aspectos do mal - reflexões filosófico-teológicas

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Aspectos do Mal   reflexões filosófico-teológicas Pedro Augusto Simões da CONCEIÇÃO 1 . Resumo: este texto, escrito sob a forma de um ensaio, tem o objetivo de apontar a direção em que o Malpode ser colocado como um problema ainda vivo para a filosofia do século XXI, partindo de algumas reflexões de Paul Ricoeur. Para isso, inicialmente, localizamos o problema no seio da filosofia do século XX, especialmente, a partir da ontologia. Retomamos, então, aspectos do pensamento de Niklas Luhmann, para pensar o Mal-sistêmico na atual sociedade complexa e esquizofrênica. Na sequência, procuramos pensar o Malpara além da ontologia, defendendo a tese de que ontologia e ética podem inter-relacionar-se no aspecto teológico do Mal encarnado no pecado. Palavras Chave: Mal; Teoria dos Sistemas, Onto-ética, Pecado. Abstract: With these essay, we shall present the direction that the “Evil” might be seen as a challenge still alive to philosophy and theology for the 21 st Century   starting from some reflections of philosopher Paul Ricoeur. First, we shall see in which terms this problem has been presented on 20st Century philosophy, specially, taking ontology as basis. Than, taking some categories from the thinking of Niklas Luhmann, we propose to think on the “Systemic -Evil” in contemporary and schizophrenic society. About the end, the Evil will be presented beyond an ontological problem, as we analyze the question of the evil integrating ontology and ethics on the theological aspects of the incarnated Evil on “sin”. Key-words: Evil; System-theory; Onto-ethics; Sin. 1.0 Da Ontologia à Ética Ricoeur, no último estudo constituinte de seu tratado acerca da Metáfora reprova, em Heidegger, a criação de um supra-conceito em sua filosofia no qual enquadrava toda a filosofia que vinha antes dele; todo o pensamento ocidental que se teria prostrado equivocadamente  em torno da questão do Ser: a “metafísica” (Ricoeur, 2000). 1 Acadêmico de Direito da Universidade de São Paulo. Contato: [email protected]. http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4424783E6

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Aspectos do Mal – reflexões filosófico-teológicas

Pedro Augusto Simões da CONCEIÇÃO1.

Resumo: este texto, escrito sob a forma de um ensaio, tem o objetivo de apontar adireção em que o“Mal” pode ser colocado como um problema ainda vivo para afilosofia do século XXI, partindo de algumas reflexões de Paul Ricoeur. Para isso,inicialmente, localizamos o problema no seio da filosofia do século XX, especialmente,a partir da ontologia. Retomamos, então, aspectos do pensamento de Niklas Luhmann,para pensar o Mal-sistêmico na atual sociedade complexa e esquizofrênica. Nasequência, procuramos pensar o“Mal” para além da ontologia, defendendo a tese deque ontologia e ética podem inter-relacionar-se no aspecto teológico do Mal encarnadono pecado.

Palavras Chave: Mal; Teoria dos Sistemas, Onto-ética, Pecado.

Abstract: With these essay, we shall present the direction that the“Evil” might be seen

as a challenge still alive to philosophy and theology for the 21st Century – starting fromsome reflections of philosopher Paul Ricoeur. First, we shall see in which terms thisproblem has been presented on 20st Century philosophy, specially, taking ontology as

basis. Than, taking some categories from the thinking of Niklas Luhmann, we proposeto think on the “Systemic -Evil” in contem porary and schizophrenic society. About theