão, talvez não tão repleto

de metáforas a ponto delas adentrarem ao vocabulário epistemológico e científico,

mas que sem dúvida estão presentes em outros campos, como a tão rica e pedagógica

metáfora de ‘dar ouvidos’.

Tal órgão não passou despercebido do mestre de Estagira, que reconhece e

concede certo poder ao órgão auditivo:

São inteligentes, mas incapazes de aprender, todos os animais incapacitados de ouvir os sons (por exemplo a abelha e qualquer outro gênero de animais

2

desse tipo); ao contrário, aprendem todos os que, além da memória, possuem também o sentido da audição. (Metafísica 980 A: 2001-2)

O filósofo entende, por assim dizer, que aprendemos e ensinamos através da

audição. E toda a proficuidade da expressão ‘dar ouvidos’ parece ao menos perfazer

uma porta de entrada ao reino ‘superior’ do conhecimento.

Não precisamos mais, assim como fez Aristoteles, hierarquizar a função dos

órgãos dos sentidos por seu vínculo cognitivo, mas podemos vir a alcançar uma

perspectiva de nossa capacidade cognitiva a partir do órgão da audição e do que

podemos constatar em seus objetos.

Falamos em ‘órgão’ do ouvido para lembrar que o fenômeno musical possui

uma porta de entrada. E elegemos o ato de ouvir, a escuta1, como ato onde o

conhecimento musical é erigido.

Aproveitando-nos de uma problemática presente em Nancy, lançamos a

questão sobre a própria capacidade da filosofia em compreender as capacidades

auditivas enquanto capacidades cognitivas superiores.

Escutar é algo ao qual a filosofia é capaz? Ou - vamos insistir um pouco, apesar de tudo, correndo o risco de exagerar o ponto - não teria a filosofia sobreposto sobre a escuta [listening], de antemão e por necessidade, ou ainda substituído a escuta, por alguma coisa que pudesse ser mais da ordem da compreensão [understanding]? (Nancy 2002:1)

A língua francesa possui este duplo significado do termo entendre (traduzido

como understanding ou to hear). No português, como no inglês, não há qualquer

relação entre escuta e entendimento, ou escuta e conhecimento, não há uma relação

prefigurada já na palavra. Nancy quer pensar o quanto escutar e entender se

identificam, e o quanto o sentido da audição, impresso no termo entendre teria sido

deixado de lado pela filosofia.

Nosso itinerário é semelhante para com o objeto musical, pois que, em comum

com todo conhecimento, a escuta musical estabelece-se como uma ponte, que

encarrega uma facticidade sonora pelo trajeto de uma compreensão.

Acompanhando ainda o diagnóstico de Nancy somos obrigados a nos

perguntar: como nos tornar atentos, na escuta, à uma compreensão musical? E como

descreve-la a partir de um modelo filosófico ligado a uma concepção de entendimento

1� Definição de ‘escutar’: Tornar-se ou estar atento para ouvir; dar ouvidos a; aplicar o ouvido com atenção para perceber ou ouvir. (Dicionário Novo Aurélio).

3

que se volta tradicionalmente ao visual?

Há, pelo menos potencialmente, mais isomorfismo entre o visual e o conceitual, mesmo que apenas em virtude do fato de que a morphé, a "forma" implícita na idéia de "isomorfismo" seja imediatamente pensada ou apreendida no plano visual. (Nancy 2002:2)

Como contrapartida, o sonoro, observa Nancy, foi identificado sempre com o

esotérico, o confessional, o secreto.

Porém, desde o século XVI, vê-se que música e ciência tornaram-se cada vez

mais próximas, em grande medida pela necessidade da organização sonora pelos

músicos, e concomitantemente, o interesse do cientista em compreender as relações

sonoras. (Weber 1995). Este mesmo impulso é verificado ao longo dos séculos, mas é

sobretudo a partir do século XX, e presentemente no século XXI, que conquistas

teóricas e técnicas, artísticas e tecnológicas passaram a ter um enlace em proporções

que atualmente suscitam questões acerca dos limites entre arte, técnica e ciência

(Iazzetta 2008).

Porém, retrocedendo alguns séculos, mais especificamente ao século XVIII,

nosso trabalho não quer pensar na interação entre tecnologia, ciência e música,

assunto este que já vem sendo contemplado nos trabalhos musicológicos atuais, mas

diferente, centrarmo-nos na relação que o procedimento composicional e a escuta

musical estabeleceram diretamente com o conhecimento, introduzindo ao debate uma

perspectiva eminentemente epistemológica.

Nosso escopo histórico localiza-se no interior da nascente música clássica,

período este que se destaca pelo uso sistemático e preponderante da tonalidade e do

discurso instrumental. O objeto musical passa a conter e ser o resultado de um

procedimento composicional, de critérios e valores de escuta, concomitantemente

cifrados junto à partitura e aos hábitos de leitura e execução. Notabiliza-se assim,

sobretudo no período clássico, a figura do compositor. Assim, uma filosofia que

pretenda dissertar acerca dos processos de conhecimento inerentes à experiência

musical acaba por levar em consideração os próprios processos composicionais de um

autor e de uma escola.

A inter-relação necessária entre o objeto e a escuta é de tal importância em

uma tradição musical erudita como a que vamos contemplar que podemos ligar o que

seja essencialmente a música ao que seja essencialmente o trabalho de um compositor.

Do mesmo modo, ligamos o nome de um compositor a uma determinada escuta, e

4

esta, a um objeto. Se lhe pergunto: ‘o que acha de Messiaen?’, pergunto, sob a esfera

da escuta e do objeto, tudo, menos o que se pese acerca deste nome enquanto

signifique uma pessoa.

É aqui que adentramos em um problema bibliográfico, afinal, músicos não se

preocuparam, antes do século XX, em publicar trabalhos teóricos que contemplassem

a escuta, mas apenas a feitura das obras e técnicas as quais trabalhavam, o que não

quer dizer que a escuta não corresse sempre implícita nestes trabalhos. O micrologus

de Guido D’Arezzo, o Le Institutioni Harmoniche de Gioseffo Zarlino, o Der

vollkommene Capellmeister de Johann Mattheson, e o Handbuch der Harmonielehre

de Hugo Riemann, entre outros, ilustram esta bibliografia (Christensen 2002).

A partir de certas características destes tratados podemos indicar constantes

presentes nas descrições, embora o conteúdo deste processo se modifique a cada

período histórico. Há um esquema geral, desde o medievo, que atende aos seguintes

critérios: a) a obra musical desperta certo ‘efeito’. b) o ‘efeito’ musical possui vínculo

causal com a organização sonora da obra. c) é possível organizar a obra a partir de um

princípio teórico geral, o tratado.

A ordenação do material musical parece ser assunto essencial desta arte. Os

comentários a este respeito, todos centrados no conceito de harmonia, remontam a

Aristóteles. Em sua concepção a aplicação da harmonia sob as artes se realizaria pela

‘lei’ do movimento: “notas que soam juntas não provocam sentimento” (Menezes

2002:28).

A tradição ocidental vincula, assim, o efeito artístico à idéia de obediência a

uma lei da harmonia, uma ordenação. Notamos tal empresa no conceito de ‘qualidade

e afinidade’ (modi vocum) de D’Arezzo em seu Micrologus de 1026. Observamos

também a relação entre ‘ordem’ e ‘efeito’ na idéia de ‘proporção’ onde “Zarlino

pontua em seu importante tratado Le Institutioni Harmoniche de 1558 a relevância

sobretudo das proporções para o dado harmônico.” (Menezes 2002:28).

A música renascentista aplicava sons simultâneos e seqüenciais sob diferentes

vozes, enquanto que a música medieval apenas seqüenciais. Essa diferença, contudo,

deu lugar ao conceito de proporção, que permitiu adaptar a idéia de harmonia para os

dois níveis do objeto, horizontal (melodia) e vertical (acorde)2. O conceito de

2� Na música renascentista (erudita) não há uso de ‘acorde’, entendido como ataque simultâneo de três ou mais notas, porém, na condução das vozes polifônicas, as notas soam juntas e, portanto, geram acordes, sem que esses, contudo, sejam atacados como tais. Esta é a principal característica da harmonia renascentista.

5

‘harmonia’, tratando inicialmente de medidas, proporções e qualidades, ampliava-se

conforme o montante material a que deveria dar forma, e este montante pode se

estender do macro ao microcosmo do objeto musical, o que denotaria a extensão de

uma dada lógica composicional.

Em todos os tratados examinados há descrições sobre a qualidade intervalar,

as regras escalares e estruturação de formas. Tais descrições precisas, acompanham

toda a história da música ocidental e dos subseqüentes tratados. Porém, os tratados, e

mesmo a interpretação dominante acerca de cada época, não se limitavam a tratar da

música apenas em seu aspecto técnico. Estes viam aliados à uma ‘visão de mundo’

que se estruturou tipicamente em cada período.

Embora atualmente possamos estender o adjetivo ‘musical’ a toda obra contida

nesta tradição, o ‘significado’ destas obras para cada período diverge, ou seja, os

valores, afetos, conhecimentos, etc., reivindicados por cada período histórico não

foram os mesmos. Por exemplo, no medievo, dizia-se da música que esta evoca a

ordem divina, porém, apenas quando sob os cuidados da palavra bíblica. No barroco,

as escalas e graus atuam em função de uma doutrina dos afetos (Affektenlehre), e

assim por diante.

No classicismo, período pelo qual nos interessamos, há também uma estrutura

pertinente à uma ‘visão de mundo’, porém, destacamos que o que marca

distintivamente o período clássico é o surgimento de um pensamento preocupado com

a autonomia musical, com sua capacidade de prescindir de outros veículos

expressivos a dar fundamento à sua forma artística. Tal novidade ilustrou-se através

de obras musicais e configurou o modelo tonal, onde seu discurso, podemos destacar,

passou por três momentos.

Um primeiro, marcado por uma certa herança dos afetos do barroco, mas que

os interpretou por uma via naturalista, e "tendeu para uma estética da música como

som natural, não como obra de arte" (Dahlhaus 1989:61), resultando na teoria da

Empfindsamkeit, que de acordo com Dahlhaus (1989), ainda se manteve presente nas

décadas de 80’ e 90’ do século XVIII.

Um segundo momento veio a suplantar tal tese com o Sturm und Drang e sua

apropriação do conceito de sublime:

Assim, o conceito de sublime, assim como o de "maravilhoso" [wondrous], serviu para justificar um fenômeno que escapava às categorias da estética da imitação e dos afetos que dominavam o século dezoito. O que havia sido

6

percebido como uma desvantagem, a indeterminação da música instrumental, foi reinterpretado como uma vantagem. (Dahlhaus 1989:60)

Neste segundo momento percebemos o percurso que as estéticas começam a

empreender em busca de um conteúdo autônomo, unificando o conteúdo artístico ao

caráter formal das produções emergentes.

Este caminho deságua na eleição da música instrumental, gênero já

estabelecido quando do limiar do período romântico, e cunha seu primeiro conceito

autônomo da arte musical, a Música absoluta: “[...] desdenhando qualquer ajuda,

qualquer mistura de outra arte, expressa a natureza característica da arte que é

somente reconhecida no interior da música em si." (Hoffmann In. Dahlhaus 1989:60)

Dado este percurso, que de modo geral prescinde do pathos a definir a

essência da música, surgem propostas acerca do que seria o conteúdo da música

absoluta – atribuindo-se um lugar vazio a esta estética desde o fim da predominância

do pathos enquanto conteúdo - dando lugar a novos discursos estéticos direcionados à

música:

Originalmente a música só possuía valor enquanto arte aplicada [angewandte

Kunst], isto é, era utilizada somente como expressão de sentimentos de um sujeito e foi preciso um longo tempo antes que fosse praticada como arte pura [reine Kunst], isto é, que a melodia, harmonia, etc. fossem cultivadas como jogo belo [als schönes Spiel], mesmo sem estarem ligadas a um texto ou coisas do gênero. (Triest, Allgemeine Musikalische Zeitung, In. Videira: 2010)

Contudo, esta autonomia que hoje se recobre em excesso com teorias

científicas era por sua vez recoberta por concepções metafísicas. O conteúdo

instrumental autônomo era interpretado enquanto uma inexprimibilidade metafísica.

Neste ínterim não faltaram propostas a conceber os novos elementos da

música instrumental. Segundo Dahlhaus (1989), Körner introduziu entre as tendências

da época uma recuperação do valor do pathos no interior do conteúdo musical

autônomo. Neste caso, o pathos é introduzido como o elemento de menor valor em

uma hierarquia de valores espirituais que a música poderia alcançar, a saber, um ethos

que perpassaria pelos estados passionais. Körner visa com esta teoria estabelecer um

elo entre o conteúdo formal das sinfonias e um resultado perceptivo humanizado:

Körner contrasta caráter (ethos) e afeto (pathos). "Dentro daquilo que chamamos de alma, distinguimos entre uma coisa persistente e algo que é transitório, entre o espírito e os movimentos do espírito, entre o caráter - ethos

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- e os estados passionais - pathos. [...] a música clássica que a dialética estético-histórico-filosófica de Körner procura justificar, surge como "unidade na diversidade:" unidade de caráter em uma variedade de estados passionais. (Dahlhaus 1989:65,66)

Havíamos aludido a três momentos das estéticas musicais do período tonal,

mas uma tese mista como a de Körner não configuraria nenhum momento

característico. Compreendemos que um terceiro momento serviria a uma estética que

trouxesse um novo enfoque sobre a música tonal do século XVIII e XIX, sem recair

de algum modo nas estéticas passadas.

Dado a teoria naturalista da Empfindsamkeit, e a estarrecida conclusão do

Sturm und Drang a respeito da inexprimibilidade da arte musical, parece que este

terceiro momento viria apenas com Eduard Hanslick na obra Do belo musical. Ao

invés de criar uma teoria conciliadora entre estes pólos, os absorve no sentido de uma

sublevação teórica a abarcar ambas as percepções, por isto, um terceiro momento

interpretativo, posterior aos demais.

Hanslick trabalha por diferentes flancos. De um lado rebate a ainda vívida

teoria dos afetos, e recorre até a psicoacústica para exemplificar que tipo de estado

anímico o som pode provocar. Mas, diferente da teoria da Empfindsamkeit, Hanslick

não se fixa nestes dados enquanto expressão do musical, por entender que esses são

apenas suportes os quais a música não pode prescindir, mas que não configuram a

expressão musical ela mesma:

A música, pelo contrário, pode, com os seus peculiaríssimos meios, representar de modo substancial certo domínio de idéias. Tais são, em primeiro lugar, todas as idéias que se referem a modificações audíveis do tempo, da força, das proporções, por conseguinte, as idéias do crescimento, do esmorecer, da pressa, da hesitação, do artificiosamente intrincado do simples acompanhamento e coisas semelhantes.[...] meras idéias que podem encontrar nas combinações sonoras a correspondente manifestação sensível. [...] mas ainda, costuma-se confundi-la, não poucas vezes, com as propriedades puramente musicais. (Hanslick 2002:25)

Sua análise, incorporada a uma teoria tonal sólida, interpreta os sons sob uma

perspectiva estética bastante diferente da perspectiva programática impulsionada por

Wagner, e assim se distancia do romantismo que vinha dominando o discurso artístico

(Dahlhaus: 70,71).

Hanslick promovia uma ‘filosofia crítica’ para a estética musical, cumprindo a

estratégia de sair da perspectiva da mera crença na existência real dos objetos, ou, de

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modo transposto, sair da perspectiva da mera crença na realidade do discurso estético

aplicado à música até então, para encetar uma investigação das condições de

possibilidades inscritas a priori em nossa subjetividade.

Tal refreamento produziu uma visão bastante divergente, porém não

completamente desvinculada das tendências interpretativas de então, já que seu

trabalho contemplava produções e decisões estéticas da época, sobretudo no que diz

respeito ao compositor Johannes Brahms. O inexprimível, significando a poética do

infinito, do inalcançável e, por decorrência, do transcendente, um problema comum

ao romantismo, ganha em Hanslick uma expressão transcendental, argüindo portanto

seus próprios limites. O inexprimível passa a se delinear em um corpo filosófico. Para

ilustrar esta nova relação, tipicamente tonal, Hanslick por vezes se utiliza de imagens:

Cada um de nós, como criança, ter-se-á deleitado no variável jogo de cores e formas de um caleidoscópio. A música é semelhante caleidoscópio a um nível de manifestação infinitamente mais elevado. Produz formas e cores belas em constante e progressiva alternância, ora em transição suave, ora em contraste pronunciado, sempre simétricas e em si cumuladas. (Hanslick 2002:42)

O discurso da autonomia musical, que transcorreu desde o século XIX,

passando de uma inexprimibilidade metafísica para um discurso não-conceitual e não-

representacional, ou seja, vinha por tendências interpretativas pautadas na

inexprimibilidade do conteúdo musical, sobretudo entre o pré-romantismo e o

romantismo, foi tomado por Hanslick enquanto problema, mas sobre este problema

pretendeu dar um passo extra e que contudo o retirava da concepção anterior, ao tentar

especificar o sentido desta inexprimibilidade típica da música.

Este impulso não foi exclusivo de Hanslick, embora sua resposta, de caráter

formalista, seja única. Esta mesma problemática da inexprimibilidade deu lugar a uma

das teses musicais mais radicais acerca do conteúdo musical, a de Schopenhauer, e

sua identificação metafísica da música com a vontade.

Se voltarmos ao exemplo do caleidoscópio veremos que Hanslick está dando

um enfoque extremamente prosaico à experiência musical, em detrimento ao

conteúdo metafísico e poético típico do século XIX (Dahlhaus 1989:69,70). Qualquer

poder metafísico da percepção musical parece se esvair com a simploriedade do

exemplo, que contudo nos remete ao modelo kantiano de belezas livres e puras, dos

desenhos à la grecque e dos temas de papel de parede (CFJ: 49).

Hanslick se debruça criticamente sobre temas que pareciam já acertados entre

9

a estética romântica, tais como; metafísica, inexprimibilidade, sentimentos e o

sublime. Hanslick substitui os objetos em voga e retraça preocupações

transcendentais, ocupa-se da expressão de um domínio de idéias que os sons podem

de fato nos infringir, critica a manutenção da tese barroca dos afetos e de sua

continuada e acrítica retomada sob a interpretação poética (sobretudo de um

romantismo menos radical e até popular), e por último, retoma o tema da beleza,

porém critica a superficialidade da estética musical kantiana.

Hanslick intenta um enfoque que quer mesmo suplantar o mero estético em

direção ao científico, até alcançar o filosófico. Sua pretensão propõe uma empresa de

reflexão acurada e lógica, respeitando as características artísticas do fenômeno

musical, o que se mostra bastante original para o período. Leva adiante o projeto da

autonomia da arte musical, porém, sem necessitar incluir a música em programas

filosóficos, morais, espirituais ou religiosos. Hanslick intenta uma investigação que

parte do musical e chega a suas determinações típicas sem maiores alusões. Mantém-

se assim filiado ao projeto clássico inicial de uma música instrumental autônoma.

A questão epistemológica

No que diz respeito ao nascente conceito de música pura ou absoluta, e de como a

música pôde influenciar toda a filosofia estética e em alguns casos a filosofia como

um todo (Videira 2009), há bibliografia suficiente em Dalhaus (1989), Christensen

(2002), Videira (2009,2010) entre outros pesquisadores muito competentes nesta área,

que conseguiram unir em uma medida mais do que satisfatória, rigor técnico musical

à suas condicionantes culturais. É certo que nossa leitura se alia a estes retratos

históricos, mas ainda pretende uma contribuição por uma via ainda pouco especulada.

A música instrumental, germe da realização do classicismo, ao renegar uma

série de prerrogativas culturais presentes quando de seu engendramento, foi, por isto

mesmo, responsável por um discurso inédito, tanto para a música quanto para as artes

em geral. O fato de uma seqüência acústica sem qualquer recurso representativo,

mimético ou textual configurar uma obra artística e incutir beleza, certamente se

mostrou forte o suficiente para que fosse incluído enquanto um problema estético,

cultural e então filosófico.

10

Interessam-nos então os frutos teóricos que uma música instrumental nestes

moldes inseriu, já no século XVIII, e que nos permite fazer a seguinte interrogação:

Como foi possível erigir, em termos de estratégia composicional, um discurso musical

instrumental puro, compreensível, sem contar com uma base cultural previamente

legitimada?

Ou seja, estamos perguntando sobre o fenômeno musical, ele mesmo, sofrendo

uma distinção em seu modo de produção e escuta. A conseqüência destas produções

de Carl Phillip Emmanuel Bach, Joseph Haydn, Mozart e Beethoven – citamos os

mais eminentes – já são conhecidas e problematizadas, porém, o uso da técnica e a

criação de um modo de fruição proposta em termos de execução e racionalização têm

ainda um lugar menor neste debate. O nível de compreensibilidade alcançado por

estes compositores, antes mesmo de haver um discurso plenamente difundido, nos fez

voltar a considerar quais seriam as condicionantes epistemológicas empregadas pela

técnica tonal do século XVIII que tornaram possível empreender músicas puramente

instrumentais. Dada esta compreensibilidade, qual seria o modelo epistemológico

suscitado pela música instrumental tonal?

Nossa metodologia consiste em analisar os elementos de um modelo

epistemológico presentes na estratégia musical tonal, a compreender de que modo a

música instrumental do período foi capaz de comunicar-se, tornar-se compreensível,

sem lançar mão de discursos vigentes.

Nossa imersão exclusivamente sobre a obra kantiana busca a composição de

um intermediário teórico, não no sentido de uma ‘compreensão profunda’ das obras

do autor, mas de um componente que perpassa obras, compositores, autores e

sobretudo os espectadores, conscientes ou inconscientes, de estarem exercendo certas

funções lógicas que se objetivam em técnicas de composição e são evocadas na

escuta.

Esboço de um pensamento estético-musical

Uma história das técnicas musicais pode dar lugar a dois debates distintos: às

distinções sensíveis que são demarcadas em procedimentos técnicos, e a debates

acerca do conteúdo musical. Mas se acompanhamos o percurso histórico vemos que

11

os debates acerca do conteúdo findam muitas vezes sem continuidade enquanto que

muitas distinções sensíveis mantêm-se atuais.

Muito sucintamente, D’Arezzo denomina música como “o movimento dos

sons”. Não houve por nenhum período musical uma definição que parecesse

contradizer tal assertiva, e assim conclui Menezes: “O que importa à escuta musical é,

no entanto, perceber como se motiva (do latim motus – movido) o som, aproveitando

o que de essencial distingue a música da maioria das outras artes: o tempo, mas

através da transformação (direcionalidade).” (Menezes 2002: 30)

Aos tratados, é incumbida a tarefa de fornecer a regra de uma ordem

‘direcional’ para o som. De posse deste conhecimento para a confecção de objetos

musicais, um músico pode ter segurança na composição de sua obra, a organizar seus

elementos segundo princípios e assim garantir uma ‘direcionalidade’ compreensível.

Estes trabalhos se inscrevem no campo da ciência musical e não podemos ligá-

los imediatamente ao inquérito filosófico: ‘o que é música?’.

Respondendo tais questões no que diz respeito ao desenvolvimento harmônico de uma obra, pode-se estender tal conclusão também aos outros fenômeno da composição musical (tais como densidades, alturas, intensidades, as próprias durações, os timbres): uma obra pode ser direcional

ou adirecional. Será direcional quando atrair o ouvinte a um tipo de escuta no qual este possa perceber a transformação de um estado acústico a outro, seja num determinado aspecto (fenômeno) sonoro, seja na combinação de algum destes (ao menos algum parâmetro, no entanto, não deverá transformar-se a fim de se evitar um acumulo negativo de informação).” (Menezes 2002: 30)

A técnica, e a atividade de compor ou escutar, colocam a música sob um

terreno genericamente descrito como um mover do ouvinte, a atividade de estarmos

sendo movidos é tida como música, e a atividade de compor tais ordens, de musical.

Neste jogo restrito entre músicos e ouvintes a filosofia pouco participa, não

encontramos nos trabalhos teóricos da antiguidade o que seja a condição de

possibilidade ou a causa última dos fenômenos acústicos se destacarem como

musicais. Embora notemos uma adição progressiva de técnicas pela história, Porém,

felizmente para nós, os trabalhos não correram sempre neste sentido.

A primeira obra que parece confluir para si exigências filosóficas em conjunto

com a prática musical é sem sombra de dúvida Do belo musical de Eduard Hanslick.

Hanslick foi capaz de aliar a definição técnico/musical a uma inquirição a respeito do

jogo que o ouvinte empreende com os elementos sonoros, sem necessidade de

12

interpor neste processo uma poética a priori, mas entendendo que uma poética

conjuga ou deriva de uma compreensibilidade dada na técnica de composição.

Mas, se os movimentos percebidos na escuta são qualidades e quantidades

agrupadas em uma percepção acumulativa, o que seria expresso por este objeto, o que

estes ‘direcionamentos’ vêem a expressar?

É justamente esta questão, que vinha sendo respondida de antemão, que faz de

Hanslick um genuíno filósofo da música, colocando-se socraticamente ante ao que

vinha facilmente respondido: ‘o que é música?’

Sua resposta à questão é tão inovadora quanto pouco esclarecedora. Parece

abrir um campo, uma perspectiva, ao invés de resolutamente responder: “Se se

perguntar o que se há-de expressar com este material sonoro, a resposta reza assim:

idéias musicais.” (Hanslick 2002:41)

Se por um lado a música é uma percepção e entendimento (Hanslick 2002:16)

de qualidades e quantidades sonoras, por outro ela é uma compreensão destes

elementos que expressa um sentido próprio. Assim como um pensamento, estabelece

argumentos e julga aqueles adequados, corretos e falsos.

Mas uma idéia musical trazida inteiramente à manifestação é já um belo autônomo, é fim em si mesmo, e de nenhum modo apenas meio ou material para a representação de sentimentos e pensamentos, embora possa possuir em alto grau aquela sugestividade simbólica, reflectora das grandes leis cósmicas, com que deparamos em todo o belo artístico. (Hanslick 2002:41,42)

Tal ponto de vista abriu, retrospectivamente, perspectivas que se tornaram

lugar comum da cultura musical atual, que deram ainda lugar para a música concreta e

eletrônica [elektronische].

Se já estamos a falar de entendimento e pensamento em âmbito musical,

estamos aludindo a pontos de vista possibilitados pela filosofia, pois que a experiência

musical tradicional é pré-filosófica.

Contudo, nosso trabalho busca um correlato epistemológico para esta

experiência pré-filosófica. Hanslick nos dá o caminho, mas ele mesmo não possui

uma epistemologia formalizada, portanto, não por acaso, este correlato será buscado

na filosofia kantiana. Marques (2010b) nos fornece uma ponte inicial ao introduzir

uma crítica da primazia da visão sobre a constituição de objetos, mostrando que tal

possibilidade é plenamente justificada na filosofia kantiana:

13

Mas aqui convém, antes de tudo, ficar alerta contra os caprichos de nossa linguagem. Pois embora se diga normalmente que vemos objetos, e não que vemos apenas a luz emitida por objetos, ou que vemos apenas sensações luminosas, não é tão comum dizer que ouvimos objetos, preferindo-se dizer que ouvimos os sons produzidos pelos objetos. Um pouco de reflexão basta, porém, para mostrar que essa predileção da linguagem não tem qualquer base sólida, e que a visão não tem prerrogativas especiais quanto a fornecer-nos um acesso aos objetos de nossa experiência como de resto o Bispo Berkeley já observara 300 anos atrás. (Marques 2010(b):139)

Concordando com Marques, e por decorrência com Berkeley, vemos que é

mais do que razoável que tratemos da representação auditiva com a mesma

disponibilidade com que tratamos as visuais. Buscando, neste caso, um correlato de

ordem lógica e epistemológica, entre o modelo kantiano e o processo de escuta da

música instrumental clássica.

Trata-se de equacionar dois âmbitos. De um lado experiências que podem ser

comprovadas faticamente, no caso, a escuta musical instrumental clássica, e de outro

lado um discurso de ordem epistemológica, no caso, o modelo da filosofia

transcendental kantiana. Este tipo de empreendimento, segundo a perspectiva de

Dieter Heinrich, fez parte da própria metodologia kantiana. O método da dedução

transcendental partiria igualmente de um componente não teórico da experiência, um

fato, que é posto sob júri a se aplicar um julgamento, análise, dedução, etc. Do mesmo

modo, faremos circunscrever uma experiência musical, dada de modo fático, e

buscaremos traduzi-la em um conceito de objeto que se adeque a um argumento

transcendental, e então aplicar um julgamento sobre sua forma lógica.

A dedução não é definida como cadeia de silogismos, mas, tal como uma peça jurídica, sua "prova" consiste na referência a um fato legitimador. Com efeito, elucida Heinrich, se hoje chamamos de "dedução" apenas uma cadeia de silogismos (nesse sentido tendemos a interpretar a dedução de Kant), no século XVIII "dedução" era o nome de um instrumento jurídico, no qual a "prova" partia de um "fato". (Klotz 2007:146)

Eduard Hanslick e o projeto de uma epistemologia da música.

E. Hanslick, além de delimitar uma ‘estética musical’ (strito sensu), inclui em seu

conjunto determinidades materiais e formais do som no modo como atuam em nossa

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percepção em um jogo musical. Esta ligação essencial entre a técnica composicional e

as categorias de escuta faz incluir em seu sistema uma perspectiva epistemológica

crítica, elenca assim uma verdadeira condição de possibilidade para a percepção

musical.

Entendemos que a obra de Hanslick fez colidir dois princípios de diferentes

trabalhos do século XVIII, que por motivos historicamente contingentes não se

identificaram imediatamente, seriam estes a filosofia crítica de Kant e a música

clássica instrumental. A estética de Hanslick inclui um discurso acerca do musical

enquanto lança mão de estratégias lógicas, e promove assim um aprofundamento

epistemológico no interior de uma estética, a estética musical, que passa a ser a partir

do projeto de Hanslick uma estética voltada para o objeto e seu modo de

conhecimento. Houve claramente uma recuperação do âmbito geral da aisthesis, ou

seja, de uma filosofia da percepção, que contudo almeja promover um enlace entre o

âmbito dos sentidos e sensações, com a significação do entendimento, através das

categorias lógicas.

De modo geral, não tratamos de examinar o que venha a ser uma

característica geral das artes extraído do exemplo musical, mas diferente, examinar

um modelo de conhecimento pautado no discurso musical autônomo. Estamos ao fim

somando esforços a tratar do diagnóstico feito por Hanslick: “ [...] mas a arte sonora

ainda não soube apropriar-se deste ponto de vista científico e, na sua estética, ficou

para trás das restantes artes.” (Hanslick 2002:14)

O fundamento epistemológico através de Kant: juízo determinante ou juízo

reflexivo?

A posse, circulação e transferência de conhecimento é algo comum a uma cultura.

Para Kant, tal atividade intersubjetiva ocorre em comum acordo, pois há algum

fundamento comum entre os homens acerca de um juízo de conhecimento. Tal

fundamento mínimo de intercomunicação pode ser encontrado no juízo estético, e este

é o fundamento mesmo do sensus communis (CFJ: §40). Do ponto de vista lógico tal

senso está garantido no ato de recognição. No caso estético, consegue-se este

consenso às custas da especificidade de conteúdo, abdicado de uma forma precisa de

15

juízo e constituindo-se apenas como um pensar alargado.

A divisão destes juízos visava delimitar fatos e costumes de uma cultura já

bastante influenciada pela ciência moderna. Vale ressaltar que os conceitos, sobretudo

o de recognição, que aludimos para ilustrar o juízo determinante, foram cunhados não

em um mero sentido de reprodução do meio cultural antecedente, mas interessado em

processos novos que adentravam na vida social e intelectual ocidentais3. Trata-se de

um modelo emergente e podemos agora dizer, um modelo que se tornou

paradigmático para uma era que ainda discutimos seu fim.

O universo musical não ficou alheio a estas mudanças. Uma mudança análoga

ocorre quando da normatização da música tonal, ancorando-se em um modelo de

composição que, demonstraremos, recorre amplamente a artifícios que podemos

compreender como pertencente a um paradigma da recognição4.

Mesmo a perspectiva não recognitiva do juízo reflexivo vem somar em

complexidade a ação deste novo tipo de consciência preconizada por Kant. Contudo,

os discursos acerca do conhecimento possuem uma dinâmica muito volátil, e se o

juízo reflexivo não ocupa o mesmo número de páginas que o determinante, veremos

que após poucas gerações da recepção kantiana, esta configuração se alterará.

Contudo, nos deteremos ainda ao modo mesmo como Kant distribui estes juízos.

O termo recognição compreende a ação de subsumir uma intuição a um

conceito, ou seja, o papel do entendimento (CRP A 97). A recognição não seria

possível no juízo reflexionante pois este se identifica, segundo Rego (2005), com a

própria potência da faculdade de julgar em sua atribuição autônoma, sem ser

subsumida pelo entendimento, mas buscando uma regra por si só. Kant define

sucintamente estes juízos:

A faculdade do juízo em geral é a faculdade de pensar o particular como contido no universal. No caso de este (a regra, o princípio, a lei) ser dado, a faculdade do juízo, que nele subsume o particular é determinante (o mesmo acontece se ela, enquanto faculdade de juízo transcendental, indica a priori as condições de acordo com as quais apenas naquele universal é possível subsumir). Porém, se só o particular for dado, para o qual ela deve encontrar o universal, então a faculdade do juízo é simplesmente reflexiva. (CFJ: XXVI)

3� “As revoluções políticas iniciam-se com um sentimento crescente, com freqüência restrito a um segmento da comunidade política, de que as instituições existentes deixaram de responder adequadamente aos problemas postos por um meio que ajudaram em parte a criar. De forma muito semelhante às revoluções científicas iniciam-se [...]” (Kuhn 2006:125,126)4� No caso, mostraremos como que perceber as relações tonais significa a recognição das três funções elementares e necessárias a todo campo de forças relacionado ao sistema tonal. Estas funções são: Tônica, subdominante e Dominante.

16

É intrigante que o juízo tenha como função subsumir, ao mesmo tempo que

em seu modo reflexionante não contemple necessariamente esta função. Rego (2005)

pensa que o juízo reflexionante subsume uma lei que ele dá a si mesmo, sanando

assim a condição do juízo em subsumir. E pensa que tal modo de julgamento antecede

mesmo qualquer modo determinante, pois que se dirige diretamente ao intuído, a fim

de formatar um conceito onde não se sabe de antemão sua lei: “O conhecimento das

leis empíricas da natureza depende, num certo sentido, funda-se, num certo

sentido, no ato reflexionante, e, portanto, no seu princípio judicativo.” (Rego

2005:225)

O sentido destacado por Rego não contempla o juízo aplicado à obra de arte de

modo direto. Dirige-se ao juízo de uma maneira bastante genérica, onde uma função

reflexiva ou determinante ainda não se destacam. Porém aludimos ao fato de que Kant

é sempre taxativo quanto ao papel diferenciado entre juízo reflexionante e

determinante:

Numa crítica da faculdade do juízo, a parte que contém a faculdade do juízo estética é aquela que lhe é essencial, porque apenas esta contém um princípio que a faculdade do juízo coloca inteiramente a priori na sua reflexão sobre a natureza, a saber, o princípio de uma conformidade a fins formal da natureza segundo suas leis particulares (empíricas) para a nossa faculdade de conhecimento, conformidade sem a qual o entendimento não se orientaria naquelas. (CJ, Int. VIII, p. 268 apud Rego 2005: nota pé de página n. 8)

Contudo se observamos a tese de Lyotard veremos que bibliografias como a de

Rego não configuram interpretações isoladas: "A reflexão é o laboratório subjetivo de

todas as objetividades" (Lyotard 1993).

Não seguimos em busca deste tipo de interpretação. O destaque dado ao juízo

da beleza e do sublime na primeira seção (Crítica da faculdade de juízo estética) não

parece conferir nenhuma primazia ao juízo reflexionante. Não existe nenhuma

passagem em toda a seção que confirme esta posição como sendo a de Kant, muito

pelo contrário, juízos reflexionantes puros se distinguem dos determinantes de modo a

excluírem a própria esfera lógica.

E mesmo admitindo que para Kant o juízo reflexivo, sobretudo o juízo da

beleza, acaba por revelar uma ação autônoma da faculdade do juízo, antes que este

pudesse se misturar com dados conceituais, como no caso do juízo teleológico ou

determinante, como um ‘ultra-som’ da operação do esquematismo, o estatuto do juízo

17

de gosto não passa a ser fundamento nem a participar dos juízos determinantes.

Dado que iremos investigar a relação e possível aplicação entre a primeira

Crítica e objetos musicais, não nos preocupa o fato das obras de Kant, e sobretudo a

primeira e terceira Críticas perfaçam ou não um sistema interligado. Não faz parte de

nosso objetivo costurar qualquer ponte que unifique, corrija ou aperfeiçoe os obras

kantianas. Tais questões são de interesse para o estrito estudioso de Kant. Dedicamos-

nos a um modelo que cumpra somente com as exigências do material musical em

questão, contemplados nos tratados, obras e escutas musicais em questão.

Aspectos lógicos em uma análise musical

O aspecto lógico que destacamos é aquele pertinente à lógica kantiana e portanto um

contexto epistemológico a que damos o nome de modelo recognitivo. De acordo com

Deleuze o modelo recognitivo:

[…] se define pelo exercício concordante de todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo: é o mesmo objeto que pode ser visto, tocado, lembrado, imaginado, concebido [...] (Deleuze 1988: 221).

É este tipo de unidade conceitual do objeto que será aplicado sobre a análise

de um objeto musical. A função recognitiva, a subsunção e a identidade regrada,

tornam-se condição de escuta, onde são subsumidos o campo harmônico, o tema e

desenvolvimentos, sintetizando um objeto musical único e identificável sob variáveis

situações.

Esta função recognitiva aplicada à atividade musical instrumental tonal foi,

sobretudo, fruto de um intrincado complexo de técnicas, teorias e teses acerca da

escuta, da composição e execução musical. Podemos dizer que é o resultado e

acúmulo do tratado de Rameau de 1722, onde estabelece as bases da tonalidade e das

funções dos acordes, de Haydn e suas estratégias composicionais de núcleo temático e

formalização na aplicação do tonalismo, e enfim, da lógica axiomatizada da

percepção das funções tonais proposto por Riemann. Certamente muitos outros

personagens os quais não temos nem acesso ou conhecimento foram igualmente

influentes, porém, aqueles que enumeramos foram sem dúvida responsáveis diretos

pela definição do que ficou conhecido como música instrumental pura.

Se o modelo recognitivo parece ter concorrido de modo amplo pelas mais

18

diversas áreas da cultura européia do período, no tonalismo podemos traçar com

precisão teórica e prática como um modelo epistemológico deu condição à

emergência de uma escuta, que contou com vários parâmetros inéditos, e ao mesmo

tempo propondo um modelo teórico universal para esta escuta.

Tendo em vista este meio cultural e as próprias técnicas do período, analisar os

processos de um juízo determinante refletidos na prática musical parece ser bastante

insuspeito, e pode revelar uma porta de interpretação útil ao fenômeno musical, e, ao

modo como este evolui pelos séculos adiante.

É certo que o momento de sublevação de uma música pura coincidiu com um

projeto maior, ilumunista, e foi parte decisiva dele. Hanslick não é exceção: “Esta

orientação objetiva não podia deixar de bem depressa se comunicar à pesquisa do

belo.” (Hanslick 2002:13). Seu projeto dissolve certas normas que indispunham a

relação entre o lógico e o estético, e assim distingue, em proveito do papel do

entendimento, sentimento de sensação. O exame musical, além de prescindir do

sentimento para sua determinação, não necessita que ele seja compreendido fora de

um horizonte do entendimento.

Diante do belo, a fantasia não é apenas um contemplar, mas um contemplar com entendimento, i.e., um representar e um julgar, este último decerto com tal rapidez que os processos individuais não nos chegam à consciência e surge a ilusão de que acontece imediatamente o que, na verdade, depende de múltiplos processos espirituais mediatos. (Hanslick 2002:16)

Além de rejeitar a relação de contraditoriedade entre estética e lógica,

estabelece intercessões entre entendimento e sentimento no nível da experiência

musical, e da experiência como um todo.

Os sentimentos não existem isolados na alma de modo que se possam, por assim dizer, salientar por meio de uma arte à qual está oclusa a representação das demais actividades espirituais. Pelo contrario, dependem de pressupostos fisiológicos e patológicos, são condicionados por representações, juízos, em suma, por todo o campo do pensar intelectual e racional, a que se contrapõe de tão bom grado o sentimento como algo de antitético. (Hanslick 2002:24)

Contudo, Hanslick não adentra nas especificidades das determinações lógicas

as quais queremos explorar nos capítulos subseqüentes.

19

Considerações finais a respeito da guinada de um domínio lógico para a análise

de uma experiência musical.

O tema parece amplo e pleno de ramificações, mas de início trata-se de equacionar

uma série de fatos concernentes à percepção musical sob exigências filosóficas. Para

estreitar o leque da pesquisa situamos nosso objeto musical em um período específico,

o período tonal, que em grande parcela coincide com a música clássica e romântica do

século XVIII e XIX, e nele mais especificamente o período clássico.

Notamos que a partir da ascensão da música tonal no século XVIII o discurso

musical veio sofrendo grandes modificações. Mas se nos atemos à produção

instrumental e seu papel fundante de um discurso autônomo, vemos que a relação

entre conhecimento e música passa a ter um papel preponderante nesta tradição, e

notamos mesmo que desde este marco da música instrumental clássica o assunto

parece cada vez mais proeminente.

A transposição do ritornello por tonalidades [key] diferentes, e desenvolvimentos modulatórios nos episódios entre as áreas tonais [key] estáveis do ritornello, produz um arcabouço [scaffolding] formal harmonicamente baseado: um arcabouço que permite a comparação entre a música e a arquitetura, que se tornou um lugar-comum, parecer plausível. Por outro lado, partes do tema podem ser isolados, variados, ou reagrupados, de modo que emergem os princípios do processo que mais tarde, enquanto trabalho temático-motívico em Haydn e Beethoven, tornou-se a epítome da lógica musical discursiva. E a diferença entre a exposição temática ou recapitulação e o trabalho motívico está intimamente relacionado com a fundação tonal da forma, porque fechamentos temáticas e tonais estão relacionados um com o outro da mesma maneira como o desenvolvimento motívico e modulatório. (Dahlhaus 1989:108)

"Toda a música pura", escreveu Friedrich Schlegel em algum momento entre 1797 e 1801, deve ser filosófica e instrumental (música para o pensamento). (Dahlhaus 1989:107)

Em resumo, aquilo o que seja a beleza de uma obra musical específica parece

conter muito mais do que um mero sentimento de agrado, ou mesmo um sentimento

de beleza, ou de sociabilidade. A escuta caminhou de modo a abarcar mais do que

sensações e sentimentos, e ainda mais sutilezas entre eles, em caracteres, juízos e

idéias cada vez mais bem definidas.

20

Do projeto da dissertação enquanto uma correspondência entre a música instrumental clássica e o modelo de conhecimento kantiano, e não um estudo acerca do comentário de Kant a respeito da arte musical.

Em um sentido bastante diferente de nosso intuito e a partir de chaves interpretativas

igualmente diferente, Kant esboçara uma compreensão do fenômeno musical a partir

da estrutura que se revelava em sua terceira Crítica, e que por isto, não incluía uma

atividade lógica estrita do entendimento.

Sua avaliação da arte musical corre conjuntamente com avaliações

comparativas às demais artes, em um pequeno debate sobre a produção da cultura em

geral, tudo, de início, em um tom bastante especulativo. Em uma nota de rodapé

humildemente inicia sua incursão na interpretação dos fenômenos artísticos:

O leitor não ajuizará este projeto de uma possível divisão das belas artes como teoria proposital. Trata-se apenas de uma das muitas tentativas que ainda se podem e devem empreender. (CFJ: 204 [nota de rodapé])

A música enquanto uma arte bela

A recepção da Crítica da Faculdade do Juízo por parte da crítica musical não foi

muito favorável. Podemos citar ente outros, Triest, em seu empenho de incluir a

música no conjunto das belas artes, sobretudo a música instrumental. Assim nos diz

Mario Videira, em seu artigo A recepção da crítica do juízo na literatura musical do

início do século XIX (Videira 2010). As correções e críticas ao trabalho de Kant não se

reduzem a Triest. Michaelis chega a afirmar que a música, por ser mais afeita ao

trabalho livre da imaginação, por estar desligada da imitação e da conceitualidade, é

por isto a arte mais original e mais ideal de todas (Marques 2010:200).

Dado que os comentários empreendidos, sobretudo na terceira Crítica, vêm

sendo alvo de constantes críticas ou correções tomamos o caminho inverso ao de

elucidar os argumentos de nosso filósofo. Iniciaremos com a avaliação mais drástica

para depois progredirmos nas razões que nos fizeram decidir sobre os comentários de

21

Kant. A avaliação que recorremos é de Wheterston e nosso processo visa ir

decantando seu comentário pelos demais comentadores. Wheterston assim avalia as

especulações de Kant acerca do musical:

Sua análise se move inicialmente de uma análise transcendental para uma concepção de música que se torna cada vez mais pessoal e implausível. (Wheterston 1996:63)

De uma postura inicialmente tão humilde de Kant, para uma assertiva tão

drástica quanto esta muito há o que se considerar.

O método kantiano de aproximação das artes individuais dá-se através de

uma espécie de hierarquização das artes. As artes mais elevadas seriam aquelas que

compõem o seleto grupo das belas artes:

Pois em toda arte bela o essencial consiste na forma que convém à observação e ao ajuizamento e cujo prazer é ao mesmo tempo cultura e dispõe o espírito, para idéias, por conseguinte o torna receptivo a prazeres e entretenimentos diversos; não consiste na matéria da sensação (no atrativo ou na comoção), disposta apenas para o gozo [...] (CFJ:171)

Estão aqui resumidas todas as características que fazem a arte bela ser

considerada um campo nobre da atividade humana. Resta-nos ver onde a música se

encaixa nesta descrição. Nos casos da poesia recitada ou musicada, da ópera, do balé

e do teatro musicado, a música serve de suporte, e somente nestes casos é considerada

uma arte bela. Averigüemos então o exame mais minucioso que Kant promove sobre

as artes em separado.

Estas se dispõem, quão mais elevadas, mais aptas às idéias estéticas:

Aquela representação da faculdade da imaginação que dá muito a pensar, sem que contudo qualquer pensamento determinado, isto é, conceito, possa ser-lhe adequado, que consequentemente nenhuma linguagem alcança inteiramente nem pode tornar compreensível (CFJ: 192,193).

Tal princípio de hierarquização concede à poesia a primeira posição. Posição

esta reivindicada por Michaelis, à música:

Nós nos perdemos na contemplação espiritual do elemento objetivo de uma bela composição musical, tanto quanto na sublimidade de uma ode de Klopstock; mas com a diferença que aqui [na ode] a nossa atividade é mais

22

determinada, através de conceitos, enquanto lá [na música], a liberdade permanece, para acrescentar um conteúdo [Inhalt] para a mera forma da sensação. (Michaelis apud Marques 2010:199)

Acontece que Kant não está tomando tão somente o critério da liberdade

promovida pela aconceitualidade. O componente essencial para esta classificação

residiria na capacidade de uma arte sediar um máximo de idéias estéticas:

[...] a idéia estética é uma representação da faculdade da imaginação associada a um conceito dado, a qual se liga a uma tal multiplicidade de representações parciais, no uso livre das mesmas [...] portanto, permite pensar de um conceito muita coisa inexprimível. (CFJ:197).

Assim fica implícito ao conceito de idéia estética, e este ao conceito da arte

bela, que é necessário certa aderência (CFJ:§16) para o juízo estético produzir aquela

beleza capaz de sociabilidade e cultura. Ou seja, a hierarquia das artes é

ascendentemente marcada pela pertença de idéias estéticas, sociabilidade (CFJ:§60) e

aderência.

Wheterston indica que há uma estratégia no uso da idéia estética ligada a

aderência do objeto, na classificação da arte bela. O intuito seria incutir ideias morais

nesta experiência. Tal investigação excede nosso escopo, porém pode ser uma boa

explicação o incremento de certa aderência para dar ao juízo reflexivo uma matéria

que “dê o que pensar”, e enfim comparar a característica inexponível da idéia estética

com a indemonstrabilidade da idéia da razão:

Se conectarmos uma idéia estética a uma idéia da razão, a inexponibilidade [unboundedness] da idéia estética age como um símbolo para a indemonstrabilidade [unboundedness] de uma ideia da razão e, portanto, nossa capacidade racional é animada por este aspecto aparente do racional na experiência sensorial [§49 (314-15)]. (Wheterston 1996:58)5

Não está explícito de que modo Kant vincula a idéia estética com a aderência,

pois há uma diferença no modo como a idéia estética, enquanto ato de uma

imaginação produtiva, se apropria do entendimento a ‘dar o que pensar’ sendo

igualmente inexponível, e, a apropriação feita pela aderência, que exige e “[...]

5� O autor usa originalmente o termo unboundedness para adjetivas tanto a idéia estética quanto uma idéia da razão. Ele parece querer apontar para o fato de ambas não possuírem limites precisos dentro de uma exigência regular do conhecimento. Porém mantemos a individualidade de cada adjetivação apenas no sentido de situar o leitor habituado com a terminologia de Kant .

23

pressupõe um tal conceito e a perfeição do objeto segundo o mesmo.” (CFJ:48)

Porém, tais sutis distinções não parecem incomodar Kant. Mais propriamente

importa a esta hierarquia a observância da capacidade de instigar-nos idéias estéticas,

a sociabilidade, e a promoção da cultura de modo geral.

Assim é com o caso da pintura que inegavelmente se insere nos moldes da arte

bela. E sua diferença para com a arte musical consiste no fato dela, a pintura, se

caracterizar como uma arte que parte de idéias determinadas (CFJ:221) rumo às

sensações. O fato dos objetos presentes em uma pintura encerrarem conceitos segundo

uma perfeição do objeto é para Kant uma vantagem e não desvantagem, como uma

leitura superficial poderia corroborar. Fica assim estabelecido que a aderência, em

uma quantidade tolerável é quem permite este trânsito da bela arte pela sociabilidade

a favor das ideias estéticas.

Resta então averiguar se a música conteria estas exigências, de uma porção

conceitual e sociabilidade, para a composição desta cultura que a arte promove. O

quesito sociabilidade é, segundo a avaliação de Kant, a maior fraqueza da música. A

música parece conter a pior das indiscrições, sendo incapaz de se conter a um espaço

só, perturbando assim a liberdade alheia e sendo avesso a um bom espírito de

urbanidade. Contudo Rodrigo Duarte nos informa que Kant retroage desta postura

bastante ‘mal-humorada’ na Antropologia (Duarte 2010:290).

No quesito cultura, a música, diferente da pintura, seria incapaz de produzir

uma “impressão permanente” (CFJ:221), sendo esta sempre transitória e

impossibilitando o trato cultural.

Independente de meios de registro sonoro do fenômeno musical, Kant se

refere à própria percepção musical em seu estado temporal. Para Kant um caráter

duradouro e estável é essencial na promoção da unificação entre entendimento e

sensibilidade. Ou seja, o caráter estável do quadro a que a pintura se inscreve permite

um contexto mais educativo das faculdades. Ao passo que na música, não haveria,

digamos assim, uma consistência inerente à sua forma de apresentação, que nos

dispusesse a uma apreciação frutífera6. A solução a uma transitoriedade realmente

inerente à música produziu diversas estratégias, mas destaquemos o uso do ritornello

a partir do barroco, ampliado nas formas clássicas. Porém este recurso é igualmente

criticado por Kant que considera a repetição em uma obra musical, ou mesmo sua

6� Dahlhaus compreende que houve um descompasso teórico que impossibilitava o século XVIII em perceber fenômenos temporais tais como a música como eventos consolidados em uma configuração, ao invés da expressão kantiana de uma profusão transitória. (Duarte 1998:145)

24

reprodução possibilitada pela fantasia, como recurso que somente produziria

sensações enfadonhas (CFJ:221).

Resta senão avaliarmos a posição kantiana sobre a aconceitualidade da

música. Kant está muito atento a esta questão, pois, embora desconsidere qualquer

caráter cultural que a música possa propiciar, caso assuma que há conceitualidade na

escuta musical então ele terá que abrir uma porta à possibilidade dela suscitar idéias

estéticas e maior valor cultural, pois seria mais aderente. De outro lado, considerando

a aconceitualidade da música, poderá abrir a possibilidade dela propiciar um juízo

estético puro, embora com isto não seja considerada uma arte bela. Mas vemos que a

argumentação kantiana desconsidera estes dois extremos, e a música instrumental

resulta esteticamente insuficiente.

A opção kantiana embora seja pela aconceitualidade, seu julgamento estético

sobre a música é um tanto problemático, ou como Rodrigo Duarte adverte, “comporta

um grau não desprezível de ambigüidade.” (Duarte 2010:286)

Também se pode computar como da mesma espécie [belezas livre] o que na música denominam-se fantasias (sem letra), e até a inteira música sem texto. (CFJ:49)

Ao fim vemos Kant creditar beleza à música. É impossível desmentir Kant

diante de uma passagem tão direta. Porém, como vimos, isto não faz da música uma

arte bela, somente uma beleza livre. Creio que a posição que Kant confere à música

fique mais clara quando a colocarmos ao lado de outros exemplos similares de belezas

livres; folhagem para molduras, desenhos à la grecque e papel de parede (CFJ:49).

Como podemos ver, são todas belezas livres. Argumentar sobre a inserção do

papel de parede no Hall das grandes artes seria estranho ao senso comum, e

provavelmente concordaríamos que o papel de parede ou o desenho à la grecque,

depois de algumas poucas observações, produziriam igualmente enfado7. E justamente

este é o ponto de vista de Kant, bastante polêmico para qualquer músico e admirador

desta arte. Mas ele não nos deixa com esta conclusão sem algumas justificativas.

Sua justificativa foi dada de modo negativo quando das enumerações das

condições de uma arte bela. Mas de modo positivo Kant possui duas definições da

arte dos sons. Uma a que nos dedicaremos mais ao fim, pois que traz questões de

7� Interessante notar que Hanslick, que tem a música na mais alta cota artística, é naturalmente relacionada com os arabescos e com o caleidoscópio, sem com isto indicar qualquer enfado, muito pelo contrário.

25

grande interesse para nosso trabalho, porém, interpretado de modo diferente em Kant,

e outra, segunda, que sutilmente engloba a primeira definição. Por motivos didáticos

expomos antes sua segunda definição.

Esta segunda definição diz da música enquanto uma beleza livre, por isto,

apenas sob o domínio das sensações. Ou seja, ela se encontra mais próxima do deleite,

ao invés do que apraz (CFJ:222). Enquanto livre jogo das sensações a música chega a

expressar tão somente a forma de um afeto. A teoria dos afetos na música, vimos, é a

principal corrente teórica do barroco, e embora comece a sofrer abalos no período

tonal, perdura até o romantismo, e no senso comum, até os dias de hoje. A posição de

Kant se assemelha bastante a de Rousseau, porém, diferentemente, não confere um

afeto real ligado à música, tão somente uma forma não determinada de um afeto. Um

desligamento entre o afeto e sensação musical marca a definição do livre jogo para a

música, o que não deixa de ser um passo diverso ao tradicional discurso da teoria dos

afetos.

Os jogos livres da sensação são divididos em três: jogo de sorte, jogo de sons

e jogo de pensamento (CFJ:223). O jogo dos sons é assim definido:

[...] exige simplesmente a alternância das sensações, cada uma das quais tem sua relação com o afeto, mas sem o grau de um afeto, e desperta idéias estéticas. (CFJ: 224)

A diferença para uma teoria tradicional dos afetos está em Kant não considerar

o afeto presente ou encarnado na música, mas apenas uma ‘forma vazia’, que por isto

é capaz de mover nossa imaginação e entendimento de modo a produzir uma idéia

estética. Curiosamente Kant concede uma idéia estética para a música, sem conceder

nenhum tipo de aderência substituindo o afeto por uma forma do afeto.

Esta dinâmica parte de uma sensação corpórea e chega pelo livre jogo até uma

idéia estética, porém é simplesmente recomposto ao corpo, de modo a conjugar o

sentimento corpóreo inicial, amplificando-o (CFJ:225). Por isto, um livre jogo das

sensações, e tão somente uma beleza livre.

A questão matemático-musical na terceira Crítica

Vicente de Paulo Justi ao abordar a questão da matemática cita Giordanetti, e

aproveitamos para traçar um comentário sobre a posição de ambos:

26

Sobre este problema, Giordanetti afirma: Não se sabe, se realmente Kant

assumiu a teoria de Euler. Ele também não sabe. (2005, p. 199). Esta é a maneira de raciocinar de Kant, que Giordanetti explicita. Kant parece não desejar saber se Euler tem razão, mas se tiver a música será bela. (Justi apud

Marques 2010:100)

Diferente do que tenta imprimir, a questão matemática não emerge como um

quesito importante na caracterização da beleza na música.

A questão matemática aqui se liga intimamente ao trabalho de Euler sob a

percepção dos sons. Mais precisamente do som [ton] aplicado à construção musical, e

sua classificação enquanto freqüência regular [pitch]. Estes são aspectos desvendados

pela física de então e que Kant quer ilustrar e mostrar-se atualizado. Sem grandes

interpretações, apenas adjetiva a freqüência [pitch] enquanto qualidade pura. O

próprio Euler havia proposto a tipificação do timbre enquanto qualidade de

individuação dos instrumentos (Velázques 2008:13) e da freqüência para a

determinação da nota, entendendo assim o som enquanto complexo de freqüência.

Euler compartilhava de uma herança, própria da divisão das ciências, que

incluía a música no interior de uma disciplina acústica, e esta, em uma disciplina

matemática que formava o quadrivium8. Dentro desta tradição Euler cria uma

correspondência entre o ajuizamento estético musical e as relações sonoras acústicas,

baseado em relações matemáticas. Esta transposição de campos, consistindo em uma

psicoacústica primitiva faz com que se cunhe os conceitos de consonância e

dissonância, relacionando gosto a critérios matemáticos, e estes a critérios acústicos.

Contudo, Euler não usa o termo ‘belo’ em suas descrições:

Então Euler explicou como, a partir da idéia pitagórica, se pode estabelecer um esquema que mostre as regras de combinação harmônica das notas musicais e das que são agradáveis ao ouvido [...] as consonâncias se encontram em proporções mais simples e preferíveis ao entendimento, enquanto que as dissonâncias correspondem a proporções mais complicadas e por tanto são mais difíceis de compreender. (Velazquez 2008:15-16)

Estes conceitos que vinculam o prazer e gozo musical à consonância (relativo

aos primeiros intervalos da série harmônica) foram sendo paulatinamente

abandonados, e tem fim apenas no século XX. Embora tal concepção seja muito forte

no século XVIII e XIX, Kant neste aspecto parece seguir um caminho mais

interessante, corroborando em parte a crítica de Rousseau:

A melodia constitui exatamente, na música, o que o desenho representa na

8� O quadrivium: aritmética, música, geometria e astronomia.

27

pintura – assinala traços e figuras nos quais os acordes e os sons não passam de cores [...] o império que a música possui sobre a nossa alma não é obra dos sons. (Rousseau 1998:189)

Rousseau vai incluir a música, por motivos singulares à sua tese, na lista das

belas artes, inclusive, como obra imitativa. Kant não concede tanto à música, porém

difere aquela percepção do tom [ton] da percepção propriamente musical [musik],

assim como empreendido por Rousseau:

Mas no atrativo e no movimento do ânimo, que a música <Musik> produz, a matemática não tem certamente a mínima participação; ela é somente a condição indispensável (conditio sine qua non) daquela proporção das impressões... (CFJ:220)

Conjuntamente com a consideração musical descolada da percepção pontual

do som, que toma emprestado de Rousseau, Kant introduz sua própria teoria que parte

para uma análise das proporções das faculdades. Justi discute um aspecto do som

ligado à beleza, e propõe que Kant encontrara uma questão crucial para sua

consideração musical. Porém, no trecho acima, Kant faz invalidar maiores pretensões

da matemática, em sentido oposto ao de Euler.

Esta distinção entre o musical e o meramente sonoro, herdado de Rousseau, já

faz deslocar qualquer posicionamento contundente acerca da natureza do som, segue-

se que qualquer vínculo do som com a matemática se mostraria igualmente

insuficiente, assim a passagem acima dirime qualquer dúvida sobre sua posição.

Outro aspecto importante sobre esta questão matemática é que Kant se inquire

somente a respeito do som enquanto som [ton]. Ele se pergunta, e não simplesmente

afirma: “uma cor ou um tom [...] é em si um jogo belo de sensações.” (CFJ:226). Tal

detalhe é crucial, pois faz desta uma questão do próprio Kant e não de Euler, que em

seu trabalho não diz de qualidades estáticas como o som [ton] e a freqüência se darem

a ajuizamentos estéticos, mas sim que na música são ajuizados seus intervalos. Ou

seja, nunca os sons isolados em sua freqüência, mas em dinâmica uns com os outros, e

esta é sua metodologia inclusive para o princípio de afinação:

Em seguida abordou o problema da afinação justa dos instrumentos musicais, considerando que o ouvido não julga os sons porque satisfaçam as justas proporções, senão pela percepção agradável e conveniente, de modo que há que centrar a atenção nas seqüências de som que resultem harmoniosas. (Velazquez 2008:18)

28

Então, diferente de Vicente Justi, não vemos qualquer tentativa de Kant em

fundamentar a beleza musical matematicamente (Justi apud Marques 2010:99), este

seria o propósito de Euler. Kant já se posiciona contra tal fundamento na música

[Musik], assim como se posiciona contra as teorias fisiológicas da beleza, como a de

Burke (CFJ:130). Também discordamos de Justi quando aponta que uma decisão de

Kant, em aceitar ou não o som, isolado, como uma beleza em si, acarretaria assim a

inclusão ou não da música como uma arte bela, ou mesmo de um compromisso com a

teoria de Euler (Justi apud Marques 2010:100).

Tendo em vista este ‘mínimo’ de decorrências que uma decisão kantiana sobre

a beleza do som acarretaria sobre a beleza da música, temos que discordar mesmo de

Giordanetti, não sobre o fato de Kant não se decidir, pois de fato ele não se decide

sobre a questão, mas da própria idéia que Kant estaria, nesta reflexão, pensando em

aderir ou não à teoria de Euler.

Nossa posição é a de que Kant está fazendo uma reflexão própria, que não se

apóia na estética de Euler, mas, tão somente, em sua acústica e óptica enquanto estas

dissertam sobre eventos vibratórios pertinentes à percepção sensória. Assim, ele se

pergunta se um som ou uma cor poderiam por si mesmo ser dotados de beleza. Esta

pergunta Euler não se faz. Para Euler o som em si pode ser musical (consonante,

dissonante) ou não musical (ruído).

Euler, em sua pequena estética, considerava a beleza como que um desenrolar

das proporções matemáticas que se mostram dinamicamente nas proporções dos tons.

Porém, o modo como estas proporções desencadeiam a beleza musical estaria para

além de seus trabalhos, e que até então pessoa alguma havia desenvolvido (Fischer

2006:49). Sua obra Do verdadeiro caráter da música moderna data de 1764, e Kant

ao publicar CFJ em 1790 acaba por tentar desautorizar esta pretensão.

Marcando mais uma vez a diferença entre os autores, Euler ao fim considera o

prazer musical como o resultado de um julgamento acerca dos elementos que o

compositor nos dispõe, e a satisfação acaba tendo por base um julgar mais afeito à

conjunção psicofísica:

O prazer provém de que imaginemos os pontos de vista e sentimentos do compositor, cuja execução, enquanto a julguemos satisfatória [heureuse], enche a mente de uma agradável satisfação. (Euler apud Fischer 2006:49)

Euler, possuidor também de uma estética, pretende confluí-la no sentido de

29

conferir um fundamento físico/matemático, caráter este que tira elogios de Bernoulli,

e influencia decididamente a obra de Helmholtz. Traz assim um mote muito

interessante de questões musicais, mas que não estão presentes no trabalho de Kant.

A interpretação do fenômeno estético musical na terceira Crítica: a idéia estética

musical

De fora do Hall das belas artes, e ao mesmo tempo, sem qualquer relação matemática

ou objetiva com o sonoro, resta um espaço muito limitado ao fenômeno musical na

obra de Kant. Não se tratando de uma beleza pura, de uma beleza aderente, de uma

bela arte, ou de um cálculo de percepções sonoras, a música prefigura um caso muito

específico de beleza livre.

Notemos que diferente das demais artes, a música é única a ter sua idéia

estética esmiuçada e explicitada em uma definição. Porém, ela se mistura a outros

assuntos, em um longo parágrafo de quase três páginas intermediada apenas por

quatro pontos finais. Vamos contemplar alguns trechos separadamente, a fim de

dirimir prováveis confusões, dado a efusão de conteúdos sob dimensões tão curtas.

O seu atrativo, que se deixa comunicar tão universalmente, parece repousar sobre o fato de que cada expressão da linguagem possui no conjunto um som que é adequado ao seu sentido (CFJ:219)

Novamente parece que a teoria musical de referência para Kant é a de

Rousseau, que se expressa em texto provavelmente escrito por volta de 1750, porém

editado postumamente em 1781, praticamente dez anos antes da terceira Crítica. O

texto é Ensaio sobre a origem das línguas.

A melodia, imitando as inflexões da voz, exprime as lamentações, os gritos de dor, ou de alegria, as ameaças, os gemidos. Devem-se-lhes todos os sinais vocais das paixões. Imita as inflexões das línguas e os torneios ligados, em cada idioma, a certos impulsos da alma. (Rousseau 1998:190)

Rousseau acredita que a música faz imitar as inflexões da linguagem, Kant

parece apenas entender que as compartilham e não confere o poder afigurativo e

imitativo como faz Rousseau. De todo modo, o sentido que é originariamente 30

lingüístico, a modulação dos sons, possui o poder de ornamentar melhor as expressões

que se ligam a sentimentos. Kant acredita que quando desligada de seu conteúdo

lingüístico original, o som musical traça uma sucessão de formas de afeto que se

remetem a sentenças, sem contudo representar nada além da forma do afeto. Seria

como uma “linguagem universal das sensações” (CFJ:219). As conseqüências deste

ponto de vista já esmiuçamos anteriormente.

Seguindo o parágrafo vemos que Kant possui ainda outra camada, mais

profunda, de interpretação da experiência musical. Esta parece ser a que mais

contempla a produção musical contemporânea ao filósofo, nos permitindo mesmo

criar um diálogo com a forma sonata que se inscrevia:

[...] pelo fato de aquelas idéias estéticas não serem nenhum conceito e pensamento determinado, a forma da composição destas sensações (melodia e harmonia) serve somente de forma de uma linguagem para, mediante uma disposição proporcionada das mesmas (a qual pode ser submetida matematicamente a certas regras, porque nos sons ela assenta sobre a relação do número das vibrações de ar no mesmo tempo, na medida em que os sons são ligados simultânea ou também sucessivamente), expressar a idéia de um todo coerente de uma indizível profusão de pensamentos, conforme a um certo tema que constitui na peça o afeto dominante (CFJ:219).

A explicação do livre jogo e da aconceitualidade proporcionada pela arte dos

sons [Tonkunst] é devida justamente a este elo entre som e a capacidade deste em

traçar formalmente um afeto. Esta capacidade deriva, para Kant, do modo como os

sons modulados suscitam sensações em nível corporal. A teoria dos afetos já vinha

vinculando som com afetos, e estes com sensações no corpo, assim como a própria

ciência moderna vinha fazendo. De modo análogo, a música, em uma sucessão de

sons, mediante uma organização que pode contar com a ajuda da matemática,

promove um agradável jogo dos sons (CFJ: 224), ou seja, de sensações, que acabam

por suscitar uma corrente de afetos, que deleitam, em jogo, por não possuírem

conceito ou um pensamento determinado.

Mas o jogo não se encerra apenas nesta correspondência. Há um ‘clímax’, ou

seja, um momento máximo onde tal jogo pode chegar, precisamente, a idéia estética

musical. Porém deste ponto máximo de um juízo puro, retorna novamente a uma

realimentação da própria sensação corpórea e não se manterá como livre jogo da

imaginação com o entendimento (CFJ:225).

A concepção kantiana de idéia estética se faz sempre acompanhar de um apelo

31

intelectual, uma aderência. O afeto que, de acordo com a citação, se liga ao construto

temático da obra se liga também a uma sensação corporal e a toma como fundamento

do prazer musical. Tal conteúdo da sensação acabaria por frustrar uma dinâmica típica

da idéia estética.

Notemos que na composição musical instrumental o tema é substrato da obra

em sua totalidade. O tema se vê variado, desenvolvido e destrinchado sob esta

profusão que é inicialmente sonora, e que Kant diz ser então substituída por uma

profusão de afetos. A passagem para o livre jogo e deste para a idéia estética deve

contar não apenas com o afeto por si, ou mesmo a forma do afeto, mas com a

profusão de pensamentos, puramente formais e sem determinação. Esta profusão é a

própria profusão de sons, que Kant tanto criticara como meramente transitória, sendo

então encapsulada por uma profusão formal de afetos, e, deste quantum de material

sensível é possível um livre jogo, e a elaboração de uma precisa idéia estética,

tipicamente musical, “de um todo coerente”.

A sonata não seria justamente um percurso melódico harmônico que busca

uma unidade temática sobre as profusões as quais se imprimem em seu prosseguir

temporal? Não seria a escuta musical por si mesma, da música pura, o percurso de

uma tensão entre um ‘todo coerente’ e uma aparente multiplicidade disforme?

Então, a única idéia estética que a música é capaz de evocar não se encontraria

em uma simetria tal, ou analogia, com o próprio modelo do conhecimento? Ou seja, a

tarefa de, em meio a uma imediata desorganização e profusão da natureza, encontrar

uma regra universal, um todo coerente?

Sabemos que Kant conduz tal idéia novamente para uma sensação corporal, e

que esta não aparece como uma experiência consistente da reflexão.

Além de a idéia estética musical conter uma forte analogia com o próprio

processo do conhecimento [interpretação nossa], ela sem dúvida demonstra um

conhecimento que excede mesmo o trivial, sobre a questão da percepção musical

instrumental da época.

Porém a solução de Kant para a experiência reivindicada por músicos da era

instrumental é por ele interpretada como mero efeito das sensações no corpo.

Sobre esta mesma passagem se pronuncia Clélia A. Martins. Ela interpreta o

trecho específico, “todo coerente”, como uma correspondente da idéia de verdade:

Trata-se aqui de compreender a Idéia no sensível, de reabilitar de algum

32

modo o mundo fenomênico como o lugar da expressão da Idéia, o que permite compreender os efeitos da música no Gemüt. (Martins 2010:84)

Embora ela tenha um propósito de análise que vá em direção a uma esfera

mais ampla da própria liberdade e vivificação do Gemüt, não identificamos a

passagem (§53) fora de nenhuma consideração que a estritamente musical e sua

relação estética. Não podemos corroborar com o ponto de vista expresso de que a

ideia musical venha a preencher uma dimensão da liberdade enquanto correlato de

uma verdade ou encarnação de uma idéia, pois a idéia de verdade enquanto correlato

da liberdade excede a obra kantiana em muitos aspectos.

Vemos que Kant tende a manter a opinião geral da teoria dos afetos, propondo

certas modificações, e mesmo que contemple em alguma medida a nascente música

absoluta, não inclui em seu programa a inclusão da música no panteão artístico, sendo

apenas uma beleza livre.

O contexto musical ao qual nos inserimos

A decisão kantiana acerca do livre jogo na música, podemos ressaltar, é única e

original do filósofo. Seu fundamento passa por Rousseau e a teoria dos afetos, o que

aproxima seu pensamento estético das teorias mais tradicionais e que pouco vinha

ecoando na recente música tonal. Ao mesmo tempo foca-se sobre o conteúdo sensório

e indistinto que perpassaria a percepção musical, o que configura um impedimento

material de acesso intelectual a esta percepção. Se não intencionalmente, visto que a

produção da música clássica lhe foi contemporânea, de todo modo tal concepção

segue filiada a um movimento contrário a esta nascente música, que viria a ser

qualificada de música pura ou absoluta.

O período era de efervescência nesta área, Euler, Rousseau, Kant, D’Alembert,

Triest, Michaelis, Reinhard. Se há pouca unidade entre estes trabalhos, podemos

também dizer que a vinda do século XIX não os ajudou em nada, acrescentando uma

unidade metafísica ao debate musical. De toda forma, trouxe articulações importantes

para todas as questões e propostas de então, que talvez só começariam a se unificar a

partir do trabalho de Hanslick, que por sua vez acaba por pôr em prática a antiga

proposta de Diderot, de individualizar a estética para cada arte tendo em vista suas

técnicas próprias.

33

A noção de que a música compreende uma autonomia fica notadamente

estabelecida como fundamento desta arte desde o século XVIII, liberando-a de seu

julgo das palavras. Julgo este que tem início no concílio de Trento (séc. XVI), ao qual

a produção musical se viu obrigada a estar em favor do texto e não o contrário. E que

viu um de seus últimos impulsos no próprio Kant.

Porém, inadvertidamente, é a partir de uma resposta aos estudos deste mesmo

filósofo que vemos surgir os primeiros feitos teóricos no sentido da autonomia

musical. Johann K. F. Triest elabora e publica em 1801 (oito anos após a publicação

da segunda edição da CFJ) na revista de crítica musical Allgemeine Musikalische

Zeitung, o termo música pura, marcando assim o advento, no meio filosófico, da

então supremacia da música instrumental autônoma, que vinha sendo composta, a

rigor, desde Carl P. E. Bach (1714-1788).

Resta então reavaliarmos a citação inicial de Wheterston: seria a obra kantiana

pessoal e implausível?

Afora certa implausibilidade que acompanha todo discurso hipotético

filosófico, é certo que Kant se notabiliza por adjurar uma estética musical

tradicionalista, ainda vinculada à palavra, não aceitando o discurso da então música

instrumental. Porém há bastante plausibilidade em seus inquéritos sobre o

perseguimento de ‘um todo (musical) coerente’ numa experiência de escuta.

Contudo, sua classificação da música, fazendo-a constar no mesmo patamar de

um papel de parede, faz com que, mais do que implausível, sua concepção seja

obstruída por uma pré-concepção cultural ou mesmo pessoal que certamente torna sua

análise bastante datável e com certeza pouco atualizada para a época.

O objetivo da dissertação

Trouxemos um montante muito grande de informações a respeito de debates acerca da

história da música e da crítica musicológica, além do posicionamento kantiano acerca

do assunto.

Porém, dentro de toda a problemática da música instrumental que a rigor

perdura por toda a existência da música tonal - do século XVIII até o final do XIX -

nos interessou uma pequena brecha ou mesmo espaço por preencher nos discursos

34

filosóficos de então.

Se um escopo de modelo epistemológico surge com Hanslick no século XIX a

partir de uma defesa, ainda, em termos de uma música tonal, reivindicando processos

lógicos da ação do entendimento para sua concatenação, como estariam ligados os

elementos musicais neste enlace epistemológico?

Ao mesmo tempo, qual seria a relação das estratégias composicionais da

segunda metade do século XVIII, que lançou os padrões e formas tonais que

notabilizaram a música clássica, com os padrões do entendimento estabelecidos no

mesmo período por Kant?

E, de que modo esta relação vislumbrada por Hanslick já não estaria pronta

para ser erigida meio século antes, tendo sido ignorada tendo em vista o debate

estético que se seguia?

E por fim, dado esta brecha, de uma análise lógica não realizada, podemos

realizar uma ligação entre o que seja uma escuta musical e a composição

transcendental de um objeto musical, a partir da ação do entendimento, permitindo

assim um enfoque epistemológico para a atividade musical.

É nosso intuito promover uma análise que resulte em um modelo de

compreensão lógica do objeto musical. Um modelo que seja capaz de posicionar as

questões levantadas de modo útil para a contextualização pregressa da música tonal

em seu surgimento, para dar respaldo à posição de Hanslick, e ainda contribuir para

uma atualização do papel que a música pode desempenhar no contexto geral da

epistemologia.

35

Seção 1

O lógico e o estético

“Da investigação de um fundamento lógico que preceda o estético no objeto musical”

36

D. – [...] a natureza e número dos pés, isto é, que classe de pés e quantos formam um verso, se obtêm em virtude de uma ciência, e por ela se poderá julgar se ressoou

um verso em meus ouvidos.

M. – Mas esta ciência, qualquer que seja, não fixa, por certo, aos versos uma regra e medida como venha equivocar-se, senão conforme a uma proporção.

D. – Se em verdade é uma ciência, não devia e nem podia ser de outra sorte.

M. – Investiguemos, portanto, esta razão e sigamos de perto, se te agrada.

(Agostinho de Hipona)

O ponto de vista que introduzimos nas páginas que se seguem incidem no modo como

percebemos e ajuizamos música, sob o ponto de vista de sua atividade cognitiva9. O

objetivo de se firmar tal ponto de vista, eminentemente epistemológico, é o de prover

um modelo epistemológico mais compatível com a prática musical tonal clássica,

representada pela inauguração de procedimentos sistematicamente aplicados por

Haydn (1732-1809) o que inclui a estrutura harmônica tonal que remonta ao tratado

de Rameau (1682-1764).

Dado esta construção musical que tem sede no século XVIII e que se

notabilizava por criar um discurso musical instrumental autônomo, seria necessário

eleger, dentre os trabalhos filosóficos, aquele que contemplaria não somente um

modelo epistemológico, mas um que estivesse em acordo com os procedimentos

adotados pelo classicismo musical.

O debate estético que vinha desde o século XVII, conhecido como a querela

dos antigos e dos modernos, pouco contemplaria o enfoque e o modelo

epistemológico das questões que aqui levantaremos. Este primeiro século se

notabilizara por postular regras rígidas as quais todo o conjunto das artes deveria

contemplar para a composição de seus objetos. A constituição deste objeto em vista do

conceito de mímesis parece ter sido hegemônico e na verdade acabava funcionando

9� Usamos o termo cognição para descrever um aspecto epistemológico de modo amplo e não necessariamente coincidente com o caráter semântico da linguagem. Bicknell (2001) entende a perspectiva semântica como expressão de um conteúdo independente dele se remeter a uma ordem gramatical ou lingüística, ou seja, um análogo a linguagem, enquanto veículo de transporte de algum conteúdo. Peter Kivy em Music, Language and Cognition (2007), nos mostra como o termo ‘semântico’ é usado impropriamente no caso musical, e não há como a música proceder sob o mesmo conceito que a linguagem. Porém, isto não exclui o fato da experiência musical encerrar pensamento e cognição. Tomando uma perspectiva cognitiva, indicamos assim que nosso propósito visa identificar processos lógicos transcendentais, que estão regidos no mesmo nível em que se insere uma coordenação das categorias kantianas, a partir de um ponto de vista transcendental, compreendendo estas estruturas como extratos a priori.

37

como espelho de uma exigência moral, através de paixões evocadas por certos

princípios de organização de um material.

Mas, para alguns, a revolução copernicana colocara sob júdice não apenas a filosofia, mas a própria literatura: mutatis mutandis, o espírito metodológico que caracteriza o pensamento cartesiano deveria ser aplicado também ao domínio do belo e do sublime […] Esta inflexão acentuada sobre o método está, entretanto, longe de representar um consenso entre os grandes críticos do período. Muitos permaneceram fiéis aos princípios mais gerais do classicismo, aos quais não se ajusta perfeitamente a suposição de que a razão constitui, por si mesma, o justo padrão de medida para a avaliação e produção artística (BATE, 1961, pp. 25-26). Os choques reincidentes, não raro violentos, entre defensores de uma ou outra posição, os quais podem ser observados pelo menos até o final do século. (Vieira 2003:21)

O século XVIII por sua vez, caracteriza-se por uma oposição a estes preceitos:

“De modo análogo, ele servia aos propósitos de todos os que procuravam mobilizar forças

contra as regras: boa parte dos leitores ingleses de Longinus tinha sob a mira a rigidez formal

que caracteriza as vertentes racionalistas do classicismo [Bate 1961:47].” (Vieira 2003:40).

De acordo com Vieira foi a partir do conceito de sublime, introduzido por Longinus,

que o discurso do século XVII pôde ser substituído por um enfoque que privilegiava

as paixões suscitadas pela obra e menos por regras fixas. Isto poderia ser representado

pelo movimento Je ne se quoi, que fez introduzir a ‘regra’ de que as regras pouco

importavam, mas sim os efeitos passionais que uma organização poderia suscitar. Este

teria sido, segundo Vieira (2003:40), o fio condutor que levou ao discurso literário

romântico, onde predominava a liberdade de criação e a evocação dos sentimentos.

Observamos, dentro deste quadro que evolui pelo século XVIII, que este

discurso estético se torna hegemônico. A antiga postulação de regras e princípios

poéticos que regeriam a obra, ao passar para um modelo que privilegia o efeito

subjetivo, passa então a contar mais com o fundamento psicológico, em detrimento do

objeto enquanto portador de propriedades objetivas. Este giro subjetivo pode ser

exemplificado pela obra de Edmund Burke (1993).

Vemos então que o discurso técnico deu lugar a um modelo de ‘poética’ ligada

aos afetos e sentimentos, convertendo o interesse técnico-artístico em um interesse

eminentemente estético, em uma investigação acerca das sensações suscitadas por

objetos enquanto encarnadas em um sujeito.

A virada transcendental promovida por Kant acarreta ainda outra mudança.

Embora esteja já situado no discurso estético acerca de nossa receptividade subjetiva e

da centralidade dos conceitos do ‘belo’ e do ‘sublime’, Kant, poderíamos assim dizer,

38

coloca o enfoque psicológico sob uma crítica transcendental. Tratou-se de uma

investigação mais profunda, com a incumbência de desvendar o aparato mental a

priori que desse respaldo ao julgamento destes sentimentos. Assim, o juízo de gosto

em geral, e o juízo da beleza, aparecem munidos de estruturas que haviam sido

erigidas já na Crítica da Razão Pura e Prática, porém, analisadas em seu pormenor

na Crítica da faculdade do juízo.

A solução kantiana constitui uma mudança histórica no enfoque estético – que

saiu de uma primazia da feitura e postulação de princípios aos quais devem impregnar

um objeto e rumou para o ponto de vista subjetivo, de como um sujeito é afetado por

este objeto – e passa para um modelo de organização das faculdades que faz dividir, já

em sua condição de possibilidade, o enfoque estético do lógico, criando assim

diferentes acessos para o que seja a experiência de um objeto (juízo determinante) e o

que seja a experiência de sentimentos estéticos (juízo reflexivo)10. Ao cindir o lógico

do estético Kant postula uma necessidade de assentimento subjetivo para o caso da

arte (aspecto antes defendido em sentido psicológico) e de um juízo objetivo para o

caso do conhecimento.

Esta primeira seção se dedica a compreender de que modo esta cisão entre o

lógico e o estético se estrutura na filosofia kantiana. No primeiro capítulo tratamos de

compreender o que seja o modelo epistemológico adotado por Kant para compreender

o julgamento de fenômenos artísticos, e o modo como esta estrutura afasta os

componentes de qualificação lógica. No segundo capítulo empreendemos o caminho

inverso e investigamos como o modelo epistemológico que compreende o

conhecimento afastaria os componentes estéticos. O objetivo desta primeira seção é o

de explorar os dois modelos epistemológicos possíveis para o objeto musical, o

estético e o lógico.

Em ambos os capítulos, além de expor a tão conhecida filosofia kantiana,

analisamos implicações inerentes ao modelo kantiano, onde o lógico implique o

estético e vice-versa.

10� Utilizamos o termo ‘acesso’ para caracterizar a ação do juízo para os dois casos (reflexivo e determinante) no sentido de ambos juízos prefigurarem possibilidades teóricas inscritas nas faculdades do conhecimento com acento para o entendimento. Isto quer indicar tão somente que Kant não cria novos objetos e novas faculdades além do entendimento e razão, mas demonstra certos caminhos da cognição que fazem a distinção estético/lógico valer em uma experiência: “O campo da crítica estende-se a todas as pretensões das faculdades, para pô-las nos limites de sua legitimidade” (Kant 1995:102).

39

** *

De modo geral, lógico significa uma estrutura cognitiva que contempla uma regra.

Esta característica válida para os objetos e para nosso modo de percebê-los é tema da

primeira Crítica e de sua obra homônima. Quando pensamos no modo como estas

regras se inserem nas ciências, seja na matemática, física ou mesma em uma ciência

moral (Lógica A 3) temos um aspecto contingencial das regras dado em casos

particulares. Mas quando voltamos-nos para o próprio entendimento dos particulares,

vemos que o nosso entendimento possui regras as quais podemos derivar aplicações,

ou seja, nosso entendimento enquanto faculdade de cognição possui regras de

aplicação necessária para todos os particulares.

O exercício de nossos poderes também acontece segundo certas regras que seguimos, a princípio, sem consciência delas, até chegarmos aos poucos ao conhecimento delas mediante diversas tentativas e um prolongado uso de nossos poderes, tornando-as por fim tão familiar que muito esforço nos custa pensá-las in abstracto. Assim, por exemplo, a Gramática geral é a forma de uma língua em geral. Mas também falamos sem conhecer a Gramática; e quem fala sem conhecê-la tem realmente uma Gramática e fala segundo regras das quais, porém, não está consciente. (Lógica A 2)

O estudo das regras que desempenhamos para a consecução de experiências

perfaz o âmbito lógico. Na definição original de Kant: “Esta ciência das leis

necessárias do entendimento e da razão em geral, ou – o que dá no mesmo – da mera

forma do pensamento em geral, é o que chamamos de Lógica (Kant A 4).

O estético por sua vez – compreendendo o juízo de gosto investigado na

Crítica da faculdade do Juízo – assenta-se em uma regra de concordância entre o

entendimento e a sensibilidade (Lógica A 8), mas ela mesma não possui e não

reivindica uma regra ou lei – de acordo com Kant – apenas uma “norma (um modelo

ou prumo para a simples avaliação)” (Lógica A 8) que consiste no assentimento, quase

como uma função própria que é requisitada em certas condicionantes, que também e

inevitavelmente perpassam por regras.

Veremos que as normas estéticas e as regras lógicas possuem diferenças

pontuais quando do percurso transcendental das faculdades que percorrem. Cabe

averiguarmos como estes quadros podem ser úteis em um modelo epistemológico que

tome a música clássica instrumental como objeto exclusivo.

40

Para o caso da análise da terceira Crítica optamos por determo-nos no juízo da

beleza enquanto paradigma para nosso modelo epistemológico. A decisão não contou

com muitas opções visto que os juízos estéticos se vinculavam majoritariamente ao

belo ou ao sublime. Sendo que o juízo reflexivo puro, ou seja, aquele que atua em

toda sua autonomia e por isto atua independente de aspectos lógicos é o juízo da

beleza.

Esta decisão não deixa de contar com alguns esclarecimentos. Em primeiro

lugar, a música é tida pelo próprio Kant como fenômeno belo, mais especificamente

como uma beleza livre (CFJ:49). Em segundo lugar, a crítica musical desencadeada

imediatamente após a edição da terceira Crítica reclama para si um estatuto ainda

mais ‘elevado’ de uma beleza pura, dado a condição essencialmente não conceitual11

da música.

Mesmo que certa tradição se esboce acerca do tema, não seria razão suficiente

para que adotássemos o juízo da beleza como modelo concorrente para o caso musical

acriticamente.

O sentimento do sublime é rapidamente descartado tendo em vista a ligação

deste sentimento com episódios de terror e grandiosidades que nos dispõe a um estado

de perigo ou de aspectos infinitos que não concorrem para a produção musical do

século XVIII. Assim, o que chama atenção no juízo da beleza, além do fato de se ligar

explicitamente às obras artísticas, é sua relação entre o objeto artístico e a faculdade

de conhecimento. Pôde-se observar em nossa introdução que o modelo musical

kantiano, mostrando-se como uma teoria excessivamente exterior à atividade, poderia

ser corrigido tomando-o como juízo estético puro. Concorremos portanto com dois

modelos possíveis, um considerando a música como uma beleza pura, como pensou

Triest, ou, como um juízo determinante pertencente a um modelo lógico.

De todo modo, a eleição de um modelo para o caso musical significa

necessariamente a exclusão do outro, pois que o lógico se satisfaz por uma relação

inversamente proporcional ao estético: “sem dúvida, entre a perfeição estética e a

perfeição lógica de nosso conhecimento persiste sempre, a rigor, uma espécie de

conflito, que não pode ser totalmente superado” (Lógica A 48).

Se pegarmos o exemplo de um quadro, não há nada que impeça, ou mesmo,

nada que nos convença que não seja possível uma recognição sobre aquilo que está ali

representado, sobretudo num período onde imperava a arte figurativa. A não

11� Ver introdução.

41

superação do lógico pelo estético e vice-versa não retira, no caso da aderência, uma

possibilidade de contaminação, que de acordo com Kant não faz superar o horizonte

estético em questão. Esta é uma sutilidade que não possui paralelo musical quando

pensamos no contexto da música instrumental, onde a figuração, salvo nos casos da

música programática (e muitas vezes mesmo nestes casos)12 não pode ser evocada.

A possibilidade de um juízo poder vir a ser reflexivo e resultar em um uso

puro do juízo de gosto, e não em uma determinação, requer não apenas uma regra mas

uma condição que disponha nossas faculdades a esta possibilidade, indicando quando

seria e quando não seria o caso de um juízo reflexivo tomar a frente de um objeto e

vice-versa.

Identificar a dinâmica que divide estes dois usos do juízo requer que

investiguemos aquilo que diz respeito a seu ‘estatuto’, aspecto descritivo de um

modelo epistemológico.

Chamamos de estatuto à legalidade definida por operações e relações entre

faculdades ou princípios, que regem o modelo epistemológico ao operarem uma única

função. Os dois estatutos que mais nos interessam aqui seriam justamente o do juízo

reflexivo e o determinante.

Uma função descrita em um estatuto tem como finalidade ilustrar um modo

como um conteúdo é depreendido. É em geral a este conteúdo que nos referimos pré

-filosoficamente a suscitar um modelo epistemológico posterior. Assim, o sentimento

da beleza para o juízo reflexivo, e um conceito empírico para o juízo determinante.

Nosso par conceitual estatuto/conteúdo ilustra a totalidade do domínio

filosófico com que Kant opera, constitui o solo <Boden> (CFJ: XVI, XVII) por onde

se estabelecem cumprimentos de um conteúdo, as sínteses empreendidas pelo juízo,

tão caras à nossa vida consciente (CRP B 104,105).

12� A capacidade de denotar é sempre controversa, porém, nunca impossível na música. Hanslick (2002) nos dá um panorama desta questão. Em um sentido a música pode ser usada para “fins exteriores” (2002:19) como a guerra ou a religião. Dificilmente algo está sendo denotado nestes casos, e mais compreensível seria entendê-los instigando atos. Porém, os sentimentos e posturas que poderiam estar sendo ali instigados, alguns interpretam, são derivados diretamente de uma relação entre o musical e sua expressão em nossa alma. Hanslick recusa este tipo de ligação, e mesmo qualquer relação denotativa entre música e objetos ou sentimentos: ‘Nos mais superficiais trechos pianísticos, onde nada há, “mero nada, para onde se viram os meus olhos’, depressa surge a tendência para reconhecer a ‘nostalgia do mar’, ‘à noite antes da batalha’, o ‘dia de Verão na Noruega’ e outras absurdidades que tais, se a portada tiver apenas a ousadia de aduzir o seu pretenso conteúdo.” (Hanslick 2002:19). De outro lado, a estrutura musical compartilharia parâmetros com outros fenômenos, e uma alusão é de fato possível, como a Bachiana Brasileira n.2 não deixa de atestar em sua imitação de uma locomotiva: “Tais são, em primeiro lugar, todas as ideias que se referem a modificações audíveis do tempo, da força, das proporções, por conseguinte, as ideias do crescimento, do esmorecer, da pressa, da hesitação, do artificiosamente intrincado do simples acompanhamento e coisas semelhantes.” (Hanslick 2002:25)

42

Pensar um modelo epistemológico para o objeto musical, é portanto pensar um

estatuto, conteúdo e modo de exibição.

A estrutura mais geral da consciência, a apercepção, enquanto autoconsciência

pura, descreve nossa relação direta com os produtos pré-filosóficos. Segundo Martins:

“[...] o saber, que o sujeito adquire de si, consiste em uma percepção e não em

um ato de conhecer.” (Martins 1999:67).

Mesmo sendo as exibições auto-evidentes, uma exibição pode contudo ser

descrita. Adiantamos que as condições da apercepção para a exibição de qualquer

conteúdo parecem, em alguns aspectos, implicar certas contrariedades com as

condições do juízo estético puro. Tais questões só podem ser reportadas em um

encontro dos princípios da apercepção para a formação de um conhecimento (Crítica

da Razão Pura) com o conteúdo do juízo estético (Crítica da Faculdade do Juízo).

Porém, em última instância, são distinções dadas em um objeto ou mesmo em

um sentimento que devem ser sempre postas em questão para que os modelos

epistemológicos possam assim se enriquecer. O mesmo vale para o objeto musical.

Todas as representações claras, às quais só podemos aplicar as regras lógicas, podem agora ser diferenciadas com respeito à distinção e indistinção. Se estamos conscientes da representação inteira, mas não do múltiplo que está nela contida, então a representação é indistinta. (Lógica A 42)

Se quisermos, além disso, um exemplo da indistinção nos conceitos, podemos recorrer para isto ao conceito de beleza. Cada um tem da beleza um conceito claro. Só que nesse conceito se encontram diversas notas características; entre outras, que o belo deva ser algo que (1) caia sob os sentidos e que (2) agrada universalmente. Se não conseguirmos agora, destrinçar o múltiplo destas e outras notas características do belo, nosso conceito do mesmo ainda será indistinto. (Lógica A 42,43).

A análise do pormenor empírico e de sua ligação com uma estrutura

transcendental das faculdades fica a encargo da segunda seção. Nesta primeira

levantamos questões que dizem respeito ao estatuto estético e o estatuto lógico, a

preparar o terreno teórico de nossas análises.

43

Capítulo I Estatuto e conteúdo do juízo estético puro

É prova irrefutável de fraqueza de nosso julgamento apaixonarmo-nos pelas coisas só porque são raras e inéditas, ou ainda porque apresentam alguma dificuldade, muito embora não sejam boas nem úteis.

(Michel de Montaigne)

Dentre as Críticas, sem sombra de dúvida, a que mais trouxe discussões ao conjunto

da obra kantiana foi sua terceira e última. Grande parte destas discussões giram em

torno de suas pretensões anunciadas logo na introdução, pretensões de um fechamento

do ‘sistema’ da filosofia Crítica.

Lyotard (1993) pensa a precedência do juízo reflexivo enquanto princípio

comum de todas as obras críticas; Rego (2005) compreende o juízo reflexionante

enquanto ponto de encontro das demais faculdades; Banham (2010), traça aspectos

gerais acerca da possibilidade de compreendermos o juízo reflexivo apenas enquanto

uma postulação transcendental, pois que não é constitutivo de objetividades como o

entendimento, ou regulativo de princípios como a razão. Outra parte considerável da

bibliografia trata de problemas formais da própria estruturação do texto, como indica

Shaper13 (2009:449).

De modo mais evidente, um fechamento ou uma unidade entre as Críticas

parecia estar dada em um princípio teleológico do juízo reflexionante, na finalidade

da natureza: “a conformidade a fim da natureza não funda nem um conhecimento

teórico da natureza, nem um conhecimento prático da liberdade” (Perez 2008:261).

Este ponto médio seria portanto a possibilidade de passagem, de ponte, entre

naturezas tão distintas como as do conhecimento e da liberdade. Tal interpretação se

13� Para a autora a terceira Crítica não apresenta uma divisão consistente entre a analítica e a dedução. Argumentos que estariam no escopo da analítica se encontrariam na dedução, sobretudo do segundo e quarto momento, fazendo com que os comentadores tenham um trabalho inicial de organizar qual percurso traçar diante da obra.

44

basearia no texto da primeira introdução onde Kant nos mostra como a estrutura da

finalidade a fins do juízo serve de “fio condutor à investigação da natureza” sem

contudo determiná-la sinteticamente (Perez 2008:260).

Lyotard compreendeu este fechamento sistêmico de outro modo. Sua tese pode

ser ilustrada com a seguinte frase: "A reflexão é o laboratório subjetivo de todas as

objetividades" (Lyotard 1993). Seu diagnóstico passa por uma análise daquilo que

motivara a estranha junção de vocábulos que Kant adotara na terceira Crítica,

demonstrando a dificuldade em se definir um campo que não se coordena ao prático e

ao lógico.

A distorção ou a monstruosidade que afetam as categorias por meio das quais a análise do gosto procede resultam do fato de que aqui o movimento de anamnese reflexiva trabalha o subjetivo a partir do objetivo. Se as categorias fossem aplicáveis tais quais ao gosto, este seria um juízo determinante. (Mas é verdade, e tentaremos compreender por quê, que esse juízo que não é determinante tem necessidade de ser analisado por meio das categorias para aparecer como tal, paradoxalmente). (Lyotard 1993:23)

O fio condutor da sistemática kantiana encontrar-se-ia no juízo reflexionante

puro, no sentido deste ser um juízo comum a toda atividade do sujeito, a característica

mais autônoma do juízo. Tornando assim a terceira Crítica uma peça central do

projeto de todas as críticas. Assim também pensa Lopes (2010) quando nos diz:

[...] para Lyotard, pensar criticamente [função reflexiva (inclusão nossa)] é afetar-se, é deixar-se orientar pelos sentimentos de prazer e desprazer antes de se fazer qualquer inferência acerca da verdade e falsidade de um determinado conhecimento ou do justo e injusto de determinadas ações. (Lopes 2010:76)

Rego (2005) destaca o caráter autônomo do juízo de beleza no exemplo da

anterioridade e pureza do juízo reflexivo, em consonância com Lyotard. Ressaltamos

que na beleza a capacidade de procurar uma regra sem mais, independente de um

universal estar ou não estar dado, independente mesmo da relação com outras

faculdades, é de fato um privilégio deste juízo:

A faculdade do juízo reflexionante vive, assim, às voltas com uma dupla tarefa. É em virtude da primeira delas que ela se chama reflexionante, ou simplesmente não determinante, justamente a tarefa de que a determinante se vê dispensada, a saber, a tarefa de pensar para si mesma uma lei. (Rego 2005:221)

45

Um outro ponto de vista vai defender ainda que o sentimento de prazer e

desprazer não encerram apenas uma sensação imediata no contexto do juízo reflexivo.

Perez (2006) detalha a operação reflexiva a partir do texto kantiano da Orientiere, que

revelaria uma função de distinção e discriminação que guarda um valor

eminentemente maior do que um mero juízo de gosto (prazer e desprazer). A atividade

crítica neste caso se ampararia em uma função reflexiva, mas não exatamente aquela

caracterizada na terceira Crítica, como Lyotard majoritariamente identifica:

"[...] a razão, na determinação da sua própria capacidade de julgar, não está em este caso, em condições de submeter seus juízos a uma máxima determinada de acordo com princípios objetivos de conhecimento, mas, unicamente de acordo com um princípio subjetivo de diferenciação" [Kant: Orientieren A 309-10]. (Perez 2001)

A interpretação de Perez (2006) revela uma função obscura do juízo reflexivo,

que não apenas imprime uma finalidade autônoma em sua atividade, mas distingue

pré–filosoficamente um domínio transcendental por uma sensação, um sentimento.

Segundo Perez esta seria a função mais elementar de qualquer operação consciente de

um sujeito transcendental.

Loparic (2001) representa um resgate, ao mesmo tempo em que conservador,

no sentido de dirimir os paradoxos do argumento da terceira Crítica, também

contemporâneo, na medida em que empreende sua interpretação através de uma

análise semântica do juízo da beleza, ou seja, crê ser possível estabelecer uma leitura

lógico/lingüística para o juízo da beleza de modo que este não se inclua

excentricamente dentro de uma harmonia que pareceria ter sido previamente moldada

para o conhecimento.

Guyer (1997)14 empreende o mesmo tipo de análise porém não possui interesse

em evitar qualquer paradoxo, e assim conclui:

[...] todo juízo estético do gosto é um juízo da forma "Isto ... é bonito" (§ Cj 32, pp.281-282) Todo julgamento estético faz a mesma afirmação sobre seu objeto – em termos das funções lógicas do julgamento, cada juízo estético é um julgamento assertórico categorial afirmativo e singular. (Guyer 1997:114)

14� Definir o termo cognitivo para uma análise de algo não cognitivo não pode deixar de encerrar contradições, assim mostra Guyer: "A natureza não cognitiva de nosso prazer na beleza aparenta ser a premissa onde repousa [for the rest] a análise de Kant [...]" (Guyer 1997:110), Já a análise semântica, sob o ponto de vista lingüístico, prevê com maior ênfase que a nossa uma consideração objetiva do significado do juízo de gosto puro.

46

Loparic qualifica o juízo estético entre afirmativo, negativo e indiferente

(Loparic 2010:31) enquanto que Guyer o classifica sempre enquanto afirmativo15.

O papel do juízo reflexivo e a medida em que ele cumpre com certas

pretensões de Kant para com a terceira Crítica, não é matéria que esteja livre de

disputa. Porém, se não há muito consenso quanto à questão de um fechamento

sistemático da obra kantiana, nosso foco não quer se inserir no interior deste debate,

mas tão somente compreender o juízo reflexivo em seu estatuto para o objeto de arte.

Mantendo distancia de uma pretensão de vir a qualificar toda uma constelação

de obras kantianas, nos interessamos aqui em partir de um modelo estético o mais

consensual possível, e pôr sob análise aquilo que diz respeito a um estabelecimento

conseqüente do estatuto em questão.

Os tópicos que se seguem se subdividem em quatro. Aqueles que possuem

subtópicos apenas subdividem um mesmo tema para o fôlego de um processo de

leitura. Adotamos dividir em tópicos e subtópicos como em quadros os mais

independentes possíveis, na medida em que estes seguem uma progressão em direção

a nosso objetivo de caracterizar o estatuto do juízo estético e este no sentido de vir a

adaptar-se a um modelo para a experiência musical.

As respectivas temáticas são; 1. O juízo estético: aspectos da legalidade do

juízo estético puro quanto a seu estatuto, conteúdo e exibição, 2. As implicações do

juízo estético em uma experiência estética. 3. Implicações de uma adoção do modelo

reflexivo e a nossa posição frente à separação entre o campo lógico e o estético.

1. O juízo estético.

Estético refere-se de modo geral a aquilo que é da ordem sensível, e por extensão e

obra de Baumgarten (1993:95), ao terreno da arte. Em Kant podemos encontrar dois

sentidos para este termo, um identificado com as intuições puras da sensibilidade, e

outro identificado com a atividade judicativa do gosto, onde também se insere a

beleza.

Podemos começar por defini-lo negativamente: “O juízo de gosto não é, pois,

nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim estético.” (CFJ:

15� “[...] que todo juízo estético é assertórico, singular, afirmativo e categórico” (1997 [1979], p. 114). (Loparic 2001:32)

47

4). Pensar o juízo estético como um juízo não lógico, ou seja, um campo que se afasta

daquilo que entendemos por conhecimento, requer ainda uma breve exposição do

papel geral do juízo estético.

O juízo é caracterizado na introdução da terceira Crítica (CFJ: XXIX-XXXVIII)

como uma faculdade que contém o princípio da conformidade a fins formal da

natureza. Fato este, por si só, demasiadamente impregnado de uma função

determinante. Porém, Kant nos esclarece que tal função encerra uma autonomia, o que

confere ao juízo um status de faculdade. Este caráter autônomo de sua legalidade irá

repercutir de forma decisiva para a caracterização do horizonte estético, ou seja, o

domínio do juízo de gosto, e assim da beleza artística:

[...] a faculdade do juízo, que no que diz respeito às coisas sob leis empíricas possíveis (ainda por descobrir) é simplesmente reflexiva, tem que pensar a natureza relativamente àquelas leis, segundo um princípio de conformidade a fins para a nossa faculdade do juízo, o que então é expresso nas citadas máximas da faculdade do juízo. (CFJ: XXXIV)

Kant fez coincidir a máxima da faculdade do juízo, em seu exercício autônomo

de uma função de conformidade a fins, com o próprio caráter reflexivo adotado no

juízo estético. E como veremos, entre as classes deste juízo, o juízo da beleza é aquele

onde esta autonomia aparece de forma mais pura.

Na medida em que o juízo é qualificado em sua autonomia enquanto estético,

compreendendo assim uma ‘máxima’ (CFJ: XXXIV) reguladora, é curioso o fato de a

sensibilidade ser matéria de uma ‘estética transcendental’ na primeira Crítica

enquanto faculdade passiva e pré-discursiva16. A partir da terceira Crítica estes

conceitos ficam irreconciliavelmente separados, no sentido de que um múltiplo da

intuição não será objeto no juízo de gosto da mesma maneira como é referencia para o

julgamento lógico, o limite do estético surge quando o juízo reflexivo dá lugar a um

julgamento. A receptividade dos sentidos fica excluída do discurso sobre a beleza das

obras artísticas.

Aquilo que na representação de um objeto é meramente subjetivo, isto é,

16� Em Kant a qualificação do produto do entendimento é discursivo e passível de teoria, argumento, representação. Todo produto que não tenha passado por um ajuizamento determinate fica por isto fora de qualquer perspectiva discursiva do conhecimento: “Fora da intuição, não há outro modo de conhecer senão por conceitos. Assim, o conhecimento de todo o entendimento, pelo menos do entendimento humano, é um conhecimento por conceitos, que não é intuitivo, mas discursivo.” (CRP B 93)

48

aquilo que constitui a sua relação com o sujeito e não com o objeto é a natureza estética dessa representação (CFJ: XLII).

Fica assim determinado, neste capítulo, enquanto estéticos, aqueles juízos

relativos a sentimentos de prazer e desprazer, ao mesmo tempo em que não são

capazes de participar consistentemente em uma representação objetiva (CFJ: XLIII).

Este endereçamento do juízo da beleza atesta inicialmente, sobretudo no que diz

da relação entre o montante sensível e o objeto de arte, que a consecução de uma

ligação entre o intuído e um juízo demandaria uma subsunção conceitual, o que

afastaria assim o sentido subjetivo do juízo estético para o caso da arte, e invalidaria

todo o estético em detrimento do lógico (CFJ: XLIV).

Em vista deste curioso estatuto do juízo da beleza, fazemos nosso o inquérito

kantiano: “Só que agora surge a pergunta: existe em geral uma tal representação da

conformidade a fins?” (CFJ: XLIV).

A pergunta se torna pertinente tendo em vista a falta de subsunção e de função

lógica no campo estético definido enquanto juízo do belo. É certo que a explicação de

um tal horizonte de nossas faculdades que venha a excluir o lógico (o processo de

conhecimento que gera representações para nossa apercepção) postularia, enquanto

problema, a possibilidade de uma representação estética. Este é um direcionamento

crucial para o estatuto do juízo de gosto, sobretudo quando pensamos que esta

estrutura deva contemplar uma experiência musical.

Esta relação entre o lógico e o estético se torna tão mais instigante quando

vemos os traços comuns destes estatutos, o da beleza e do conhecimento. Em ambos

os casos está implicado uma ação do entendimento, faculdade esta que tem como

função implicar uma conformidade a fins objetiva, porém, no juízo estético daria

lugar a uma conformidade a fins que vincula apenas uma forma do ‘conhecimento em

geral’.

E não se chega a nenhuma solução supondo que haja objetos especiais com respeito aos quais se chegue a uma tal proporção, ou que os objetos belos devam ser realmente interpretados no pano de fundo da teoria kantiana. Assim, não é o caso que, para cada objeto dado, se siga uma outra proporção das faculdades do conhecimento. Creio ser mais provável que Kant queira dizer que, no processo de conhecimento, duas proporções entre a imaginação e o entendimento se apresentam. Em face de diferentes objetos dados intuitivamente, pode-se chegar a mais ou menos grandes disparidades de uma proporção ideal das faculdades do conhecimento. Primeiro, a existência de uma proporção ideal propícia ao conhecimento em geral permite-nos distinguir se uma representação intuitiva está sob um certo conceito. (Bradl 1995:4)

49

Acompanhando Bradl, o juízo de gosto se insere em um limite da harmonia

das faculdades. O limite está traçado na inclinação diversa a que o juízo de gosto toma

no interior de uma estrutura que tenderia a cair sob um conceito. Não possuindo um

conceito e não se referenciando a uma objetividade, o juízo estético e o que seja sua

representação, cumpre somente com uma estrutura do ‘conhecimento em geral’

(CFJ:§9). É desta estrutura do conhecimento em geral, mesmo que ainda

indeterminada, que advém uma ação do juízo, que, livre de sua ação determinante

vem a assentir um sentimento de prazer ou desprazer.

A realização de toda e qualquer intenção está ligada com o sentimento do prazer e sendo condição daquela primeira uma representação a priori – como aqui um princípio para a faculdade de juízo reflexiva em geral – também o sentimento de prazer é determinado, mediante um princípio a priori e legítimo para todos. (CFJ: XXXIX)

Se o juízo, de modo geral, traz consigo o cumprimento de uma ‘intenção’ que

se dá sempre no sentido de constituir a priori uma representação, Kant nos diz que

este sentimento de prazer que se associa a estas intenções cumpridas possui também

um princípio a priori, que não se coincide com o estatuto desta representação inicial.

A função autônoma do juízo permite assim que se evada aquela ligação

espaço/temporal dos fenômenos à consecução de um fim lógico, e, abstendo-se desta

linearidade da consecução de um propósito, esquematiza apenas com o montante da

intuição que passa então a reflexionar, ou seja, buscar regras onde em realidade

nenhuma regra ou limite prevalece ou se dispõe. O próximo tópico se dedica a

demonstrar como este estatuto é acionado para o caso do juízo da beleza.

1.1 O estatuto do juízo do belo.

O juízo da beleza ocupa duas seções na terceira Crítica. Ele está definido na Analítica

do Belo e escrutinado na Dedução dos juízos estéticos puros. A exposição deste juízo

na analítica está organizada em paralelo com a estrutura categorial da primeira Crítica,

sendo assim Kant expõe o juízo da beleza dividido em quatro momentos que

correspondem, ou corresponderiam, à atividade de cada categoria; qualidade,

quantidade, relação e modalidade.

Guyer acredita se tratar de um processo bastante curioso, visto que ao buscar 50

definir um estatuto não lógico, mas estético, Kant utiliza de um procedimento que

busca resguardar categorias e faculdades lógicas (Guyer 1997:114). Comentemos

cada um destes momentos.

O primeiro momento, Qualidade: “Gosto é a faculdade de ajuizamento de um

objeto ou de um modo de representação mediante uma complacência ou

descomplacência independente de todo interesse. O objeto de uma tal complacência

chama-se belo.” (CFJ: 16)

Logo nas primeiras páginas encontramos uma série de questões concernentes a

este estatuto. Primeiro, que a beleza é uma complacência. Segundo que esta

complacência é função da faculdade do juízo de gosto que ajuíza um objeto ou modo

de representação.

Deste ponto já podemos distinguir duas espécies de complacência; aquela que

ajuíza um objeto, e aquela que ajuíza um modo de representação. Desta diferença

fundamenta-se uma distinção entre o agrado e a beleza (§3). Porém, não deixa de ser

curioso o fato de Kant dizer que o ‘objeto’ da complacência é o que se chama belo,

dando a entender uma espécie de representação para o sentimento da beleza, que

contudo não será explorado por Kant:

Pois, no último caso, a representação é referida ao objeto; no primeiro, porém, meramente ao sujeito, e não serve absolutamente para nenhum conhecimento, tampouco para aquele pelo qual o próprio sujeito se conhece. Na definição dada, entendemos contudo pela palavra ‘sensação’ uma representação objetiva dos sentidos; e, para não corremos sempre perigo de ser falsamente interpretados, queremos chamar aquilo que sempre tem de permanecer simplesmente subjetivo, e que absolutamente não pode constituir nenhuma representação de um objeto, pelo nome, aliás, usual de sentimento. (CFJ: 9)

A diferença entre um objeto e um ‘modo de representação’ é sutil. Assim mostra

Vladimir Vieira:

Juízos estéticos, por sua vez, guardam com estes [lógicos] uma semelhança meramente formal: “belo” não é um conceito de objetos, e não pode ser portanto utilizado para decidir se o que é apresentado sensivelmente é ou não o seu caso. (Vieira 2003:56)

A estranheza da passagem é a seguinte. Se ‘belo’ não é uma predicação de um

objeto17, mas uma complacência de algo formalmente semelhante, esta mesma

17� “ [...] a universalidade estética, que é conferida a um juízo, também tem que ser de índole

51

complacência, a beleza, é ao mesmo tempo tratada como um objeto, uma curiosa

representação que não predica nada de nenhum objeto, mas que seria, por si, em si,

uma representação subjetiva, e ‘objetivável’ apenas neste sentido.

Quando Kant utiliza inadvertidamente o termo ‘objeto’ para designar a

complacência da beleza somos obrigados a compreender este ‘objeto’ pela expressão

geral =x, ou seja, um simples algo que é o sentimento da beleza. Ao mesmo tempo o

caráter desinteressado do juízo passa de, independente do interesse, para uma

condição de pré-suposto qualitativo deste mesmo juízo, por isto um estatuto

necessário.

O desinteresse diz que no juízo do belo não importa à minha complacência que

aquele objeto permaneça existindo materialmente para que eu possa vir a ter um

sentimento de beleza (§ 2). Porém isto não pode significar que o objeto ali diante de

mim não exista, apenas indica que o caminho que o juízo traçou independe dele, mas

depende exclusivamente de meu estado subjetivo. Diferentemente, no agradável,

nossa subjetividade se prostra em direção a um objeto, pois sei qual variedade de

maçã me agrada, em que estágio de sua maturação. E neste sentido eu poderia aferir a

predicação do agradável a uma maçã específica, ‘esta maçã me agrada o paladar’ (§3).

A implicação para a contemplação artística encontra-se aqui no esforço do

espectador em anular sua tendência a encontrar um conceito para tudo que lhe caia na

sensibilidade, e deixar-se fazer passar deste estágio para o mero desfrutar formal:

“diante de um produto da arte bela tem-se que tomar consciência de que ele é arte não

natureza” (CFJ:179).

De que modo podemos vir a tomar consciência do que seja a arte, sem que seja

um objeto de arte, entre outras questões relativas à ligação entre beleza e objeto, ainda

vão suscitar maiores embates.

O segundo momento, Quantidade: “Belo é o que apraz universalmente sem

conceito” (CFJ:32).

A universalidade expressa neste momento não se refere a qualquer propriedade

que se possa unir à representação de um objeto, mas diz de uma universalidade que

em cada indivíduo é a mesma, e que rege para todos os indivíduos em sua capacidade

a priori de promover um juízo subjetivo (CFJ: 18). Disso não se pode deduzir a

priori uma necessidade para todos ou mesmo unanimidade de um mesmo juízo (CFJ:

§8).

peculiar, porque ela não conecta o predicado da beleza ao conceito do objeto [...].” (CFJ: 24)52

Novamente, a possibilidade de que o juízo da beleza expresse uma

universalidade mesmo que subjetiva implicaria alguma relação com o conhecimento,

mas como vemos em Bradl (1995), ela só diz respeito ao aparato geral do

conhecimento, seu conjunto de faculdades que podem se coordenar em diferentes

proporções. Neste caso, um mínimo de parcela do entendimento estaria

comprometido, e ao mesmo tempo a imaginação atuaria em maior proporção a

possibilitar uma reflexividade do juízo.

[...] a universalidade estética, que é conferida a um juízo, também tem que ser de índole peculiar, porque ela não conecta o predicado da beleza ao conceito do objeto, considerado em sua inteira esfera lógica, e no entanto estende o mesmo sobre a esfera inteira dos que julgam.” (CFJ: 24).

Aqui a universalidade diz respeito à capacidade que cada um tem em aferir

beleza, referenciado exclusivamente em sua subjetividade, mas que porém, pelo fato

desta mesma estrutura ser comum a toda a espécie, fundamenta a possibilidade de

estendermos este estado subjetivo como possível a qualquer outra pessoa. Se esta

universalidade contar com outros elementos que não apenas a estrutura do

conhecimento em geral, mas com um conceito presente neste julgamento, então esta

contaminação atua em sentido contrário ao juízo estético puro: “a solução deste

problema é a chave da crítica do gosto e por isso digna de toda atenção.” (CFJ: 27). O

estatuto do juízo estético tem que contar assim com uma legalidade que não permita

esta contaminação do entendimento.

Kant conclui que a universalidade do juízo de gosto só pode estar fundada em

um livre jogo das faculdades do entendimento e da imaginação (CFJ:29), consistindo

esta universalidade em uma capacidade transcendental de todo sujeito.

Esta estrutura do conhecimento em geral movida no livre jogo, um simples

esquematismo não determinante, constitui uma anterioridade a qualquer juízo, seja do

agradável, seja de juízos lógicos. O juízo estético puro compartilhando de uma

estrutura que é anterior a uma ação determinante, possui como fundamento

unicamente este mesmo estado subjetivo de livre jogar a imaginação em sua função

produtiva para com o entendimento. Se se avança sobre este estado implicar-se-ia uma

representação de uma objetividade: “[...] mas esta validade subjetiva universal da

complacência, que ligamos à representação do objeto que denominamos belo, funda-

se unicamente sobre aquela universalidade das condições subjetivas do ajuizamento

dos objetos.” (CFJ:29)53

O terceiro momento, Relação: “Beleza é a forma da conformidade a fins de um

objeto, na medida em que ela é percebida nele sem a representação de um fim” (CFJ:

61). É marca da faculdade do juízo expressar uma conformidade a fins. Sua finalidade

é cumprida na composição de uma unidade, seja dada pela razão, seja dada pelo

entendimento.

A expressão imediatamente confusa, ‘finalidade sem fim’, se explica neste

contexto. O juízo, conforme a fins, implica a consecução de finalidade. Uma

finalidade só pode ser dada na composição de uma unidade, porém, no caso do juízo

da beleza não se cumpre uma unidade em sentido lógico, pois nenhuma representação

é atingida, ou seja, nenhum fim. A estrutura esquemática é aquela onde uma finalidade

é movida, porém quando esta se move apenas no sentido de um livre jogo nada é

determinado e a finalidade a fins permanece assim sem um fim.

Kant apontava para esta condição desde o primeiro momento do juízo da

beleza: “Ora, não temos sempre necessidade de descortinar pela razão (Einsicht)18

segundo sua possibilidade, aquilo que observamos.” (CFJ:33). Ou seja, de acordo com

Kant uma finalidade não é constrangida por uma obrigatoriedade de execução final.

O quarto momento, Modalidade: “Belo é o que é conhecido sem conceito como

objeto de uma complacência necessária” (CFJ:68).

Trata-se de uma tipificação acerca da ‘necessidade’ do juízo da beleza. Como

vimos, sua universalidade não é conceitual, mas subjetiva, e nesta medida não

poderíamos imputar necessidade. Porém o prazer que se liga ao ajuizamento subjetivo

é necessário, desde que as condições para o juízo da beleza tenham sido

contempladas. Isto acrescenta mais uma característica à universalidade deste juízo,

pois podemos imputar a qualquer um como necessário não apenas a capacidade de

perceber beleza, mas um vínculo necessário entre o cumprimento de seu estatuto e o

desprendimento de tal sentimento.

Tal necessidade não pode contar com o aparato do conhecimento e Kant

classifica esta necessidade do juízo estético como exemplar: “como necessidade que é

pensada em um juízo estético, ela só pode ser denomina de exemplar, isto é, uma

18� Rohden escolhe o termo “razão” para a tradução de “Einsicht”, mesmo tendo alertado que o termo, traduzido como “insight” no inglês, não significa razão, mas sim, intuição, compreensão, e atos que se aproximam de um visão clara de um objeto obscurecido. O que a passagem quer denotar é o fato do objeto, no juízo do belo, estar completamente fora do conteúdo produzido, a beleza. Tal fenômeno é possível porque esta possibilidade está assentada em condições transcendentais, embora não tão explicitadas. Kant nos diz claramente: não há necessidade em termos sempre “objetos discernidos” para nossa consciência.

54

necessidade do assentimento de todos a um juízo que é considerado como exemplo de

uma regra universal que não se pode indicar.” (CFJ:62,63)

Diante da exemplaridade do juízo da beleza, sua necessidade surge não

enquanto uma obrigação, mas como uma pressuposição de um sentido comum

propício a uma comunicabilidade universal deste sentimento (CFJ: §21).

Os quatro momentos elucidaram, analiticamente, aquilo que seria o estatuto do

juízo da beleza. Montemos então o estatuto de forma unificada levando em

consideração sua seqüência lógica:

Um múltiplo apreendido na intuição / uma atividade esquemática da imaginação

produtiva (CFJ:69) / um livre jogo da imaginação com o entendimento / uma

ação reflexionante do juízo a conferir desinteresse no objeto / uma falta de

finalidade19 no processo reflexionante implicando no não regramento do

conteúdo da imaginação / uma ação autônoma do juízo de gosto que passa a

operar em exclusiva referencia subjetiva ao estado das faculdades em jogo /

desprendimento de um sentimento denominado beleza (atuante aqui como uma

exemplaridade).

A ordem que estabelecemos marca uma precedência do juízo reflexivo ao

sentimento de beleza. Esta é uma sugestão de Kant a qual Guyer interpreta como

sendo dúbia (Guyer 1997:109), e acredita que os mesmos argumentos kantianos

justificariam o inverso. Porém autores que seguem uma interpretação dada por

Lyotard vão tender a conceber uma simultaneidade entre a reflexão e a beleza.

Contudo, os demais momentos permaneceriam os mesmos.

1.1.1 O conteúdo expresso no juízo da beleza.

Já sabemos de antemão que o conteúdo expresso no estatuto do juízo estético puro é o

próprio sentimento da beleza. Mas em que consiste este sentimento e como se

relaciona aos demais conteúdos de nossa Gemüt veremos neste tópico.

Comecemos por relacionar este conteúdo da beleza com o objeto real, fático. O

19� Este caráter negativo do estatuto indica mesmo o processo de não subsunção, que embora não seja processo algum, se destaca de outros estatutos justamente por especificamente se voltar para a conformidade a fins reflexionantemente, sem contudo encontrar um conceito.

55

princípio do desinteresse já havia afastado do juízo da beleza uma forma contundente

de participação de uma objetividade, mas colocamos ainda duas questões a respeito

desta relação:

1) A exclusão de toda e qualquer objetividade do juízo da beleza, no intuito de

salvaguardar o prazer da beleza do prazer do agrado, deixaria o objeto como um

resíduo incognoscível da operação?

2) A forma do objeto acarretaria algum vínculo especial para o conteúdo da

beleza?

Para a segunda questão é possível pensar uma resposta em Kant. Temos no

conceito de ‘aderência’ uma possibilidade de participação da forma do objeto

(conceito) enquanto componente de um juízo de gosto. No caso das artes belas (§44)

conceitos presentes na obra nos disporiam a ideias estéticas, e estas a um componente

de sociabilidade e cultura inesperado.20 Mas a rigor o que é ajuizado como belo não

pode ser computado à forma do objeto.

Esta aderência funcionaria no sentido de possibilitar um contexto amplo de

cultura: "Portanto, enquanto um puro e livre julgamento de gosto meramente aprecia

[assesses] a harmonia da imaginação e do entendimento, o juízo sobre a beleza

aderente promove a cultura dos poderes mentais [§ 44 (306)]" (Wetherston: 1996:58).

A aderência conceitual acaba exercendo este alargamento conceitual promovendo

laços culturais. Já o traço epistemológico correspondente à aderência estaria

demarcado pela consecução de idéias estéticas (CFJ:192,193), fundamentada na

faculdade da imaginação produtiva (CFJ:193). O contexto destas funções surge de

uma seqüência de argumentação em prol da arte bela, que se inicia no parágrafo §44 e

tem seu fim no parágrafo §51, dentro da seção da dedução.

Como parece ser uma constante na terceira Crítica, mais paradoxos e formas

paradoxais se colocam: “pode-se em geral denominar a beleza (quer ela seja beleza da

natureza ou da arte) a expressão de ideias estéticas, só que na arte bela esta idéia tem

que ser ocasionada por um conceito do objeto;” (CFJ: 204)

Aqui se faz necessário uma equalização dos quatro momentos da analítica. Pois,

se a beleza implicar necessariamente em idéias estéticas, não haverá motivos para que

Kant não as incluíssem no estatuto do juízo da beleza. Porém, este conceito aparece

agora na dedução e implica que o estatuto que exclui a ação conceitual diga respeito

às belezas da natureza, enquanto que a arte seria bela apenas quando implicasse

20� Ver introdução pp. 27.

56

aderência em seu objeto.

Nossa pergunta ainda não foi respondida. Mesmo encerrando conceitos, de que

modo estes se ligariam a uma idéia estética e configurariam um laço, um vínculo

necessário entre um dado objetivo e o sentimento da beleza?

Antes de responder a esta questão temos que estabelecer, antes de tudo, que a

arte bela, segundo Kant, é aquela que abre uma concessão em prol de uma

“representação da faculdade de imaginação que dá muito a pensar” (CFJ:162,163). A

idéia estética possui um estatuto ao qual entraremos em detalhes mais a frente, por

enquanto podemos apenas apontar que a idéia estética é fruto de uma ação igualmente

reflexionante e por isto, ela mesma, não é determinante.

Porém, é de se supor que a idéia estética, estando restringida mesmo que

minoritariamente por um conceito do objeto, difira daquele juízo puro que não se liga

a um conceito de modo algum. Contudo não encontramos nenhuma literatura ou

passagem em Kant que especificasse a relação das ideias estéticas com a aderência, e

desses com o esquematismo em geral ou o estatuto estético, o que temos seria algo

como a expressão, ‘dá a pensar’.

De todo modo, o juízo da beleza, seja para uma arte bela, uma beleza livre, ou

beleza pura, alicerça-se em um sentimento. O conteúdo, mesmo no caso de uma idéia

estética, é um sentimento prazeroso.

Esta sutilidade inscrita na idéia estética, embora faça gravitar alguma

conceitualidade na arte bela, possui a mesma forma da reflexividade do juízo puro,

impossibilitando a apreensão de uma objetividade, assim mostra Silke Kapp: “Um

juízo estético não envolve conceitos e, ao mesmo tempo, a conformidade objetiva a

fins não pode ser percebida, apenas deduzida a partir de um conhecimento” (Kapp

1998: 254).

De todo modo parece ser justo dividirmos o juízo da beleza entre aderente

(aplicado à arte bela), e puro (aplicado a objetos da natureza): “[...] na natureza bela,

porém, a simples reflexão sobre uma intuição dada, sem conceito do que o objeto

deva ser, é suficiente para despertar e comunicar a idéia da qual aquele objeto é

considerado expressão” (CFJ:204). A referência desta experiência com a natureza é

tão importante para Kant que toda a arte bela – obra do gênio – é aquela capaz de se

‘passar por natureza’ (CFJ:180).

No caso musical Kant reserva pouco espaço para a aderência, pouco espaço para

a idéia estética e pouco espaço para a beleza, ficando assim na fronteira de um mero

57

agrado21. Porém, isto que é um acessório empírico, a aderência, apenas reforça o livre

jogo, e continua sem expressar um conteúdo, ou pelo menos, o conteúdo é sempre o

mesmo, o sentimento da beleza.

Loparic aponta para uma interpretação diversa onde seria possível, mesmo

estando impossibilitado a distinção da beleza no nível do prazer, pelo menos torná-la

indelével por sua referencia reflexiva, enquanto consciente de produzir idéias

estéticas. Esta referência poderia ser decisiva no estabelecimento de uma distinção

entre o prazer do agrado do prazer da beleza, em nível fenomenológico.

O sentimento estético resulta da ‘representação refletida’ do objeto sensível, isto é, da reflexão sobre a forma do objeto dado numa representação perspectiva (percepção) que constata ser essa representação ligada ao comprazimento ou desprazimento desinteressados. (Loparic 2001:13)

A resposta de nossa segunda questão (a primeira permanece ainda em aberto)

parece estar ainda impedida, o juízo estético não poderia se referir a um objeto

(CFJ:30), e no excerto de Loparic a ‘representação refletida’ estaria apenas referida ao

próprio ato de reflexionar, não criando uma correspondência material com o objeto.

A percepção cumpriria apenas um papel de prover a imaginação de um

montante de dados, ou seja, seria o combustível do processo que contudo não contaria

mais com suas características no sentido de promover determinações deste material.

Strito sensu, nenhuma representação do objeto, em qualquer sentido, pode ser

reivindicada na experiência da beleza. O que é incluído no caso das idéias estéticas

são montantes conceituais que se inserem no esquematismo e ali perdem sua

referência objetiva e passam igualmente a reflexionar, ou seja, procuram uma regra

para o todo da experiência sem a ter finalizado.

O trecho de Loparic permanece ainda indeterminado, pois uma representação

refletida seria uma representação auto-consciênte, e necessitaria de uma ação da

apercepção que provavelmente se afastaria do estatuto da beleza (veremos no próximo

capítulo). Em todos os casos, optamos, contrariamente a Loparic, em interpretar o

sentimento da beleza enquanto o conteúdo da experiência estética pura para Kant,

onde a única diferenciação, mesmo que indelével, parece correr entre o fenômeno do

‘dar a pensar’ do juízo da arte bela, e da pureza do juízo para o caso do juízo da

beleza da natureza.

Contudo, o conteúdo do juízo da beleza constando apenas como um sentimento

21� Ver introdução. (CFJ:225)

58

subjetivo puro parece ser pouco palpável para o contexto de uma descrição que

pretende erigir um modelo epistemológico musical.

Parece que uma possibilidade pelo menos mais aberta a uma análise estaria em

focarmo-nos apenas no juízo da beleza enquanto jogo. Romero Freitas entende que a

falta de propositividade do juízo da beleza é devido ao jogo das faculdades, e assim a

falta de referência a um objeto – interpretamos – seria substituída, de um foco

objetivo para o foco de uma atividade subjetiva:

Pode-se dizer que o juízo de gosto é pensado como mera atividade de ajuizamento, ou seja, como ato sensível da faculdade do juízo. O juízo de gosto não constitui uma proposição. Ele exprime apenas, ou melhor, ele é

apenas a relação entre as faculdades do sujeito e um objeto natural [...] Por isto, pode-se supor que o que lhe dá um conteúdo específico é a idéia de jogo. (Freitas, R. 1998:155)

Ainda assim não se resolve de que modo este estatuto em jogo depreende ou se

identifica com o sentimento da beleza. E mesmo não encontramos em Kant como o

montante sensível desencadeia um jogo e como somos capazes de nos evadir

intencionalmente da referencia do objeto, pois que até onde vimos, Kant parece

mostrar que o desinteresse se atrela necessariamente ao processo transcendental do

juízo reflexionante. O conteúdo estético não pode ser a ‘idéia de um jogo’, mas tão

somente o próprio jogo, ou, aquilo que depreende deste jogo, como parecia deixar

transparecer a analítica do belo.

Ficam assim nossas duas questões deste subtópico sem resposta. A seqüência

dos demais tópicos carrega esta problemática e as colocam sob outros temas

relacionados. O mais importante nestas perguntas é buscar estabelecer os limites do

estatuto da beleza descrito por Kant.

1.1.2 A hipotipose.

O conteúdo do juízo estético compreendido como o resultado de um estatuto,

pressupõe que uma exibição o tenha sublevado. Na terceira Crítica esta função é

compreendida sob o titulo de hipotipose.

A hipotipose é a exibição de um conteúdo para a consciência. Ela pode ser

direta (esquemática) ou indireta (simbólica) quanto a seu objeto, nos explica Lincon

Frias:59

Kant pensa a exibição como um estágio necessário na preparação para a aplicação ou simples associação (como no juízo estético reflexivo) de qualquer conceito a um múltiplo da intuição, pois qualquer aplicação desse tipo requer que o conceito seja ligado a suas possíveis instanciações. Quer dizer, quando o conceito de um objeto é dado, a função do juízo no uso desse conceito para a cognição consiste na exibição, i.e., pôr ao lado do conceito uma intuição que lhe corresponda [Cf. KrV A141/B180, 146]. (Frias 2006:35)

No caso de uma hipotipose esquemática, juízos subsumem intuições sob

conceitos, este processo é direto pois o conteúdo da intuição é expresso

conceitualmente sob a representação da intuição. No que diz respeito aos juízos

estéticos, estes se exibem por um modo peculiar, dito simbólico.

Esse processo se dá no âmbito do juízo reflexivo, quando a predicação não é sobre o objeto, mas sobre as faculdades do sujeito – e com isso, não se dá a subsunção de um particular a um universal […] (Frias 2006:36)

Este processo simbólico tem que ser capaz, no juízo estético, de exibir algo que

não está dado na intuição, e que ao mesmo tempo nenhum conceito subsume. A

função de exibição neste caso parece se encontrar em um caso limite, e neste sentido a

analogia surgiria como a única possibilidade de fazer exibir tal estatuto.

O simbólico reside em uma operação de analogia (CFJ:256), dependendo de

quatro termos alinhados em dois pares para que a relação analógica se estabeleça.

Porém, no uso de tal procedimento para o caso da hipotipose simbólica relativa a um

juízo estético puro não temos como formar um dos pares necessários através da

intuição e do conceito. Isto implica a falta de um dos termos, e torna a função

simbólica de exibição para o caso da beleza uma questão peculiar:

Na Filosofia, porém, a analogia não é a igualdade de duas relações quantitativas, mas de relações qualitativas, nas quais, dados três membros, apenas posso conhecer e dar a priori a relação com um quarto, mas não esse próprio quarto membro; tenho sim, uma regra para o procurar na experiência e um sinal para aí o encontrar. (CRP A 179,180)

Adiantamos-nos um pouco e trazemos um conteúdo da primeira Crítica, mas

apenas para confirmar a relação lógica em questão. De modo geral a analogia tem de

um lado algo intuído e conceituado (primeiro par da analogia), e de outro, um

conceito “...que somente a razão pode pensar...” (CFJ: 255) e que contudo nenhuma

intuição lhe será adequada, portanto, a intuição surge como o termo vazio no segundo

par.

60

Este termo que falta deve ser substituído a partir da relação estabelecida na

analogia. Esta transposição não pode ser dada quantitativamente como na regra de

três, mas preenchida qualitativamente, ou seja: “...simplesmente segundo a forma da

reflexão, não do conteúdo.” (CFJ: 255)

Podemos notar que o exemplo tratou de uma idéia da razão, o que não faz

imediatamente esclarecer o estatuto desta exibição para o juízo da beleza. O juízo da

beleza não possui intuição nem conceito. A idéia estética é referida a uma capacidade

produtiva da imaginação. Como estabelecer os pares lógicos para uma hipotipose

simbólica da beleza?

Lyotard organiza os elementos do juízo estético de forma a coincidir conteúdo e

estatuto:

Porque “logicamente” esta se chama faculdade de julgar, mas “psicologicamente”, se se autoriza por um instante esse uso abusivo do termo, ela é só um sentimento de prazer e desprazer. Ora, como faculdade de conhecimento, está voltada à heurística, enquanto procurando “sensações” no sentido que vamos esclarecer, revela plenamente seu caráter tautegórico, termo pelo qual designará somente este fato notável que o prazer ou o desprazer são ao mesmo tempo um “estado” de alma e a “informação”. (Lyotard 1993:12)

Se o prazer do belo não se confunde com qualquer outro, de acordo com

Lyotard, seria justamente porque este sentimento está intimamente ligado a uma

consciência de um livre jogo.

Para Lyotard, a identidade entre estas esferas confere um efeito: “a

contemplação [do belo] fortifica-se e reproduz a si mesma; é um estado análogo (mas

não idêntico) à Verweilung, à pausa’, à ‘passividade’ que um objeto atrativo suscita no

pensamento [65;61].” (Lyotard 1993:14)

Portanto, o que seria o simbólico para uma idéia da razão, no juízo estético puro

apareceria de modo não ortodoxo, pois que strito sensu não compõe nenhum termo de

um par lógico, pois não é um conceito que busca expressão sensível nem uma intuição

que busca um conceito. Os dois termos do juízo da beleza (um sentimento e uma

reflexão) coincidem e em verdade não se diferenciam, e não permitem assim uma

analogia pois não lhe falta qualquer representação. A partir de Lyotard, assim lemos, a

exibição do juízo da beleza, sua hipotipose, surge ao modo de uma ‘pausa’. Sua

referência puramente subjetiva faz deste juízo uma ocorrência singular de difícil

comparação. O ato de julgar a beleza não encontra analogia, detêm-se tão somente em

61

sua própria heurística, na consciência silenciosa de um sentimento refletido a si.

Em uma interpretação mais conservadora, onde a beleza e reflexividade não se

coincidam, teríamos igualmente uma posição estranha, visto que a beleza depreendida

do livre jogo já seria o sentimento e portanto já seria o fenômeno em questão, um

sentimento da beleza. O conteúdo da beleza dispensaria tanto o mecanismo de

exibição simbólico quanto esquemático, suscitando para si um modo de exibição

próprio o qual não se sabe.

1.1.3 A ligação do estatuto da beleza a um conteúdo belo.

Passamos pelas descrições mais gerais do estatuto e conteúdo do juízo da beleza.

Resta ainda remeter estes dados à totalidade da terceira Crítica, para podermos

interpretar a totalidade da experiência descrita para este estatuto.

Para Lopes o juízo da beleza cumpriria um propósito sistemático kantiano.

Em sua interpretação o assentimento do juízo da beleza emergiria a partir de uma

série de postulações aparentemente paradoxais, pois se trataria na verdade de uma

região onde razão e entendimento se conciliariam na produção de um fenômeno:

Para Lyotard, portanto, o senso comum estético não é mais que a harmoniosa proporção entre entendimento e imaginação, diante do desafio de se apropriarem da forma do objeto, fonte do prazer, um jogo livre (freie Spiel) das faculdades de conhecimento, curtocircuitando as imposições do conhecimento e da moralidade (Lopes 2010:77)

Tal ponto de vista deve ser esclarecido. O termo ‘curtocircuito’ quer fazer

referência a dois domínios, ao da razão, enquanto faculdade da moralidade e ao

entendimento enquanto faculdade do conhecimento. No texto kantiano o grande

impasse vivido pelo juízo estético puro se encontra no livre jogo entre imaginação e

entendimento. As discussões acerca do parágrafo §59 Da beleza como símbolo da

moralidade com freqüência se esquecem que o simbólico neste parágrafo trava uma

relação de analogia (CFJ:257). Neste caso a moralidade não se estabelece como um

conteúdo do juízo de gosto, mas apenas como Kant mesmo diz, a beleza pode servir

analogamente como símbolo da moralidade, visto que esta é uma idéia da razão a qual

carece de uma intuição correspondente:

62

A consideração desta analogia é também habitual ao entendimento comum; e nós frequentemente damos a objetos belos da natureza ou da arte nomes que parecem pôr como fundamento um ajuizamento moral. Chamamos edifícios ou árvores de majestosos ou suntuosos, ou campos de risonhos e alegres, mesmo cores são chamadas de inocentes, modestas, ternas, porque elas suscitam sensações que contem algo analógico à consciência de um estado de ânimo produzido por juízos morais. (CFJ: 260)

A analogia, necessitando sempre de um modelo de comparação determinado

(árvores e edifícios), no caso de tomar como modelo a beleza, dispõe apenas da forma

deste juízo a servir de símbolo para a moralidade. O próprio Lyotard, a quem Lopes

recorre para legitimar sua fala, ainda nos diz:

[...] o julgamento estético manifesta a reflexão no seu estado mais “autônomo”, mais nu se se pode assim dizer. (Lyotard 1993:14)

É a relação destas entre si que, enfim, confere ao gosto a autoridade de pretender a universalidade [...] Pretensão inteiramente subjetiva, é certo, mas universal, posto que o jogo do entendimento e da imaginação a propósito da forma do objeto basta, “sem consideração de nenhum conceito, ohne

Rücksicht auf einen Begriff” (37 t.m; 22) para suscitar no pensamento o prazer que lhe dá, em geral, a conveniência entre essas duas faculdades de conhecer [37; 28-29]. (Lyotard 1993:12)

Não faz parte da essência do juízo da beleza conter qualquer analogia. Esta pode

ser traçada como uma possibilidade e não como uma marca própria de seu estatuto ou

conteúdo. Detendo-nos nesta questão vemos que as distinções que Kant faz entre o

juízo moral e estético são inúmeras, e superam mesmo o número de elementos

comuns para a analogia. Vejamos um exemplo no parágrafo §59:

3) A liberdade da faculdade da imaginação (portanto, da sensibilidade de nossa faculdade) é representada no ajuizamento do belo como concordante com a legalidade do entendimento (no juízo moral a liberdade da vontade é pensada como concordância da vontade consigo própria segundo leis universais da razão). (CFJ: 259)

Torna-se essencial entender a legalidade da operação analógica. Em termos

lógicos é controverso que a relação A está para B, assim como C está para D, expresse

alguma verdade. Segundo o próprio Kant: “No caso da inferência segundo a analogia,

entretanto, não se exige a identidade do fundamento (por ratio). (Lógica: A 208). A

inferência para ser minimamente válida exigiria que as espécies comparadas

residissem sobre um mesmo gênero (CFJ: 449 [pé de página]), para que alguma

63

conseqüência sobreviesse da analogia. Manter tal equalização requer bastante

cuidado, em virtude da limitação que a analogia confere sobre a conseqüência dos

análogos.

Eu sou capaz de pensar a comunidade dos membros de uma coletividade, segundo as regras do Direito, segundo a analogia com a lei da igualdade de ação e reação [Wirkung und Gegenwirkung] na atração e repulsão recíproca dos corpos entre si, mas não de transpor aquela determinação específica (a atração material ou a repulsão) para estes a atribuí-la aos cidadãos, para constituir um sistema que se chama Estado. (CFJ:450)

Para o caso da analogia com o juízo moral se passa o mesmo, e o mesmo se

coloca no artigo de Romero Freitas (1998), onde pensa uma analogia entre o juízo da

beleza e o do conhecimento a partir da expressão “como se”22 empregada por Kant.

Não nos parece coerente com a filosofia kantiana querer definir o conteúdo da

beleza enquanto simbólico. Interpretemos uma passagem de Verlaine Freitas (apud

Duarte:1998), que toma o belo como símbolo sem problematizá-lo no sentido em que

fazemos:

O belo é uma apresentação simbólica do moralmente bom, em segundo lugar, por ser precisamente uma apresentação intuitiva deste, ou seja, a operação da mente que admite uma vontade sobre-humana é realizada na contemplação de formas dadas aos sentidos. (Freitas, V. 1998:98) artigo de livro

Se admitirmos, ao pé da letra, que o belo ‘é’ uma apresentação simbólica,

perdemos de vista toda a autonomia alcançada pelo juízo estético. Se contarmos com

as ressalvas de Kant, ao longo do parágrafo §59, sobre o uso, princípio e limite da

analogia, a confusão de que a analogia seria um elemento do estatuto do juízo estético

estaria facilmente desfeita.

Kant nos diz que a analogia só pode dizer respeito à “[...] forma da reflexão,

não do conteúdo.” (CFJ:255). Mais a frente nos diz: “queremos mostrar alguns

elementos desta analogia, sem ao mesmo tempo deixar de observar sua diferença.”

(CFJ:259). Ao fim do parágrafo pontua sua fala:

O gosto torna, por assim dizer, possível a passagem do atrativo dos sentidos ao interesse moral habitual sem um salto demasiado violento; na medida em que ele representa a faculdade da imaginação como determinável também em sua liberdade conforme a fins para o entendimento e ensina a encontrar uma complacência livre, mesmo em objetos dos sentidos e sem um atrativo dos sentidos [grifo nosso]. (CFJ: 260)

22� “[...] ele falará pois, do belo como se a beleza fosse uma qualidade do objeto e o juízo fosse lógico” (CFJ:18).

64

Dada estas considerações não é possível incluir qualquer valor moral ao

conteúdo do juízo estético puro, mas é possível através da analogia conferir ao juízo

da beleza uma transposição de sua função habitual para ocupar o lugar de símbolo de

um outro processo.

E fiquemos com a recomendação de Lyotard sobre a pressa em se identificar o

belo ao bom: “arcaico argumento, arcaico para o pensamento ocidental, segundo o

qual do belo ao bem a conseqüência é boa e que bem sentido far-se-á bem. Mais até:

fazendo sentir o belo, far-se-á bem. [...] ocultar-se-ia a diferença estética, obscurecer-

se-ia um território, o das formas belas, e um desafio, o prazer puro que elas

proporcionam [...]” (Lyotard 1993:156).

Não há na exibição simbólica do moralmente bom qualquer violação de

legalidades pois o próprio processo não implica uma ligação da quantidade do

conceito. A beleza enquanto símbolo do moral predica uma possibilidade de

inferência, que contudo não é essencial para a definição de nenhum dos dois juízos.

Compreendendo que todo juízo encerra uma relação a fins, acrescentaríamos

que há um percurso ‘apropriado’ a cada juízo para que possa se realizar. Esta

realização se vincula à estrutura geral da Gemüt (CRP: B102,103), e é esta vinculação

precisa que queremos encontrar para o caso do juízo da beleza.

Porém até aqui só fizemos mostrar como o juízo da beleza não é ele mesmo uma

exibição simbólica, e ainda não definimos seu tipo próprio de exibição. Neste sentido

o juízo da beleza poderia ser entendido como uma ‘feliz insuficiência’ do

entendimento, a dar lugar a uma liberdade reflexionante, prazerosa, que por sua vez é

um ambiente lógico propício a idéias estéticas.

[...] ou, no segundo caso, somente com uma concordância final e sem fim – que se sobressai espontânea e acidentalmente – com a necessidade da faculdade do juízo, relativamente à natureza e às suas formas produzidas segundo leis particulares. (CFJ: 247)

Ainda no parágrafo §58 uma nova questão entra em cena, Kant se pergunta

acerca do paradigma a que o modelo geral do juízo estético se organizaria, se

racionalista ou idealista. Como o título do capítulo já demonstra, Kant opta pelo

princípio idealista para o juízo estético. Sendo que seu estatuto é fruto de um ocaso,

‘espontânea e acidentalmente’ desviado da determinação do entendimento. Seria o

caso do próprio Kant compreender nosso aparato cognitivo geral enquanto construto

65

movido para um uso lógico mas que por uma feliz espontaneidade e acidente,

possibilitam uma experiência em outro sentido.

Esta passagem de uma estrutura determinante que acaba desembocando em um

juízo reflexivo não está descrita como uma voluntariedade, e nem como uma

necessidade da forma do objeto.

Vamos aproveitar de uma imagem do próprio Kant para ilustrar a possibilidade,

em nível epistemológico, de uma espontânea e acidental passagem do lógico para o

estético. Não sendo possível estabelecer uma contigüidade entre estes dois estatutos

(lógico e estético), estando ambos tão diametralmente opostos, se faz necessário

alguma mudança direcional no interior do esquematismo, que venha a qualificar o

estético ou o lógico. Ilustramos esta possibilidade como uma operação quântica23:

O exemplo mais comum desta espécie de formação é a água que se congela, na qual se produzem primeiro pequenas agulhas retas de gelo, que se juntam em ângulos de 60 graus, enquanto outras igualmente se fixam a elas em cada ponto até que tudo se tenha tornado gelo; assim que durante esse período a água entre as agulhas de gelo não se torne progressivamente mais resistente, mas esteja tão completamente liquida como o estaria durante um calor muito maior e contudo possua o frio inteiro do gelo. A matéria que se separa e escapa rapidamente no instante da solidificação é um quantum considerável de matéria calórica, cuja perda, pelo fato de que ela era requerida meramente para a fluidez, não deixa este gelo atual minimamente mais frio do que a água pouco antes líquida. (CFJ: 249,250)

Se súbita, quântica ou acidental, cabe a outros trabalhos avaliar em que medida

o próprio Kant pesaria tal relação entre lógica e estética em termos tão estritos.

23� Para o caso da física quântica o termo corresponderia a um ramo da ciência que se ocupa de processos atômicos discretos (descontínuos), em virtude de uma impossibilidade de utilização de recursos clássicos da física, dado as dimensões ínfimas dos eventos medidos. No nosso caso, o pormenor atômico de um aparato epistemológico não pode ser postulado como um objeto em três dimensões no qual pudéssemos dispô-lo em nossas mãos a encontrar onde e como uma possibilidade estética e uma lógica se inscreveriam. Dado esta condição da dimensionalidade de nosso objeto de pesquisa (um modelo epistemológico), podemos apenas compreender que por motivos que desconhecemos e que Kant não se ocupa deles, a causa final da dupla possibilidade de um estado de esquematismo permanece velada, e podemos nos referenciar apenas ao salto ‘quântico’, descontínuo verificável.

66

2. Os objetos da arte e o objeto da complacência da beleza.

Para a elaboração de um modelo epistemológico musical cremos que os elementos até

aqui levantados são suficientes, se não para encerrar um modelo, pelo menos a

estruturá-lo, caso o fenômeno musical se mostre consonante ao paradigma estético.

Tendo em vista as características do assentimento e do desinteresse, bem como das

particularidades de exibição do juízo da beleza, abrimos este segundo tópico a traçar

relações entre estas normas estéticas e uma realidade palpável referente ao objeto de

arte em geral.

Do ponto de vista histórico, não há como negar uma influência por parte destas

concepções de Kant para com o discurso estético subseqüente. Porém, distingamos o

quanto esta relação se inscreve em uma crítica geral, incidindo diretamente em um

discurso sobre uma prática artística, e o que as regras estatutárias estéticas definem

para um objeto da arte:

Se o lume de Giotto, diferentemente da luce, da luz, ainda tem algo de divino, o Iluminismo é uma luz racional, cada vez mais secularizada a partir dos anos de 1700, século ao qual Kant deu feições filosóficas precisas, nos campos da Epistemologia, da Ética e da Estética. Aliás, os domínios da aisthesis grega serão deslocados, ampliados e demarcados. O conceito de Estética, tal qual lemos nos dicionários modernos, "estudo racional do Belo", é tributário da modernidade, da busca por repensar constantemente as normas artísticas sob um ponto de vista cada vez menos autoritário – autoridade da Antigüidade ou daquele Belo como bem – e cada vez mais humano, racional. E é neste sentido que Kant fala em "juízos estéticos", em julgamentos estéticos, e não em normas estéticas, em regras, idéias ou modelos. (Rufinoni 2007: 2,3)

É a partir de Kant que podemos centralizar as atividades humanas num

sujeito transcendental, e assim acontece com a arte, onde seu critério era dado por

princípios estéticos postulados de antemão. Acompanhando o giro copernicano,

transporta todos os encargos dos pormenores do mundo da arte para a subjetividade

do gênio24, ao mesmo tempo em que concede poderes inalienáveis ao espectador em

julgar a beleza, a par de toda e qualquer burocracia social, porém, de uso estrito das

possibilidades de suas faculdades.

Com o sujeito soberano em ajuizar e produzir a arte, onde nenhuma instituição é

capaz de dar correção normativa, o estético passa a assumir outro tipo de liberdade,

24� “Gênio é o talento (dom natural) que dá a regra à arte. Já que o próprio talento enquanto faculdade produtiva inata do artista pertence à natureza, também se poderia expressar assim: Gênio é a inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte.” (CFJ:181)

67

para além da própria esfera da teoria moral e lógica, e que contudo, segundo Lopes,

contribuiria para a composição de um sujeito crítico:

A matriz espaço-temporal-estética é o aqui e o agora. Dela é que surge a promessa de um sujeito que – diferentemente do sujeito formal da primeira e segunda Críticas - se encontrará nascendo a cada vez que existir o prazer do belo; todavia, não permanecerá nascente, pois o tempo estético não possui passado, nem futuro que possa escorar uma identidade do sujeito. (Lopes 2010:77).

Em consonância com Lyotard e a experiência da ‘pausa’ provocada pelo juízo

estético puro, Lopes dispensa ao juízo estético qualquer sucessão ou localização

inerente a seu conteúdo. Sendo assim, faltaria ao sujeito que julga uma possibilidade

de ligação não somente entre dados de uma objetividade, mas entre eventos estéticos

diversos, e o que se tem é uma e mesma experiência que se dá em diferentes

contextos, mas enquanto experiência, significaria sempre uma e mesma coisa, a

beleza.25

Recordando estes diversos predicados, só se pintam tons, matizes dos sentimentos; não se constrói um sujeito. O sentimento estético na singularidade de sua ocorrência é o subjetivo puro do pensamento, isto é, o Juízo refletido em si mesmo. (Lyotard 1993:30)

Embora possa promover a sociabilidade e ‘dar o que pensar’, nenhum sujeito se

constitui neste jogo livre, de um tempo e espaço subtraídos à um presente estático.

Parece que se o juízo moral pode fazer da beleza um símbolo para si, o juízo da

beleza, ele mesmo, parece apenas encerrar um frutuoso e prazeroso solipcismo da

reflexão.

Se a analogia é capaz de transpor o objeto da complacência em um símbolo,

alargando o escopo da experiência estética, sua autonomia e conteúdo puro parecem

dar lugar apenas ao prazer estático da beleza. Resta analisar se a idéia estética

implicaria uma relação diversa desta que destacamos.

25� Lopes está correto em sua avaliação, baseado no estatuto do juízo estético, porém o gênio é uma exceção a regra, pois mesmo que não lhe seja importante uma história da arte, enquanto disciplina, os demais objetos de arte lhe servem como modelo de seu gênio. (CFJ:185,186)

68

2.1 Entre a beleza e a idéia estética: uma arte do inexponível.

Inexponível é o termo que Kant utiliza para qualificar uma idéia estética, no sentido

desta não poder ser regrada, visto que o juízo estético promulga um caráter circular

frente o esquematismo, fazendo com que a capacidade produtiva da imaginação se

sobressaia como que o motor da reflexividade pura:

Ao deixar a capacidade de imaginação “alastrar-se por um grande número de representações afins, que permitem pensar mais do que se pode expressar, em um conceito determinado por palavras” (KU 195, 160) a idéia estética nos leva a pensar sobre a relação do conceito com outros; portanto, idéias estéticas aumentam os conceitos ao mostrar sua limitação. (Frias 2006:89)

Devemos lembrar que as idéias estéticas pressupõem uma aderência, o que

explica esta referência ao conceito a que Frias se agarra ao interpretá-lo como um

‘aumento dos conceitos’. Não cremos que tal aumento do conceito seja possível, pois

é certo que a marca inexponível desta dinâmica excede estes conceitos ali dispostos.

Diferentemente, as idéias da razão, por não se adequarem a nenhuma intuição são

entendidas como indemonstráveis. É inexponível apenas uma idéia que assenta na

intuição de um objeto mas que o entendimento não pode sintetizar.

De que modo esta estrutura aderente mudaria o conteúdo da beleza ou a relação

deste com o objeto de arte?

Rufinoni propõe pensar a ação da imaginação na idéia estética como produtora

de hipóteses, enquanto fábrica delas:

E a arte, tanto do lado do artista capaz de criar idéias estéticas, quanto do sujeito que julga, passa a ser um lugar privilegiado para se buscar hipóteses de exposição do inexponível, relacionando-se, então, com a filosofia de uma maneira impensável para a crítica de gosto tradicional. (Rufinoni 2010:103)

De acordo com a autora o estatuto conferido para as obras de arte, para o caso

das artes belas, possibilitaria não apenas uma liberdade criativa, mas um escopo de

possibilidades tanto para o artista quanto para o espectador:

A arte moderna é devedora dos juízos de Kant, portanto não tem regras externas e se deve apenas à articulação que o artista faz entre idéias estéticas. O criador moderno só pode conhecer suas regras após a feitura da obra, em uma reflexão de seus próprios meios, sendo a criação sempre pós-moderna.

(Rufinoni 2010:10)

69

Nessas idas e vindas, tudo se passa como se os artistas "modernos" – sejam eles os do século XVI ou XVII – estivessem se debatendo entre uma autoridade e uma norma já consagrada e a possibilidade de abertura a outras formas, à liberdade. (Rufinoni 2010:2)

Sua leitura é bastante histórica e cultural e não nos convencemos integralmente

até que ponto uma história da arte acompanhou de fato esta estrutura. Parece-nos mais

razoável compreender que o trabalho kantiano foi uma, dentre diversas soluções da

crescente demanda da filosofia estética do período. Mas não deixa de ser necessário

investigar se a ‘articulação’ entre as idéias estéticas pode de fato vir a mudar o teor do

conteúdo da beleza em uma experiência.

É importante ressaltar que o romantismo e o classicismo ainda travavam

embates, e a postura classicista parece mais aflorada em Kant. Contudo, tal

movimento de volta ao classicismo afetou o próprio Goethe, que diz em 1788:

“Clássico é o que é são; romântico o doentio" (Goethe 2003:47). Para proveito estrito de

nossa análise, as implicações históricas indicam que a própria teoria ‘deu o que

pensar’ a artistas, em uma perspectiva não causal entre teoria e produção.

Compreendendo que analisamos o modelo do juízo estético enquanto tal - não

enquanto motivou ou inspirou obras - mas somente em sua potência de vir a explicar

um fenômeno artístico como o musical, parece que as questões culturais a que

Rufinoni quer ilustrar excedem esta nossa perspectiva.

Para um enfoque direto com o objeto, encontramos mais contemporaneamente o

trabalho de Thierry De Duve (2009), em seu artigo: A ‘improvisação’ de Kant à luz da

arte minimalista, um exemplo de aplicabilidade do estatuto estético da beleza

kantiana.

De Duve empreende uma descrição detalhada de sua experiência com a obra de

Robert Morris, originalmente sem título, L-beams.

A obra L-beams foi originalmente confeccionada em compensado e depois

refeita em aço inoxidável e fibra de vidro: 8 x 8 x 2 feet e data de 1965. Seu autor

assim comenta sobre a obra:

Uma função de espaço, luz, e do campo de visão do espectador [...] pois é o espectador quem muda a forma constantemente por sua mudança de posição em relação ao trabalho [...] Há dois termos distintos: o conhecimento constante e a variável experiência. (Morris)

70

Morris, sobretudo nesta obra, foi muito influenciado pela fenomenologia de

Merleau-Ponty. De Duve conhecendo a natureza do estudo empreendido por Morris,

claramente alicerçado em uma fenomenologia da percepção, empreende uma

experiência própria, referenciada exclusivamente em Kant, porém alicerçada pelo

formalismo de Greenberg:

Eu imagino que já ficou claro para você que eu mesmo falo em defesa, se não do formalismo como tal (o que isto possa significar), pelo menos da validade continuada da estética kantiana. O lugar mais duro e, portanto, o melhor deles para testar a validade é o discurso interpretativo dos seus detratores. (De Duve 2009:282)

O texto de De Duve é de difícil aproximação, sobretudo pelo mau uso da

terminologia kantiana que claramente não domina, como vemos no uso dos termos;

‘percepção’, ‘representação’, ‘síntese’ e ‘imaginação’, entre outros. Afora detalhes

terminológicos e seu discurso bastante passional, a falar de ‘detratores’, interessa para

nosso proveito a oportunidade de travarmos uma relação direta entre o estatuto da

beleza e um objeto.

O que De Duve quer neste artigo é mostrar que a experiênica dos Three L-

beams26 ou não é suficientemente artística, ou cumpre com os requisitos para um livre

jogo das faculdades como descrito na terceira Crítica kantiana. Duve conclui:

O que acontece é que no caso dos Three L-beams, meu sentimento não concorda com a interpretação que se faz acerca do significado da desarmonia dos poderes cognitivos eliciados pela peça. [...] Mas há o sentir que tem sempre a última palavra. (Duve 2009:290)

Quando fala em ‘desarmonia das faculdades’ trata-se de um ponto de vista

bastante peculiar do autor, visto que Morris diz de uma diferença entre o

conhecimento e a experiência. De toda forma, Duve julga má a obra de Morris, por

esta não praticar um livre jogo, mas implicar um pensamento sob critérios

notadamente físicos e conceituais, e o verdadeiro aval estético, o sentimento de

prazer, não seria assim erigido.

26� De acordo com o próprio Duve, e esta é a interpretação de Krauss e Turcke (Duve:283-286) esta obra é comumente compreendida contendo em si a ambigüidade de um objeto empírico portando um conceito lógico de sua forma, no caso, o formato de um L. Esta relação é implicada pois é referida a seu contexto espaço-temporal real e não a um jogo subjetivo como propõe Kant. Aqui, inspirado pela fenomenologia, Morris faz modificar o objeto a cada visada, sendo a experiência empírica múltipla confrontada pelo conceito que tenta entende-los como idênticos entre si. Isto implica um tipo de experiência que excede a teoria kantiana, pois além de contar com conceito e pensamento determinado, faz referencia direta a uma objetividade.

71

Em muitos momentos, e alicerçado-se no conceito de Greenberg – concocted -

uma maneira pejorativa de se referir ao trabalho da arte minimalista, Duve tende a

tratar a arte minimalista inteira como um fracasso artístico justamente por não saber

produzir o sentimento do belo. Novamente precisamos entrar com correções, pois

como um gênero pode encerrar toda a possibilidade de beleza se o juízo estético é

singular? O remédio a todo julgamento lógico aplicado sobre a beleza não pode ser a

confecção de um conceito sobre um gênero artístico, mas, ao contrário, dar um passo

atrás e converter não o julgamento, mas a postura lógica em uma postura subjetiva de

refinamento.

O tom de Duve é certamente militante e por isto podemos desconsiderar este

tipo de enfoque sobre a arte minimalista. Não é nosso interesse definir possibilidades

artísticas de gêneros inteiros.

Dadas estas limitações, Duve de fato põe o modelo kantiano em teste. Sua

análise se divide em cinco momentos os quais tratamos resumidamente. Os dois

primeiros momentos partem de aspectos lógicos da experiência do objeto L-beams

(Duve 2009:278). O quarto momento é dedicado a pensar como se insere o terceiro

momento em um pensamento kantiano (Duve 2009:279). O quinto e último momento

trata-se de um juízo sobre a intenção da obra, Duve chama de ‘interpretação’ o que

também se encontra em um nível regrado já que chega a conclusão que a obra trata de

pôr em cena uma divergência entre o conceitual e o empírico (Duve 2009:281).

Apenas o terceiro momento descreve a sensação que Duve retém da

experiência, onde no quarto momento postula que ela teria que ser anterior ao

primeiro e segundo momento, visto que estes já apareceriam regrados: “O que eu vejo

não é o que sei; o que eu sei não é o que eu vejo .” (Duve 2009:279) [frase a qual

Duve descreve sua sensação.]

Duve nomeia de conflito das faculdades a relação entre a igualdade dos três L-

beams dadas conceitualmente e a experiência empírica diferente a cada ângulo.

Porém, Duve estaria a tratar de aspectos lógicos se esta diferença se colocar realmente

como um problema. Pois logicamente isto não é um problema, mas apenas uma

distinção tão comum em desníveis de gênero e espécie. Porém, se ele descreve este

descompasso como condição de assentimento e não apenas de avaliação lógica, então,

perde-se a referência kantiana.

Duve vai indicar que não foi possível adentrar satisfatoriamente em um nível de

livre jogo, e por isto a obra estaria invalidada. Entendemos assim que não houve nem

72

um assentimento, o que faz com que o estético tenha se anulado.

A conclusão desta análise de Duve é bastante dura, e realmente se esbarra com

questões pertinentes à história da arte. Quando a acusação de Duve ao minimalismo

não se estende a um trabalho geométrico de Kandinsky por exemplo, faz parecer que

estão em jogo dois pesos e duas medidas. Ou seja, o que aparece censurável em

Morris, o uso de objetos geométricos, não vale para Kandinsky que utiliza alto grau

de atrativos para os mesmos. Fica em aberto não só a capacidade de Duve empreender

uma análise deste tipo, mas, se coloca mesmo a questão de ser possível descrever uma

experiência que se quer subjetiva a partir dos critérios kantianos, pois que quando

descrevemos arte sempre nos colocamos a indicar experiências pertinentes a aspectos

materiais de um objeto.

Como seria possível termos acesso, em uma experiência, a um cumprimento de

um estatuto epistemológico como o do juízo da beleza?

2.2 Limites de um sistema do juízo de gosto.

Parece haver um descompasso entre o que os artistas fazem ao impregnar

formalmente uma matéria e a subjetividade reflexiva enunciada por Kant. O estatuto

da beleza precisa ainda dirimir certas contradições entre sua exigência inexponível e a

constante necessidade do artista em materializar uma obra.

Kant sugere que pratiquemos um ato de esvanecimento27 sistemático da

referência ao objeto de arte, o que contudo não parece ser, intuitivamente, algo que a

história da arte venha a contemplar. Quando imaginamos que um objeto de arte possa

vir a guardar uma ‘mensagem’, ou mesmo um conteúdo em sua forma, Kant propõe

que isto, a que artistas e críticos procuravam arduamente, se encontrava o tempo todo

em uma legalidade subjetiva. Ou seja, esta inscrição misteriosa só poderia ser

decifrada se decifrassem a essência do próprio juízo de gosto.

Alguns comentadores se empenharam, não pela mesma problemática que

expomos, em desvendar sob termos semânticos e sintáticos o juízo estético puro. A

motivação destes pesquisadores parece de cunho reativo a trabalhos da filosofia

analítica. Mas se temos que compreender de que modo o juízo estético possa carregar

27� O esvanecimento é a mudança gradual, ao longo de repetições sucessivas, de um estímulo que controla a resposta, de maneira que a resposta eventualmente ocorre diante de um estímulo parcialmente modificado ou completamente novo. (Deitz & Malone: 1985)

73

algum conteúdo, de acordo com a filosofia kantiana, só poderíamos compreender este

conteúdo a partir da operação reflexiva do juízo estético. E é neste sentido que

lançamos mão destas investigações:

A estranheza dos juízo de gosto vem desse “como se”, que transforma “belo” em um quase-predicado. Kant trata do mesmo assunto num outro trecho, onde diz que, num juízo estético, o “sentimento de prazer (ou desprazer)”, que acompanha a representação (percepção) do objeto, “faz as vezes do predicado [statt Prädicats dient].” (Loparic 2001:12)

Segundo Loparic, esta característica cíclica não impossibilitaria o juízo

estético de possuir denotação e sentido, dado sua definição deste juízo:

“representações perceptivas das formas de objetos sensíveis ligadas a priori a

sensações ou sentimentos de comprazimento e de desprazimento desinteressados.”

(Loparic 2001). O que está sendo denotado, segundo o autor, é a própria operação da

reflexão ligada ao intuído, porém de modo desinteressado, e seu sentido é

propriamente o sentimento que depreende de tal operação.

Antes de prosseguirmos temos que destacar o caráter especulativo do projeto

de Loparic, pois que alicerçado em um princípio descartado por Kant para o caso do

juízo de gosto em geral. No parágrafo §37 a relação entre o juízo de gosto e o objeto,

e mesmo qualquer relação semântica está expressamente definida:

O fato de que a representação de um objeto seja ligada imediatamente a um prazer somente pode ser percebido internamente e, se não se quisesse denotar nada além disso, forneceria um simples juízo empírico. (CFJ:149)

No juízo de gosto, portanto, a representação é tão somente o prazer, e não

denota mais nada que este sentimento interno, enquanto um juízo de gosto.

De toda forma o objeto ocupa um lugar muito desconfortável na teoria

kantiana e inevitavelmente provoca contradições em sua definição. Qual a

justificativa da ligação a priori da ‘forma de um objeto sensível’ a um ‘sentimento’

que não seja a própria forma do objeto intuído mas justamente o ‘desinteresse’ dele?

A insistência que vemos em Loparic de querer ligar denotativamente o juízo

da beleza insere-se nesta problemática. Pois porque querer reatar um resquício do

intuído quando ele é justamente o que Kant parece querer subtrair?

Uma solução bem mais razoável para montar esta problemática, que se esbarra

em Kant sempre que ele pretende definir o estético a furtar-se do objeto, encontra-se

74

nesta passagem de Türcke:

O que Kant chama de gosto reflexivo não passa do gosto sensorial que cresceu além de si mesmo e sublimou-se: não é um estado natural, mas um estado altamente artificial do sensorium humano. Estão excluídos todos os que não dispõem de uma oportunidade para cultivar os seus sentidos [...] O ponto frágil de Kant está no fato dele reconhecer erroneamente nesse gosto reflexivo uma disposição natural dos homens, existente à parte. Seu ponto forte, no fato de que ele vê, graças a esse equívoco, luzir algo no privilégio social que cabe a todas as pessoas. (Türcke 1999:82)

Seu ponto de vista perfaz mesmo uma genealogia do próprio juízo de gosto.

Türcke indica que o gosto reflexivo não é mais do que o produto de uma cultura

situada em um momento histórico, ao mesmo tempo em que este produziu um tipo

específico de gosto sensorial. Neste sentido não é sem propósito que Kant se refere

sempre a um objeto quando quer justamente abrir mão dele, Kant denega, pois que a

educação do gosto prega justamente este exercício.

Resta ver se este tipo de exercício justificaria um estatuto que em seu modelo

prega uma necessidade de desinteresse de modo a priori. Pois o ato de retirar

referências objetivas de um objeto poderia ser igualmente explicado enquanto ato

lógico da abstração.

Porém, se pretendemos caracterizar o prazer enquanto sentido semântico de

algo, como quer Loparic, e descolar ele da própria percepção de um livre jogo das

faculdades fazendo este jogo de ‘objeto’ denotado, então restam ainda mais questões a

tratar.

A análise semântica de Loparic não faz mais do que por em termos diferentes

a mesma questão que movia Lyotard, que, de acordo com ele, estatuto e conteúdo se

identificam. A denotação pensada por Loparic faz criar um círculo, do estatuto

reflexivo orientado para a intuição em um esquematismo, sendo este o verdadeiro

objeto da complacência pura da beleza. Neste sentido, mesmo que seja duvidoso

reconhecer tal processo como algo denotável, ele não é capaz de mostrar o motivo

porque a beleza é sacada de tal processo, do porque a beleza poder se referenciar a um

processo e não a um objeto.

Esta ligação com o sentimento de prazer, pensa Vieira, não segue nenhum

padrão já apresentado por Kant.

Mas isto não está por sua vez assegurado de antemão, pois não se pode distinguir, no nível fenomenológico, “deleite”, “comprazimento” e

75

“aprovação” – para fazer uso da terminologia proposta por Kant no §5. As diferenças entre estas três espécies de prazer só fazem sentido através de uma referência a determinadas relações entre as faculdades cognitivas que não se faz presente quando pretendemos simplesmente julgar a beleza. (Vieira 2003: 66)

É justamente este o ponto. Diante da falta de componentes essenciais para uma

interpretação lógico/lingüística em um modelo denotativo, o sentimento da beleza

assim como postulado por Kant, faz dispensar um modo de hipotipose seja

esquemática ou simbólica, sendo sua exibição justamente um sentimento

condicionado transcendentalmente que, contudo, parece difícil vir a levantar uma

prova e mesmo aplicação desta estrutura em uma experiência que poderíamos colocar

em evidência.

Se a estrutura do juízo da beleza não aponta para nada a não ser a própria

atividade subjetiva fugindo de definições conceituais, a reflexão e seu caráter cíclico e

tautológico concorrem, a nosso ver, em uma direção também contrária a qualquer

relação semântica. Não é sem propósito que Lyotard classifica de ‘pausa’ o que se

passa com o sujeito que contempla a beleza. Kant mesmo parece não ter dado

importância em fundamentar uma hipotipose para a beleza.

Parece que o limite para uma arte que tenha como objetivo sacar uma

experiência inexponível, acaba por afastar qualidades possíveis a esta experiência e se

atém em um sentimento, acompanhando Lyotard, de suspensão de todas as

faculdades, uma pausa em favor de um gosto puro, subjetivamente encerrado.

Torna-se assim impossível que esta experiência da beleza nos diga algo,

denote ou se imponha à realidade. Se a teoria estética kantiana pôde inspirar novas

formas artísticas, como quer dizer Rufinoni (2010) foi justamente por uma teoria nada

impositiva em seu sentido lógico, porém, verificamos, altamente restritiva quanto a

postura do espectador.

Há portanto duas facetas do juízo da beleza, uma implicando a autonomia do

juízo, e outra implicando uma nulidade do processo consciente do sujeito no que

Lyotard caracteriza como pausa.

Ativemo-nos aqui em possibilidades de inferências e deduções que o trabalho

kantiano viria a permitir. Nossa estratégia quer que princípios teóricos estabelecidos

no trabalho de Kant e dos comentadores deixem-nos um leque aberto de

possibilidades para compreendermos o que se passa em uma experiência musical

concreta, para então pensar um modelo epistemológico para esta atividade.

76

3. A divisão entre lógica e estética.

É certo que a teoria estética kantiana possui uma predileção e em algum nível até uma

devoção à natureza. O papel do gênio, em fazer de um objeto uma emulação de um

princípio que é autentico na natureza, uma finalidade do organismo (Campos

1998:103), indica que a razão de ser da arte, para Kant, liga-se de forma muito

essencial à forma de ser da natureza, a partir da seguinte diferença; na natureza o ser é

um princípio que se organiza a si mesmo, na medida em que seu princípio de ser é sua

natureza mesma, e na arte, o ser (objeto) possui uma causa interna de coerência e não

é seu próprio produtor, na medida em que seu princípio é humano (Campos

1998:105).

Diremos que o conhecimento da natureza implica um tipo de relação

teleológica, voltada a “conformidade a fins dos seres” (§66), e uma relação

determinante voltada a uma unidade conceitual. Enquanto que a beleza reivindica uma

relação estética, voltada a uma causa puramente subjetiva do próprio ajuizamento, o

que no senso comum é creditado como ‘intenção’ do artista de colocar algo para a

‘nossa’ contemplação, e no caso da natureza, algum princípio transcendente que

parece ‘intencionar’ uma comunicação, por meio da beleza, para nossa subjetividade.

Ou seja, o princípio organizacional que na natureza precisa ser imputado

teleologicamente e que não diz respeito a seu ‘ser’, na obra de arte ele pode ser

imputado realmente como intenção do artista em um ato de imitação, de tentativa, de

chegar até este princípio que não contempla nosso entendimento.

Kant quando pensa na figura do artista pensa-o como gênio e como capacidade

de imprimir aos objetos uma lei análoga da própria natureza. Não transparece nada da

tradição que queremos referenciar, e na terceira Crítica figura tão somente o nome de

Euler. Porém poderíamos estender esta lista a Kepler, Tartini, Mersenne,

Werckmeister, Huygens, Sauveur, Rameau, entre tantos outros (Nolan 2010). Estes

eram físicos, filósofos e músicos que comumente reservavam parte de seu trabalho a

escrever uma estética, sempre voltada para o caráter material e organizacional da

música. O objetivo de montar um modelo epistemológico em específico para a música

já figurava um propósito sólido desde o século XVII, e teria sido pela primeira vez

resolvido por Rameau em seu tratado de 1722 (Lester 2002), na época, arrancando

elogios de D’Alembert:

77

M.Rameau foi o primeiro a começar a desembaraçar o caos. Ele encontrou na ressonância do corpo sonoro a origem mais verossímil da harmonia e do prazer que ela nos causa: ele desenvolveu esse princípio, e demonstrou como os fenômenos da música nascem. (D'Alembert apud Kintzler & Malgoire 1980:26)

Um enfoque totalmente diverso é suscitado pela teoria kantiana e retomamos

Lyotard para esclarecer esta oposição: entre um pensamento que via na unidade do

entendimento a condição da percepção musical, e outro que via na pausa destas

mesmas faculdades a potência artística.

Enfoco esta união singular e recorrente, mas sempre “nova”, que aparece cada vez pela primeira vez, como o esboço de um “sujeito” [...] Está nascendo a cada vez que existe prazer do belo. Não permanece nascente. Para que o permaneça, seria preciso pelo menos que seja possível a síntese de suas “promessas de unidade” numa unidade que persistiria idêntica a si mesma através do tempo. (Lyotard 1993:25)

Sendo assim nossas disposições conscientes permaneceriam estagnadas, sendo o

único processo educativo possível a própria tarefa de ser capaz de chegar a um estado

como este da beleza kantiana. Kant retira assim qualquer vínculo ao paradigma mais

colado à ciência do século XVII e XVIII. Em Kant o que há de interessante no

fenômeno estético é justamente fazer ver a separação entre conhecer e ajuizar

esteticamente um objeto.

Não se trata de apenas mais uma possibilidade de representação pictórica, de composição formal, mas sim de o sujeito experienciar uma nova disposição ativa de suas faculdades. A significação histórica do modo como essa obra

instaura uma maneira radicalmente inédita de o sujeito compreender a

atividade de seus poderes racionais constitui seu conteúdo (Freitas,V. 2003:273)

Diferente da posição de Lyotard, e mesmo de todo um debate sobre o conteúdo

do juízo estético puro, Verlaine Freitas não apenas implica historicidade na

contemplação artística a partir do juízo da beleza, como diz incidir sobre ela o

conteúdo deste juízo, enquanto uma ‘compreensão’ de ‘novas’ disposições ‘ativas’.

Freitas, consciente de que questões culturais e históricas extrapolam o limite do

conceito de beleza em Kant (Freitas, V. 2003:275) quer demarcar uma possível função

do que Lyotard chamou de ‘pausa’, interpretando como um ‘estranhamento’ frente a

realidade habitual. Nas palavras de Freitas: ‘ruptura que a arte exerce frente à

realidade trivial” (Freitas, V. 2003:275).

Mas, por mais que seja aceitável, desejável e mesmo perceptível em

78

experiências musicais, ou artísticas de modo geral, a emergência de ‘novas

disposições’, ou de uma ‘compreensão’, ou de esferas ‘ativas’, todo nosso trabalho

com o texto kantiano e seus comentadores não mostraram qualquer possibilidade

destas operações. Tanto é assim que Freitas está em verdade a fazer uma leitura de

Adorno (Freitas, V. 2003:273) e pouco ou quase nada de Kant está de fato presente

neste parágrafo.

A rigidez com que Kant divide a disciplina lógica da disciplina estética cria este

campo lacunar, que vem sendo reiteradamente preenchido por comentadores.

Aquilo na estética kantiana que é muitas vezes interpretado como liberdade

instala-se como cláusula pétrea e dificulta qualquer diálogo com uma experiência da

arte que esteja comprometida com aspectos inerentes a uma experiência construída a

partir de um objeto, e que conta com adjetivações muito próximas a procedimentos do

conhecimento. Para avaliarmos estes aspectos de uma experiência com o fenômeno

musical seria necessário lidar com termos os quais não estão comprometidos com o

que Kant postula para a experiência estética; percepção, experiência, juízo,

pensamento, conceito, entre outros que perpassam sua teoria lógica. Romper-se-ia

assim a cláusula pétrea com o objetivo analítico de entendermos melhor como um

objeto musical comporta teorias.

3.1 O ponto de cisão entre o lógico e o estético representado pelo parágrafo §9.

A diferença entre a causa da natureza enquanto um problema da razão e a causa do

objeto de arte enquanto se liga diretamente a uma intenção, já demonstra como a arte

não encerra os problemas presentes na natureza e ao mesmo tempo tem como

objetivo, segundo Kant, espelhar características que só são realmente livres na

natureza, a saber: que a “finalidade técnica se faz gratuita (contingências despojadas

de fins técnicos)” pois que para um estado puro do gosto a arte teria que “dar lugar a

produtos que pareçam contingentes” (Campos 1998:105).

É neste sentido que Kant desmerece a intencionalidade imposta

matematicamente para a forma musical; “a matemática não tem certamente a mínima

participação” (CFJ:220). Uma forma musical matematicamente composta conteria

somente regularidades, e não seria capaz de tomar a forma contingencial que a arte

79

deveria expressar para conseguir sair do âmbito determinante, a abrir espaço para uma

função reflexiva do juízo. Expressando tão somente uma transitoriedade das

sensações a partir de um princípio regulado matematicamente, gerando a repetição e

tornando a música ainda mais suscetível ao enfado (CFJ:221).

Esta crítica à transitoriedade que tanto influencia a decisão de Kant sobre a

música, aponta para a deficiência maior da concepção kantiana do musical:

A estética musical kantiana enferma de uma concepção demasiado estreita da função do tempo na música, numa arte que ele concebe simplesmente “transitória”, como incessantemente evanescente, em vez de reconhecer que também acontecimentos no tempo se podem consolidar em configurações. (Dahlhaus apud Duarte 1998:145)

Mas, caso excluíssemos estas questões polêmicas de Kant com a música e a

incluíssemos no Hall das artes belas, isto não auxiliaria ainda nosso propósito, visto

que o estatuto epistemológico do juízo de gosto parece excluir toda uma dimensão

impressa nos objetos, e por decorrência, nos musicais. A relação entre o objeto e a

experiência artística e por decorrência entre o lógico e o estético, o que chamamos de

cláusula pétrea, delineia-se a partir de uma reflexão de Kant no parágrafo §9 Se no

juízo de gosto o sentimento de prazer precede o ajuizamento do objeto ou vice-versa.

Lyotard havia nos mostrado como o juízo reflexionante incidindo sobre as

faculdades em livre jogo ajuizava ao mesmo tempo um prazer da beleza e sua própria

ação reflexiva. Bayer por sua vez localiza uma questão crucial ao parágrafo §9: “o

prazer e o juízo, em vez de se sucederem ou se precederem mutuamente, dão-se ao

mesmo tempo, o que é absolutamente contrário às leis do tempo.” (Bayer apud Passos

1998:139). Dado esta concomitância que já havíamos identificado, a beleza configura

um caso sui generis em vista de toda a estrutura transcendental:

Este estado de um jogo livre das faculdades de conhecimento em uma representação, pela qual um objeto é dado, tem que poder comunicar-se universalmente; porque o conhecimento como determinação do objeto, com o qual determinações dadas (seja em que sujeito for) devem concordar, é o único modo de representação que vale para qualquer um. (CFJ: 28)

A precedência do objeto é condição comum à faculdade de conhecimento, e por

isto uma condição necessária da universalidade para qualquer juízo. Esta estrutura do

conhecimento em geral é somente uma estrutura e não uma função sendo exercida,

não é um estatuto, mas um ‘ambiente lógico’.

80

Este ajuizamento simplesmente subjetivo (estético) do objeto ou da representação, pelo qual ele é dado, precede, pois, o prazer no mesmo objeto e é o fundamento deste prazer na harmonia das faculdades de conhecimento. (CFJ: 29).

É este o preciso momento do salto que qualificamos quanticamente. Segundo a

citação, nossa Gemüt encontra-se totalmente ocupada por um procedimento

esquemático, e neste preciso momento não reverte seu conteúdo para o entendimento,

e de acordo com Kant, se insere numa precisa ordem do esquematismo, anterior ao

regramento, e portanto, precede o objeto como também o prazer ligado a um objeto,

ficando a referência ao objeto impossibilitada, “logo, aquela unidade subjetiva da

relação somente pode fazer-se cognoscível através da sensação” (CFJ: 31).

O termo ‘sensação’ estaria para o estético assim como o conceitual para o

lógico. Porém o modo como esta sensação é remetida para o núcleo da apercepção

não se esclarece. Seria o caso de pensar em como uma sensação pode ser exibida

mesmo não sendo remetida para uma autoconsciência, e aqui reside toda a

problemática; a) a sensação se explicaria como uma ‘pausa’ de todas as faculdades, de

todo nosso sistema transcendental, onde nem mesmo um juízo se opera mas só uma

sensação, b) restaria ainda uma lacuna, compreender uma exibição para a sensação

estética visto que esta não foi contemplada pela estrutura da apercepção na primeira

Crítica, c) a possibilidade ‘a’ estaria descartada pois Kant afirma haver uma

representação da sensação da beleza, ao mesmo tempo em que ‘b’ estaria dispensado

visto que a intenção de Kant era se contrapor ao circuito da apercepção.

A condição para que uma sensação que não predica nada, de objeto algum, se

exiba, é que se sobreponha às condições do regramento da apercepção, ou seja, a

validade do modelo de juízo da beleza necessita passar por um crivo, de fazer a

primeira Crítica ressoar por sobre a terceira Crítica:

Mas uma vez que entendimento é a síntese da capacidade de imaginação ligada à apercepção (KrV A119,150), e por isso, os conceitos puros do entendimento são regras da síntese do múltiplo à unidade originária da apercepção realizada pela capacidade de imaginação produtiva (KrV A127, 159), a exibição é um processo do entendimento apenas na medida em que ela segue as regras desse. Por outro lado, se a faculdade de julgar é a capacidade de subsumir sensações sob conceitos (KrV A132 B171, 142), é razoável supor que a exibição é função dessa faculdade somente na medida em que a subsunção implica a exibição do objeto do conceito na intuição (KU 25-6, 56; KrV A140-1 B179-80, 145-6). (Frias 2006:36,37)

81

Esta relação entre a sensação e a exibição de um conteúdo se torna crucial para

compreendermos o estatuto do juízo da beleza, assim como suas implicações no

contexto geral das faculdades, que se ocupam em sua totalidade na confecção de

conhecimentos.

Uma análise musical – De Duve por motivos contrários acabou demonstrando o

mesmo – não tem como partir de uma sensação desligada de um objeto. Se não há

predicação não há o que se experienciar, e se há uma sensação sem predicação seria o

caso de se falar em uma ‘sensação em si’, o que parece muito excêntrico mesmo ao

sistema kantiano.

Faz-se necessário, diferente do caminho ‘idealista’ escolhido por Kant para a

definição do juízo estético puro (CFJ: 254), verificar uma via ‘racionalista’ deste

mesmo princípio, ou seja, pensar a ligação deste juízo com a objetividade da obra.

** *

Um modelo epistemológico musical deve levar em consideração, antes de qualquer

coisa, a peculiaridade formal do objeto musical, que diz respeito não apenas ao

aspecto acústico, mas sobretudo à sua constituição enquanto objeto da consciência.

Sua estrutura justificada para a arte bela parece não conciliar certas

experiências com objetos musicais de modo a incluí-los no estatuto estético, ao

mesmo tempo, cria um modelo teórico para o juízo da beleza que muito beira o

tautológico, impossibilitando uma crítica ao nível do entendimento e da apercepção de

modo geral. O aspecto cíclico do juízo reflexionante aliado ao caráter autônomo do

juízo de gosto faz da beleza um aspecto estranho ao critério de qualquer prazer – “o

cumprimento de uma intenção” (CFJ: XXXIX) - sendo impossível distinguir o prazer

da beleza da operação do juízo de gosto puro, impossibilitando assim um acesso

fenomenológico da estrutura sugerida.

Diante desta estrutura não parece haver nenhum vínculo necessário entre o que

seja um objeto de arte e o que seja o juízo da beleza, haja visto que o critério para

resguardar o âmbito artístico impõe um desinteresse radical, como vemos na

conclusão do parágrafo §9. Sendo assim, aquilo que garantiria o acesso a uma

sensação pura da beleza (objetos da natureza e da arte) acaba por ser desconsiderado

neste estado puro. O que o juízo da beleza acaba fazendo, a contragosto de alguns

preceitos que tenta resguardar, é inculcar algo como uma postura, uma postura que dá 82

acesso a um tipo de experiência que Kant confia ser um juízo de gosto puro.

A noção kantiana de que a beleza não pode ser predicada a nenhum objeto

acaba por impedir, ou ao menos deixar obscura a relação que temos entre beleza e

objeto de arte ou mesmo beleza e natureza, e torna sem critério a ligação entre estes

objetos para uma relação exclusiva. Nesta mesma proporção, qualquer espécie de

fenômeno que oferecesse material para a intuição poderia vir a esquematizar e então,

por um motivo que desconhecemos, passar a reflexionar, podendo chegar a um

sentimento da beleza, visto que este não será predicado do objeto em questão.

Uma estrutura divorciada do objeto, que não é capaz de criar ligações

possíveis entre eles, ou ao menos algum tipo de causalidade, parece pouco hábil a

descrever individualmente um campo como o musical, e aparenta gratuidade frente à

quantidade de elementos que deixa escapar. Porém, rever o modelo implica, antes, em

atermo-nos aos objetos, única porta de entrada, visto que não há qualquer acesso

fenomenológico direto para o que Kant compreende enquanto beleza.

83

Capítulo II O estatuto do juízo determinante: a legalidade da unidade sintética da apercepção

A Arte quer deixar de ser uma aparência e um jogo, quer tornar-se um conhecimento lúcido.

(Adrian Leverkühn)

Em vista de um modelo que contemple nossa ambição de constituir uma

epistemologia musical, passamos da estrutura estética para uma estrutura do

conhecimento, que traçaria as condições de possibilidade para um acesso lógico do

conteúdo musical. Especulamos igualmente sobre estas possibilidades a nos dar um

leque de possibilidades, o maior possível, para nosso objeto de pesquisa.

As faculdades em questão; sensibilidade, imaginação, entendimento, julgamento

e apercepção, envolvem-se agora em um estatuto que pouco conta com o uso

reflexivo, portanto, torna sua exibição mais simples e diretamente alicerçada em um

modelo lógico mais autoevidênte do que o modelo estético.

Neste mesmo sentido a análise do juízo estético revelou sutilezas que

mostravam-se pouco evidentes. A expressão ‘como se’ foi largamente utilizada nestas

caracterizações: “ele falará pois, do belo como se a beleza fosse uma qualidade do

objeto e o juízo fosse lógico” (CFJ:18). Isto é previsto pois não se trata de um

conteúdo lógico, onde, de acordo com Kant, não é possível uma distinção, ou caráter

discursivo. Porém, em sentido transcendental isto implicou que o próprio

‘mecanismo’ da beleza evidenciado não contasse com definições e elementos básicos

de sua instanciação, como um modelo de exibição. Isto implicou em problemas entre

a estrutura da apercepção e sua ligação estética com o objeto de arte.

Por sua vez, a autoevidencia dos juízos lógicos, como veremos ao longo do

capítulo, não faz do juízo determinante uma operação óbvia nem de pouco interesse

84

para a epistemologia, para o conhecimento, e mesmo para a arte e o juízo da beleza.

A faculdade do juízo na terceira Crítica possui um foco centrado no princípio

de conformidade a fins sem contudo implicar a finalidade inscrita em seu princípio.

Para o juízo determinante, veremos, o juízo cumpre sua finalidade através do entrave

entre as legalidades do entendimento e sensibilidade no processo de esquematismo, ou

seja, a faculdade do juízo executa um processo completo através de uma atividade

compartilhada por todas as faculdades.

O juízo determinante opera a virtude própria do pensamento, é o ‘supremo ato

da síntese da apercepção’ capaz de trazer fenômenos a uma apercepção.

A capacidade de pensar intuições é a função da faculdade do juízo, como

estipulada na primeira Crítica. Aqui se ajuiza não apenas sob sua autonomia, mas

enquanto parte de um sistema do conhecimento, Kant a adjetiva como um talento:

“[...] a faculdade de julgar é um talento especial, que não pode de maneira nenhuma

ser ensinado, apenas exercido.” (CRP B 172).

Este talento indica capacidade de realização de sínteses. É uma faculdade

desiderativa em sua própria legalidade, podendo vir a fracassar o cumprimento de seu

princípio, em esquematizar e determinar uma síntese. Trata-se de uma habilidade.

Desta faculdade depende o próprio conhecimento, uma competência nos dois

sentidos da palavra, aquilo a que seu princípio diz respeito, e aquilo que é capaz de

realizar, ou seja, uma finalidade.

Notemos ainda que enquanto as faculdades apresentam um rigoroso

formalismo estatutário, a palavra final da síntese do conhecimento se baseia em uma

‘habilidade’ do juízo. Ressalta-se também que o conhecimento não é mero encontro

mecânico de representações impressas na subjetividade, mas processo radical

implicando a criação de esquemas pela imaginação e o talento das sínteses do juízo. O

conhecimento é um produto criativo, fruto de uma atividade de criar regras.

Neste capítulo a estrutura do juízo possui um relevo ainda maior, e é sem

dúvida a faculdade que em seu conjunto possui o maior número de propriedades; de

seu princípio conforme a um fim, de um uso autônomo deste princípio, de um uso

regrado, de sua aplicação como um talento, até uma estrutura hipotética do

conhecimento (CRP B 114,115). O juízo em geral e sobretudo sua forma determinante

parecem estar longe de ser uma atividade segura a ponto de sua qualificação lógica

poder ser comparada a qualquer tipo de determinismo ou passividade.

O juízo fica responsável por dirimir todos os necessários desacordos de uma

85

tarefa que conta com os maiores abismos possíveis, de fundar uma objetividade a

partir de um diverso sensível e de conceitos a priori. O juízo determinante, quase que

colado à estrutura experimental das ciências da natureza, encerra assim a maior

finalidade da Gemüt, a consecução de teorias que liguem os conceitos empíricos entre

si e constituem um só sistema da natureza.

O princípio sintético de nossa Gemüt promove uma heurística com pretensões

que irrompem em uma superação de seu próprio meio de procedimento, quer compor

uma ciência que seja um dia capaz de fundar um conhecimento universal e inabalável,

ao mesmo tempo em que um conhecimento fundado em um procedimento

esquemático configure sempre hipóteses. A capacidade de vir a conciliar ambos é

tarefa da habilidade do juízo.

É no interior desta perspectiva que iniciamos uma investigação acerca do

estatuto do juízo determinante. Nosso objetivo mais imediato será caracterizá-lo

mediante estatutos que possam ser transpostos ulteriormente em uma estrutura

epistemológica para o fenômeno musical.

Dividimos assim as temáticas do capítulo; 1) Definição de apercepção e as

funções elementares das faculdades, 2) O juízo determinante; estatuto, conteúdo e

exibição, 3) O entendimento; espontaneidade, conhecimento, conceitualidade e

esquematismo, 4) As representações da apercepção: Objeto, intuição, esquema e

conceito, 5) A relação entre as legalidades estéticas e lógicas e a escolha de um

modelo epistemológico musical.

1. A apercepção enquanto autoconsciência.

Gemüt é o conceito mais geral de nossa disposição viva. Unidade sintética da

consciência, do ‘eu penso’, da autoconsciência: “o primeiro conhecimento puro do

entendimento, sobre o qual se funda todo o seu restante uso” (CRP B 137).

É um conceito que pode ser discernido em funções, e é este o empreendimento

kantiano por toda a primeira Crítica. Suas funções mais amplas podem ser descritas

em dois desdobramentos de seu conceito; apercepção pura e empírica.

A apercepção pura ou autoconsciência seria o movimento mais amplo onde

uma objetividade se dá a exibir, “pois que nela o saber, que o sujeito adquire de si,

consiste em uma percepção e não em um ato de conhecer. A autoconsciência, 86

em si mesma, embora esteja na base da estrutura cognitiva humana não elabora

conhecimento” (Martins 1999:67). Simplificadamente diríamos que a

autoconsciência exibe conteúdos sintetizados, e atua apenas enquanto “princípio de

unificação das faculdades” (Rohden 2009:7).

A apercepção é a síntese de diversos estatutos que nossa Gemüt encerra, ou

seja, coordena toda a série de faculdades, desde a intuição até uma recognição do

juízo. Existe um encadeamento que faz mover esta série de funções28:

O princípio supremo desta mesma possibilidade em relação ao entendimento é que todo diverso da intuição esteja submetido às condições da unidade sintética originária da apercepção. [...] na medida em que têm de poder ser ligadas numa consciência; de outro modo, nada pode, com efeito, ser pensado ou conhecido, porque as representações dadas, não tendo em comum o acto de apercepção eu penso não estariam desse modo reunidas numa autoconsciência. (CRP B136,137)

O que localizamos como princípio unificador de todas as faculdades aparece

na citação imiscuído à própria função do entendimento. O entendimento parece então

levar a cabo uma exigência direta da apercepção que acaba por se definir também por

esta faculdade: “é o princípio supremo de todo uso do entendimento.” (CRP

B136)

Enquanto autoconsciência pura, a apercepção fundamentalmente nos dá a

intuição do ‘eu sou’. Tal esfera representa o mais alto grau, ao mesmo tempo, o estado

mais genérico de nossa consciência. Neste âmbito temos o quadro vivo de nossas

experiências, que surgem espontaneamente como; mundo, pensamento, juízo,

imagens, sensações, enfim, de tudo aquilo que é exibido naturalmente. Kant a adjetiva

como "uma faculdade sublime” (Martins 1999):

A pura apercepção não significa, portanto, o autoconhecimento de um sujeito pensante e tampouco o conhecimento de seus pensamentos empíricos e de seus estados mentais; pois ela apenas determina a forma na qual este sujeito tem conhecimentos sem ser, todavia, o saber de si que este sujeito tem e precisa ter. (Martins 1999)

A apercepção exibe uma finalidade cumprida, em experiências para si, de

objetos visuais, auditivos, táteis, intelectuais e etc.

28� “Na primeira passagem, do final da Introdução à KrV, ele pensa a primeira Crítica à maneira de um organismo, mais especificamente de uma árvore, com troncos e raiz. A partir da anunciada divisão do conhecimento nos elementos do entendimento e da sensibilidade” (Rohden 2009:7)

87

Como não podemos falar de elementos empíricos no nível da apercepção pura,

temos portanto que descer um degrau e falar da apercepção empírica. Se pudéssemos

cunhar uma expressão apropriada para a apercepção empírica, em paralelo com o ‘eu

penso’ da apercepção pura, ilustraríamos: ‘eu sintetizo’.

Enquanto máxima ela aponta para o enfoque, que na apercepção empírica,

passa de mera autoconsciência de conteúdos para a autoconsciência de nosso próprio

processo de conhecimento. É justamente um empreendimento do porte da filosofia

Crítica quem pode vir a traçar tal fio condutor dos processos de síntese. A

autoconsciência empírica é quem se apresenta enquanto hábil a desvendar o estatuto

de nossas operações “[...] para se tornar objeto para mim” (CRP B 138). A apercepção

empírica por isto não é apenas autopercepção, mas consciência da atividade cognitiva

(Martins 1999).

Duas outras funções fundamentais de nossa Gemüt se abrem a partir da

apercepção empírica, pólos estes de um conflito ao qual a apercepção cumpre

sintetizar, são eles: o entendimento e a sensibilidade. Se a apercepção é uma função

de síntese ela é propriamente síntese entre estas faculdades.

A disposição das funções de nossa Gemüt se alinha hierarquicamente, e o

conhecimento, uma síntese determinante, possui um lugar privilegiado na harmonia

destas estruturas, é fim de um processo bem sucedido do entendimento, remetido à

exigência e unidade da apercepção. Finalidade cumprida por uma harmonia das

diversas funções as quais vamos distinguindo ao longo do capítulo.

Este sucesso do cumprimento de um conhecimento é derivado de um princípio

inscrito na legalidade do entendimento, definido como sua espontaneidade, ato

sintético necessário entre os dados da sensibilidade (natureza sensível) e as categorias

do entendimento (natureza conceitual).

Em resumo, a apercepção é a culminação de toda uma engrenagem das

faculdades, onde se exibem conteúdos. Prosseguiremos então, passo-a-passo, em uma

escalada descendente, da unidade sintética da apercepção às determinações de sua

função mais inferior, a sensibilidade.

1.1. Os produtos das faculdades.

Dado que toda faculdade encerra um estatuto próprio e assim algum tipo de conteúdo,

a operacionalidade de cada faculdade ao mesmo tempo encerra certa autonomia e

88

modos próprios de processamento. Dado esta particularidade dos atos de cada

faculdade nos focamos em alguns, no sentido de caracterizar esta série de atos que

culminam na apercepção, são eles: síntese, atividade, representação e produto.

Introduzimos este tópico a fim de precisar estas diferenças estatutárias quanto a certas

diferenças entre os conteúdos.

Vamos utilizar a definição geral de produto (Frias 2006:10) para designar os

conteúdos principais das faculdades, podemos citar: intuições, conceitos, ideias,

esquemas e juízos. Estes são produtos das respectivas faculdades; sensibilidade,

entendimento, razão, imaginação e juízo.

Estamos utilizando o termo 'produto' de modo intencionalmente genérico, por

reunir em seu conceito produtos que em verdade são considerados heterogêneos;

representações (intuição, conceito e idéia), e atividades das faculdades (esquema e

juízo). (CRP: A320 B376-7, 243-4)

A síntese não preenche o critério de um conteúdo, representação ou produto. A

síntese é um ato fundamental. A possibilidade transcendental de qualquer experiência

(CRP A 97) é garantida por atos especiais de síntese, e as faculdades podem ser

interpretadas como legalidades sintéticas: a intuição enquanto síntese da apreensão, a

imagem enquanto síntese da reprodução, e o conceito enquanto síntese da recognição

(CRP A 97). Compreendida estas classificações podemos analisar o estatuto e

conteúdo do juízo determinante.

2. Estatuto e conteúdo do juízo determinante.

O juízo, quando do cumprimento de seu princípio, faz remeter uma síntese para a

apercepção:

“[...] um juízo mais não é do que a maneira de trazer à unidade objetiva da apercepção conhecimentos dados” (CRP B 141) [...] segundo princípios da determinação objectiva de todas as representações, na medida em que daí possa resultar um conhecimento, princípios esses que são todos derivados do princípio da unidade transcendental da apercepção. Só assim dessa relação surge um juízo, ou seja, uma relação objetivamente válida, que se distingue suficientemente de uma relação destas mesmas representações, na qual há validade apenas subjetiva, como por exemplo a que é obtida pelas leis da associação. (CRP B 142)

Contrariamente à associação (ligação livre) o juízo conduz a uma ligação

89

objetivamente válida. Seu princípio a priori se cumpre na ligação entre representações

sob categorias do entendimento.29

O caso da associação pouco compete a um conhecimento, pois se um enlace

não é estabelecido é devido à falta de determinações categoriais, como por exemplo a

relação causal entre os objetos (CRP B 143).

Mesmo os juízos empíricos condicionam-se de modo determinante,

implicando sempre em uma causalidade fundada em um princípio a priori. O caráter

necessário das categorias se ajusta às condições dadas pela sensibilidade.

Kant parece, aqui, separar o princípio causal universal das leis causais particulares tão nitidamente quanto se poderia desejar. O princípio de que todo evento B tem uma causa A certamente é a priori e necessário. No entanto, leis causais particulares – instanciações particulares (via conceitos empíricos particulares) da generalização de que todos os acontecimentos do tipo A são seguidos por acontecimentos do tipo B – ficam completamente indeterminadas pelo princípio causal. (Friedman 2009:208)

A tese kantiana sobre o conhecimento consiste em fazer ultrapassar o

argumento indutivo, insinuado como um método científico, substituindo-o por uma

pretensão válida universalmente, dada no interior de nossa estrutura do entendimento.

Esta pretensão inscrita em nossa mente e o uso sistemático dela consiste no ‘despertar

do sono dogmático’ e sustento de nossa pretensão que ajuíza, por exemplo: ‘os corpos

são pesados.’

Quando Kant afirma que ‘há uma conexão necessária entre causa e efeito’

(Friedman 2009:197), mesmo quando esta conexão seja dada por um conceito puro

que não pode constranger os eventos empíricos mas tão somente os subsumir, faz

superar a perspectiva de Hume sob uma operacionalidade lógica do juízo. Por isto o

juízo é sempre caracterizado como determinante na primeira Crítica.

Podemos entender agora que o estatuto do juízo está comprometido com uma

função do entendimento em dar objetividade e universalidade a uma representação,

demarcando uma diferença essencial entre associação e determinação.

A associação é uma relação fundada na imaginação, ao passo que a

determinação é fundada no entendimento. Neste sentido, um trabalho da imaginação

29� A citação pontua tão somente a função determinante da faculdade do juízo. Sabemos que esta posição será revista na terceira Crítica, porém, fica em aberto a questão de como Kant relaciona definições tão estritas da primeira Crítica para com a terceira. Nossa percepção é a de que Kant mantém este princípio do juízo como definido na primeira Crítica. Porém descobre uma função separada da harmonia sintética da apercepção para o caso do juízo estético.

90

seria capaz de proferir o seguinte juízo, ‘há um corpo e uma sensação de peso na

minha mão, enquanto que o entendimento permite-nos dizer, ‘o corpo representado

possui um peso’.

Os processos de associação ligam-se à capacidade da imaginação. Seja

enquanto reprodutivos (CRP A 100) ou produtivos (CRP B 151). É mais evidente

entendermos a associação como que ligada ao processo reprodutivo da imaginação,

pois que este pode dispor objetos entre si: “faculdade de representar um objeto,

mesmo sem a presença deste na intuição” (CFJ B 151). Kant define a imaginação

enquanto faculdade ligada à sensibilidade, e isto explica a relação entre associação e

imaginação, pois que se situa anteriormente às síntese do entendimento, e portanto

‘associa’ e não ‘determina’ um múltiplo da intuição. Embora os esquemas da

imaginação sirvam a uma “conformidade com as categorias” (CRP B 152), eles em

sua autonomia apenas associam.

Quando tomamos o exemplo de associação em Kant, o objeto citado, embora

objetivo, possui um modo de ligação que se refere somente à subjetividade: ‘Sinto o

corpo e o peso em minha mão’. A mera associação não representa um juízo levado a

cabo. A associação é ainda subjetiva e não dispõe da objetividade exigida por um

juízo completo.

O juízo no exemplo empírico, ‘este corpo possui peso’, fundamenta-se em

conceitos puros, possui um valor de verdade que pode ser colocado a prova para cada

caso singular, e pode vir a estender este juízo, igualmente fundamentado em leis a

priori de nosso entendimento, para uma forma axiomática: ‘todos os corpos são

pesados’.

Notemos também que a associação pode tomar conceitos empíricos como

base, pois como no exemplo de Kant, corpo, mão e sensação de peso, são

objetividades enquanto tais, ou seja, são produtos determinados, embora o juízo que

os ligue o faça apenas subjetivamente. Neste caso o juízo que os liga não estabelece

qualquer conexão necessária.

A questão polêmica a respeito do juízo que expressamos quando de um corpo

em nossa mão faz somente ressaltar a implausibilidade de tal ocorrência. Duas vezes

que tenhamos um objeto na mão, saberíamos que o peso é do objeto, assim indica

Hume30. Porém, afora fenômenos aos quais já tenhamos este hábito de ligação

30� “29. [...] Se nos for apresentado um corpo de cor e consistência parecidas às do pão, que já comemos, não temos receio de repetir a experiência, certos de que ele nos proporcionará o mesmo alimento e sustento.” (Hume 1973:141)

91

determinante, fica patente a capacidade associativa própria da imaginação.

Compreendida a função do juízo determinante, deduz-se dela uma estrutura do

conhecimento. Desta estrutura decorre o fundamento da estrutura da ciência, que

percorre ascendentemente de juízos empíricos até as teorias tão fundamentais para o

conhecimento da natureza. O juízo determinante é uma resolução da síntese

intelectual do entendimento remetido à apercepção, o que faz com que sua estrutura

conceitual se some a uma rede de conhecimentos ao qual se dá o nome de ciência.

A ciência por sua vez, esta rede de conhecimentos, toma ideias da razão para

seu estabelecimento. Não vamos adentrar nas discussões acerca da legitimidade

transcendental da razão no estabelecimento da ciência, mas apenas indicar duas

referências a esta questão. Uma sugerida por Körner:

Kant soaria muito bem como um instrumentalista na filosofia da ciência. Isto é, ele estaria afirmando que termos teóricos funcionam na ciência como unificadores de conceitos e leis, que, por sua vez, se referem genuinamente à realidade empírica, e, também, que os termos teóricos por si mesmo, porém, não se referem a essa realidade. Eles são gerados como conveniências para o nosso uso, mas seria um grave erro teórico compreendê-los como se nos dessem um conhecimento mais adequado da realidade empírica do que aquele que adquirimos pelo uso de conceitos empíricos não teóricos. (Wartenberg 2009:279, 280)

E outra a qual Wartenberg discute esta possibilidade:

O único conhecimento a priori obtenível aos seres humanos está limitado à estrutura geral da experiência e aos objetos empíricos que perfazem o mundo fenomênico. Já que Kant procede a afirmar que a razão tem somente uma função regulativa, e não constitutiva, com respeito ao conhecimento, parece impossível atribuir a ele a visão de que a razão fornece um fundamento transcendental para a prática científica [...] embora ele atribua conhecimento transcendental à razão como a base para a prática científica, esse conhecimento não significa uma extensão ilegítima de nosso conhecimento a

priori além de seus limites legítimos. (Wartenberg 2009:280,281)

Como o papel da razão e uma eventual justificação transcendental da estrutura

da ciência excedem nossos objetivos, permanecemos no estatuto do juízo

determinante.

Este estatuto leva a cabo uma subsunção dos conceitos puros das categorias do

entendimento sobre os esquemas da imaginação. O seu conteúdo é exibido pela

apercepção de modo a estabelecer um conhecimento objetivo.

Diferente do juízo reflexionante o juízo determinante é apresentado como uma

92

exigência da apercepção, e implica necessariamente em um regramento capaz de

aferir objetividade, tendo uma exibição esquemática de seu conteúdo.

Assim, por exemplo, quando converto em percepção a intuição empírica de uma casa pela apreensão do diverso dessa intuição, tenho por fundamento a unidade necessária do espaço e da intuição sensível externa em geral e como que desenho a sua figura segundo a unidade sintética do diverso no espaço. Mas, se abstrair da forma do espaço a intuição de uma casa [grifo nosso], esta mesma unidade sintética tem a sua sede no entendimento e é a categoria da síntese do homogêneo numa intuição em geral, ou seja, a categoria da quantidade, à qual deverá portanto ser totalmente conforme esta síntese da apreensão, isto é, a percepção. (CRP B 162)

Desta maneira fica provado que a síntese da apreensão, que é empírica, tem que ser necessariamente conforme à síntese da apercepção, que é intelectual e está inteiramente contida a priori na categoria. É uma e a mesma espontaneidade, que ali sob o nome de imaginação, aqui sob o de entendimento, promove a ligação no diverso da intuição. (CRP B 163)

Fica assim o juízo determinante vinculado intrinsecamente ao entendimento e

este à apercepção.

2.1 A exibição esquemática e simbólica dos juízos.

No capítulo anterior abordamos o tema da hipotipose para ilustrar questões

concernentes à exibição do juízo reflexivo. Porém, como nos mostra Beckenkamp

(2001) o procedimento de inferência analógica que constitui a exibição simbólica foi

utilizado por Kant inicialmente para caracterizar a possibilidade de uma exibição de

uma idéia da razão em uma imagem sensível:

É claro que na mitologia posteriormente reivindicada se trata de uma “simbólica universal” (cf. K.F.A. Schelling, SW I/6, Stuttgart, Cotta, 1856, p. 571) compartilhada por todo um coletivo, enquanto em Kant a necessidade de uma simbolização das idéias decorre naturalmente da limitação da própria razão, que faz com que “tenhamos sempre necessidade de uma certa analogia com seres da natureza, a fim de nos tornar apreensíveis disposições supra-sensíveis” [Die Religion, AA VI, 65 nota]. (Beckenkamp 2001:5)

A hipotipose esquemática se confunde com a estrutura da síntese da

apercepção, torna-se direta, em contraposição à simbólica, pois é inerente ao juízo

93

determinar uma finalidade. A exibição é indireta no caso do juízo moral, dada sua

incapacidade de se exibir sensivelmente, e no juízo da beleza, pois não possui

representação, nem sensível (uma imagem da intuição) nem conceitual, mas apenas

um sentimento puro.

Na primeira Crítica, a razão pura propõe modelos que superam a legalidade do

entendimento, embora contribuam para ele (Wartenberg apud Guyer 2009). Um

exemplo simples desta interferência encontramos na idéia da perfeição do objeto, que

raramente encontramos nas medições científicas, mas que contribuem para a

postulação de suas leis. (CRP A 664-666)

A exibição de um juízo determinante não requer sequer uma terminologia

diferenciada como a de hipotipose para caracterizar sua exibição, pois que esta é

direta, objetiva e se mostra imediatamente na apercepção.

O termo hipotipose é derivado de uma tradição retórica, de convencimento em

um discurso. Kant o resignifica para tentar demonstrar por um meio sensível, uma

idéia moral. O termo é criado para dar conta de uma situação onde o conhecimento

moral não é capaz de se atrelar a um objeto, não é capaz de correspondência lógica

em sentido ontológico (CRP A 664-666), ou seja, a hipotipose simbólica gera um

‘convencimento’ por uma exibição que é analógica. Nesta mesma linha interpretativa

vemos o inverso acontecer, o termo apercepção não aparece nas páginas da terceira

Crítica.

3. O entendimento: a espontaneidade do conhecimento.

Pudemos observar que em Kant existe uma relação exemplar das faculdades que

desemboca em um conhecimento. A proficuidade do estatuto do conhecimento é

confirmada na finalidade regrada de um juízo determinante. O termo utilizado para

adjetivar este trabalho é a espontaneidade.

A espontaneidade do conhecimento é a “espontaneidade dos conceitos” (CRP

B 74) do entendimento. A espontaneidade do entendimento indica, diferentemente

uma capacidade de produção, ela é capaz de pensar o objeto da intuição (CRP A 51).

A síntese do conhecimento é esta disposição ativa, espontânea, da faculdade

do entendimento por sobre a representação da sensibilidade. Na dedução

transcendental por exemplo, o que está em jogo é justamente a prova desta relação

94

necessária entre sensibilidade e entendimento, presidido pela unidade sintética da

apercepção.

Ou seja, dada a experiência, há contradição em afirmar que intuições não estão subsumidas sob conceitos de objetos; mas não há contradição em afirmar que intuições lout couri não estão subsumidas sob conceitos de objetos. Desse modo, pode ser posta em dúvida a validade necessária e universal do conceito de experiência tal como fora analisado por Kant, isto é, pode ser posta em dúvida a validade necessária e universal da experiência enquanto conhecimento objetivo. (Esteves 1996:15)

De acordo com Esteves, Kant precisa superar o argumento empírico de que

uma intuição possa ser representada sem que com isto implique qualquer

conceitualidade. Kant necessita demonstrar como a experiência de algo intuído, para

além de encerrar uma possibilidade de subsumir sob um conceito, contém

anteriormente e necessariamente uma síntese conceitual. A resposta necessária a uma

filosofia empirista e cética é o próprio método transcendental.

O método consiste em acolher um objeto, um comportamento, qualquer esfera

pré-filosófica para dar-lhe uma interpretação analítica: “[...] na Crítica da Razão Pura,

procede inicialmente à análise de um conceito dado, à análise do conceito de

experiência enquanto conhecimento objetivo, remontando às suas condições de

possibilidade.” (Esteves 1996:34). A análise pré-filosófica que já apontava a

experiência e o conhecimento como fatos, exige uma justificativa destes

comportamentos, no qual resultou na filosofia transcendental. A experiência, como

descrita na primeira Crítica, possui uma primazia fundacional que traz consigo uma

instanciação consciente, objetiva e regrada. A estrutura que possui a finalidade de

cumprir este requisito é o entendimento e sua atividade é a espontaneidade.

Esta estrutura se expressa como uma exigência em conceituar tudo o que caia

sob a sensibilidade, e assim o caminho analítico traça as etapas que desencadeiam em

uma experiência cumprida. A fundamentação do fato legitimador, como sugere a

interpretação de Dieter Heinrich (Klotz 2007), faz da filosofia kantiana uma filosofia

analítica, pois que faz deduzir estruturas não aparentes de um fato autoevidênte. O

entendimento destaca-se como faculdade emblemática de toda síntese do

conhecimento, sua representação é o próprio objeto da experiência.

A experiência enformada pelo entendimento toma formas diversas a depender

das relações que se fazem presentes em uma intuição. De toda forma, o conhecimento

é erigido a partir desta síntese e toma formas como o teórico, axiomático, nominal,

95

singular, a espécie e o gênero. A todas estas classificações aplicáveis a uma

experiência podemos, de modo geral, denominá-las conceituais, mas os conteúdos

nestes casos diferem, em virtude da complexidade dos estatutos e sua inserção em

uma hierarquia de atos e funções.

Dada esta ligação entre experiência e entendimento, a apercepção emerge

como núcleo duro de toda exibição, via espontaneidade:

[...] de outro modo, nada pode, com efeito, ser pensado ou conhecido, porque as representações dadas, não tendo em comum o acto de apercepção eu penso

não estariam desse modo reunidas numa autoconsciência. (CRP B 136,137)

3.1 A representação da faculdade do entendimento.

Acompanhando Deleuze, “faculdade designa uma fonte específica de representações”

(Deleuze 1994:15). O conhecimento porém, assenta em um antagonismo original:

O nosso conhecimento provém de duas fontes fundamentais do espírito, das quais a primeira consiste em receber as representações (a receptividade das impressões) e a segunda é a capacidade de receber um objecto mediante estas representações (espontaneidade dos conceitos). (CRP B 74)

...re-presentação implica uma retomada activa daquilo que se apresenta, portanto, uma actividade e uma unidade que se distinguem da passividade e da diversidade inerentes à sensibilidade como tal. Deste ponto de vista, já não temos necessidade de definir o conhecimento como uma síntese de representações. É a própria re-presentação que se define como conhecimento, isto é, como a síntese do que se apresenta. (Deleuze 1994:16)

A espontaneidade do conhecimento assenta na capacidade de síntese da

apercepção com base nas regras do entendimento. A espontaneidade do entendimento

se contrapõe à receptividade da sensibilidade justamente pelo caráter privilegiado do

entendimento em colocar o representado diante da apercepção, através do ato

judicativo. Para Deleuze neste ponto já não é necessário interpretar o termo

representação (para o caso do entendimento) como mero produto de mais uma

faculdade que contudo sofrerá sínteses ulteriores. Neste ponto o que se apresenta é o

próprio conhecimento, ou seja, o termo ‘re-presentar’ pode ser interpretado ao pé da

letra e indicar uma posição ativa, sem o risco de polissemia o conhecimento é a

96

própria representação, pois que ‘a síntese do que se apresenta’ (do que é apreendido).

Porém, a espontaneidade do nosso pensamento exige que este diverso seja percorrido, recebido e ligado de determinado modo para que se converta em conhecimento. A este acto dou o nome de síntese. (CRP B 102)

Todavia, reportar essa síntese a conceitos é uma função que compete ao entendimento e pela qual ele nos proporciona pela primeira vez conhecimento no sentido próprio da palavra. (CRP B 103)

Para qualquer relação sintética é necessário dois termos, o diverso da intuição

e o conceito. Um terceiro termo é por certo o seu resultado, o conhecimento.

Os conceitos fundam-se, pois, sobre a espontaneidade do pensamento, tal como as intuições sensíveis sobre a receptividade das impressões. O entendimento não pode fazer outro uso destes conceitos a não ser, por seu intermédio, formular juízos. (CRP B 93)

[...] todos os corpos são divisíveis, o conceito de divisível refere-se a diversos outros conceitos; entre eles refere-se aqui, particularmente, ao conceito de corpo, e estes por sua vez, a certos fenômenos, que se apresentam a nós. (CRP B 93)

O conhecimento, tratando-se de coisa conceitual, é uma união entre o que quer

que seja a categoria (conceito puro) com uma intuição correspondente. Neste caso o

resultado da relação entre categoria e o diverso da intuição é expresso em um conceito

empírico. Este pode vir a se acumular em sínteses subseqüentes instanciando juízos

mais necessários em direção à universalidade pretendida pela ciência.

Mas a estrutura do que seja o conceito já subsiste separadamente do

conhecimento, enquanto categoria, e eis seu caráter a priori. De que modo então o

conceito enquanto produto do entendimento se destaca singularmente? De que

maneira a condição de possibilidade, que é conceitual, cria células conceituais

distintas entre si?

Definimos o conhecimento como um terceiro termo, distinto da categoria e da

intuição, uma síntese entre eles. Temos contudo que considerar que a síntese é de

incumbência do entendimento. Por um lado, o sintetizado não passa de uma

configuração singular das categorias, e neste caso o conhecimento parece coincidir

com um esquema montado por estas. Muito mais identidade parece haver entre o

sintetizado e as determinações do entendimento do que com o diverso da intuição,

pois os esquemas devem se adequar ao conceitual e não o contrário.

97

Como, porém, há em nós uma certa forma de intuição sensível a priori, que assenta na receptividade da faculdade de representação (sensibilidade), o entendimento, como espontaneidade, pode então determinar, de acordo com a unidade sintética da apercepção, o sentido interno [grifo nosso] pelo diverso da representação dada e deste modo pensar a priori a unidade sintética da apercepção do diverso da intuição sensível, como condição à qual tem de encontrar-se necessariamente submetidos todos os objetos da nossa (humana) intuição; é assim que as categorias, simples formas de pensamento, adquirem então uma realidade objetiva, isto é, uma aplicação aos objetos que nos podem ser dados na intuição, mas só enquanto fenômenos; porque só destes somos capazes de intuição a priori. (CRP B 150,151)

Há ainda um segredo inerente a este procedimento, e se encontra em uma

faculdade intermediária por natureza, mediadora entre sensibilidade e entendimento, a

imaginação. A imaginação possui muitas atribuições, e Kant a divide entre

imaginação produtiva e reprodutiva. Em sua capacidade mais radical, a produtiva,

depreende-se esquemas essenciais a ação do entendimento para o conhecimento, “é

portanto uma faculdade de determinar a priori a sensibilidade [...]” (CRP B 152).

Acima havíamos grifado a expressão ‘sentido interno’, cabe ainda algum

esclarecimento do parágrafo:

[...] sentido interno, pelo contrário, contém a simples forma da intuição, mas sem a ligação do diverso nela inclusa, não contendo, portanto, nenhuma intuição determinada; esta só é possível pela consciência da determinação do seu sentido interno mediante o acto transcendental da imaginação (influência sintética do entendimento sobre o sentido interno) a que dei o nome de síntese figurada. (CRP B 154)

Podemos ver que Kant faz cercar por todos os lados seu argumento, base de

toda a filosofia transcendental, que prega a dependência de regramento para qualquer

conteúdo, mediado pela imaginação.

A imaginação é comumente relacionada com sua capacidade reprodutiva, em

fazer exibir em abstrato um objeto (CRP B 154), uma imagem de nosso sentido

interno. Seu caráter produtivo é aquele que forma esquemas tão essenciais à síntese de

um juízo. Seu duplo papel pode ligar a intuição ao conceitual em sua ação produtiva,

ou pode vir a montar representações reprodutivamente.

Especifiquemos um pouco mais a ação conceitual para então abordarmos o

processo do esquematismo empreendido pela imaginação produtiva.

98

3.1.1 Conceito: definição do termo.

O termo ‘conceito’ é referido na obra de Kant em três sentidos: conceito empírico,

conceito puro e esquema de um conceito.

Esquema de um conceito (CRP B 179) seria uma espécie de abstração, não do

objeto, mas de certos caracteres essenciais em um conceito do objeto no sentido de

identificá-lo facilmente em uma experiência, ou lidar com ele na imaginação. O

esquema de um conceito é um corpo formal, referido apenas a uma regra de ocupação

no tempo e espaço, que serve como apetrecho para identificação de um conceito na

realidade:

Ora é esta representação de um processo geral da imaginação para dar a um conceito a sua imagem que designo pelo nome de esquema deste conceito. (CRP B 179,180)

De fato, os nossos conceitos sensíveis puros não assentam sobre imagem dos objetos, mas sobre esquemas. Ao conceito de um triângulo em geral nenhuma imagem seria jamais adequada. (CRP B 180)

O conceito de cão significa uma regra segundo a qual minha imaginação pode traçar de maneira geral a figura de certo animal de quadrúpede, sem ficar restringida a uma única figura particular, que a experiência me oferece ou também qualquer imagem possível que posso representar in concreto. (CRP B 180)

A expressão ‘conceito sensível puro’ aparece empregada apenas enquanto

sinônimo para o esquema de um conceito, tão facilmente representado pelo

pensamento de um objeto geométrico: “No simples conceito de uma coisa não se pode

encontrar nenhum caráter de sua existência.” (CRP B 272)

O esquema de um conceito é um trabalho realizado pela imaginação, e não

pelo próprio entendimento ou pelo juízo. Seu caráter esquemático não se relaciona

com o conhecimento diretamente, mas apenas com a ‘possibilidade’ de corresponder

intuições em conceitos. Isto dirá respeito ao esquematismo, ou seja, ao processo de

subsunção de intuições em conceitos.

A ‘possibilidade’ está contudo imprimida na categoria da modalidade. A

categoria da modalidade trata de uma função dos juízos, que diferentemente das

demais categorias, não visa a composição de conteúdos, trata apenas de “[...] se referir

ao valor da cópula em relação ao pensamento em geral.” (CRP B 100).

A possibilidade, realidade e necessidade de um juízo são os conceitos da

99

categoria da modalidade em questão. Seu caráter modal dá-se sob as seguintes

condições:

1. O que está de acordo com as condições formais da experiência (quanto à

intuição e os conceitos) é possível.

2. O que concorda com as condições materiais da experiência (da sensação)

é real.

3. Aquilo cujo acordo com o real é determinado segundo as condições

gerais da experiência é (existe) necessariamente. (CRP B 266)

Podemos inclusive facilitar nossa exposição com uma interessante analogia

entre necessidade, realidade e possibilidade, com conceitos puros, conceitos

empíricos e esquema de um conceito.

Os conceitos puros dizem respeito à necessidade de um juízo. São condições

necessárias de toda experiência. Não são reais, são formas puras categoriais. Sozinhas

são vazias e não encerram conhecimento.

Os esquemas de um conceito encerram uma possibilidade. A imaginação traça

certo ordenamento, este ordenamento que pode ser uma abstração de um conceito

empírico ou um esquema montado para aplicação em um esquematismo, ele mesmo,

não possui qualquer realidade, embora encerre necessidades. É por isto nem

necessário nem real, mas possível.

Os conceitos empíricos, por aliarem as exigências dos conceitos puros (em um

esquematismo) a um diverso da intuição, constituem uma experiência, seu

ajuizamento implica em uma realidade do objeto sintetizado.

O conceito puro não é produto de um estatuto, mas a própria regra impressa do

entendimento, é uma instância a priori. Portanto, vamos nos referir aos conceitos

puros daqui em diante apenas enquanto categorias.

Sendo impossível a uma categoria constituir imediatamente um objeto (CRP B

129), é necessário que uma dinâmica entre em cena a mediar a atividade de regrar o

intuído. A atividade em questão é o esquematismo.

100

3.2 O esquematismo.

O esquematismo é uma operação condicionante da legalidade do juízo por sobre um

diverso da sensibilidade. É o processo de subsunção, ou seja, de enquadrar o intuído

dentro de um conceito, ou mais precisamente, subsumir uma representação da

imaginação sob conceitos do entendimento. Com respeito à diferença de natureza a

que nosso aparato transcendental de conhecimento deve superar, ou melhor, sintetizar,

o esquematismo garante a conceituação de um diverso sensível. Esta conceituação,

em acordo com as categorias, reflete já uma legalidade própria da faculdade de julgar,

a qual sabemos, remete juízos para a apercepção (CRP: B 106). Ou seja, o que se quer

é que o esquematismo prepare o diverso da sensibilidade de modo que o juízo possa

agir de modo determinante.

O esquematismo é o momento de se conjurar todos os elementos, faculdades,

atos e capacidades de nossa Gemüt. Definiremos alguns destes elementos, os menos

conhecidos, apenas para termos a dimensão de como todas nossas faculdades são

mobilizadas na expectativa de um juízo determinante:

a) Tempo: O tempo é uma intuição pura. Portanto, a marca de todo diverso apreendido pela

sensibilidade. Kant atribui ao tempo a seguinte função no esquematismo: “Assim, uma

aplicação das categorias aos fenômenos será possível mediante a determinação

transcendental do tempo que, como esquema dos conceitos do entendimento, proporciona a

subsunção dos fenômenos na categoria.” (CRP: B 178)

b) Percepção: A percepção é justamente a contrapartida do conceito: “Se o conceito precede

a percepção, isto significa a mera possibilidade da coisa; mas a percepção, que fornece a

matéria para o conceito, é o único caráter de realidade.” (CRP: B 273).

c) Significação: É a relação estabelecida entre um esquema do conceito para com um

objeto, ou seja, a resultante do processo do esquematismo (CRP: B 186). Nem a intuição,

nem os conceitos puros são significativos por si, o surgimento para a apercepção de tal

conteúdo dá-se exclusivamente em uma experiência.

Hentz (2008) nos diz que o capítulo dedicado à exposição do esquematismo na

primeira Crítica é comumente criticado quanto sua real necessidade na linha

argumentativa da filosofia Crítica. Parece que o exposto no parágrafo §24, e em geral

101

na dedução transcendental, já seriam suficientes para entendermos a natureza da

síntese figurada e da síntese da apercepção. Ou seja, segundo Erdmann (Hentz

2008:2) o capítulo do esquematismo não acrescentaria nada de original, ou seja, não

possui uma “função própria”.

De modo explícito, o que o capítulo do esquematismo faz é tentar demonstrar

a possibilidade da aplicação necessária de categorias ao intuído, o que corrobora a

tese de que ela não desempenharia um papel tão relevante para a trama transcendental.

Porém Hentz quer mostrar que há um papel a ser desempenhado por este capítulo, que

faz com que a estrutura do esquematismo se faça mostrar sobretudo como prova de

que as categorias devam a priori ser capaz de exibir uma possibilidade para todo o

sensível: "a filosofia transcendental ao mesmo tempo tem antes de expor, segundo

características universais mas suficientes, as condições sob as quais objetos podem ser

dados em concordância com aqueles conceitos” (Hentz 2008:3).

Neste sentido o real intento do esquematismo seria demonstrar um uso correto

das categorias, na atribuição de esquemas que orientem corretamente o juízo em

sentido determinante, esta seria a condição logicamente válida para todo o

conhecimento, e viria a fazer parte constituinte do argumento da dedução

transcendental.

O esquema passa a desempenhar, contra a tese empirista, a possibilidade de

determinação do dado intuído, a partir de um terceiro termo entre sensibilidade e

entendimento.

A operação lógica em questão, cabe salientar, “não é aquela existente entre todo

e parte (subsunção lógica), devendo tomar-se o termo ‘subsunção’ como equivalente a

‘aplicação’ [Allison, 1992]” (Hentz 2008:4). O que ocorre em nível transcendental é

uma síntese direta entre duas naturezas que não se dispõem hierarquicamente, esta é

pois uma síntese originária que, nos mostra Allison, não pode ser compreendida como

mera operação lógica de subsunção. Outro tipo de subsunção, como pode ocorrer

entre juízos empíricos, vai operar sob relações de espécie e gênero, contando com

uma homogeneidade conceitual. Esta homogeneidade não pode ser dada em nível

esquemático puro, pois não há homogeneidade alguma e este é o caso onde esquemas

devam atuar. É pela falta original de uma homogeneidade pré-disposta que é

introduzido o tempo, na consecução do esquema:

A homogeneidade da determinação transcendental do tempo com relação à categoria se dá pelo fato de que estas determinações são tanto universais

102

quanto repousam sob uma regra a priori […] as determinações transcendentais do tempo estão submetidas às categorias que são responsáveis pela síntese da multiplicidade da intuição em geral (Hentz 2008:5)

Peguemos um exemplo do próprio Kant: o esquematismo é aquilo que permite

com que um objeto, como um prato (CRP: B 176), seja subsumido como tal e

homogeneamente ao conceito de círculo. O conceito geométrico de círculo pode

subsumir diversos objetos no mundo, e podemos assim pensar na capacidade do

esquema em fornecer um complexo onde podemos pensar a priori a possibilidade de

fenômenos. No caso de um diverso ‘x’, sendo esquematizado através do tempo, ou

seja, organizado segundo um princípio da unidade a que a imaginação tenta contribuir,

a partir de determinações categoriais, o que está sendo traçado ao fim é uma

possibilidade já inscrita transcendentalmente, uma regra, para a experiência de um

intuído. No caso, de subsumir este ‘x’ sob o conceito de círculo e somar através de

outras notas individualizantes o conceito empírico de prato. Do ponto de vista estrito

do esquema “não é necessária a apresentação de uma imagem para provar a realidade objetiva de um

conceito” (Hentz 2008:6), porém, para a constituição de uma experiência se faz necessário

que este esquema se remeta a um diverso intuído.

É neste sentido que o juízo estético não cumpre formalmente uma exibição, pois

não se referencia ao diverso intuído e nem se recobre com as regras do entendimento.

Fica igualmente de fora o papel reflexionante do juízo enquanto prova para o caráter

necessário de nossas faculdades, que deve imprimir conhecimento sobre os objetos. A

fundamentação da filosofia transcendental, não sem propósito, pretende qualificar o

juízo determinante.

Ao fim o esquematismo faz acomodar as categorias lógicas no intuído. Estas

categorias são divididas entre matemáticas e dinâmicas. As categorias matemáticas

possuem uma atuação imediata por sobre as intuições: “através dos esquemas destas

categorias é possível construir na intuição pura tanto a quantidade extensiva quanto a

quantidade intensiva (grau)” (Hentz 2008:8).

Os próprios espaço e tempo, por mais puros que sejam estes conceitos de todo o elemento empírico e por maior que seja a certeza de que são totalmente representados a priori no espírito, seriam destituídos de validade objectiva, privados de sentido e de significado se não fosse mostrado o seu uso necessário para objetos da experiência. (CRP: B 195)

Com Dieter Henrich (Klotz 2007)31, pensemos novamente no fato legitimador.

31� “O fato de o segundo passo tratar essencialmente de um problema que surge da diferença

103

Em uma experiência temos acesso imediato a um objeto e suas características, esta

imediatidade se funda, assim Kant quer fazer entender, nas propriedades que as

categorias matemáticas conferem em um vínculo necessário constituído no

esquematismo, garantindo a objetividade de nossa experiência.

O passo seguinte para o conhecimento encontra-se na aplicação das categorias

dinâmicas, que atuam sobre a existência de objetos da experiência já definidos em seu

aspecto matemático. Interessa à ciência uma ligação entre objetos que se paute

legitimamente perante a existência e exigência lógica da experiência. Diferente da

ação matemática, a dinâmica é sempre mediata, e “não podem ser construídas a priori

na intuição; os seus esquemas devem ser concebidos mais como uma síntese pura, a

qual não pode ser posta sob imagem alguma” (Hentz 2008: 9). Tratam-se das

categorias da relação e da modalidade que devem aplicar seus princípios sobre

objetos. Seu enlace por sobre objetividades constituídas ‘matematicamente’ excede a

mera ligação a priori entre representações, estas devem fundar acordos entre

conteúdos da experiência.

Fazer o intercâmbio entre as duas faculdades fontes principais de nosso

conhecimento não parece ser uma função secundária, tanto é assim que Kant se

questiona sobre nossa capacidade de ajuizar e conclui: “[...] é uma arte oculta nas

profundezas da alma humana...” (CRP: B 180).

Sendo o entendimento a faculdade do conhecimento, o juízo determinante é

então o remetimento do resultado bem sucedido do esquematismo para a apercepção.

Assim o estatuto do conhecimento se cumpre, e uma esfera de objetividade e

significado é formada em nossa Gemüt.

entre entendimento e sensibilidade explica, segundo Henrich, porque Kant volta-se então para os resultados da Estética Transcendental, enfatizando a tese de que tempo e espaço são intuições puras que constituem, ao mesmo tempo, condições formais de todas as intuições empíricas (cf. B 160). Kant emprega essa concepção no segundo passo da dedução para destacar que tempo e espaço são intuições que possuem unidade; conseqüentemente, a unidade deles deve ser concebida de acordo com o resultado do primeiro passo da dedução, isto é: como uma unidade que está de acordo com as categorias. Assim, tempo e espaço, nos quais todas as intuições sensíveis são dadas, são unidades estruturadas de acordo com as categorias. Todos os dados sensíveis como tais, em virtude da unidade de tempo e espaço, estão submetidos à condição de estar de acordo com a unidade exigida pelo entendimento (cf. B 160).” (Klotz 2007:147)

104

4. As representações das faculdades em relação à síntese da apercepção.

Vimos que a síntese da apercepção é condição para qualquer exibição de um

conteúdo. Vimos também que a condição final desta síntese é a subsunção conceitual.

Vamos agora compreender três principais representações de cada faculdade em

separado; a intuição, o esquema e o conceito. Antes, em dois subtópicos trataremos da

representação de um objeto exibido em geral e das principais atividades movidas

nesta representação geral e objetiva. Nosso intuito é passar por modelos de

representação e suas condições de possibilidades, o que será útil quando qualificarmos

a representação própria da música. Entendemos ainda que há um estatuto, e aqui

podemos usar o mesmo termo do capítulo anterior, uma cláusula pétrea, que implica

com que todas as representações se liguem a uma única função conceitual.

Todas as intuições, enquanto sensíveis, assentam em afecções e os conceitos, por sua vez, em funções. Entendo por função a unidade da acção que consiste em ordenar diversas representações sob uma representação comum. (CRP B 93)

Ao mesmo tempo esta exigência da função é uma função do juízo, criando

unidade do entendimento remetendo para uma apercepção: “[...] o entendimento em

geral pode ser apresentado como uma faculdade de julgar.” (CRP B 94)

Como vimos no tópico anterior, a imaginação em sua função esquemática faz

uma ponte entre as faculdades superiores e a sensibilidade (Frias 2006:10), resta ainda

o último degrau de nossa descrição descendente pelas faculdades de nossa Gemüt, a

sensibilidade. Seria possível que sua representação dispensasse esta cláusula pétrea do

regramento?

A divisão entre faculdades superiores e inferiores marca decerto uma diferença

de naturezas. No capítulo passado vimos que o juízo em sua autonomia promovia um

tipo de conteúdo particular, a beleza, porém, a autonomia das faculdades inferiores

como a sensibilidade e a imaginação teriam tal capacidade?

Tudo indica que elas ao fim se aliam a uma estrutura de exibição postulada

pela autoconsciência, na unidade da apercepção, mas vejamos em cada caso como isto

acontece.

105

4.0.1 O objeto.

O termo ‘objeto’ encerra acepções diversas, e em certo sentido, até mesmo

problemáticas. O termo em sentido vulgar significa os objetos exibidos objetivamente,

aos quais lidamos no cotidiano, onde podemos depreender deles qualidades estáticas;

cor, posição, textura e forma, ou em movimento; queda, giro, aparecimento, ou seja,

as propriedades conferidas pelas categorias matemáticas. Mas também propriedade de

possíveis inter-relações; dureza, peso, probabilidade e universalidade, ou seja,

propriedades conferidas pelas categorias dinâmicas.

O objeto assim compreendido carrega consigo um caráter de fim de um

processo: “Os conceitos, porém, referem-se, enquanto predicados de juízos possíveis,

a qualquer representação de um objeto ainda indeterminado.” (CRP B 94), estes

conceitos encontram sua forma plena em uma intuição, o que determina o objeto

enquanto tal.

Mas segundo o comentário de A. Ewing existe um problema geral no uso do

termo ‘objeto’ na obra kantiana, que pode fazer confundir o objeto enquanto produto

de uma síntese, do objeto enquanto algo que nossas faculdades tentam determinar mas

que se encontrariam para além do nível da intuição:

[...] aqui, nós precisamos escolher entre admitir uma inconsistência no uso da terminologia por parte de Kant e uma inconsistência fundamental e extraordinária nas visões expressas, eu prefiro a primeira alternativa. (Ewing apud Faggion: 2008)

Segundo Faggion (2008) a origem deste engano remonta da terminologia

filosófica representacionista, onde o conhecimento seria a representação de um objeto

exterior, sem caráter transcendental. Porém, o que a tese kantiana visa é justamente

mostrar uma impossibilidade para a tese representacionista:

É fácil de ver que este objeto apenas deve ser como algo em geral = X, porque nós, fora do nosso conhecimento, nada temos que possamos contrapor a esse conhecimento, como algo que lhe corresponda. (CRP A 104)

Completa ainda Loparic:

106

O “correlato” de nossas representações intuitivas, que na consideração do senso comum é garantida pela existência de um objeto externo, nada mais é do que a consciência da unidade de uma “função [Funktion] de síntese”, mais precisamente, uma “função do entendimento” capaz de gerar padrões unificados de aparecimentos “em conformidade com uma regra” que torne a priori necessária não apenas a reprodução (A 105), mas também a antecipação do múltiplo (A 108). (Loparic 2000 apud Faggion 2008)

E nos diz Wolff:

A função do objeto então é servir como o fundamento da unidade necessária das representações em um juízo. Em outras palavras, objetividade e necessidade, as marcas do conhecimento, são relações de representações entre si, não a um objeto independente.” (Wolff 1973 apud Faggion 2008)

E mais uma vez Kant: “... o objeto, não pode ser coisa diferente da unidade

formal da consciência na síntese do diverso das representações.” (CRP A 105)

Então, quando não significa um objeto do senso comum32, dado à consciência,

o termo se refere, no interior da obra kantiana, a uma unidade formal, lugar lógico

onde a função conceitual sintetiza.

‘é aquilo no conceito do que o múltiplo de uma dada intuição é unida.’ Portanto, a conexão que nós localizamos no objeto não é nada mais nada menos do que a unidade que o entendimento impõe sobre a consciência das representações. (Wolff 1973 apud Faggion 2008)

O sentido controverso do termo seria aquele que remeteria à coisa em si. Este

caráter aparece de fato em algumas passagens. Faggion indica que há de fato um

resquício da terminologia representacionista, porém nos interessa mais resguardar a

filosofia transcendental e adotar a postura inicial de Ewing em admitir que houve uma

inconsistência no emprego do termo. Mas que, dado a estrutura transcendental geral, é

possível corrigir este emprego no interior da própria obra.

Para o debate que ainda levaremos adiante nos interessa ter em mente apenas

estas duas definições de objeto: a) espaço lógico de uma proposição, onde será

recoberto por uma síntese conceitual em um juízo; b) o objeto cotidiano resultado de

uma exibição da apercepção, aquilo que vemos e que Loparic dá o nome de

aparecimento (Faggion 2008).

Em uma definição mais sintética: “objeto, porém, é aquilo em cujo conceito

está reunido o diverso de uma intuição dada” (CRP B 137).

32� O sentido aqui corresponde à diferença no alemão entre Gegenstand e Objekt. “A partir daí, o Gegenstand incondicionado torna-se condicionado pelas sínteses e constitui-se, assim, no próprio Objekt, no objeto transcendental.” (Vaccari 2004:166)

107

4.0.2 Os atos das faculdades transcendentais do conhecimento.

As faculdades encerram propriedades a priori que não se atrelam necessariamente a

uma atividade. Mas alguns atos são essenciais para o remetimento de representações a

outros níveis, até que chegamos a um conhecimento. Vamos tratar de duas atividades,

ligadas ao entendimento e à sensibilidade respectivamente, para ilustrar esta operação

de remetimento das representações.

Pensamento: “Um entendimento no qual todo o diverso fosse dado ao mesmo

tempo pela autoconsciência seria intuitivo; o nosso só pode pensar e necessita

de procurar a intuição nos sentidos.” (CRP B135). “[...] acto de submeter à

unidade a síntese do diverso.” (CRP B 145)

No parágrafo §21 Kant qualifica de orgânico o processo de conhecimento

hierarquizado e unificado sob uma síntese. Assim todas as etapas e processos

representam um e só ato da totalidade de nossa apercepção.

O pensamento aparece como ato geral deste enlace com o intuído. De certo

modo poderíamos falar mesmo que o juízo pensa, o entendimento pensa, a apercepção

pensa. Se atentarmos às citações o pensamento possui um sentido amplo indicando

todo e qualquer ato de remetimento ou síntese, indicando o caráter mediado

necessário do conhecimento.

Síntese da apreensão: “[...] a reunião do diverso em uma intuição empírica,

pela qual é tornada possível uma percepção isto é, a consciência empírica da

intuição (como fenômeno).” (CRP B 160)

A síntese da apreensão é o ato da sensibilidade que funda o intuído, a partir

das intuições puras do espaço e tempo. Anterior a este ato não há nenhuma

possibilidade de estarmos tratando com nenhum nível de nossas faculdades. Esta

síntese contudo não se relaciona com a apercepção, não é síntese conceitual, tão

somente sensível.

Os termos ‘percepção’ e ‘consciência empírica’ contrapõem-se

respectivamente a ‘experiência’ e ‘apercepção’. Como nos primeiros não existe

nenhuma participação conceitual não há também qualquer pensamento, 108

consequentemente não podemos remeter qualquer conteúdo à apercepção. A

percepção precisa de regramento para constituir uma experiência, do mesmo modo a

apercepção que é uma autoconsciência precisa de uma experiência formatada para que

uma mera consciência empírica (fenômeno) se exiba enquanto um conteúdo.

4.1 A representação da sensibilidade: a intuição. A intuição é assim definida por Kant: “A representação que pode ser dada antes de

qualquer pensamento”(CRP B 132). Ou seja, em seu sentido autônomo, não é

autoconsciênte.

Por conseguinte, toda a síntese, pela qual se torna possível a própria percepção, está submetida às categorias; e como a experiência é um conhecimento mediante percepções ligadas entre si, as categorias são condições da possibilidade da experiência. (CRP B 161)

Kant inicia o parágrafo §20 com um título bastante sugestivo e esclarecedor:

Todas as intuições sensíveis estão submetidas às categorias, como às condições

pelas quais unicamente o diverso daquelas intuições se podem reunir numa

consciência. (CRP B 143). A representação da intuição é uma percepção33, que

contudo diferentemente do uso cotidiano da palavra não possui qualquer determinação

do entendimento.

Vamos adjetiva-la como uma representação ‘crua’. Queremos significar com

isto que o estatuto da sensibilidade pela síntese da apreensão que faz ligar um diverso

aos conceitos puros não é capaz de exibir seu resultado. Este apenas serve de matéria

a demais processos: “Numa intuição dada, o diverso se encontra necessariamente

submetido às categorias” (CRP B143). Caracteriza-se assim que, de acordo com a

teoria kantiana, não há nenhum estágio semântico, qualquer juízo, ou consciência do

intuído.

Porém mesmo que ‘cega’ as intuições puras da sensibilidade aplicam uma ação,

a síntese da apreensão. Nestas o tempo imprime uma ligação na continuidade:

33� No artigo de Thierry de Duve que abordamos sucintamente no capítulo anterior, o autor confunde claramente a terminologia kantiana com o uso cotidiano dos mesmos termos. Isto fica patente em seu uso do termo percepção.

109

Se deixasse sempre escapar do pensamento as representações precedentes e não os reproduzisse à medida que passo às seguintes, não poderia reproduzir uma representação completa. (CRP A 102)

O espaço, por sua vez, é uma condição a priori unificadora de toda a intuição

possível, sobre um espaço homogêneo, pois infinito (CRP B 39,40), que implica

igualmente na consideração da extensão de qualquer intuição. Parsons sinaliza para

uma definição kantiana deste sentido do espaço presente na Dissertação:

O conceito de espaço é representação singular que compreende tudo em si, não uma noção abstrata e comum que contem tudo sob si. Pois o que chamamos diversos espaços não são senão partes de um mesmo espaço imenso, as quais se correlacionam por certa posição, e não podemos conceber um pé cúbico senão como delimitado por todos os lados por um espaço circundante (§15 B,2:402). (Parsons 2009:99)

Na síntese da apreensão o espaço determina a forma para qualquer fenômeno, é

“a condição subjetiva da sensibilidade, única que permite a intuição externa” (CFJ B

42).

Portanto o espaço perfaz a condição da exterioridade e o tempo a condição da

interioridade. O espaço é condição da forma e o tempo condição da ligação. São

contudo apreensões do sensível. Trata-se de acoplamentos onde são indexados

propriedades do espaço e do tempo ao múltiplo apreendido.

Acrescenta ainda Kant: “A síntese da apreensão está, por tanto,

inseparavelmente ligada à síntese da reprodução” (CRP A 102). A sensibilidade, de

posse de um diverso, faz indexar a partir das intuições puras do tempo e espaço, que

apenas a imaginação pode estocar de forma esquemática, isto é válido para a

imaginação produtiva e reprodutiva. A imaginação reprodutiva quando atua na

ausência de um objeto faz, como indica a citação, contar com os indexadores da

intuição na mesma medida em que foram apreendidos originalmente, mas retraça-os

em abstrato, já condicionado a conceitos, em uma reprodução de uma imagem. No

caso produtivo a imaginação só possui o recurso de contar com as categorias para a

produção de um conceito do objeto.

Vemos que a intuição seria uma condição necessária para a percepção de

caracteres temporais e espaciais, para qualquer evento sonoro ou musical. Porém o

intuído ele mesmo depende sempre de um regramento para que estes dados que

chamamos de indexadores possam se exibir em uma objetividade.

110

4.2 O produto da imaginação: o esquema.

A imaginação é uma faculdade, mas não no sentido de portar um conteúdo a priori, a

imaginação enquanto faculdade encerra uma atividade, e o produto de uma atividade

não é uma representação, mas tão somente uma regra, como Frias nos diz: “são regras

de determinação da intuição para a sua subsunção sob conceitos [KrV A141-2 B180-

1, 146]” (Frias 2006:9)

A pretensão destes subtópicos é tratar das representações das faculdades, porém

nenhuma representação é cumprida pela imaginação, o que faz Kant adjetiva-la

enquanto uma faculdade “cega” (CRP B 103). Isto se explica também pelo fato de ser

tida como uma faculdade inferior, mais afeita ao sensível por lidar com o múltiplo da

intuição. De toda forma, mesmo não constituindo uma representação, sua ação acaba

por ilustrar as representações, superiores e inferiores de nossa mente.

Vimos no esquematismo como as noções de tempo e espaço se impregnam em

todo objeto, e, como todo intuído é subsumido por conceitos. Já a imaginação não

confere qualquer tipo de dado, conteúdo, ou característica, que seja distinguível no

conceito do objeto. Isto é explicado pelo caráter abstrato que o esquema encerra, é

uma regra de confecção. Estes esquemas são somente mapas para a incidência dos

conceitos do entendimento, e em consonância com o entendimento promovem uma

síntese transcendental, constituindo esta a primeira aplicação das categorias a objetos

intuídos (CRP B 152).

A imaginação produtiva refere-se a uma produção (CRP B 152), em uso pleno

e livre da faculdade, que não se liga a nenhum critério de verdade ou falsidade e

conseqüentemente não pode reivindicar nenhuma universalidade, mas tão somente se

pôr a disposição de uma confecção regrada do entendimento. A imaginação

autonomamente pensada evoca a imagem de faculdade ‘cega’, ela produz variações

sem contudo projetar qualquer regra.

No caso reprodutivo é possível ligar objetos entre si, e mesmo os traçar criando

imagens em nosso sentido interno. Mas a imagem, diferentemente do esquema,

poderia ser entendida como uma representação autônoma?

Não podemos pensar uma linha sem a traçar em pensamento; nem pensar um círculo sem o descrever, nem obter a representação das três dimensões do espaço sem traçar três linhas perpendiculares entre si [...] atentemos no acto da síntese do diverso pelo

111

qual determinamos sucessivamente o sentido interno e, assim, na sucessão desta determinação que nele tem lugar. (CRP B 154)

É importante apenas uma pequena ressalva sobre o “sentido interno” (CRP B

153). O sentido interno surge como contraste ao que Kant nomeia de ‘sentido externo’

(CRP B 37), ou seja, a capacidade de nossa mente em representar objetos num mundo

externo. O sentido interno trataria de uma representação que não se encontraria

atualizada intuitivamente, é uma produção subjetiva que está amparada pela

apercepção sem contudo promover uma síntese atual com o intuído.

O ato de trazer uma imagem move um esquema requerido pelo entendimento,

de um conceito anteriormente sintetizado, que requer o esquema novamente a uma

exibição interna. O que se exibe não é a imaginação nem o esquema da imaginação

mas uma imagem que é garantida pelo conceito do entendimento e possibilitada pela

imaginação ter impressa em sua faculdade a forma da intuição.

Esta relação reprodutiva fica evidenciada na prática de se escutar com o

ouvido interno34, na leitura de partituras, em uma lembrança na ausência de suporte

material e mesmo na criação imaginativa. Nelas uma possibilidade reprodutiva da

imaginação se move a criar uma imagem musical apenas para o sentido interno. Para

isto usamos esquemas de experiências anteriores e as dispomos ao sabor de nossa

imaginação, seja para lembrar, ler ou interpretar uma partitura. Neste caso o ato da

imaginação não é quem determina a imagem, ela está alicerçada em conceitos

anteriormente formatados, os quais a imaginação tem capacidade de dispor sem

contudo ter uma intuição atualizada, e os remete diretamente à apercepção.

A imaginação produtiva, para gerar uma objetividade, necessita de um

direcionamento determinante no sentido de abarcar uma intuição dada, e assim não

recorre, necessariamente, a um esquema já dado, mas esquematiza o atualmente

intuído. No caso reflexionante a imaginação permaneceria com o montante intuído,

mesmo para o caso das ideias estéticas, porém como o entendimento não determinaria

qualquer representação, estes de certo não se tornariam auto-conscientes.

34� ‘Ouvido interno’ é um termo usual na pedagogia musical e curiosamente diz respeito a exatamente o que o termo kantiano ‘sentido interno’ expressa, uma experiência não referenciada na sensibilidade, mas apenas sob esquemas da imaginação. A pratica de perceber música com o ouvido interno não se restringe apenas aos estudantes e suas práticas de leitura, a simples lembrança de uma música que podemos escutar internamente não é mais que um uso do ouvido interno. O termo pode significar também um aparato de nossa fisiologia, mas não estamos traçando nenhum paralelo com o órgão da audição, mas apenas de nossa habilidade mental.

112

4.3 A representação do entendimento: o conceito.

O conceito é uma representação privilegiada do ponto de vista do conhecimento, ele

nos faz conhecer objetos (CRP B 74).

Desta maneira fica provado que a síntese da apreensão, que é empírica, tem que ser necessariamente conforme à síntese da apercepção, que é intelectual e está inteiramente contida a priori na categoria. É uma e a mesma espontaneidade, que ali sob o nome de imaginação, aqui sob o de entendimento, promove a ligação no diverso da intuição. (CRP B 163)

Já distinguimos alguns sentidos do termo ‘conceito’, que pode se ligar tanto a

um conceito empírico como a um conceito puro. No caso dos conceitos puros não

estaríamos tratando de representações:

Os conceitos puros do entendimento relacionam-se pelo simples entendimento com objectos da intuição em geral, ficando indeterminado se se trata de nossa intuição ou de qualquer outra (sic), contanto que seja sensível; são, portanto, simples formas de pensamento, pelas quais ainda se não conhece nenhum objeto determinado. (CRP B 150)

A representação sintetizada pela faculdade do entendimento é um conceito

empírico. Fazer conhecer um objeto é determiná-lo conceitualmente e assim a

representação do entendimento enquanto um produto de conhecimento atesta este

vínculo necessário de nossas faculdades:

Fora da intuição, não há outro modo de conhecer senão por conceitos. Assim, o conhecimento de todo o entendimento, pelo menos do entendimento humano, é um conhecimento por conceitos, que não é intuitivo, mas discursivo [...] O entendimento não pode fazer outro uso destes conceitos a não ser, por seu intermédio, formular juízos. (CRP B 93)

Este conceito aparece na primeira Crítica como o resultado de uma função do

entendimento para capturar o múltiplo da imaginação. Na Lógica vemos que existem

ainda mais operações que determinam um conceito:

Ora, se “os nossos conceitos são notas características” e “pensar é representar por meio de notas características”, então, o nosso pensamento representa por meio de conceitos [Lógica AK 58/A85]. E um conceito é gerado quanto à sua forma por meio dos três atos lógicos do entendimento: a comparação, a reflexão e a abstração. (Souza 1996:5)

113

O estabelecimento de um conceito empírico se condiciona às categorias,

matemáticas e dinâmicas, e outros processos que são objeto da Lógica, como a

comparação, reflexão e abstração. Todos eles coadunam um princípio discursivo do

conhecimento que podemos ter acesso nas duas distinções do conceito:

Primeiro, pode-se tratar de uma distinção sensível. Esta consiste na consciência do múltiplo na intuição. Vejo, por exemplo, a Via Láctea como uma faixa esbranquiçada; os raios de luz de cada uma das estrelas que nela se encontram devem necessariamente ter chegado aos meus olhos. Mas a representação era apenas clara, e é só pelo telescópio que ela se torna distinta, porque agora enxergo cada uma das estrelas contidas nesta faixa leitosa.

Segundo, pode-se tratar de uma distinção intelectual – a distinção em

conceitos ou distinção do entendimento. Esta baseia-se no desmembramento do conceito relativamente ao múltiplo que está contido nele. É assim, por exemplo, que estão contidos no conceito de virtude, enquanto notas características, os seguintes conceitos: 1) o conceito da liberdade, 2) o conceito do apego as regras (o dever), 3) o conceito da superação da força das inclinações, na medida em que entram em conflito com essas regras. (Lógica A 44)

Esta é a caracterização geral da representação do entendimento, que já é um

conhecimento e que implica em juízos determinantes. Estes são resultados da ação

lógica que tem lugar no esquematismo, que segundo Longuenesse tem a função de:

“comparar esquemas, graças aos três atos conjuntos da comparação propriamente dita,

da reflexão e da abstração, é acima de tudo suscitar estes esquemas na tensão mesma

de suas identidades e diferenças.” (Longuenesse apud Souza 1996:5)

Enquanto produto final do processo de conhecimento a representação

conceitual faz cumprir com a operação cognitiva da recognição. A recognição é a

síntese do conceito:

Assim, a apreensão intuitiva ordena, a reprodução imaginativa conecta e o reconhecimento conceitual unifica (sequência cumulativa); mas a primeira está inseparavelmente ligada à segunda (KrV A102, 132), e a segunda é inútil sem a terceira (KrV A103, 132-3) [sequência pressuposicional]. (Frias 2006:47)

Neste sentido a recognição passa a ser o ato do conhecimento e todo conhecer

um ato de recognição. Ou seja, reconhecer uma unidade a partir de igualdade, e

limites a partir de diferenças.

O objeto musical representado originariamente, e não apenas em sentido

114

reprodutivo (quando reproduzimos uma música na memória), encerra estas mesmas

características de unidade conceitual, e portanto de um produto recognitivo.

De acordo com as condições estabelecidas para um objeto em geral, nossa

aposta consiste em procurar entender o modo como um objeto musical vem a se

caracterizar como um objeto de forma recognitiva.

5. Limites, interferências e ultrapassagem das legalidades.

Neste último tópico pretendemos reunir o montante de ações de nossa Gemüt e

descrever sucintamente quais os modos previstos pela filosofia kantiana a relacioná-

los, quais os modos possíveis e mesmo impossíveis. Falemos então dos ‘limites’ dos

estatutos que analisamos até aqui.

A ultrapassagem de um limite certamente pode encerrar tanto um novo campo

como campo algum, simplesmente um contra senso. Um exemplo de ultrapassagem

estaria em se usar as categorias do entendimento a incluir no conceito do objeto

conteúdos que não estão dados em seu estatuto, como por exemplo dizer que um

objeto é objetivamente belo (CFJ:23). Segundo Kant, quando predicamos beleza de

um objeto não estamos observando atentamente nem ao estatuto da legalidade do

objeto, nem ao estatuto da beleza.

Um caso bastante diferente seria o de se buscar uma imagem para uma idéia

da razão. Carecendo esta, por imposição de seu limite, de uma expressão sensível,

Kant percebe que por uma interferência do domínio lógico seria possível através da

analogia promover uma exibição simbólica, que não pode ser tida como uma exibição

direta e real, mas, por interferência de legalidades permite ao menos um tipo de

sensificação (Verssinlichung) deste conteúdo.

De modo geral Kant parece aberto a descortinar interferências entre as

legalidades, como vemos na introdução da terceira Crítica:

Ora, ocorre que as nossas ações morais implicam a produção de um efeito no mundo físico; aquilo que avaliamos moralmente é algo que, causado por um agente livre, se dá entretanto na natureza segundo as categorias do entendimento. Deve haver, portanto, um ponto de contato necessário entre estes dois mundos – os domínios das filosofias prática e teórica – que se encontra, precisamente, no local onde a ação moral toma lugar efetivo no espaço e no tempo. (Vieira 2003:54)

115

A divisão de naturezas de nosso saber entre estético, lógico e moral, e a

autonomia destes campos não impede que haja certas áreas de interferências, que

como vemos, estão restritas a se prolongarem para além de seus limites. O que o

projeto crítico faz é delimitar as competências e limitar as pretensões, pois não se

autoriza de imediato qualquer interferência.

O juízo teleológico é um caso claro de interferência entre domínios diversos,

mas que atuam de maneira positiva para o estabelecimento da ciência biológica, por

exemplo:

Nada é por acaso. Na verdade tampouco podem renunciar a este princípio teleológico, como em relação ao físico universal porque, assim como se se abandonasse o último não ficaria nenhuma experiência, assim também não restaria nenhum fio orientador para a observação desta espécie de coisas da natureza que já havíamos pensado teleologicamente sob o conceito de fim natural. (CFJ:296,297)

Outro caso acontece na exibição simbólica, onde processos analógicos podem

fazer com que misturemos legalidades:

A consideração desta analogia é também habitual ao entendimento comum; e nós damos frequentemente a objetos belos da natureza ou da arte nomes que parecem pôr como fundamento um ajuizamento moral. Chamamos edifícios ou árvores de majestosos ou suntuosos, ou campos de risonhos e alegres... (CFJ:260)

Aqui há uma passagem “sem um salto demasiado violento” (CFJ:260) a partir

de formas análogas dos respectivos juízos. Não há qualquer incremento para o objeto

ou para o prazer estético, mas segundo Kant poderia haver uma sensibilização para o

“interesse moral habitual”.

Estes recursos de interferências mútuas são sempre bem vindos quando são

capazes de nos fazer compreender um fenômeno ou mesmo a natureza do sujeito

transcendental, mas apenas na medida em que temos igual compreensão dos limites

destas aplicações.

Em um sentido totalmente diferente, e aparentemente simples, podemos

pensar no juízo determinante. Já está impresso em seu juízo uma união de duas

naturezas totalmente distintas, da sensibilidade e do entendimento. A legalidade do

entendimento já lida com uma série de processos heterogêneos entre si - ‘elementos

heterogêneos do conhecimento’ – e não há de antemão nenhuma garantia de síntese. A 116

estrutura teórica de Kant prevê esta dicotomia para fundar seu discurso.

É certo que tais exigências do conceito e suas subtilidades em contraste com a

intuição criam o pano de fundo para um longo e árduo processo do conhecimento.

Estabelece-se assim um campo de forças que demanda configurações para sua

resolução, em sentido determinante:

Assim, o critério da possibilidade de um conceito (não do objeto deste) é a definição, em que a unidade do conceito, a verdade de tudo o que dele pode ser imediatamente derivado e, por fim, a integralidade de tudo o que dele se extraiu, constituem o que é requerido para a elaboração de todo o conceito; do mesmo modo, também o critério de uma hipótese consiste na inteligibilidade do princípio de explicação admitido, ou na sua unidade (sem hipótese subsidiaria), na verdade das conseqüências que dele derivam (concordância das conseqüências entre si e com a experiência) e, por fim, na integralidade

do princípio explicativo em relação a estas conseqüências, que reconduzem a nada mais nada menos do que o que foi admitido na hipótese e reproduzem analiticamente a posteriori o que foi sinteticamente pensado a priori e com elas concorda. (CRP B 114,115)

Para o conhecimento, um limite pode encerrar duas acepções; lugar até onde

algo se inscreve, e, a resistência máxima a qual algo pode se manter íntegro.

O ponto limite de integridade de um conhecimento encontra-se em sua forma

conceitual empírica, e o que desta forma pode-se ainda, em concordância com o

intuído, deduzir ou inferir. Tendo este limite respeitado, a forma hipotética do

conceito se apresenta determinante, caso este limite seja impossibilitado pela intuição,

certamente o conceito se mostrará meramente hipotético e sua aplicação substituída,

requerendo um novo esquematismo.

O conceito é uma função delimitada onde se inscreve um conhecimento. As

confirmações empíricas a depender de seu resultado determinam ‘de fora’ a

possibilidade de se manter representações sobre seu núcleo. A forma hipotética de um

conceito é sempre vazia, a possibilidade do conhecimento reside portanto igualmente

em um intercâmbio entre esquemas conceituais e intuições.

Assim, pode alguém pensar no conceito de ouro, além do peso, da cor, da tenacidade, ainda a propriedade de não enferrujar, enquanto outro talvez nada disso saiba. Utilizam-se certos caracteres apenas na medida em que são suficientes para distinguir; novas observações, por sua vez, fazem desaparecer alguns e acrescentam outros; portanto, o conceito nunca se mantém entre limites seguros. (CRP B 756)

A condição do conhecimento sob um fundamento heterogêneo resulta em uma

117

estrutura que não pode descartar um colapso ou mesmo fracasso dos limites

estabelecidos para um conceito.

O paralelo com a estrutura das ciências fica evidente, assim como a

possibilidade última para qualquer tipo de conhecimento – dentro de um leque que vai

da perfeição lógica de um objeto (Lógica A 46) até seu colapso – estar alicerçada na

capacidade da apercepção em trazer sínteses ao nível de nossa consciência.

Porém, achamos que o nosso pensamento sobre a relação de todo o conhecimento ao seu objeto comporta algo de necessário, pois este objeto é considerado como aquilo a que faz face; os nossos conhecimentos não se determinam ao acaso ou arbitrariamente, mas a priori e de uma certa maneira, porque, devendo reportar-se a um objeto, devem também concordar necessariamente entre si, relativamente a esse objeto, isto é, possuir aquela unidade que constitui o conceito de um objeto. (CRP A 104, 105)

Ora esta unidade da regra determina todo o diverso e limita-o a condições que tornam possível unidade da apercepção, e o conceito dessa unidade é a representação do objeto, que eu penso mediante predicados [...] (CRP A 105)

Todo conhecimento exige um conceito, por mais imperfeito ou obscuro que possa ser; este conceito é, porém, quanto a forma, algo universal e que serve de regra. Assim o conceito de corpo, segundo a unidade do diverso que é pensado por seu intermédio, serve de regra ao nosso conhecimento dos fenômenos externos. (CRP A 106)

O que queremos ressaltar aqui é que, para a apercepção, uma lei da natureza se

apresenta não como um objeto, mas como uma teoria. Ou seja, ela não é objetiva

enquanto algo presente no mundo, mas enquanto um juízo de juízos sobre uma

experiência, e obviamente, corre todos os riscos de uma hipótese, como Kant

ressaltou. O objeto de um conceito empírico surge para a apercepção como um objeto

real, como ‘coisa’, não deixando por isto de ser um juízo:

Um juízo é a representação da unidade da consciência de diferentes representações, ou a representação da relação das mesmas, na medida em que constituem um conceito. (Lógica A 156)

O conhecimento possui exigências a priori, ao mesmo tempo em que o

conceito possui limites de aplicação, e o apreendido, determinação alguma. A

hierarquia implicada nesta estrutura, diremos mesmo do estatuto da Gemüt, possui

uma disciplina a qual não podemos nos desviar, para termos acesso ao menos a uma

experiência qualquer.

O caso limite de uma experiência coincide com a incapacidade do regramento.

118

E este se torna um limite fundamental para qualquer experiência que um sujeito por

ventura possa ter. O caso de não haver regramento, de não haver determinação,

acarretaria a simples falta de conteúdo para a autoconsciência:

Tornar-se-ia essa relação, para nós, sem dúvida, uma intuição vazia de pensamento, mas nunca um conhecimento, portanto, tanto como nada. (CRP A 111)

Estas, tão pouco, pertenceriam à experiência alguma; ficariam, por conseqüência, sem objeto e apenas seriam um jogo cego de representações, isto é, menos do que um sonho. (CRP A 112)

Todo conhecimento bem como um todo do mesmo tem que ser conformes a uma regra. (A falta de regra é ao mesmo tempo a irrazão). (Lógica Ak113)

O limite imposto pela apercepção apresenta-se como a condição última para o

sujeito, independente de vir a confluir legalidades, a apercepção se coloca como uma

condição originária. Seu cumprimento significa que um dado se enquadrou em uma

de suas inúmeras possibilidades que abordamos ao longo destes dois capítulos. Seu

descumprimento implica inexistência, ‘menos que um sonho’, ‘tanto como nada’.

5.1 Pensando o fenômeno musical a partir de um modelo recognitivo do conhecimento.

Ao inserirmos o objeto musical em uma perspectiva estética típico kantiana, resulta

que o juízo estético puro excluiria, por força de seu estatuto, as dimensões

determinantes deste objeto no ajuizamento da beleza. Estaria excluída a experiência

do material e toda uma série de referências objetivas que ao fim não podemos subtrair

sem que se perca o próprio objeto em questão.

Se aderirmos ao modelo do gosto puro ficaríamos assim irremediavelmente

atrelados a um estatuto, que como já avaliamos, não é capaz de se ligar de modo

direto, ou mesmo interessado, aos conteúdos das predicações feitas sob o material

sonoro, base audível para a experiência musical. Neste sentido, nada do musical

estaria sendo especificado, ligado ou comprometido no ajuizamento da beleza, e

apenas a estrutura do gosto novamente reiterada. O modelo adotado atrairia os

problemas originais do estatuto estético kantiano que vimos no capítulo anterior.

Se partimos do modelo recognitivo referido ao conhecimento e aos objetos

119

empíricos em geral, cumprimos, inicialmente, com uma exigência da apercepção, de

promover uma síntese em sentido determinante. Isto já assegura um lastro

fenomenológico com aquilo que podemos predicar enquanto um objeto musical e uma

intuição correspondente.

Escapamos assim de certos embaraços que o juízo da beleza possui em relação

à estrutura da apercepção, pois não parece cumprir nenhuma das exigências postas na

primeira Crítica, e como vimos, nos limites ali traçados, uma intuição que não seja

regrada, um conteúdo que não cumpra uma síntese pelo juízo seria como ‘um nada’

ou ‘menos do que um sonho’.

Resta nesta equação uma origem do desprendimento deste sentimento para

uma exibição na apercepção sem contudo contar com qualquer exigência

anteriormente estabelecida pela própria apercepção, visto que o estatuto do juízo da

beleza não propõe nenhum tipo de abstração de um objeto, mas um estatuto que

escapa da objetividade anteriormente à sua determinação.

Vimos, com efeito, que os conceitos são totalmente impossíveis, e nem podem ter qualquer significado, se não for dado um objeto ou a esses próprios conceitos ou, pelo menos, aos elementos de que são constituídos e, por conseguinte, não se podem referir a coisas em si (sem considerar se nos podem ser dadas e como); vimos, além disso, que a única maneira pela qual são dados objetos é uma modificação da nossa sensibilidade e vimos que, por fim, os conceitos puros a priori devem ainda conter, além da função do entendimento na categoria, condições formais da sensibilidade (precisamente do sentido interno), que contém a condição geral pela qual unicamente a categoria pode ser aplicada a qualquer objecto. (CRP: B 178,179)

Se abdicarmos destas exigências do conhecimento a considerar a estrutura

estética da beleza, esta, dado as exigências para toda a apercepção, pareceria tratar

apenas de um estatuto particular de um uso autônomo do juízo de gosto, independente

de toda e qualquer ação normal das faculdades entre si, mas um vôo solo que diria

respeito apenas a si mesmo, e não a qualquer construto humano como objetos de arte.

Em uma anamnese de escutas musicais, seria verdadeira uma experiência onde

tendemos a excluir os dados objetivos e os juízos que empreendemos sobre os dados

musicais a dar espaço para um juízo reflexionante? Ou diferentemente, nossa

constante atenção na obra faz com que interpretemos cada vez mais as séries de

eventos de modo que cada subdivisão tome formas cada vez mais significativas para

nós e a forma musical como um todo se torne cada vez mais compreendida através

das escutas?

120

A segunda hipótese nos parece mais plausível e acessível, inclusive, um acesso

que consta em trabalhos da psicologia como de Bigand e Pineau (1996) e em diversas

disciplinas musicológicas de análise como vemos por exemplo em Falcón (2010). A

primeira hipótese, menos provável, necessitaria ainda de um longo trabalho analítico

sobre a relação entre juízo de gosto e objetos, em sentido pré-filosófico, para então

repensar o estatuto estético que toma apressadamente o sentido do desinteresse e o

transporta até um estatuto que o torna inefável. Diferente disso, nos apoiamos em uma

experiência imediatamente reconhecível e de fácil reivindicação e comprovação.

Porém esta regra empírica da associação, que se tem de admitir universalmente, quando diz que tudo na serie de acontecimentos está de tal modo sujeito a regras, que nunca sucede alguma coisa sem que tenha sido precedida por outra a quem sempre segue, esta regra, considerada como lei da natureza, pergunto: Sobre o que repousa? (CRP: A 112,113)

Segundo os meus princípios, esta afinidade é bem compreensível. Todos os fenômenos possíveis pertencem, como representações, a toda autoconsciência possível.” (CRP: A 112,113)

Enquanto um fenômeno compreendido pela autoconsciência, a música lança

mão de sínteses que devem ser trazidas a uma exibição esquemática de acordo com o

modelo recognitivo, o modelo clássico do conhecimento traçado na primeira Crítica.

Creditamos ao estatuto do juízo determinante e seus princípios um fundamento

consonante à prática musical instrumental clássica.

Porém a possibilidade, mesmo a necessidade destas categorias, repousa sobre a relação que toda a sensibilidade, e com ela todos os fenômenos possíveis, tem com a apercepção originaria, na qual tudo necessariamente deve estar conforme às condições da unidade completa da autoconsciência, isto é, deve estar submetido às funções gerais da síntese, a saber, da síntese por conceitos, na qual unicamente a apercepção pode demonstrar a priori a sua identidade total e necessária.” (CRP: A 111,112)

Os problemas levantados no capítulo I não dão esclarecimento quanto a

remetemos à estrutura recognitiva conteúdos musicais por meio de regramento. Isto

vem reforçar nossa decisão sobre o parágrafo §9 da terceira Crítica em interpor um

regramento anterior à ação do juízo de gosto puro. O intuito é duplo. O primeiro seria

resguardar um discurso sobre a beleza assentado em uma possibilidade de a beleza ser

dita de um objeto de arte, o que o estatuto do juízo da beleza torna ambíguo ou

mesmo impossível. O segundo seria o de manter uma correção na legalidade do

estatuto da beleza em relação ao estatuto maior da apercepção, que exige sínteses para 121

que uma zona de inconsciência seja superada. A possibilidade de que um gosto venha

ser puro, a despeito de qualquer outro processo, regramento, referencia ou finalidade

cumprida, desautoriza a apercepção de ter para si qualquer conteúdo, inviabilizando

até mesmo uma investigação transcendental inicial, pois não haveria um conteúdo

pré-filosófico a investigar.

Na próxima seção trataremos de demonstrar como uma experiência musical

conta com todas as distinções lógicas, sínteses e exibições comuns a qualquer

conhecimento trivial, e como estas relações se tornam necessárias para que venhamos

a ter uma experiência qualificada enquanto musical, e o quanto sua condição de

possibilidade não pode dar lugar ao estatuto do juízo estético sem que tudo o que

confere ‘musicalidade’ ao musical se perca.

122

Seção 2

Extrato lógico-musical

“Da análise do princípio lógico constituinte da experiência musical instrumental clássica"

123

Capítulo III Análise do estatuto musical

Alle Gestalten sind ähnlich, und keine gleichet der andern; Und so deutet das Chor auf ein geheimes Gesetz, Auf ein heiliges Rätsel35.

(J.W. Goethe)

Este capítulo trata de elucidar um vínculo entre o objeto musical e uma regra de

conceituação dada pela estrutura do juízo determinante, universalmente válida para

qualquer conteúdo. Empreendemos esta análise por compreender que uma experiência

musical, do ponto de vista epistemológico, deva partir do ponto comum de uma

estrutura geral do conhecimento em conexões lógicas, se assim entendermos que o

modelo transcendental seria o equivalente mais próximo do paradigma clássico

musical.

Deduz-se assim que os elementos que identificamos em uma escuta possuem

uma condição a priori dada pelo entendimento, e esta, reversamente, preenche a

faculdade que condiciona a possibilidade para a experiência musical.

Tal posicionamento incorre em um desacordo com certos princípios do juízo

da beleza, e com o juízo estético de modo geral, que travam um estatuto bastante

particular e diferenciado para os objetos da arte e para a música. Tal desacordo não

passa despercebido por Kant que dedica um parágrafo na terceira Crítica a resolver

esta questão: §9 Investigação da questão, se no juízo de gosto o sentimento de prazer

precede o ajuizamento do objeto ou se este ajuizamento precede o prazer.

Nosso trabalho se situa, intencionalmente, em um lugar preciso do argumento

kantiano. Estamos temporalmente localizados na precedência do juízo do objeto sob o

juízo de gosto. Posição que Kant considera impossível:

Este ajuizamento simplesmente subjetivo (estético) do objeto ou da

35� Todas as formas são similares e nenhuma é a mesma; E assim o coro aponta para uma lei secreta, para um enigma sagrado.

124

representação, pela qual ele é dado, precede, pois, o prazer no mesmo objeto e é o fundamento deste prazer na harmonia das faculdades de conhecimento. (CFJ: 29)

Se, como Kant indica, a beleza se vincula apenas a um estado subjetivo

provocado por um jogo no interior de uma estrutura de ‘conhecimento em geral’,

como explicar experiências que dizem respeito de partes de um objeto musical, de

partes enquanto belezas, de totalidades enquanto belezas, além de relações musicais

que podemos inclusive apontar em uma partitura, aspectos objetivos e comunicáveis

por conceitos que não estão contemplados pelo estatuto do juízo estético?

Para demonstrar a precedência do ajuizamento lógico em relação ao estético –

identificando a música não apenas a um sentimento de prazer em si (é belo!) – nossa

análise se detém no cumprimento dos princípios lógicos da primeira Crítica e da

Lógica (2003). Não se trata de ensaiar uma união entre as esferas lógica e estética,

mas aplicar heterodoxamente o horizonte lógico, desautorizando assim qualquer

precedência estética para a análise que se segue.

A condição de identificação que se impõe ao nosso objeto musical passa a ser a

mesma do entendimento em geral: “[...] o entendimento é a faculdade de pensar, quer

dizer, de submeter a regras as representações dos sentidos” (Lógica A 2). Nosso

trabalho se resume em escrutinar a natureza de uma regra das representações dos

sentidos pertinentes à experiência musical. A tarefa passa a ser uma tarefa lógica,

“visto que a tarefa da lógica é, como observamos, tornar distintos os conceitos claros

[...]” (Lógica A 94).

Vamos nos ocupar em ‘tornar distintos’ estes conceitos que se encontram

implícitos em nossa escuta, e convém começar da parte mais geral de qualquer

distinção, de seu horizonte.

Determinar um horizonte (lógico, prático ou estético) a um dado objeto não é

simples. Por exemplo, o horizonte lógico de um grupo de fenômenos como os objetos

‘visuais’, ‘técnicos’ e ‘sem pretensões artísticas’, possui uma confluência de tipo

complexa. Mesmo neles o horizonte lógico não consegue exaurir todas suas

determinações, mesmo que não intrínsecas ao seu componente objetivo. Esta

confluência pode ser observada em um simples conceito empírico como no caso de

uma garrafa.

Para uma dada garrafa, como retirar o horizonte prático de sua utilidade, e

mesmo o estético de nosso julgamento, e como não o conceber enquanto um conceito

125

lógico? Problemas análogos se passam também com o objeto musical, por exemplo,

em uma música onde em seu conceito resida uma ‘fruição graciosa das gentes em

ambientes de convívio’. De outro lado, uma música dita pura, música pela música,

pouco contará com a esfera prática e recairá portanto com maior peso em suas

determinações lógicas ou estéticas. Podemos dizer que há uma idiossincrasia

pertinente a cada produto da consciência, e que estes estabelecem uma confluência

específica entre horizontes.

Em uma análise da distinção lógica do objeto musical temos que demonstrar

como as definições: claro e distinto, podem concorrer para os conceitos implicados na

escuta musical, ou em caso contrário, se não seriam estes ainda indistintos: “se

estamos conscientes da representação inteira, mas não do múltiplo que está nela

contido, então a representação é indistinta.” (Lógica A 42)

A distinção lógica é uma das perfeições do conhecimento aplicada a um

conteúdo sensível: “esta é a distinção na intuição, onde, por meio de exemplos, um

conceito pensado abstratamente se vê apresentado ou elucidado in concreto.” (Lógica

A 50). Tal característica se explicita sob o condicionado da relação de conhecimento,

ou seja, o objeto: “se temos consciência de que o objeto intuído é uma casa, devemos

necessariamente ter também uma representação das diferentes partes desta casa –

janelas, portas etc.” (Lógica A 42)

Tal critério prevê uma relação de tipo todo/parte, ao qual em uma percepção

distinta de um objeto musical deverá ser igualmente identificado, em sua forma,

funções pertinentes a esta relação todo/partes, afinal a porta por si mesma é uma

função.

Ainda em uma posição intermediária, podemos pensar no artesanato, e em

atividades técnico-criativas em geral. Notamos que em todas estas atividades,

terminologias especializadas emergiram atreladas a ações, a distinções sensíveis, a

ferramentas, a efeitos e categorizações. Tal incremento das atividades denota um

caráter distintivo que foi paulatinamente tomando lugar.

No caso musical não é diferente, sua terminologia especializada, mesmo com

variantes através dos tempos, atesta sempre uma especialização e distinção da escuta,

dos elementos e das ferramentas. Podemos observar, por exemplo, na música

medieval, uso de terminologia para combinações simples entre notas: Virga (1 nota),

Clivis (2 notas, descendente em grau conjunto), Pes (2 notas, salto ascendente), etc.

Outro tipo de diferenciação ocorre na música barroca, na correspondência entre

126

contornos melódicos e os afetos, e sobretudo na eleição dos modos maiores e menores

e todas as distinções que decorreram na música tonal. A emergência de termos mais

abstratos, sobretudo das técnicas de composição, vão tomando lugar: motivo, tema,

frase, seção, desenvolvimento, contra-tema, variação. E então, designações da forma

enquanto portadoras de partes cada qual funcionalizadas, como a missa e a sonata.

Longe de comprovar um vínculo conceitual através de um simples paralelismo,

embora se mostre bastante conseqüente, ilustramos aqui apenas os critérios mais

gerais que permeiam o lógico. Apenas este caráter já é suficiente para que ascendamos

de uma análise da afecção subjetiva para condições objetivamente válidas. De um

lado, enquanto distinção sensível, dada em uma experiência do objeto musical intuído,

e de outro enquanto distinção intelectual, “distinção em conceitos ou distinção do

entendimento” (Lógica A 44), o objeto musical deve conter regramentos que

possibilitaram a qualificação da escuta e a forma dos objetos musicais.

Não se trata de encontrar um conceito puro ao qual corresponda uma

possibilidade a priori da musicalidade, nem de uma análise do ‘conceito de música’,

mas sim da constituição de um objeto, do uso empírico do conceito a constituir o

objeto musical em uma experiência.

Partimos deste lugar, da escuta de um objeto musical, constituído por uma regra,

aplicada contingencialmente ao fenômeno sonoro, ancorado todavia em uma

capacidade universal a priori de significarmos objetos, e que apenas no caso é

referido ao musical.

127

1. Os diversos modos em que podemos reivindicar conceitos para uma experiência: a recognição aplicada a objetos.

Começamos recorrendo novamente ao argumento de Dieter Henrich. Como

interpretação geral do papel do entendimento Henrich destaca que tanto na primeira

quanto na segunda edição da primeira Crítica o entendimento era definido em uma

dupla via; enquanto uma possibilidade e validade a priori para a experiência, e

enquanto via exclusiva de aplicabilidade para objetos empíricos. (Klotz 2007:148)

O fato legitimador da dedução acaba por ser toda e qualquer experiência

empírica. Poder-se-ia demonstrar, a partir da primeira Crítica, que para todo objeto

dado em uma apercepção categorias lógicas do entendimento poderiam não somente

ser identificadas sob análise36, mas seria forçoso deduzir-se uma estrutura

transcendental.

Se a condição inicial é que haja um objeto em uma apercepção, então

cumprimos esta condição para o objeto musical. Neste sentido a possibilidade de

nomearmos eventos musicais e suas partes constitutivas viria a contribuir para esta

atestação de ser o objeto musical também um fato legitimador para o entendimento.

Para explorar um pouco este caráter objetivo vamos montar um rápido

paralelo entre o que uma linguagem especializada faz e diz e a possibilidade de se

criar e nomear. Obviamente estas linguagens surgem de maneira sui generis de acordo

com as necessidades e possibilidades vigentes em um dado contexto, mas queremos

apenas demonstrar certa ligação entre uma teoria do conhecimento e a nomeação de

objetos no sentido de ordenar uma atividade em uma nomenclatura. Se pensarmos que

a nomenclatura vem a sistematizar os objetos de uma atividade, ou, categorizar

procedimentos, ela não faz nada mais nada menos do que processar uma distinção

lógica, ou seja, é um componente conceitual.

Este será apenas um caminho que nos levará a compreender como o termo

‘objeto’ pode ser facilmente utilizado para designar fenômenos físicos, sonoros ou

visuais, assim como os musicais e pictóricos, e como deste estado geral da

36� “O jurista tem que demonstrar objetivamente seus enunciados sobre os fatos relevantes acerca da origem da posse (o que acontece por meio de documentos e depoimentos). Contudo, a dedução transcendental só pode apelar para um certo ponto de vista – a perspectiva não-humiana da "reflexão – para fazer valer seus "fatos" legitimadores. Assim, não surpreende que a concepção do apelo para um "ponto de vista" fundamental para a filosofia transcendental tenha se tornado central para a discussão metodológica já pouco tempo depois da publicação da Crítica da Razão Pura.” (Klotz 2007:164)

128

objetividade muitos conceitos empíricos se somam.

Compreendendo uma nomenclatura enquanto termo conceitual, vejamos como

nomes e conceitos se comportam. Como nos lembra Deleuze (1992), conceito, hoje,

pode se referir à vanguarda da produção de bens de consumo, da moda e do design.

Existe, mesmo que Deleuze discorde, um modo de pensar que legitima tal uso do

termo, e de todo, difere de outros substratos que definiriam ‘conceito’ contrária ou

contraditoriamente. O que nos importa aqui é que mesmo para bens de consumo,

mesmo para dados sensíveis, uma nomenclatura é criada, e independentemente do

modelo epistemológico que estejamos discutindo, um modelo conceitual está sendo

utilizado.

Vamos pegar um exemplo de Kant, o cão. Pensando no cão enquanto um

objeto, percebemos certas características: ele é atual, único, individualizado por

marcas sensíveis próprias. Tal experiência não pode ser estendida a nada mais, se não

a ele mesmo.

O conceito de cão significa uma regra segundo a qual a minha imaginação pode traçar de maneira geral a figura de certo animal quadrúpede, sem ficar restringida a uma única figura particular, que a experiência me oferece ou também a qualquer imagem possível que posso representar in concreto. (CRP B 180)

Como podemos ver, o que há de conceitual no objeto ‘cão’ não diz respeito à

sua individuação mas à possibilidade de universalização. Mesmo um conceito

empírico tão restrito como o de cão comporta uma universalidade. Esta habilidade

conceitual nos permite reconhecer seres como ‘cães’, e até produzir uma imagem de

‘cão’ pela imaginação. O conceito possui assim um caráter de regra.

O conceito, por si só, faz impregnar uma regra em meio a um diverso da

intuição, mas não é capaz de preencher este espaço lógico, o preenchimento só pode

ser dado pela sensibilidade. Poderíamos pensar que o conceito seria uma espécie de

‘fôrma’ na exata proporção do objeto que se exibe, onde sua massa seria dada pela

sensibilidade, faculdade que como bem sabemos não é capaz de fundar uma

representação. Para termos uma experiência de um objeto em uma hipotipose

esquemática, é necessário proceder por síntese da apercepção: “a síntese incube tornar

distintos os objetos” (Lógica A 95).

De acordo com a epistemologia dominante no seu tempo, a investigação

129

kantiana das condições de objetividade pressupõe que os dados básicos de todo nosso conhecimento da realidade são "sensações" […] O conceito de objeto inclui condições de constância que as sensações não têm; em particular, um objeto pode continuar o mesmo, enquanto que os dados que o apresentam são alterados. Além disso, a referência a objetos exige mais do que apenas a consciência de apresentações: ela visa à objetividade, distinguindo representações verídicas de "meras" representações. (Klotz 2007:148)

É portanto na medida em que um conceito impõe uma regra que uma

objetividade é assegurada, e nesta medida permite relações unificadas em gênero e

espécie. Sempre quando houver tal relação de síntese determinante a apercepção terá

diante de si um objeto e este é todo o fundamento da capacidade da recognição.

Podemos verificar este mesmo mecanismo que descrevemos para o nome

‘cão’ em nomenclaturas musicais como, ‘tema’, ‘minueto’, ‘apojatura’, entre outros.

Estes conceitos podem ser formados mesmo em grupos ínfimos de notas, são

exibições conceituais no sentido de conterem uma função distinta no interior de um

objeto.

Kant é de opinião contrária a esta possibilidade que antevemos, em dois

sentidos; uma aliada à sua concepção não-conceitual, excludente do campo lógico a

qual o estético se inscreve, e em outro sentido, especificamente para a música, Kant é

de opinião que os dados sonoros sensíveis não poderiam constituir uma distinção

intelectual, por um empecilho de sua própria natureza:

Kant sustenta que a sensibilidade à cor ou à tonalidade é útil apenas para apreciação estética e não é útil para a cognição dos objetos da natureza em qualquer outro aspecto (embora certamente pudéssemos tergiversar aqui, no caso da cor, pelo menos). O fato de que essas suscetibilidades não são cognitivas faz com que a questão do modo como poderiam ser formais fique em aberto. Sabemos que sensações ordinárias, que não são em si formais, podem ser apreendidas em um conceito do objeto, e, assim, formalmente, mas e a respeito de sensações não-cognitivas? (Weatherston 1996:59)

Uma vez que Kant prossegue negando que a música é uma bela arte, parece que ele está assim contestando nossa capacidade de apreciar a forma de uma composição musical. (Weatherston 1996:59)

O artigo de Weatherston se dedica mais longamente à consideração kantiana

130

sobre o som musical37 (tom38). Tais considerações kantianas como vemos na citação,

impõem um crivo bastante rígido, decorrente das características do ‘tom’ definidas

por Kant enquanto impossíveis de serem regradas, e por isto se tornaria impossível

percebermos uma ‘forma’ musical a partir destas características. Para Kant nossa

percepção se perderia no decorrer do tempo e centrar-se-ia apenas nas características

sensórias do ‘tom’ em si.

Uma vez que Kant alegou que as artes do tom "estão preocupadas com nada mais do que a proporção dos diferentes graus de disposição (tensão) do sentido pertencente a sensação” [§ 51 (324)], essas diferenças inteligíveis devem então ser ligadas com as características específicas do ouvido, que podem, é claro, difererir entre os indivíduos. Estas 'diferenças inteligíveis' iriam assim reduzir-se a um mero efeito, que não pode servir como base para a composição. (Weatherston 1996:60)

Kant está dizendo que não é possível pensar no ‘tom’ como um fenômeno

extensivo, apenas intensivo. Isto quer dizer que para ele o ‘tom’ só possui qualidade, e

não uma quantidade. Enquanto princípio sintético da categoria da qualidade a

intensidade postula o seguinte: “em todos os fenômenos o real, que é o objeto de

sensação, tem uma grandeza intensiva, isto é um grau.” (CRP A 166). O tom, de

acordo com Kant, não seria capaz de qualquer outra determinação, constitui-se como

um ‘efeito’ produzido por ondas mecânicas ao qual nossa mente não é capaz de

calcular, mas apenas produzir uma ‘sensação’ unificada. Tal característica

impossibilitaria a uniformização da aparição destas qualidades sob qualquer atributo

objetivo, ou seja, retira seu pertencimento a uma estrutura de recognição.

Weatherston acredita que a qualificação do tom musical como mera sensação

incapaz de cognição vem no sentido de extremar o caráter não-conceitual que Kant

imprimia à música. A justificativa estaria na própria materialidade sonora, de difícil

simbolização e com grande lastro da sensação. Estaria mais propícia ao agrado do que

à beleza, embora com o auxílio da poesia ela pudesse se dignificar.

37� Advertimos que o termo ‘som’ abrange na verdade todo o leque perceptivo humano, de 20 Hz a 20 kHz. E desde o fim da primeira metade do século XX podemos incluir toda esta faixa dentre o material musical, independente de sua organização, escalar ou não. Diferente do século XVIII, onde havia um rígido crivo entre os sons musicais e não-musicais.38� Kant não define o termo ‘Ton’. "Se Kant tivesse analisado o som [tone] enquanto frequência [pitch] e timbre, ele teria achado muito mais fácil ver como as formas musicais são conscientizadas." (Weatherston: 64). De acordo com o autor o próprio caráter sonoro, dividido entre ‘nota’ (frequência) e ‘timbre’ (harmônico) inviabilizaria a própria relação estabelecida entre cor e tom, e auxiliaria a pesquisa kantiana a reconhecer que a forma musical se dá pela inter-relação entre as notas sucessivas.

131

Pois embora ela fale por meras sensações sem conceito, por conseguinte não deixa como a poesia sobrar algo para a reflexão, ela contudo move o ânimo de modo mais variado e, embora só passageiro, no entanto mais íntimo; mas ela é certamente mais gozo que cultura [...]. (CFJ: 218)

No que compete à nossa investigação, podemos nos apoiar tanto em tratados

acústicos/musicais como o de Helmholtz, onde relaciona a percepção estética de

intervalos sonoros à quantidade e relação de parciais contidos no som (Helmholtz

1954:370), ou mesmo na própria história da teoria musical, que sempre qualificou e

nomeou suas operações de modo a reconhecermos relações musicais objetivamente

(Christensen 2002).

Com isto concluímos que não é um argumento suficiente a crença de que o

sonoro perfaça apenas um critério qualitativo, de um percepto, que não se adeque a

um critério recognitivo. O sonoro, pode ser compreendido, classificado e reconhecido

em especificações bastante ínfimas se adequando a um caráter recognitivo sem

maiores considerações.

1.1 – Análise da constituição de objetos visuais.

Comecemos por um exemplo de fácil acesso, analisando como se constitui um objeto

visual, e nele a ação e o papel da sensibilidade, do entendimento e do juízo, de modo

que esta estrutura se mostre universalmente válida.

Vamos considerar um conjunto de garrafas, todas produzidas em plástico, com

capacidade entre 300ml e 500ml, confeccionadas para armazenar água potável.

Comecemos pelo produto final e acabado exibido pela apercepção. O que temos é

justamente a garrafa exibida e representada pela consciência, aqui exposta em uma

fotografia.

Consideremos a garrafa in concreto. Diante de nós temos uma existência em

uma forma singular, admitida enquanto garrafa, conceito que pode ser aplicado a uma

diversidade de objetos, como podemos observar pelas demais garrafas (Img. A)39.

Como foi possível a confecção transcendental deste objeto na forma mesma

como o vemos? Real, no mundo exterior, com uma forma determinada, com notas

39⇥ Ver anexo.

132

individualizantes, singular e contendo uma relação todo/parte.

O objeto em questão só pode ser fruto de uma síntese entre sensibilidade e

entendimento. Trata-se portanto do fruto de um juízo de tipo determinante, onde seus

componentes se ligam lógica e necessariamente a um princípio transcendental, que

subsumiu o múltiplo da sensibilidade. Podemos com assertividade proclamar; ‘é uma

garrafa!’ e estender nosso juízo a uma comunidade de falantes. Porém, por não se

tratar de um conhecimento ao modo de um axioma da ciência, temos que admitir que

estamos diante de um objeto empírico, portanto no uso empírico de um conceito.

O conceito empírico traz em si uma pequena contrariedade, qual seja, de

conter uma universalidade em uma particularidade sensível, ou seja, um objeto que

corresponda a um conceito empírico terá que atender a demandas de duas faculdades

em uma proporção que não é a mesma para os axiomas da ciência:

Mas, se abstrair da forma do espaço a intuição de uma casa, esta mesma unidade sintética tem a sua sede no entendimento e é a categoria da síntese do homogêneo numa intuição em geral, ou seja, a categoria da quantidade [...] (CRP B 162)

Em um objeto o núcleo conceitual encontra-se sediado na categoria da

quantidade, e aqui está assinalada sua porção conceitual. Porém, há também sua

porção sensível, por se tratar de um conceito empírico:

O conceito empírico origina-se dos sentidos pela comparação dos objetos da experiência e recebe mediante o entendimento unicamente a forma da universalidade. A realidade desses conceitos baseia-se na experiência efetiva, donde são hauridos quanto ao conteúdo. – Mas se há ou não conceitos puros

do entendimento (conceptus puri) que enquanto tais se originam, independentemente de toda experiência, única e exclusivamente do entendimento é uma questão que a Metafísica tem de investigar. (Lógica: A 141)

Kant não nos guia a ponto de narrar uma operação passo-a-passo. Nos

próximos subtópicos levantaremos informações sobre a ação das categorias e dos atos

lógicos mais gerais, para pensar em que medida podem ser pensados em um objeto.

1.1.1 – Análise categorial de um objeto visual.

Chamamos de análise categorial a análise da mera possibilidade contida nas

categorias, enquanto condição de possibilidade em aferir conteúdos a objeto.

133

Comecemos pela categoria da ‘Quantidade’. Grosso modo, esta categoria

expressa o caráter universal para todo conceito (CRP B 104), e se divide em três

conceitos puros que incidem sobre objetos. Temos a ‘unidade’, enquanto

generalização promovida pelo conceito, que abstrai as notas individualizantes e

promove uma unidade global para assim “desconsiderar as diferenças específicas entre

essas instâncias” (Altmann 2007:37). A ‘pluralidade’ enquanto distingue no objeto

características múltiplas contidas nele que os faz pertencer a seu conceito, e não

enquanto caractere presente na própria definição do conceito, “contendo em si uma

multiplicidade em função da qual podem ser distinguidos de outros” (Altmann 2007:39). E

por fim a ‘totalidade’, condição de exibição de um objeto real, contendo notas

individualizantes e generalizantes, sob um conceito: “qualquer composto pode ser

considerado um todo, por exemplo, uma maçã” (Kant apud Altmann: 2007:41), tornando o

objeto um singular em nossa experiência.

A categoria da ‘Qualidade’ determina uma relação de graus que vai de 0

(negação) a um máximo possível. Sua determinação é dada por uma matéria intuitiva.

O que é determinado é a sensação empírica contida num objeto, e não se trata de uma

grandeza extensiva dada a priori, mas uma condição para o preenchimento de graus

de sensações que perfazem uma condição de realidade do objeto empírico enquanto

grandeza intensiva (CRP B 209,210).

A categoria da ‘Relação’, categoria dinâmica que se relaciona à existência de

objetos, diferente das categorias ‘matemáticas’ que se referem apenas “aos objetos da

intuição” (CRP: §11), produz hierarquizações nos objetos, como a instanciação entre

acidente e substância. Se observarmos uma série qualquer de garrafas (Img. A) o fato

de serem diferentes não causa espanto, todas podem naturalmente ser compreendidas

enquanto garrafas. Esta possibilidade é inerente a seu conceito, que consegue

facilmente separar o rótulo como componente não substancial. A variação de

ocorrências enquanto estabelece uma relação entre sujeito e predicado, em vários

níveis, condiciona-se às possibilidades contidas na categoria da relação.

Por último, a categoria da ‘Modalidade’, também uma categoria dinâmica, se

dirige à ação das categorias em relação ao próprio juízo, “cuja característica consiste

em nada contribuir para o conteúdo de um juízo, e apenas se referir ao valor de cópula

em relação ao pensamento em geral.” (CRP A 74).

134

1.1.2 – Atos lógicos, gênero e espécie: análise lógica sob o exemplo das garrafas.

Além das categorias do entendimento os atos lógicos seriam funções lógicas de

relevante importância, são estes atos: comparação, reflexão e abstração (Lógica A

145).

1) a comparação <Komparation>, ou seja, o cotejo <Vergleichung> das representações entre si em relação com a unidade da consciência;

2) a reflexão <Reflexion> , ou seja, a consideração <Überlegung> do modo como diferentes representações podem ser compreendidas em uma consciência; e finalmente:

3) a abstração <Abstraktion>, ou seja, a separação <Absonderung> de todos os demais aspectos nos quais as representações dadas se diferenciam. (Lógica A 145)

Tomemos o conjunto de garrafas (Img. A). Estas se dispõem em uma ordem

fixa. Além de uma ordem fixa, parecem mesmo compor uma ‘organização’. Para

desvendarmos qual seja esta organização devemos operar um trabalho de

comparação, tal ato necessita de um critério. Tal critério só é possível por estar a

garrafa já previamente ordenada sob categorias, basta agora que destaquemos neste

objeto características dadas em seu conceito e comparar estas características por cada

garrafa singularmente.

No caso da imagem A utilizamos o seguinte critério: a forma do ‘corpo’ das

garrafas (Img. D). Na imagem A, se percorremos o sentido da direita para esquerda

partiremos da garrafa mais homogeneamente cilíndrica, chegando a um formato

alongado em cima e mais curvo embaixo. Se seguirmos o caminho inverso o fim seria

a garrafa mais homogênea. Este é um critério progressivo, pois ele interpreta as

posições como um percurso gradual da série, e assim interpretamos as ‘deformações’

que vão acontecendo pela série como uma ocorrência advinda da necessidade de fim a

que a forma inicial deverá desenvolver ao fim da ordem das garrafas.

Notemos também que outros dados se prestam à comparação. O padrão de

curvas que adornam a garrafa caminham (da direita para a esquerda) do homogêneo

em direção a variações maiores; de anéis retos, anéis curvos, anéis intercalados por

espaços maiores, anéis curvos interpolado por outra forma, aparição de formas curvas

não circundantes da garrafa, e enfim triângulos (Img. A).

Dentro desta perspectiva progressiva podemos observar que a ordem das 135

garrafas aqui estabelecida (Img. A) não foi do padrão do adorno dos anéis. Se a

tomamos como critério não se poderia pensar em uma série linear, pois, o padrão

triangular ressurgiria na última garrafa, contrariando a progressão. No caso, o corpo

da garrafa abstraído de seus adornos é quem conduz a ordem; de um cilíndrico

homogêneo, por um achatamento no meio, um achatamento mais agudo no meio, um

achatamento no gargalo, um afunilamento do gargalo e enfim a um pescoço cilíndrico

(Img. A).

Caso escolhamos justamente os adornos como critério teleológico de

ordenação das garrafas teríamos outro resultado (Img. B). Os exemplos A e B ilustram

comparações sob um critério, no caso um critério que chamamos de progressivo, mas

outros critérios de comparação podem ser empreendidos.

Na imagem C temos uma ordem intencionalmente aleatória. Isto não impede

que façamos comparações entre uma garrafa e outra, ou que estabeleçamos

hierarquias e grupos diferenciados para cada critério que elejamos. Podemos destacar

dentro deste mesmo grupo diversos modos de comparação.

Temos C1 para o caso de adornos triangulares, temos C2 para base achatada,

C3 para tampas roxas e C4 para adornos curvos.

O mesmo processo podemos inclusive aplicar individualmente a uma garrafa.

Peguemos a imagem D. Posso estabelecer as seguintes divisões internas: Tampa, bojo,

corpo, base e pé.

Como a garrafa é transparente as linhas onduladas tendem a formar figuras

‘em fase’ ou pelo menos em planos diferenciados. O corpo (D1) possui duas partes,

um espaço liso e um estriado. A extremidade superior do corpo se iguala à

extremidade inferior, porém em uma relação de inversão40 (cabeça-para-baixo)

perfeitamente simétrico.

A base (D2) é também uma estrutura delimitada (em sua parte superior) por

uma linha reta, e em sua parte inferior composto por seções (pés), como pétalas em

referência a um centro, moldado por um eixo na forma de uma erupção pontiaguda

apontando ao interior da garrafa, em direção a tampa. Ainda constituindo a base temos

certas perturbações do material, em uma curvatura produzida pelos pés, no exato

espaço entre um pé e outro, o que causa uma distorção particular da luz nesta região.

O bojo (D3) se constitui como uma cúpula que é subitamente estreitada para dar

40� Embaixo, temos a linha que subdivide o espaço liso e embaixo desta linha uma curva. Em cima, temos a linha que subdivide o espaço liso e acima desta linha uma curva.

136

forma ao que será parte da tampa, e a tampa dispensa maiores comentários, a não ser

que delimita fortemente uma simetria e direcionalidade para a garrafa como um todo.

Assim como fizemos com um conjunto de garrafas podemos comparar entre si

as partes de uma garrafa (D4). Podemos fazê-lo com uma parte específica, como entre

o corpo e a base: o corpo é dividido em duas partes; o espaço liso, o espaço estriado41,

já a base possui uma subdivisão, os pés.

Sendo o corpo subdividido em tamanhos iguais, em um espaço estriado e um

liso, temos uma relação de espelhamento entre estas formas porém variada quanto a

sua textura (D4). Porém se compararmos todo o corpo com a base, esta constituiria

uma variação mais ‘afastada’. O tamanho da base é menor e seu limite inferior não é

homogeneamente cilíndrico como do corpo, mas constituído por ‘gomos’. Esta parte

além de estriada é curvada mais intensamente para o interior da garrafa, e sua

estrutura do centro aponta para outra região, a tampa.

A garrafa como um todo (Img. D, D4), poderíamos resumir, possui variações

sob um corpo cilíndrico, variando do liso ao estriado, deste ao estriado curvado, ao

liso côncavo do bojo, e ao cilíndrico estriado da tampa.

Todas as regras de organização se basearam em certas notas; forma, luz,

volume, textura, cor e transparências. Todas condicionadas pela categoria da

qualidade. O conceito reúne notas que constituem pluralidades, se alinham enquanto

quantidades, e traçam a totalidade do objeto:

Ora, levando em conta que, para Kant, o pensamento do objeto é sempre por representações parciais gerais (isto é, não há apreensão de uma essência individual enquanto individual), a “singularização” acaba sendo explicada pela “totalização”. Como observa Manley Thompson, para leitores familiarizados com Leibniz, a identificação entre individuação e categoria da totalidade deveria ser natural. Compreendemos assim a associação, mais uma vez no §12 da Crítica, entre a categoria da totalidade como conceito das coisas e a perfeição como exigência lógica do conhecimento: a perfeição, diz Kant, “consiste no fato dessa pluralidade em conjunto reconduzir à unidade do conceito, concordando inteiramente com este e com nenhum outro”. Isso só é possível na medida em que essa pluralidade forma um todo. Nas lições de Metafísica, Kant escreve que “muitos, na medida em que é um, é a totalidade. Essa coisa, na qual há a totalidade de muitas coisas, é um todo”. Escreve também que “qualquer composto pode ser considerado um todo, por exemplo, uma maçã. (Altmann 2007:40,41)

41� Parte inferior do corpo onde só há linhas curvas. É delimitado pela linha inferior do espaço liso e pela linha superior do pé.

137

O objeto é justamente este lugar lógico que unifica pluralidades em uma

relação todo/parte. Todos estes dados a que tivemos acesso na análise das garrafas

foram concebidos pelo entendimento, e estão todos referenciados a um único

conceito, o de garrafa.

O conceitual, condição de possibilidade do objeto, não doa nenhuma nota,

pelo contrário, confere formas que fazem de uma garrafa apenas uma concreção, uma

exposição possível de um conceito abstrato. Pois mesmo as condições categoriais da

percepção de graus variados (qualidade) não nos dá o ‘azul’ ou o ‘forte’, apenas um

lugar lógico para que um múltiplo se insira.

É de fato curioso que o elemento lógico da operação opere em sentido oposto

à existência real e indelével do objeto, pois que ele tende a unificar objetos muito

distintos entre si, se nos ativermos à suas notas. Diferenças muito sutis de dados

sensíveis podem modificar drasticamente o resultado da operação de síntese da

apercepção, exibindo objetos claramente distintos. Exemplificando de modo inverso,

objetos idênticos um ao lado do outro, sem conterem nenhuma nota distinta entre si,

não se confundiriam à seu conceito, embora o conceito seja exibido uniformemente

sem conflito entre os objetos, cada qual seria uma unidade em si, existente

empiricamente.

Mesmo sabendo tratar-se de garrafas, uma análise que se detém em

pormenores cada vez mais ínfimos decerto nos causaria espanto, dado a quantidade de

diferenças que podemos encontrar entre objetos que caiam sob um mesmo conceito.

1.1.3 – Propriedades conceituais de um objeto visual.

Fizemos ver que através de dados materiais intuídos sob um objeto podemos

demonstrar a atuação de juízos determinantes. Passamos agora para uma consideração

acerca das propriedades conceituais contidas em um objeto. O conceitual concentra a

objetividade destes fenômenos em dados estáveis à nossa apercepção, sendo assim,

extraímos agora as propriedades conceituais presentes em um objeto da experiência.

Nos exemplos exploramos o horizonte lógico do conhecimento, que pouco

relacionamos com o prático e o estético: “pois os conhecimentos teóricos são aqueles

que enunciam, não o que deve ser, mas o que é; portanto, os que tem por objeto não

um agir, mas um ser.” (Lógica A 135). Porém é fácil perceber que muito conteúdo 138

prático preenche o conceito de uma garrafa, enquanto pensamos que carregam uma

finalidade e uma fabricação.

O que há de tipicamente determinante na forma de um conceito seria seu

caráter de regra, que subsume o intuído: “de fato, o entendimento deve ser

considerado como a fonte e a faculdade de pensar regras em geral.” (Lógica A 2).

Em nosso exemplo não há uma regra explícita, não podemos contar com uma

equação matemática que nos desse todos os casos onde se tratasse de uma garrafa. Tal

possibilidade não é de todo impossível, mas, sem ela, podemos apenas aludir a uma

regra implícita que nos permite identificar este objeto.

O caráter conceitual é a forma, aquilo que não é uma nota visual, material,

mas que possibilita que a percebamos com estas características. Porém o próprio

conceito também possui ‘notas’, pois assim como podemos descrever as notas

materiais de um objeto, podemos descrever as notas formais de um conceito, como o

‘peso’, contendo analiticamente o conceito de massa e o de gravidade:

1) Características analíticas ou sintéticas. Aquelas são conceitos parciais do meu conceito real (as quais já penso nele); estas ao contrário são conceitos parciais do conceito inteiro meramente possível (o qual, por conseguinte, deve vir a ser constituído por meio de uma síntese de diversas partes). As primeiras são todos os conceitos da razão, as últimas pode ser conceitos da experiência.

2) Características coordenadas ou subordinadas. Essa divisão das características diz respeito à sua conexão uma após a outra e uma sob a outra. (Lógica A 86)

A análise das garrafas descreveu características sintéticas pensadas sob a

síntese da experiência a qual forneceu uma rica constituição de notas. As garrafas,

cada uma, subordina em seu conceito uma pluralidade de notas, enquanto as notas

mesmas se coordenam uma com a outra no modo mesmo como destacamos, em séries

e relações internas. Diz-nos Kant: “aquela, a agregação de características

coordenadas, constitui a totalidade do conceito [...]” (Lógica A 86).

Em sentido analítico falar em ‘notas’ conceituais da garrafa implica também

em sua função de armazenar líquido, de ser recipiente. Tal nota conceitual é capaz de

definir uma série de notas materiais sem que seja parte visível desta, seu caráter

constituinte é tal que faz determinar a feitura e forma da ‘boca’ da garrafa, que nos

exemplos vistos foi a única nota sem sofrer grandes variações em seu formato.

Faz parte da distinção intelectual do conceito de garrafa ser um recipiente para

139

líquidos, portátil. Além de suas condições formais analisadas também o caráter prático

incide enquanto parte determinante da regra e portanto da forma como o vamos

compreender.

A distinção lógica do conceito de garrafa é contudo limitada, e não é capaz de

dar fruto a outros conhecimentos, pelo contrário, é um utensílio fabricado a partir

destes conhecimentos mais sólidos. Assim, o conceito de garrafa acaba por possuir

uma maior extensão prática anterior mesmo às suas determinações lógicas empíricas.

Obviamente, conceitos são expressos na linguagem por termos gerais. Seria tentador supor que, correlativamente, as intuições são expressas por termos singulares. Essa visão enfrenta a dificuldade de que a concepção kantiana da forma lógica do juízo não deixa lugar algum para termos singulares. Na concepção kantiana da lógica formal, os constituintes de um juízo são conceitos, e conceitos são universais. (Parsons 2009:89)

Compreendamos de forma geral que todo objeto encerra universalidades,

porém, sua individuação por notas características é devida a componentes da

sensibilidade, embora não sejam tão somente eles, mas a determinação específica de

um múltiplo em um objeto faz com que sua expressão em qualquer juízo, qualquer

comparação, abstração ou reflexão já conte com conceitos para sua expressão

condicionados logicamente.

O conceito de garrafa certamente encerra várias acepções. Povos se utilizam

de recipientes para guardar liquido, inclusive, estes mesmos recipientes podem

facilmente conter outros tipos de materiais, até sólidos como a areia. Não há dúvida

de que uma moringa seja muito mais apropriada para guardar líquidos potáveis para o

prazer da ingestão do que uma garrafa de plástico. Porém, a garrafa de plástico possui

a praticidade de distribuição em um sistema de abastecimento global. De outro lado, e

não podemos nos abster deste dado, há uma atividade especializada, o design, voltada

apenas para a elaboração de sua forma material, o que explicaria a variedade de

formas que encontramos, incluindo nestes o aspecto estético, pois tais utensílios

visam despertar gosto. Todas estas características fazem parte do conjunto que

compõe o horizonte geral do conceito de garrafa.

Dos exemplos analisados podemos dizer que todas as garrafas possuem uma

base de apoio, formato cilíndrico e tampa. Porém, estes formatos não podem ser

considerados ‘necessários’ por dois motivos. Primeiro porque o bule, a jarra, a

moringa, entre outros recipientes, possuem analiticamente estas mesmas

140

características conceituais. Segundo, em vista do seguinte problema: o que

aconteceria caso uma garrafa com estrutura não cilíndrica fosse confeccionada?

Assim as determinações formais de um conceito não podem conter os dados

sensíveis como notas essenciais, e no caso, o caráter prático (e mesmo o ‘produtivo’

em sentido aristotélico) do conceito de garrafa é capaz de confeccionar formas muito

diversas entre si.

Ao fim, o que resiste a uma busca de notas conceituais essenciais e específicas

para as garrafas que analisamos seria apenas a função de armazenar líquidos,

enquanto que de sua parte estética, produzir agrado partir da água, forma da garrafa e

a sensação de sede, e também, em algum nível, beleza. E a este conceito específico se

presta uma gama de garrafas possíveis. Para os casos reais, existentes, podemos

igualmente dizer que há um esquema lógico capaz de reconhecer esta aplicação do

conceito de garrafa em uma objetividade a qual descrevemos.

1.2 Diferença entre objetos sonoros e musicais.

Passamos agora para um tópico intermediário entre a análise de objetos visuais e os

musicais. Vamos estabelecer aqui a condição destes objetos auditivos serem

considerados como tais, na medida em que são contemplados pelas mesmas categorias

e atos de um objeto empírico qualquer. Empreender uma análise musical significa

tratar o fenômeno em questão como um objeto, porém, devido à pouca popularidade

dos estudos musicológicos, o conceito de objeto musical ainda pode soar pouco

ortodoxo.

Mas como indicamos na introdução, o conceito de objeto musical surge

naturalmente da aplicação da teoria transcendental à experiência musical. Tal

conceituação contempla os altos índices de racionalização que o material musical já

havia abrigado até o século XVIII (Weber 1995), sobretudo no campo da matemática

e física, e menos com a lógica e a epistemologia, onde nos inserimos agora.

De todo modo, o conceito de objeto musical já havia sendo utilizado, nesta

formulação específica desde a segunda metade do século XX, e fundamentado

explicitamente no texto Lições para uma fenomenologia da consciência interna do

tempo de E. Husserl, onde trata de um exemplo musical e o define enquanto objeto

141

temporal (1994, §7).

Didaticamente, exporemos um pouco do histórico do termo para auxiliar o

leitor ainda não habituado e assim esclarecer qualquer dúvida que paire sobre sua

caracterização lógica.

Destacamos o trabalho de Pierre Schaeffer (1977) com a música concreta para

uma exposição do sentido epistemológico que o objeto musical e o sonoro suscitam.

Este desconhecimento da noção de objeto sonoro se explica, enfim, por razões práticas. Até uma época muito vizinha à nossa, o objeto sonoro, evanescente, ligado ao desenrolar de um tempo irreversível e não recuperável, se apresentava como uma manifestação humana, muito mais que como um fato objetivo. (Schaeffer 1952c: 144 apud Melo 2007:60)

O senso-comum ainda carrega esta estranheza na definição de um objeto

musical, mas como podemos ver, do ponto de vista lógico o termo não trouxe grande

novidade para esta disciplina, mas de outro lado, trouxe contribuições para a técnica

musical.

Fabrício Melo nos diz que Schaeffer em seu diário de 1948-49 utilizava o

termo ‘objeto sonoro’ ainda em um sentido comum, designando apenas o instrumento

produtor de som (Melo 2007:58). Na publicação deste diário, sob o título À la

recherche d’une musique concrète, a definição de ‘objeto sonoro’ já se vê alterada em

função de suas pesquisas em música concreta, qual seja, a gravação de um excerto

sonoro disposto a qualquer manipulação técnica:

A esta abordagem composicional com materiais extraídos do dado sonoro experimental, eu a denomino [...] Música Concreta, para bem marcar a dependência em que nos encontramos, não mais com relação às abstrações sonoras preconcebidas, mas sim dos fragmentos sonoros existindo concre- tamente, tomados como objetos sonoros definidos e inteiros. [grifo nosso] (Schaeffer 1952a: 22 apud Melo:9)

Nesta publicação são feitas distinções importantes entre o objeto musical e o

sonoro. O objeto musical, nos explica Melo: “[…] é abordado, então, como o veículo

da comunicação entre alguém que se expressa por seu intermédio e alguém que é

sensível a ele. É o porta-voz da linguagem musical” (Melo 2007:59). O objeto sonoro

seria qualquer evento de natureza sonora. Ainda no interior desta publicação encontra-

se o texto Esquisse d'un solfège concret (1952), onde o termo ‘objeto sonoro’ passa a

142

significar um objeto intencional, ou seja, uma unidade conceitual referida em nossa

consciência.

Assim, verificamos que o termo ‘objeto sonoro’ no século XX tramitou de

uma realidade concretamente observável para uma realidade transcendentalmente

composta. Tal giro acontece no momento em que Schaeffer quer definir o sonoro em

detrimento ao corpo instrumental que o produz. Neste momento o som torna-se

matéria de análise e tipologia e os objetos sonoros e musicais compartilham assim da

mesma objetividade de demais objetos: “este disco ou esta fita, em sua totalidade, como

não admitir que eles contenham, materializado, o objeto musical?” (Schaeffer 1952c: 145

apud Melo 2007:62).

Portanto, se quiséssemos, do ponto de partida do objeto sonoro, estudar as

Variações Goldberg de Bach teríamos que analisar as características acústicas de um

corpo sonoro, o cravo. O objeto sonoro não apresenta nenhuma característica musical,

embora o musical contenha características musicais. A denominação ‘objeto’ apenas

confere uma implicação objetiva e regrada para fenômenos da audição, não

permitindo qualquer relação essencial entre o que seja um objeto sonoro e um

musical. E assim nos alerta:

Schaeffer comenta em um seminário: “Não caiam no mesmo erro, que foi constante no GRM [Groupe de Recherches Musicales], de tentar explicar o musical pela tipo-morfologia dos objetos sonoros.” (Pierret 1969: 69 apud

Melo 2007: 2)

A definição do objeto, se musical ou sonoro, compete a certo estatuto

transcendental que vai definir o conteúdo visado.

Para o caso musical Schaeffer define o uso das intenções como uma certa

combinação entre Ouvir e uma outra intenção não ligada diretamente ao sonoro, o

Compreender:

O estatuto particular da música localizaria-se assim na articulação deste par extravagante formado pelo agente e pela mensagem: a intenção de fazer música consiste em tomar sons da primeira categoria (não especializados nas linguagens) para criar uma comunicação da segunda categoria (que contudo não almeja dizer nada). (Chion 1983:352).

Sua característica significativa se desprende das ‘notas’ do sonoro, porém o faz

por meio de uma relação entre estas notas, ou seja, por juízos remetidos a uma

143

realidade audível e não apenas a constatação tácita do audível. Ainda de acordo com

Schaeffer, o objeto musical traçaria um tipo de compreensibilidade análoga ao da

linguagem, pois que significativo, mas não por isto se comportando como uma

linguagem. Assim, quando enfatiza que o objeto musical “não almeja dizer nada”,

quer comparar com a função típica da linguagem.

Para o caso sonoro ou musical temos objetividade, porém no caso do musical

temos uma relação de juízos que qualificam o conceito de seu objeto de modo

diferenciado. Seria, para o caso musical, a sublevação de juízos de percepção até

juízos de experiência (Lógica Ak 113), onde é ajuizada a objetividade de um objeto, e

não o modo como somos afetados pelos sentidos.

1.3 Objetividade e subjetividade, musical e sonora.

Para dirimir ainda qualquer dúvida a respeito do caráter objetivo dos objetos musicais

ou sonoros, abrimos mais um debate acerca da constituição destes objetos.

É marca dos objetos visuais estarem presentes em um mundo exterior, para

nosso sentido externo. Os objetos musicais, como vimos, compartilham esta mesma

propriedade. De modo geral a diferença entre estes dois objetos estaria, assim é

comumente compreendido, numa forma de aparição estática dos objetos visuais, em

contraposição a uma forma de aparição dinâmica, através do tempo, do musical. Esta

definição criou, historicamente, um embaraço na caracterização do objeto musical e

sonoro diante de objetos visuais.

O fato dos objetos visuais estarem dispostos permanentemente em nossa

percepção faz com que sua ‘imagem’ permaneça viva sem grandes recursos da

memória, sendo constantemente recriada com frescor atual, ou seja, parecem se

relacionar com o imediato e não com um tempo em progresso. O objeto musical e sua

‘imagem’ parecem recorrer, contrariamente, com peso quase que exclusivo ao recurso

da memória por uma progressão temporal. Mas se pensamos um pouco mais nesta

característica veremos que em comparação com objetos de arte, o musical

compartilharia esta característica de mutação pelo tempo com a animação, o HQ, o

filme e a leitura de modo geral, que deslocam objetos a todo instante, em um sentido

144

temporal.42

Dado estas características, seria ainda válido pensar a música enquanto

conteúdo caracteristicamente ‘subjetivo’, em função de seu recurso mnemônico e

temporal, e o objeto visual enquanto conteúdo caracteristicamente ‘objetivo’, em

virtude da simultaneidade de seus dados fenomênicos?

Para Kant, quando há somente esquema e não um preenchimento temos

apenas um pensamento e não um objeto (CRP B 148). Ora, como observamos, ambos

os objetos sonoro e musical perfazem a condição esquemática e intuitiva, e seriam

assim objetivos na mesma medida:

Ora, toda intuição possível para nós é sensível (estética) e, assim, o pensamento de um objeto em geral só pode converter-se em nós num conhecimento, por meio de um conceito puro do entendimento, na medida em que este conceito se refere a objetos dos sentidos. A intuição sensível ou é intuição pura (espaço e tempo) ou intuição empírica daquilo que, pela sensação, é imediatamente representado como real, no espaço e no tempo. (CRP B 148,149)

Se há uma diferença substancial entre objetos musicais e sonoros para com os

objetos visuais, esta diferença devemos encontrar no estatuto em que estes objetos

podem ser exibidos, o que conta sempre e necessariamente com as intuições puras do

tempo e do espaço, e assim o debate corre menos quanto a fazerem parte do sentido

interno ou externo, objetivo e/ou subjetivo do objeto musical em relação a outros.

Torna-se mais importante apreciar o modo como eles contém propriedades temporais

e espaciais, visto que excluir qualquer uma das duas pareceria um contra-senso.

1.3.1 Relação espaço-temporal dos objetos.

Um exame das relações espaço-temporais dos objetos não é mais que uma

consideração a respeito do papel das intuições puras em um regramento categorial. As

condicionantes categoriais são válidas para todo e qualquer conteúdo, assim como as

intuições puras são para todo o intuído. Compreender as diferenças entre objetos da

audição e da visão constitui uma diferença que se inscreve já na sensibilidade. As

42� “Uma peça musical assemelha-se, em alguns aspectos, a um álbum fotográfico, dispondo, sob circunstâncias mutáveis, a vida de sua idéia principal: seu motivo básico.” (Schoenberg 1996:58)

145

diferenças mais gerais entre eles reside nas disposições da sensibilidade para a

caracterização de um esquema para estes fenômenos. Esta diferença é

tradicionalmente compreendida pelo aspecto temporal que a música possui, algumas

vezes classificada como ‘arte do tempo’.

De acordo com Kant o tempo e o espaço são condições de possibilidade da

sensibilidade para todos os fenômenos. Neste sentido a sensibilidade não pode abster-

se de aplicar intuições para qualquer fenômeno que se mostre ulteriormente

determinado (CRP B 37). Resta verificar se há uma distribuição peculiar destas

intuições puras para o objeto auditivo que se contraponha ao visual de modo a priori.

Vamos explorar alguns exemplos. Marcas visuais ou auditivas podem

constituir índices, e assim um objeto pode ser representado tanto por uma marca

visual como por uma marca sonora. Esta passagem do índice para o significado de um

objeto é feita a partir de uma característica sensível que permita deduzir o objeto

como um todo (Ex. o galopar do cavalo / uma pegada).

Para um caso simbólico, como o da linguagem, uma marca sonora ou visual da

palavra não contém necessariamente qualquer referência ao objeto em questão, não se

percebe qualquer peculiaridade neste sentido, e o caráter temporal parece pouco

pertinente em sua identificação na leitura ou escuta. O resultante é o significado

conceitual expresso por meio de signos, aquilo que a palavra indica.

No caso do ícone, as características do ‘som enquanto som’ parecem estar

destacadas. Percebemos por exemplo no som do galope certo desenrolar no tempo, de

características sonoras. Da mesma maneira em uma pegada percebemos certo formato

impresso na terra, com certa profundidade. Neste caso a diferença entre o visto e o

escutado se faz evidente conquanto suas peculiaridades espaciais e temporais.

A depender do tipo de determinação que se faz de uma matéria sensível -

visual ou sonora - diferenças começam a se tornar mais relevantes. Michelle

Grangaud nos deixa um interessante enigma: "Eu posso ouvir o que eu vejo: um

piano, ou algumas folhas agitada pelo vento. Mas, eu nunca posso ver o que eu ouço."

(apud Nancy 2007:10)

O enigma se monta apenas para o caso musical. Pois como ilustrado na figura

subseqüente, um som, somente sonoro e não musical, pode remeter a um animal

(assim brincamos com nossas crianças), e de modo contrário o pensamento ou a visão

de um animal pode remeter a seu som.

O índice veicula o som à coisa, assim como a coisa ao som, em uma relação

146

claramente conceitual:

De que forma podemos pensar o objeto musical sob os conceitos de espaço e

tempo?

147

Podemos, antes de tudo, esclarecer o sentido destes termos. Em um sentido,

espaço e tempo tratam de intuições puras, são determinações transcendentais que

atuam na constituição de um múltiplo da sensibilidade. Em outro sentido, usamos

estes mesmos termos para nos referir a aspectos de uma experiência a posteriori.

No primeiro sentido, enquanto intuições puras, constituiria um contra-senso

dizer de um objeto da experiência enquanto temporal ou espacial pois que as intuições

puras são condições de possibilidade de um múltiplo, e o objeto, o resultado unitário

de um entendimento: “pois a permanência do que é dado no espaço e no tempo não é

ela mesma dada, e sim que só pode ser pensada, justamente por conceitos de objetos.”

(Esteves 1996:16)

No segundo sentido, diante de um objeto constituído, podemos ressaltar certas

características que costumamos predicar como ‘espaciais’ ou ‘temporais’. Aqui

aparecessem como simples expressões, usadas em um sentido que não se coincide

com o significado transcendental dos mesmos termos, apontam para notas materiais e

suas disposições no objeto.

Em geral, estes dados espaciais e temporais costumam ser relacionados ao

conceito de espaço aplicado na física (diversos espaços) e que Kant trabalhou ainda

pré-criticamente na Dissertação (Parsons 2009:99):

Pois o que chamamos de diversos espaços não são senão partes de uma mesmo espaço imenso, as quais se correlacionam por certa posição, e não podemos conceber um pé cúbico senão como delimitado por todos os lados por um espaço circundante. (§ 15 B, 2:402)43

Para tratar das notas espaço-temporais em objetos, em sentido empírico,

tomemos novamente o exemplo visual da imagem D. Este objeto contém um limite

‘no’ espaço, de onde podemos classificar suas dimensões e marcas em sua forma

espacial. Ele contém também limites ‘no’ tempo, de onde podemos destacar sua

perduração e movimento, sua forma temporal.

Quando diante de qualquer objeto podemos notar, por exemplo, que a

luminosidade é constantemente alterada pela própria modificação do ambiente, pela

posição que dispomos o objeto, pela mudança da posição da fonte de luz, pela

permanência da luminosidade ou pela qualidade da luminosidade, se artificial ou

43� Para maiores detalhes sobre a relação entre a intuição pura do espaço e sua constituição transcendental não conceitual, e o conceito de espaço na física, ver Charles Parsons em A estética

Transcendental, no livro organizado por Paul Guyer, Kant (2009). 148

natural. Em uma foto não há qualquer alteração do ambiente, e nossa posição não

altera em nada a imagem do objeto, desde que este ainda se mantenha em nosso

campo de visão. No objeto há uma teia de ligações causais que o fazem mais sujo,

mais desgastado, entre outras alterações pelo tempo. Tal cadeia não procede no

interior da imagem fotográfica.

A experiência da imagem da foto nos conduz a uma dedução: ela se encontra

abstraída do ‘tempo’. Trata-se de uma metáfora, pois que o tempo é uma intuição pura

e em verdade, em nossa observação, percebemos continuadamente a foto ‘correndo

pelo tempo’. Estranhamente o objeto ali representado permanece estático na foto, o

‘tempo’ parece ter sido estancado. Caso este mesmo objeto tivesse sido filmado

teríamos uma noção de ‘temporalidade’ embutida na imagem.

Detenhamo-nos ainda mais na foto, agora em seus aspectos espaciais. Estes

estão demarcados pela profundidade (perspectiva), largura e altura, pelas notas

distintivas de cor, traços e formas. Da mesma maneira em que todos estes dados se

encontram ‘no espaço’, estão ao mesmo tempo perdurando em uma percepção ‘no

tempo’. Em cada parte deste espaço vemos também um outro espaço e assim em

diante, e, de modo geral, os aspectos espaciais e temporais não podem se dissociar, se

excluírem ou mesmo não coexistirem em um objeto, por força de uma determinação a

priori.

É simplesmente impossível dissociar de uma experiência noções de espaço e

de tempo. Seria incoerente com o princípio da sensibilidade pesar apenas sobre um

aspecto, espacial ou temporal, para a constituição de um objeto da experiência. Toda

constituição conceitual empírica necessita de uma constância no tempo para

determinar o objeto enquanto o mesmo se insere espacialmente.

Ao vaguear pela superfície, o olhar vai estabelecendo relações temporais entre os elementos da imagem: um elemento é visto após o outro. O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar elementos já vistos. Assim, o “antes” se torna “depois”, e o “depois” se torna o “antes”. O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem é o eterno retorno. O olhar diacroniza a sincronicidade imaginística por ciclos. (Flusser 2002:7)

Em resumo, tanto a constância no tempo (simultaneidade dos elementos

espaciais) quanto a mudança no tempo (a sucessão dos elementos espaciais) são

igualmente aspectos intuitivos para todo fenômeno, ao mesmo tempo em que nossa

própria forma de percepção de um objeto, do vaguear pela superfície, atua em sentido

149

a coadunar-se temporalmente ao espaço.

Esta reflexão, apesar de seu caráter fragmentário, claramente descreve um dos importantes resultados intermediários do argumento da Segunda Analogia: embora subjetivamente todas as percepções se sucedam no tempo, ainda assim tem de ser possível distinguir por meio delas o que é uma sucessão objetiva de estados, ou seja, uma mudança nos próprios objetos, e o que é apenas a apreensão sucessiva de um estado ou objeto que permanece objetivamente inalterado no tempo. (Marques 2010(b):130,131)

No caso do objeto musical não pode ser diferente. Tomemos o exemplo de

Jesu, rex admirabilis de Palestrina (Img. F).

Assim como o espaço visual, há também um espaço acústico abstrato

determinado pela capacidade do respectivo órgão. A forma musical, a melodia e a

escuta das funções harmônicas, são, as que mais facilmente indicam aspectos

dispostos na categoria da quantidade (relações de freqüência e divisão proporcional

das ocorrências) em uma exibição espacial, e assim, características que

tradicionalmente pareciam mais afeitas ao tempo se mostram facilmente impregnadas

de espaço. Do mesmo modo, características tradicionalmente afeitas ao espaço dão

lugar a notas temporais.

O artigo de José Oscar Almeida Marques (2010 b) possui uma interessante

análise sobre a Segunda Analogia da Experiência aplicada a eventos temporais na

música. Sua intenção é aplicar critérios lógicos/causais de simultaneidade e sucessão

para os casos musicais de acordes e melodia.

Marques indica que o tempo, em primeiro lugar, não é uma relação direta com

a seqüência da percepção determinada pela coisa em si, mas como já indicamos trata-

se de uma indexação44 de um múltiplo que não possui qualquer tipo de organização. A

tarefa de estabelecer uma ordem efetiva e objetiva é do conceito (Marques

2010(b):134).

A causalidade dos eventos sucessivos no tempo é um atributo do

entendimento, e assim indica o exemplo kantiano do navio a subir pelo rio.

Assim, por exemplo, vejo um barco impelido pela corrente. A minha percepção de sua posição à jusante do curso do rio segue-se à percepção da sua montante e é impossível que, na apreensão deste fenômeno, o barco

44� Indicamos como indexação a síntese promovida pelas intuições puras sob a apreensão de um diverso pela sensibilidade. No sentido deste diverso vir a conter, diferente de determinações, indexações de espaço e tempo sobre este diverso. Não há nenhum objeto, tão somente a agregação destas intuições puras sobre o diverso.

150

pudesse ser percebido primeiro a jusante e depois a montante da corrente. A ordem da seqüência das percepções na apreensão é pois aqui determinada, e a ela está sujeita a apreensão. (CRP B 237)

Esta é uma experiência que não pode ser interpretada de modo contrário sem

que se altere a própria forma da determinação no tempo. Nenhum elemento pode ser

intercambiado, pois é resultado de uma determinação causal temporal necessária. Para

Marques, o mesmo sucede com a melodia. Sua sucessão obedece a uma ordem

concreta, objetiva e necessária, onde não é possível intercambiar nenhum evento, com

pena de se invalidar a relação causal e a realidade do objeto.

No caso do acorde, o modelo interpretativo kantiano passa a ser outro, e o

exemplo análogo para o caso da simultaneidade é o da casa (CRP B 236,237). Neste

caso a regra causal, que ligou uma seqüência melódica por um constrangimento

lógico, não teria lugar. Para este caso da simultaneidade os elementos não disporiam

de uma hierarquia temporal. É neste sentido que Marques indica que podemos nos

dedicar a escuta de qualquer nota do acorde pois a ordem em que escutamos não

dependeria de um constrangimento lógico, mas de nosso interesse: “[...] mas não há

nenhuma implicação de que esta ordem esteja determinada por algo no próprio objeto,

nem que as notas comecem a existir no momento em que as apreendo; assim esta

ordem é puramente arbitrária [...]” (Marques 2010(b):135) 45.

Abrimos um parêntesis sobre a interpretação de Marques a introduzimos

outras questões.

No momento em que Marques indica que no caso do acorde, como no caso da

casa, temos um objeto exibido e podemos passar o olho ou o ouvido sobre suas

características, à nossa escolha, destacamos também como esta mesma experiência –

contraste temporal entre o acorde e a melodia – converte-se com facilidade em um

caráter espacial.

45� Marques se interroga a respeito da possibilidade de se escutar um acorde sequencialmente, mesmo enquanto simultaneidade, dado que a escuta ocidental se habituou a escutar uma só função entre notas fundidas, com a mesma imediaticidade que escutamos uma nota. Resolvemos este dilema mostrando que não apenas o acorde possui valor funcional, mas as notas melódicas também, porém estas agem com força e possibilidades diversas, dada pelas condições lógicas da experiência. É possível assim perceber seqüência tanto para a percepção de notas quanto no interior do acorde, e como Marques bem o demonstrou, no caso do acorde é passível de certo uso diferencial da causalidade de acordo com a possibilidade singular que se coloca. Estes dependem, além de fatores acústicos e do tipo de seqüência visada (seqüência de acordes), da estaticidade das notas simultâneas e da duração que dispomos para ‘variá-las’. Contudo, queremos ressaltar que uma simultaneidade estrita é dificilmente obtida, tanto em termos temporais cronometrados, como em uma experiência fenomenológica do acorde, que conta com uma hierarquia tonal. Para ouvidos treinados certamente os acordes tonais são inicialmente ouvidos a partir da fundamental.

151

Como Marques mesmo aponta, no acorde temos diante de nós uma faixa que

vai do grave ao agudo onde podemos dispor nossa atenção, ou seja, um caso onde a

organização não seqüencial nos faz perceber a relação espacial da ‘disposição’ das

notas no espectro sonoro. As notas do acorde estando agrupadas em um mesmo

momento chamam a atenção de Marques, e dizemos que é justamente porque ali o

caráter espacial fica evidente.

Se por um lado não há uma hierarquia seqüencial que constranja as notas, não

se pode dizer que elas se coloquem não-hierárquicamente, como Marques parece

querer sugerir. Todas as notas do acorde se alinham em termos funcionais, sobretudo

para o caso da música tonal. É comum também que haja uma nota melódica no

próprio acorde. Neste caso a nota melódica pode ao mesmo tempo conter um caráter

seqüencial e um simultâneo. Assim também com o acorde, se tomado

independentemente ou como parte de uma progressão.

Seguindo o mesmo princípio da sensibilidade, válido para qualquer objeto

empírico, a melodia não pode ser compreendida enquanto temporal ignorando-se o

espacial46. Uma sucessão temporal de notas inscreve-se necessariamente em uma

localidade do espectro sonoro, porém, sem sucessão e sem espacialidade (extensão)

não seria possível identificarmos algo enquanto melódico. Em uma sucessão melódica

temos que perceber não apenas sucessão temporal mas também mudanças de graus

(CRP B 210-213).

Em Jesu, rex admirabilis (Img. F) temos em um primeiro momento uma

homogeneidade rítmica e uma continuidade melódica. Isto segue até o oitavo

compasso, onde uma voz, a mais aguda, passa a ser sustentada. Neste momento as

demais vozes começam a depreender-se e se tornam mais independentes.

No momento em que as vozes se desprendem, cada qual com suas notas

rítmicas, podemos dizer que o evento ocorrido foi de caráter espacial ou temporal?

Como não estamos tratando de intuições puras, os termos espacial e temporal

preenchem uma série de características, e não apenas uma. Um detalhe melódico pode

dizer respeito a questão temporal, mas a melodia como um todo obedece às

determinações espaciais e temporais, assim como qualquer elemento empírico.

Questões tais como: seria o ritmo uma organização do tempo, ou uma

delimitação do espaço?, não compreendem o aspecto transcendental ou lógico dos

46� “Todos os fenômenos contem, quanto à forma, uma intuição no espaço e no tempo, que é o fundamento a priori de todos eles. (CRP B 202).

152

termos espaço e tempo.

Contudo, a antiga identificação da música como a arte do tempo não

contempla uma observação atenta do fenômeno musical, ou de seu fundamento

transcendental. Tal definição tende a ser simplesmente metafórica se não aponta para

aspectos e notas matérias contidas nestes objetos.

Naquilo que é imediatamente pertinente ao nosso trabalho concluímos que

tanto objetos sonoros, musicais e visuais partilham de caracteres espaço-temporais de

modo necessário.

2. Análise lógico-musical: correspondência transcendental entre os elementos musicológicos.

Passamos agora para a análise lógica exclusiva ao objeto musical. Nele destacaremos

regras que são condições de possibilidade de toda escuta musical, que se aliam a

técnicas e procedimentos composicionais, e enfim, a um objeto musical distinto

intelectualmente.

Listamos alguns complexos de elementos sonoros que se sublevam enquanto

técnica ou mesmo categorias da escuta:

Organização de freqüências:

. Série Harmônica

. Temperamento

. Escala

. Harmonia

. Acorde

. Contínuo (não escalar)

. Sons complexos

Disposição do material:

. Pulso

. Andamento

153

. Compasso

. Duração

. Ritmo

. Frase

. Série

. Forma

Controle de parâmetros:

. Intensidades

. Timbres

. Ataques

. Corpo

. Queda

Estes elementos já se constituem como condições de distinção sensível, por

isto podemos também chamar de categorias de escuta, mas não em sentido a priori.

Outros tipos de distinções se incluem no discurso musical. Dante Grela (1976)

em seu artigo Análise Musical: Uma proposta Metodológica, indica por exemplo

quais seriam as categorias elementares da articulação em geral:

1) SEPARAÇÃO: quando, entre a conclusão de uma unidade formal e o

começo da seguinte, media um silêncio de qualquer magnitude.

2) JUSTAPOSIÇÃO: quando duas unidades formais se sucedem sem que

exista descontinuidade sonora entre o final de uma e o começo da outra (neste

caso, portanto, o ‘fator articulatório’ deverá ser outro, em lugar do silêncio).

3) ELISÃO: quando o elemento ou grupo final de elementos de uma

determinada unidade formal funciona ao mesmo tempo como começo da

unidade seguinte (também neste caso deverão existir ‘fatores articulatórios’

de outra índole que o silêncio).

4) SUPERPOSIÇÃO: quando, estando constituída a textura por maus de um

‘plano sonoro’ (

5) INCLUSÃO: este caso, podemos dizer que constitui fundamentalmente um

“modo de articulação especial”, mais que especificamente temporal, e se

produz quando, numa textura constituída por mais de um estrato, alguns

154

destes começam e terminam suas unidades formais dentro do tempo que

abarcam as unidades em outros estratos, começando, portanto, depois e

terminando antes que estas últimas. (Grela 1976)

Estas são algumas categorias de percepção musical como descritas pelos

manuais. São nomenclaturas próprias da atividade musical que possuem uma

contrapartida nos atos de nossa atenção auditiva. No tópico a seguir vamos lançar mão

de categorias da percepção e associa-las a operações lógicas, do mesmo modo como

fizemos com o exemplo das garrafas. O que se quer qualificar é o uso do

entendimento enquanto condição necessária da satisfação dos critérios de

inteligibilidade musical.

2.1 Análise lógica sob um exemplo da música instrumental clássica.

Consideremos um exemplo de fácil assimilação. Uma obra de música tonal da

primeira escola de Viena. Fiquemos com uma Deutscher Tanz de Beethoven (Fig. E).

Como se trata de uma peça simples, fortemente demarcada por movimentos

repetitivos, tratemos antes dos termos que qualificam a repetição em sentido musical,

diferente da repetição sonora simplesmente paramétrica. A repetição, nos diz

Schoenberg, pode ser literal ou modificada (desenvolvida):

As repetições literais preservam todos os elementos e relações internas. Transposições a diferentes graus, inversões, retrógrados, diminuições e aumentações são repetições exatas se elas preservam rigorosamente os traços e as relações intervalares [...] As repetições modificadas, criadas através da variação, geram variedade e produzem novo material (formas-motivo) para utilização subseqüente. (Schoenberg 1996:37)

Utilizamos, para melhor qualificação de nosso exemplo, os termos, ‘repetição’

para significar uma repetição literal, ‘repetição semelhante’ para casos de variações

funcionais mesmo que a repetição seja literal e ‘repetição modificada’ assim como

Schoenberg a emprega. Para modificações mais radicais o termo repetição passa a não

valer, e usamos diretamente ‘variação’ ou ‘desenvolvimento’.

A repetição, seja aquela impressa pelo ritornello, seja por pequenas variações

ou mudanças de grau, resguarda a unidade da peça e sua linguagem particular. A

155

repetição quer justamente propiciar uma familiaridade, uma possibilidade de

conhecimento e reconhecimento com o ouvinte, critério que Schoenberg nomeia de

compreensibilidade:

A variedade não deve obscurecer a lógica ou a compreensibilidade: esta última requer, ao contrário, a limitação da variedade, especialmente se as notas, acordes, formas-motivo e contrastes se sucederem de forma rápida. A rapidez é um obstáculo à percepção de uma idéia e, desse modo, as peças em tempo rápido exibem um grau menor de variedade. Há meios através dos quais se pode controlar a tendência ao desenvolvimento muito rápido, que é sempre conseqüência de uma variedade desproporcionada: os mais usuais são a delimitação, a subdivisão e a repetição simples. (Schoenberg 1996:47)

Em nosso exemplo estas repetições estão claramente assinaladas pelo

ritornello (Fig. E), porém observamos em cada seção, e sobretudo na primeira,

repetições de frases em seu interior: (comp. 1-5 / 5-9). O mesmo se segue na segunda

seção, onde há uma repetição transposta (comp. 10-12), uma repetição modificada

(comp. 12-14) e uma ‘relembrança’ de um período inteiro, provindo da seção I (comp.

14-18). A segunda seção é demarcada por uma variação do tema reduzido ao motivo

(frase 2) a qual é repetido e então variado (comp 10-14) o que faz articular recorrendo

a uma grande familiaridade temática.

Noções de repetição, relembrança, diferenciação e familiaridade ressaltam atos

lógicos, pois a repetição, a lembrança, e a comparação, para a diferenciação ou

familiaridade, não são senão variações pontuais de um processo geral de recognição, a

partir de distinções intelectuais (Lógica A 44).

Escutando mais atentamente, mais características articulatórias relativas ao

material tendem a se tornar cada vez mais conscientes, e uma hierarquia dos

elementos é assim erigida; seção I e II, frase 1 (e suas variantes), frase 2 (e suas

variantes), formas-motivo47, acompanhamento 1 [arpejo] e 2 [acorde].

Destaca-se em toda a obra a ocorrência de um motivo compondo variações e

formas-motivo48. A repetição deste elemento, sempre reiterado, cria um padrão que se

torna o núcleo recognitivo da obra, servindo de base para demais atos lógicos. Todo

47� As formas-motivos são os temas formados pelo motivo, que no caso constituem na totalidade a frase 1. No caso da frase dois não há uma forma-motivo mas tão somente um motivo, se não se quiser ainda atomicamente definir como tema o simples intervale de terça-menor inicial.48� “O motivo geralmente aparece de uma maneira marcante e característica ao início de uma peça. Os fatores constitutivos de um motivo são intervalares e rítmicos, combinados de modo a produzir um contorno que possui, normalmente, uma harmonia inerente . Visto que quase todas as figuras de uma peça revelam algum tipo de afinidade para com ele, o motivo básico é frequentemente considerado o ‘germe’ da idéia [...]” (Schoenberg 1996:35)

156

juízo que opera no interior de uma obra, todas as ligações e funcionalizações

(semelhança, dessemelhança, complementaridade, diferença, lembrança, recapitulação

etc.) dizem de estados relativos às formas-motivo.

Assim, todo o extrato de valores e funções que emanam da peça se dão em

referência a este núcleo temático, que pode ser compreendido em uma dupla função;

enquanto elemento material identificável ou enquanto o próprio esquema de

subsunção aplicado enquanto condição de possibilidade para a compreensibilidade da

peça.

Até mesmo a escrita de frases simples envolve a invenção e o uso de motivos, mesmo que, talvez, inconscientemente. Usado de maneira consciente, o motivo deve produzir unidade, afinidade, coerência, lógica, compreensibilidade e fluência do discurso. (Schoenberg 1996: 35)

A referência de Schoenberg é sempre a obra de Beethoven, e o modelo de

composição a que se refere é justamente o modelo clássico que nos interessa. O

motivo enquanto germe presente em toda a obra constitui-se como conceito chave de

toda recognição dos elementos de uma obra, referente não só às frases, mas à forma e

harmonia. Apenas no momento em que tal estrutura é internalizada – acrescentamos,

não necessariamente conscientemente49 – somos capaz de frutiferamente gozar de

uma audição musical.

No caso musical o esquema têm a função de unificar um diverso, por exemplo,

unificar formas-motivo em uma experiência musical. Esta mesma experiência onde

podemos estar cientes de perceber formas-motivo constitui prova de uma ação

esquemática (CRP B 162), pois que o conceito ‘motivo’ é tão somente uma abstração

de um componente empírico, que se dá à experiência sob os mais diversos elementos

de uma escuta, mas que atuam mesmo de forma não consciente. Dentro de um modelo

transcendental, podemos isolar a forma puramente esquemática, ou seja, retirarmos as

intuições presentes no objeto musical a sobrar senão seu padrão lógico. Dado um

exemplo temático-motívico (Schoenberg 1996:35), podemos nos debruçar não mais

no fático, mas em sua estrutura esquemática, condição de possibilidade de uma

49� O trabalho de Bigand (2005) demonstra que a percepção de melodias, estruturas musicais, harmonias, não se restringe ao especialista: “Com base na constatação de que existem muito mais similaridades que diferenças entre os cérebros de músicos e de não-músicos, postulamos que as redes neuronais postas em jogo nas atividades musicais se desenvolvem mesmo na ausência de um aprendizado intensivo. Em outras palavras, a simples escuta (e não a prática) basta para tornar o cérebro “músico”.

157

experiência. Sem esta capacidade lógica estaríamos surdos para as frases e

consequentemente para a melodia, segue-se assim um crivo para qualquer estrutura

significativa em uma obra musical.

Em todo o conhecimento de um objeto há a unidade do conceito, que se pode chamar unidade qualitativa na medida em que por ela é pensada só a unidade da síntese do diverso dos conhecimentos, à maneira da unidade do tema num drama, num discurso, ou numa fábula. (CRP B 114)

Prosseguindo, no que diz respeito às conexões dadas em uma obra a partir

deste núcleo conceitual, veremos que o motivo coaduna outros níveis articulatórios:

A menor unidade estrutural é a frase, uma espécie de molécula musical constituída por algumas ocorrências musicais unificadas, dotada de uma certa completude e bem adaptável à combinação com outras unidades similares. (Schoenberg 1996: 29).

Como definido na primeira Crítica, podemos dizer que a camada

indeterminada da percepção é subsumida por um nível articulatório da experiência, e

no caso da música clássica o articulatório compreende sempre o nível melódico,

sendo este o resultado de subsunções do esquema motívico em questão. O todo é dado

condicionadamente pela apreensão das partes, porém o enlace – inconsciente – dado

enquanto condição na própria possibilidade da recognição faz exibir já uma estrutura

significativa, temos diante de nós imediatamente uma melodia.

Concomitante à esta relação motivo/melodia temos outra dimensão de

funcionalização do material sonoro, a harmonia tonal. A harmonia tonal funcionaliza

todas as notas materiais presentes em uma obra musical. Constituem uma ordem

diversa daquela movida apenas para as formas-motivo, de recognição de seu esquema

e ajuizamento de suas ocorrências. A harmonia cria outra ordem de relações, ditas

harmônicas, que atuam concomitantemente à escuta melódica. O valor relativo dos

graus tonais – pois estes não se aliam a dados empíricos fixados – já demonstram o

grau esquemático que possuem.

Por exemplo, a região tonal da subdominante não pode ser definida por

nenhuma nota ou acorde fixado. Tal função é perceptível apenas ‘em relação’ a outras

notas e acordes. Ou seja, tal relação é taxada como funcional, e as notas ‘encarnam’

esta função quando a condição harmônica é satisfeita. Distinguir funções tonais em

meio a notas dadas empiricamente configura assim uma ação lógica que subsume o

158

empírico, igualmente recognitiva. A função harmônica, antes de ter seu fundamento

colocado à prova psicológica, acústica ou matemática, tratar-se-ia de uma aplicação

do juízo, algo como um juízo tonal alocado à um diverso – sinteticamente.

Voltemos a nosso objeto (Img. E). Em termos funcionais podemos apontar que

a primeira seção como um todo se encontra na tônica, a segunda seção na

subdominante e então retorna para a região da tônica. Do entrecruzamento dos

padrões temáticos/melódicos com a funcionalidade harmônica emergem novas

articulações e portanto novos juízos.

Podemos descrever diferenças e igualdades não apenas enquanto

características quantitativas dadas na altura das notas, mas enquanto assumem uma

função harmônica na organicidade da peça. Retornemos então à totalidade da peça, a

sua divisão hierárquica agora acrescida do caráter harmônico a pensar novamente a

subdivisão dada por nossa percepção.

A frase 1 e 1’ além do conteúdo específico que possuem, encerram uma função

de exposição, elas abrem a peça, expõe a tonalidade e o tema. As frases 1a e 1’a50

tendem a se apresentar como repetição, eco, pois que se seguem sem mudanças, a não

ser nos compassos finais da seção I onde há uma cadência final, fazendo o último

compasso encerrar a primeira seção. O ritornello repete tudo novamente, reexpõe o

tema e a tonalidade, e ecoa, mas agora, com consciência de que se trata de uma seção,

pois há um encerramento. A frase 1 e 1’ formam um só período, e a frase (1a) e (1’a)

um outro período porém semelhante.

Relações que pareciam tão simplórias começam a se tornar mais complexas no

momento quando nos compassos finais da segunda seção (14-18) vemos a frase 1 e 1’

ressurgir, porém em um momento muito diverso. A frase 1 aparece idêntica pois que o

compasso anterior fez questão de articular a frase anterior (comp. 14) de modo que

concluísse na mesma harmonia do início da seção I, com uma pausa e com uma

mudança de intensidade, restabelecendo assim todas as condições iniciais da frase 1.

Neste momento nossa percepção nos faz remeter a uma volta no tempo,

mesmo que curiosamente a frase 1 esteja distante temporalmente é ela mesma

50� A partícula ‘a’ quer destacar que as frases são idênticas quanto às determinações sonoras (freqüências) determinadas na partitura, porém se encontram em momentos temporais diversos. Esta diferença temporal, na verdade, de um lugar na ordem temporal, faz com que percebamos a frase com uma função diversa da anterior. Algumas nuances podem ser evocadas pelo intérprete, por exemplo, tocando-se Xa com intensidade pp poderíamos considerá-la como eco, p como atenuante, f como resposta, a depender das possibilidades da peça.

159

evocada aqui (comp. 14), com a diferença de conter uma ‘explicação’ da origem de

sua harmonia, o que não acontece no primeiro compasso pois que a melodia surge

pela apojatura. Neste caso (comp. 14) ela surge explicada a partir da cadência para a

tônica. Temos a volta para um idêntico. Ao mesmo tempo em que tal volta é

impossível pois nos encontramos já entre outras articulações e lugar no tempo. Depois

de tal evento somos obrigados a novamente re-significar as articulações.

Temos uma apresentação e cadência na seção I, e depois sua repetição pelo

ritornello. Temos o contraste introduzido na seção II pela frase 2 e suas variantes, e

então subitamente um remetimento ao passado a partir do compasso 14 onde a frase 1

e 1’ são reconstituídas em outro momento, onde 1’ por motivos formais é convertida

em cadência final da peça. Há aqui relações harmônico/melódicas/temporais frutos de

juízos que se seguem subsequencialmente.

Todas estas articulações se inserem em uma forma maior, uma Deutscher Tanz

gênero ao qual a obra se inscreve51. Sua forma musical com duas seções (ABa), e

compasso 3/4 configuram um gênero musical, e igualmente um gênero de dança. A

partir deste gênero compreendemos no interior da seção II o período formado pela

frase 2 e suas variações, além da ‘seção contrastante’ típica desta forma (Schoenberg

1996:152).

O conceito de Deutscher Tanz (dança) e o de garrafa (utensílio) compartilham

de um horizonte prático vinculado ao conceito do objeto. Tal conceito coage o

compasso ternariamente. A dança alemã não é um conceito de Beethoven, vemos

composições de Haydn, Mozart, Schubert que seguem esta exata ordem, trata-se de

uma forma musical, ou, em termos lógicos, de um gênero, um esquema a qual

espécies são subsumidas.

Para o caso das garrafas podemos traçar certo contorno cilíndrico (ideal) a

determinar toda e qualquer garrafa, pertencendo mesmo à determinidade do conceito

sobre a forma empírica do objeto. No caso de objetos musicais, ou, a forma musical

da Deutscher Tanz, há um contorno prescrito no andamento, na distribuição de

compassos e seções que determinam qualquer Deutscher Tanz.

Resta-nos determinar a extensão deste conceito. Para o caso do horizonte

prático a música, neste caso, deverá se adequar às coreografias da forma de dança

homônima. Uma tocata por sua vez não apresentará uma uniformidade na organização

51� “Uma porcentagem esmagadora de formas musicais é composta estruturalmente de três partes. A terceira parte é, por vezes, uma repetição exata (recapitulação) da primeira, mas frequentemente aparece sob a forma de uma repetição modificada” (Schoenberg 1996:151).

160

de seus componentes sensíveis de maneira tão específica como da dança, porém o

peso de seu conceito prático impresso em sua definição tocata prevê um virtuosismo

instrumental, que contudo não se encontra tão determinado como no caso da dança em

geral. Formas como a sonata, sinfonia e quarteto, ou técnicas como cânone e fuga, não

apresentam conteúdos práticos, e são tidos como formas da música pura, ou seja,

possuem apenas extensão lógica e estética.

Contudo, no que tange principalmente ao horizonte estético, Kant ressalta que

há um limite de intercessão, ou seja, não é possível que o estético em seu caráter puro

se deixe complementar de outros horizontes. Para Kant há características

incongruentes entre as extensões lógicas e estéticas, e um equilíbrio destas acarretaria

em verdade em um prejuízo equalizado, pois os limites de um implicariam em uma

zona de inoperatividade do outro:

Sem dúvida, entre a perfeição estética e a perfeição lógica de nosso conhecimento persiste sempre, a rigor, uma espécie de conflito, que não pode ser totalmente superado. O entendimento quer ser instruído; a sensibilidade, animada; o primeiro deseja discernir; a segunda, apreender. Se os conhecimentos devem instruir, eles devem ser, nesta medida mesmo, elaborados a fundo; se eles devem ao mesmo tempo entreter, então também tem que ser belos. Se uma apresentação é bela, mas superficial, ela só pode agradar à sensibilidade, mas não ao entendimento; se ela é, ao invés, elaborada a fundo, mas é árida, só pode agradar ao entendimento, mas não à sensibilidade igualmente. (Lógica A 48)

A possibilidade de algo ser ‘instruído’ e belo ao mesmo encontra-se vetada, a

partir de algo próximo da máxima, “por fora bela viola, por dentro pão bolorento”.

Ressalta-se aqui que a música tonal traçou o caminho da árida compreensão,

da instrução. Porém, diferente do critério estabelecido na citação, a presença de

agrado sensível, para não falar mesmo em prazer artístico, está igualmente presente

nestas obras. Nenhuma determinação de nossa análise demonstrou, apontou ou

vislumbrou qualquer diminuição do valor estético da obra exemplificada a partir das

propriedades analisadas, muito pelo contrário as funções lógicas que serviram como

condição de recognição são as que garantem a exibição do objeto musical, seu jogo

artístico, e assim, qualquer outro juízo que possa recair-lhe.

161

3. Graus de síntese e ajuizamentos sobre um objeto empírico.

Todo objeto pode dar lugar a uma série de novas sínteses e ajuizamentos, e esta

possibilidade se encontra na base de qualquer ciência, pois uma teoria requer

condições empíricas que se sublevem em graus sintéticos de ordem superior. É neste

preciso contexto que podemos falar de uma teoria musical, ou de teorias que se

associam à arte musical.

A partir da segunda metade do século XX verificamos uma retomada, por

parte dos compositores, da exploração de recursos provindos tanto da ciência acústica

como da psicoacústica, esta última rapidamente migrando para as práticas de

composição e manuais de análise musical.52 A realidade no século XVIII não era tão

diferente, pois que a acústica vinha florescendo, e mesmo o sistema tonal parte de

uma premissa psicoacústica, ou seja, dos efeitos perceptivos a partir de relações

sonoras. A teoria tonal constituída conjuga critérios de percepção, criação e sensação,

todas sob regras e leis de associação de freqüências acústicas. Esta encontra uma

forma axiomatizada já no século XVIII53.

Anteriormente, regras extraídas da proporção áurea monopolizavam a

composição e os critérios estéticos em geral, unificando todas as medidas de

inteligibilidade para qualquer objeto. A teoria tonal, assim como a ciência moderna,

possui uma estrutura axiomatizada, um princípio elegante simplificado.

Resumidamente a teoria postula: 1) tudo se encontra sobre uma função;

dominante, subdominante e tônica [tonalidade]; 2) para cada função estabelecida há

funções homônimas com diferença de intensidades [funções secundárias]; 3) Cada

acorde possui a partir de seu centro tonal, funções individuais [dominantes e

52� Para um entendimento histórico da relação entre a ciência e a prática musical ver o artigo de Penélope Gouk, The role of harmonics in the scientific revolution (Gouk 2002).53� A terminologia e a lógica da teoria tonal expressa-se em sua versão definitiva com a obra de Riemann de 1898 Handbuch der Harmonielehre. Porém o princípio tonal já havia sido proposto por Rameau – sem um princípio lógico evidente como aquele que vem surgir no século XIX. Curioso de toda forma ver que a forma final da teoria tonal fica pronta praticamente no fim da música tonal, na virada para o século XX, onde as leis tonais passaram a ser de pouco uso para os compositores vindouros. De qualquer forma o princípio tonal já estava exposto em Rameau em todos os seus elementos, como indica Bernstein (2002): "[...] A implicação mais significativa da nova teoria das três harmonias primárias de Rameau é vista em sua reconceitualização da tonalidade; agora ele começa a conceber o tom [Key] em termos de relações harmônicas em torno de um centro tonal. Em sua Génération Harmonique ele superou a explicação cartesiana da tonalidade por base mecanicista baseando a tonalidade na ligação dos acordes dissonantes e consonantes a um modelo intelectual [entelechial] inspirado na teoria gravitacional de Newton. Neste sentido a tonalidade resulta das forças de atração entre a tônica e sua harmonia dominante e subdominante." (Bernstein 2002: 795)

162

subdominantes individuais].

A teoria se aplica plenamente para tons organizados escalarmente, a partir de

um temperamento igual (12 tons). Fica igualmente possível reproduzir efeitos iguais

em qualquer instrumento que satisfaça as condições do sistema.

Todo este regramento é necessário na medida em que, diferente da leitura de

Kant da terceira Crítica, passamos a descrever uma experiência musical enquanto uma

operação plenamente consciente e definida categorialmente. Se for o caso de termos

um objeto, e se for o caso de empreendermos distinções lógicas, então certamente que

se operam atos lógicos.

Se qualquer representação particular fosse completamente alheia às demais, se estivesse como que isolada e separada das outras, nunca se produziria alguma coisa como o conhecimento, que é um todo de representações comparadas e ligadas. Se, pois, atribuo ao sentido uma sinopse, por conter diversidade na sua intuição, a essa sinopse corresponde sempre uma síntese e a receptividade, só unindo-se à espontaneidade, pode tornar possíveis conhecimentos. Esta espontaneidade é então o princípio de uma tripla síntese, que se apresenta de uma maneira necessária em todo o conhecimento, a saber, a síntese da apreensão das representações como modificações do espírito na intuição; da reprodução dessas representações na imaginação e da sua recognição no conceito. Estas três sínteses conduzem-nos às três fontes subjetivas do conhecimento que tornam possível o entendimento e, mediante este, toda a experiência considerada como um produto empírico do entendimento. (CRP A 97, 98)

Toda esta mecânica transcendental que descrevemos para a escuta de uma obra

musical diz respeito a estruturas universais presentes em todo sujeito. Portanto, tem

que ser acessível, e mesmo possível a todo sujeito, compreender uma organização

musical pela simples virtude de sua consciência.

A idéia de que um cérebro “não-músico” possa ser expert no processamento das estruturas musicais surpreende. Trata-se, no entanto, de uma conclusão apoiada em numerosos estudos feitos sobre a aprendizagem implícita, isto é, aquela de que não temos consciência (contrariamente à explícita, consciente). Essas pesquisas demonstraram a extraordinária capacidade do cérebro de interiorizar as estruturas complexas do ambiente, mesmo quando só estamos expostos a elas de maneira passiva. (Bigand 2005:59)

O objeto musical constituído, enquanto que um objeto empírico e distinto

intelectualmente, constitui-se também como objeto lógico que pode ser compreendido

no interior de teorias musicais e ainda no âmbito daqueles fatos legitimados pela

teoria da Crítica da Razão Pura, como todo e qualquer conteúdo regrado pelo 163

entendimento.

Mas, constituindo-se como um objeto qualquer, sem desconsiderar suas

particularidades, e comparando os processos lógicos de sua percepção aos de uma

garrafa de plástico, não estaríamos fazendo, como Kant, comparando o conteúdo da

música a um papel de parede?

Nossa resposta é negativa. Pois o valor de comparação que empreendemos é

diverso daquele a qual Kant aplica na terceira Crítica. Defendemos que o que há em

comum ao papel de parede, à música e à garrafa é o fato de serem objetos, fruto de um

juízo determinante do entendimento. Ainda diferente do caso da terceira Crítica, não

implicamos de maneira necessária a impossibilidade da beleza conter algum juízo

lógico. O que fizemos foi justamente incluir o objeto musical sob as condicionantes

lógicas válidas para qualquer objeto, sem com isto querer igualar o conteúdo destes

objetos relativos a seus estatutos.

3.1 Cópula de predicados.

Mostramos que o objeto musical se diferencia do objeto sonoro por concorrer com

articulações que formam um todo discursivo o qual demonstramos brevemente na

análise da Deutscher Tanz de Beethoven. Dado esta condição podemos esboçar uma

definição para o objeto musical que indique esta diferença a partir de um estatuto

epistemológico sujeitado ao entendimento, implicando um processo de síntese.

Ora, toda síntese é produto de um juízo, que faz unir representações a partir da

copula verbal ‘x é y’. O objeto musical deve ser o resultado de juízos sob objetos

sonoros, juízos típicos desta atividade.

Faz parte do senso-comum abranger certas obras musicais em certos gêneros,

e isto não perfaz nenhuma atividade especializada, ela só depende do conhecimento

de um repertório e de um pequeno montante de determinações do gênero. Trata-se

aqui de uma cópula, não em sentido musical, mas uma cópula a respeito de um objeto

musical constituído.

O mesmo acontece no interior da obra, por exemplo, ao predicar sobre a

associação de um tema à uma outra ocorrência modificada como uma variação deste

tema, diremos por exemplo ‘y é x (variado)’. Ou quando escutamos o tema sendo

executado por outro instrumento o qual não tínhamos atinado dizemos ‘é o tema!’ ou,

‘aquele contrabaixo faz uma imitação!’.

164

A síntese, ou cópula, entre tema e desenvolvimento, entre contra-tema e

demais elementos de uma peça é portanto condizente com o verbo ‘ser’ enquanto uma

predicação. As possibilidades categoriais de cópula no interior do objeto musical são

tão múltiplas quanto a capacidade de ligação inerente aos objetos sonoros de um lado

e de nossas potências inatas de outro.

Decorrente disso podemos pensar em outra classe de juízos que não o juízo de

gosto puro, capaz também de assertar volitivamente – discordando, concordando,

dando assentimento, consentimento, dissentimento, etc. Que no caso pode ser erigido

a partir do histórico de ajuizamento de objetos musicais, sem que seja preciso recorrer

à uma ordem estética, entendida enquanto ordem se assentimento da beleza como

descrito por Kant.

Estas classes de juízos são muito comuns na apreciação musical, comumente

ajuizamos: ‘a ligação entre x e y é válida enquanto contraponto’, ‘a ligação entre x e y

não é válida enquanto desenvolvimento’, ‘posso aceitar este acorde apenas no

compasso 31’.

Este tipo de cópula e avaliação que também desperta prazer ou desprazer não

pode ser contemplada pelo estatuto do juízo estético, embora possa ser dito que temos

de fato uma sensação subjetiva a respeito da experiência objetiva que temos. Contudo,

fica difícil conceber este prazer fora das distinções intelectuais em questão.

Aquilo que na representação de um objeto é meramente subjetivo, isto é, aquilo que constitui sua relação com o sujeito e não com o objeto é a natureza estética dessa relação; mas aquilo que nela pode servir ou é utilizado para a determinação do objeto (para o conhecimento) é a sua validade lógica. (CFJ: XLII)

165

Conclusão

1. A tese de Hanslick.

Sendo este um tema amplamente abordado pela musicologia e estética, o

estabelecimento de uma música pura, de uma música autônoma ou absoluta se liga à

nascente música clássica, e nela, a formalização do sistema tonal engendrado no

interior de um discurso eminentemente instrumental.

A escolha deste objeto específico, da música clássica, sobretudo a representada

na primeira escola de Viena, quis destacar o momento inicial de uma nova forma de

significação musical, que pelo menos do ponto de vista quantitativo, possui escassa

literatura. Mas, no que concerne à escolha de um objeto de investigação, conta com

amplo registro material, composto para as mais diversas formações instrumentais.

O sistema tonal contou com uma série de personagens, porém, aquele que

podemos conferir o gênio da síntese é sem dúvida Joseph Haydn. O músico erigiu um

sistema de composição a partir de formas musicais simples, criando células motívicas

e então desenvolvendo a partir delas formas mais complexas. (Dilthey 1945).

Esta técnica de composição de Haydn aliada ao tratado musical de Rameau

deu forma ao movimento clássico, e a emergência da música instrumental. O sistema

tonal e o discurso instrumental deu lugar a outros movimentos e foi diretamente

influente até o início do século XX, e é um modelo ainda estudado nos cursos de

música.

Contudo, os discursos da autonomia da música se cristalizam apenas

posteriormente, sendo inicialmente criticado pela falta de texto e compromisso com a

representação das paixões. Esta falta de uma definição de um sentido ou função

culturalmente alicerçada configura um quadro bastante rico para nosso interesse. Pois

a música tendo sido classificada como meio expressivo acessório, se viu obrigada a

criar uma linguagem com um nível de compreensibilidade que não poderia ser

introduzida por outros meios que não uma escuta direta do material. A solução foi

ascender uma inventividade ligada a critérios formais a dar lugar a uma forma

autônoma para a arte musical.

166

O impacto sentido em nível cultural parece ter recaído exclusivamente no

abandono ao recurso textual. O texto, o meio expressivo poético, seria um tabu ao

qual nem Kant abriu mão – liga a dignidade da música a um texto – obrigatoriedade

esta decretada desde o Concílio de Trento (1545-1563).54

Mas em termos epistemológicos temos um caso bastante interessante, estamos

diante de uma técnica musical que quer se confrontar diretamente com os dados

sensíveis e constituir a partir deles um significado e perfazer um jogo de tipo artístico

em exclusividade com a audição.

O proveito que a epistemologia poderia ter com o objeto escolhido seria o de

elencar uma definição positiva, no sentido de melhor caracterizar quais foram as

conquistas e o modo como a música instrumental clássica imprimiu um sentido

musical sem recursos extra-musicais e extra-sonoros, e assim, se aproximar da relação

entre percepção, juízo e conceito que entram em jogo nesta atividade.

Em verdade, estes são princípios os quais Hanslick já havia postulado, e

podemos resumidamente expor quais foram as premissas e a ambição de sua estética:

a) Especificação da estética para o ramo artístico musical, o que

incorre no descarte do conceito geral de beleza, para que se

especifique as distinções típicas da arte individualmente. “Cada arte

deve ser conhecida nas suas determinações técnicas, quer ser

compreendida e julgada a partir de si própria.” (Hanslick 2002:14)

b) A estética (aisthesis) deve se encarregar e inquirir “o objeto belo e

não o sujeito senciente.” (Hanslick 2002:14) Não entraria em

questão os sentimentos despertados com o objeto, mas as relações

contidas no próprio objeto.

54� Se pensarmos mais profundamente nesta questão veremos que a idéia da música conter em si um principio notadamente belo, estético e de pura contemplação, sem obedecer à funções sociais maiores, constitui uma revolução profunda no próprio modo como grupos humanos lidam com esta arte, que além do crivo da palavra dado no renascimento, vincula-se a crivos maiores do uso cultural: “Temos aqui que nos recordar do fato sociológico de que a música primitiva foi afastada, em grande parte, durante os estágios iniciais de seu desenvolvimento, do puro gozo estético, ficando subordinada a fins práticos, em primeiro lugar sobretudo mágicos, nomeadamente apotropéicos (relativos ao culto) e exorcísticos (médicos). Com isso ela sujeitou-se àquele desenvolvimento estereotipador ao qual toda ação magicamente significativa, assim como todo objeto magicamente significativo, está inevitavelmente exposta; trata-se então de obras de arte figurativas ou de meios mímicos, recitativos, orquestrais ou relativos ao canto (ou, como freqüentemente, de todos juntos) que tinham por objetivo influenciar os deuses e demônios.” (Weber 1995:85)

167

c) A atividade de contemplação, “[...] do ouvir atento, que consiste

numa consideração sucessiva das formas sonoras” (Hanslick

2002:16) repercute na faculdade do entendimento, que por sua

agilidade de julgamento nos aparece como se tratasse de um

processo imediato, mas que de acordo com o próprio Hanslick, “[...]

depende de múltiplos processos espirituais mediatos.” (2002:16)

d) O campo geral da estética deve se limitar ao conhecimento dos

objetos belos, de sua relação com a percepção e com a imaginação

tanto do compositor como do ouvinte. A questão dos sentimentos ou

estados emotivos seriam “ [...] mais objecto da psicologia do que da

estética.” (Hanslick 2002:18)

Suas premissas aparecem de um modo ou de outro por toda a dissertação,

porém o núcleo da dissertação transita pela consideração do objeto musical enquanto

construto do entendimento, contido na premissa ‘c’. A originalidade desta dissertação

certamente não se deve à eleição das premissas, que já se encontravam dadas no

trabalho de Hanslick, nossa contribuição foi a de inserir uma análise que não se fez

presente na obra de Hanslick, mas que o fazemos no sentido de dar legitimidade à sua

pretenção de incluir a operação do entendimento numa estética musical.

Antes, vejamos ainda quais foram as análises promovidas por Hanslick:

1) Representação de sentimentos: dado o caráter intelectual dos sentimentos,

sua ligação com juízos – “o sentimento de esperança é inseparável da

representação de um estado mais feliz que deve ocorrer e que se compara

com o estado actual.” (Hanslick 2002:24) Hanslick investiga que classe de

sentimentos podem ser representados diretamente pela música, e conclui

que estes são frutos de sugestões psicológicas mais do que do conteúdo

musical. Seu exame consiste em analisar críticas musicais, opiniões, e

comparar com as passagens musicais em questão, mostrando que estas

mesmas passagens suscitam outros sentimentos caso o libreto mude.

2) Representação de ideias musicais: aqui se acumulam o que de fato a

música pode representar a partir de sua particularidade. “[...] as idéias que

168

se referem a modificações audíveis do tempo, da força, das proporções,

por conseguinte, as idéias do crescimento, do esmorecer, da pressa, da

hesitação, do artificiosamente intrincado do simples acompanhamento e

coisas semelhantes.” (Hanslick 2002:25)

3) Descrição musical: a descrição dos eventos e idéias musicais fica limitada

pelos termos técnicos musicais, ou mesmo a metáforas que tentam

sublinhar certo conteúdo (Hanslick 2002: 43). A atestação de certa

incomensurabilidade entre a linguagem ordinária e a compreensão de tipo

musical não configura um problema, mas sim, marca a autonomia do

campo de conhecimento musical.

4) Caráter lógico: tratam-se de alusões e não de um escrutinamento deste

caráter. Listo algumas relações lógicas aludidas por Hanslick:

Causalidade - “na música, há sentido e conseqüência, mas musical.”

(Hanslick 2002:44). Juízo – “há um conhecimento profundo em aludir

também a ‘pensamentos’ nas obras sonoras e, como no falar, o juízo dextro

distingue aqui facilmente pensamentos verdadeiros de simples palavrório.”

(Hanslick 2002:44). Conceitualidade – “reconhecemos de igual modo o

fechamento racional de um grupo de sons, ao dar-lhe o nome de ‘frase’. É

que sentimos exactamente o mesmo em qualquer período lógico, onde

termina o seu sentido, embora a verdade de ambos se mantenha

incomensurável.” (Hanslick 2002:44)

Evidencia-se que nossa dissertação, além de se caracterizar por um

investigação acerca do entendimento geral de objetos musicais, compromete-se em

elucidar o caráter lógico destes objetos antevisto por Hanslick. Nossas conclusões

neste sentido foram:

• A correspondência geral entre os elementos musicais e condições lógicas

dadas na filosofia transcendental kantiana. ( Seção 2, cap. III – 2 e 2.1)

• A caracterização do objeto musical enquanto objeto lógico da consciência, e

portanto, agregando conteúdos objetivos. ( Seção 2, cap. III – 1.3 e 1.3.1)

169

• A vinculação de conceitos, sobretudo os lógicos, mas também práticos, na

totalidade de um obra musical. ( Seção 2, cap. III – 2.1)

• A estruturação hierárquica de conceitos para a composição de uma experiência

musical pontual, aliando os conceitos de tema, frase, repetição, harmonia,

entre outros, a juízos sintéticos que os une, compreende e avalia.

Consequentemente, por seus vínculos lógicos, fica igualmente possível uma

cadeia que pode prosseguir até vínculos axiomáticos entre as relações sonoras

como no caso da harmonia tonal ou da fraseologia. ( Seção 2, cap. III – 3 e

3.1)

2. A condição sine qua non da experiência musical.

Para a consecução e mesmo a eleição de um modelo epistemológico para o objeto

musical discutimos questões relativas ao trabalho de Kant. Nossa decisão, que já

vinha influenciada por Hanslick quis mesmo assim verificar os argumentos da terceira

Crítica que pudessem contribuir para o modelo geral.

Antes de analisar a interação possível entre os juízos determinantes e os

reflexionantes, seria necessário que estes dissessem respeito às condições fáticas da

experiência musical.

Os objetos sonoros são sintetizados aditivamente, mas não apenas

aditivamente, pois que do simples colecionar de sons pela memória depreende-se

conexões de segunda ordem: o fraseado, a progressão, recapitulação, modulação,

variação, entre tantos outros juízos. Vimos que esta possibilidade de conexão sempre

a um grau mais elevado de juízos foi possível pela coordenação nuclear das formas-

motivo em conjunto com as funções tonais. Em vista deste quadro, qual seria então a

precisa operação que faz distinguir a percepção do sonoro em agrupamentos que virão

a ser musicais? Identificamos esta operação enquanto lógica.

Porém - voltando ao quadro dos modelos kantianos do juízo determinante e

reflexionante - esta série de juízos necessários para que entremos em contato com

uma experiência musical acaba por perfazer uma condição sine qua non de sua

170

experiência, pois caso contrário, não superaríamos o âmbito meramente sensório do

som. Quando dizemos ‘isto é uma música’ já estamos assim condicionados a uma

experiência específica.

Compete aos juízos referentes ao objeto musical que tenham fundamento

necessário nos juízos que determinam o sujeito ‘música’ em uma experiência. Esta

seria uma condição bastante óbvia para requerer lastro a juízos que tomam a música

como um sujeito, tais como; ‘esta música é bela’ ou ‘esta música é um bolero’.

Uma réplica diria que Kant, contrário a esta relação entre um objeto artístico

ser tomado enquanto sujeito de predicados para um ajuizamento estético, tinha o

intuito de demonstrar um ato judicativo puro, não necessariamente ‘anterior’ no

sentido cronológico, para qualquer determinação.

O fato do juízo da beleza se ancorar de modo a priori em uma autonomia da

faculdade do juízo, possibilitaria uma predicação da beleza sem conter uma

finalidade, independente da realidade do objeto em questão. Mas tal possibilidade

relativizaria o parágrafo §9 da terceira Crítica e a legalidade dos horizontes lógico e

estético assinalado na Lógica (2003).

Uma réplica consistente deveria manter a organicidade da analítica do belo e a

hierarquia das faculdades dada na terceira Crítica, mantendo assim a precedência da

sensibilidade em sua autonomia não regrada, e sua sublevação a um estado reflexivo

mantendo assim a precedência do estatuto do juízo reflexivo a qualquer determinação,

como caracterizado no §9. Sendo assim, uma réplica consistiria apenas em demonstrar

a necessidade desta estrutura e a impossibilidade do estético vir a dizer respeito ao

que se encontra determinado em um objeto.

Nossa tréplica consiste em colocar-nos numa posição privilegiada, no exato

momento em que diante de um objeto (tendo em vista que não é possível estar diante

de ‘nada’) um sujeito recua sob seu sentido determinante caracterizando assim um

sentido estético. Neste instante, aquilo que é um diverso sensível passa a seguir uma

trajetória a qual introduzimos dois questionamentos:

1) Para todo objeto de arte, que valha ser contado nesta categoria, é obra,

segundo Kant, de um gênio. O Gênio seria um sujeito capaz de impregnar um objeto

de uma regra, “dá a regra à arte” (CFJ:181).55 Esta regra condiciona um objeto real,

seja um quadro, uma ópera, um livro. Porém, enquanto esta obra é condição de um

55� Para o caso tonal esta regra está dada na funcionalidade harmônica e no núcleo lógico/temático, tomando aqui como exemplo do gênio o trabalho de Haydn, Mozart ou Beethoven.

171

impulso para atingirmos o ato reflexionante do juízo, esta mesma atividade pura não

conta com a obra, com o objeto ou com a regra impressa sobre ele. Kant não

demonstra como um objeto é capaz de reter materialmente uma característica de

impulsionar uma ação reflexionante em detrimento de sua própria constituição

objetiva. Não demonstra igualmente qualquer vínculo entre uma capacidade de um

objeto conter em si uma regra material que disponha nossa faculdade a um julgamento

estético, e o estatuto reflexionante do juízo. Diferente disso, o objeto é abandonado

tão logo o gênio tenha sido caracterizado, e não existe qualquer comentário a respeito

do produto do trabalho do gênio. Apontamos para uma lacuna na argumentação, que

deveria conter, entre o gênio e o juízo de gosto puro, uma explicação desta

intermediação feita pelo objeto de arte, pois não é o caso da arte do século XVIII

poder ser evocada sem um suporte.

2) Segue-se deste primeiro diagnóstico uma outra questão a que a teoria deva

satisfazer. Se este objeto é um item necessário para a experiência estética no sentido

de demandar uma atitude desinteressada, o objeto se torna uma condição

imprescindível à sua própria dispensa. Concluímos que para a estrutura do juízo de

gosto puro é necessário que se defina, sobre o objeto, se este contém algo que se liga à

estrutura do juízo puro, ou, diferentemente, o objeto não faça parte em nenhum

sentido, mas tão somente uma atitude do sujeito que muda de ‘ponto de vista’ –

quanticamente - o seu juízo, a não reconhecer em um objeto uma função determinada,

antes mesmo que ela possa ser dada.

Feitas estas considerações esboçamos duas opções para o juízo estético

kantiano: a) que o objeto seja necessário ao juízo reflexionante, enquanto contenha

algo que faça atrelar-se ao juízo estético. b) que o objeto seja desnecessário pois que o

juízo estético implica apenas em uma decisão puramente subjetiva.

Além da beleza natural, apenas as obras artísticas são contempladas pelo juízo

da beleza. Porém não há qualquer especificação ou determinação que explique por

que a beleza recaia exclusivamente neste tipo de construção humana.

O objeto artístico, tendo a peculiaridade de ser o único objeto de produção

humana a suscitar o sentimento da beleza é, pelo próprio critério da beleza, censurado

em sua constituição objetiva. Assim, certa qualidade especial, esperável no objeto da

arte, naquela ‘natureza impregnada pelo gênio’, não é capaz de especificar a escolha

dos objetos artísticos para a promoção da beleza, assim, a escolha de uma categoria de

objetos que seriam privilegiadamente belos parece mesmo arbitrária.

172

Atentemos que o que está em jogo é uma condição para o objeto de arte, pois,

se o juízo estético for completamente autônomo então ele pode vir a ajuizar

independente de haver algum objeto. Porém, como ele lança mão de uma finalidade

sem fim, é certo que algum componente sensível adentrou pelo sistema do

conhecimento em geral, porém, se o juízo estético puro é uma autonomia da faculdade

do juízo, porque ele deve se reportar a objetos da arte, e não a qualquer diverso?

Neste item, tenciono ainda salientar como esta mudança de perspectiva reflete a necessidade de referir o fenômeno artístico a estruturas da subjetividade presentes no receptor, e não mais a propriedades intrínsecas do próprio objeto, o que se articula com o projeto maior de um pensamento eminentemente moderno, que consistiria em considerar o que se apresenta não mais como algo que é dado em si mesmo, mas na medida em que é representado pelo sujeito. (Vieira 2003:6)

É fato que o gosto possui um âmbito subjetivo e presente no sentido interno,

assim como o juízo determinante lida com conceitos do sentido externo. Se houve

uma guinada no interesse de aspectos subjetivos por parte dos críticos e filósofos da

arte do século XVIII, é certo que Kant não se insere meramente em um contexto

geral, empirista, psicologista, Kant empreende um trabalho que compreende uma

envergadura superior. Não se detém na subjetividade apenas, mas traça estatutos

específicos para estes ajuizamentos em um discurso epistemológico.

É necessário respondermos a algo muito mais caro do que um mero índice

subjetivo implicado pela beleza, mas à própria estrutura de pensamento que Kant

erige para este sentimento.

A garantia de uma autonomia para o juízo de gosto implica que este se coloque

de fato autônomo, e que resolva sua legalidade em relação ao objeto de arte. E é esta

problemática geral de Kant que faz com que construa um estatuto com o do juízo

reflexionante estético puro, pois que se preocupa com a autonomia do sentimento da

beleza e não com sua ligação a objetos de arte, e à arte como que movendo todas as

nossas faculdades.

Da parte de nossa análise, ouvir uma melodia implicaria em uma série de

regramentos atualizados pelo tempo, fazendo com que postulemos uma anterioridade

lógica do objeto musical em relação a qualquer ajuizamento da beleza sobre este

mesmo objeto. A beleza de uma música deveria, ao menos, contar antes com uma

melodia prefigurada no sentido externo, onde esta melodia surja como resultado de

recognições temáticas e harmônicas, ao mesmo tempo em que ajuíza uma série de

173

relações entre seus elementos sonoros a compor a compreensão da forma musical.

É necessário, antes, que uma música se dê a entender em um padrão de

compreensibilidade, ou não faria sentido dizer da beleza de uma obra musical. É neste

sentido que uma condição sine qua non se mostra para a experiência musical,

enquanto condição lógica para qualquer outro juízo.

3. Considerações gerais.

A ligação entre música e processos matemáticos é certamente a que mais

perdura pelo senso comum, e esta descende mesmo de Pitágoras e faz-se presente na

máxima de Leibniz: “um exercício oculto de aritmética no qual a alma não sabe que

conta” (apud Schopenhauer 2003:228).

A transposição de uma relação matemática para relações musicais específicas

como frase, harmonias e ritmo é realizado inicialmente por Rameau, que consegue a

façanha de operar a transposição entre uma percepção musical e uma composição

físico-matemática do som. Este discurso não se encerra apenas sob relações

matemáticas ou físicas, ele caminhou, como vimos, a direções lógicas para a

estruturação de sua forma autônoma.

Hanslick sublinhava a relação da música com termos como pensamento,

conhecimento e entendimento, pois que no final do século XVIII estas confluências

alargam-se de modo a dar lugar ao conceito de música absoluta, onde ele, Hanslick

veio a apontar para o caráter lógico presente. Também no excerto de Schlegel

transparece esta afinidade entre pensamento e música – ‘music for thought’ [música

para o pensamento] (Dahlhaus 1989:107).

Torna-se desde então comum associar o musical ao que é lógico, como vemos

em manuais do século XX, como o de Schoenberg.

Apenas analisando este contexto, já vemos como o intercâmbio entre a música

clássica e o ponto de vista da terceira Crítica pareceram, em grandes linhas,

excludentes, sendo esta última influenciada por uma tradição que pouco se ligava às

novidades trazidas pela arte musical, vinculando-se ainda à tradição clássica francesa

inspirada em Boileau (Vieira 2003). Ao mesmo tempo McCloskey (1987:1,2) aponta

que os conceitos aos quais Kant agrega os principais sentimentos ligados à arte (belo e

174

sublime)56 pouco diziam respeito a arte romântica, movimento vigente quando da

edição da terceira Crítica.

O acento ao sentimento da beleza não passa a ser negado, pois parece mesmo

ser uma tendência termos unidas às nossas representações afetos e sentimentos

prazerosos. E em realidade é assim mesmo como se passa com os conteúdo ordinários

em Kant. Com exceção da beleza, o prazer compreende o cumprimento de uma

intenção – um juízo determinante – como consta na introdução da terceira Crítica.

(CFJ: XXXIX)

A beleza estabelece uma distinção do conteúdo do prazer, mas não uma

distinção entre graus de prazer, e sim de natureza. Este é o fundamento da análise do

juízo de gosto, a localização de sentimentos que contudo possuem estatutos

diferenciados; o agradável, o sublime, o belo e o bom.

Vimos no primeiro capítulo como o estatuto requerido para o juízo da beleza

não se atrela a uma finalidade da faculdade do entendimento, tão somente a uma

finalidade em vista de um conhecimento em geral que contudo não é determinado.

Neste mesmo sentido os conceitos, as funções e as teorias expressas em tratados

musicais, assim como a pedagogia e as técnicas composicionais, de acordo com este

mesmo princípio kantiano, não garantiriam qualquer vínculo entre o prazer da beleza

e o objeto em questão.

Vimos no segundo capítulo que a falta de vínculo conceitual com a faculdade

do entendimento ou de vínculo com idéias da razão acarreta em um fracasso da

apercepção em exibir um conteúdo. Esta falta de comunicação entre o estatuto do

juízo da beleza e do cumprimento de um conhecimento pela apercepção é o que

caracterizaria a distinção entre o âmbito estético e o lógico.

Se ignorarmos o critério lógico para o estabelecimento objetivo de um vínculo

entre o prazer da beleza a um objeto qualquer, nos perguntamos mesmo qual seria a

utilidade de tal dicotomia lógico/estética. Pois neste caso, predicar de um objeto, “x é

belo”, e mesmo qualquer predicação da beleza não faria sentido, pois o juízo da

beleza em momento algum contaria com qualquer sujeito para seu estabelecimento.

De outro lado, é mais do que comum vermos associados os juízos da beleza a

56� Estes conceitos diziam respeito ao contexto do classicismo francês, onde a referencia estética centrava-se no conceito de mimesis. Tal conceito passa a ser prescindido pelo discurso instrumental, e seu uso na música programática perde predominância e fora mesmo invertido mesmo em Haydn, neste, a escrita musical dita o conteúdo e não o contrário. Tal discurso mimético que havia ainda migrado, para o contexto musical, da mera imitação da natureza para a imitação dos sentimentos (Rousseau 1998:189) fica assim despatriado pela técnica, formalismo e a lógica interna da composição que passa a predominar e servir de critério de inteligibilidade para o ouvinte

175

objetos determinados. Dizemos isto no sentido de uma sinfonia, enquanto objeto belo,

ser acessível universalmente, ou seja, constituir um vínculo necessário àqueles que

habitualmente escutam sinfonias e já são capazes de ajuizar sua forma. Podemos

inclusive ajuizar beleza em passagens e momentos pontuais, o que vem ressaltar

novamente este vinculo entre a beleza e as determinações do objeto.

Contudo, o grau de verdade para conceitos empíricos não tem como ser

absoluto em nenhuma esfera. A ciência já se compreende atualmente lidando com

probabilidades, e a certeza da lei tem sempre que deparar com fenômenos, onde

mesmo os de mais alto valor determinístico não conseguem se blindar de exceções.

A música, a partir das regras as quais analisamos em parte nesta dissertação,

conta também com conceitos empíricos, e estes também não se livram de certa

necessidade e certa aleatoriedade. O caráter necessário dos objetos musicais, e mesmo

de seu juízo de gosto pode ser exemplificado em uma estrutura estrofe/refrão

(AAB:AAB) aplicada à música comercial. Esta é uma estrutura que provoca

necessariamente prazer ao ouvinte, e o fato de psicologicamente uma parcela da

população preferir uma variação a outra não retira igualmente o valor da predição

conferida pela estrutura estrofe/refrão para o gosto da música popular, assim como

confirmada no volume de vendas desta estrutura.

Este tipo de relação com objetos musicais fica sem paralelo no modelo

kantiano da terceira Crítica.

Porém, aquilo que tem sede no que é mais caro à técnica clássica de composição

- a evolução das formas-motivo e a funcionalidade da harmonia tonal - tem na

atividade recognitiva uma chave válida de audição musical do período, ou mesmo em

audições que se baseiem em seu paradigma.

O labor artesanal dos músicos do período clássico, e este ponto é importante, é

comparável ao trabalho dos grandes teóricos do mesmo período. Pois que foram

capazes de estabelecer vínculos de significações bastante originais e que perduraram

no tempo, dignos das grandes personalidades e intelectuais da época, mas que

contudo, não tiveram seu trabalho equiparado a estes. Assim se expressa Dilthey sobre

Haydn: “Al parecer, no llegó a comprender jamás el lenguaje de nuestros grandes

poetas y filósofos.” (Dilthey 1945:291)

Mais do que um grande poeta ou filósofo, Haydn e muitos outros

compositores engendraram o que há de mais difícil na atividade do conhecimento,

engendrar um novo campo de significações.

176

Encerremos então com um incomum intérprete kantiano, Albert Einstein, a

discorrer sobre a compreensibilidade e a dificuldade intelectual concernente a esta

tarefa:

Uma das grandes percepções de Immanuel Kant foi que, sem esta compreensibilidade, a afirmação da existência de um mundo externo real seria destituída de sentido. Ao falar aqui de ‘compreensibilidade’, estamos usando o termo em seu sentido mais modesto. Ele implica: A produção de algum tipo de ordem entre as impressões sensoriais, sendo esta ordem produzida pela criação de conceitos gerais, pelas relações entre estes conceitos e por relações entre os conceitos e as experiências sensoriais, relações estas que são determinadas de todas as maneiras possíveis. É nesse sentido que o mundo de nossas experiências sensoriais é compreensível. O fato dele ser compreensível é um milagre. (Einstein 1994:65 )

Que o objeto musical seja compreensível, é apoditicamente demonstrável. Que

dele depreenda, ou, que possa depreender um forte sentimento, no qual utilizávamos o

termo ‘beleza’, isto também é compreensível. Porém o fato de um prazer se ligar à

compreensão de um objeto parece ser igualmente e duplamente um milagre.

177

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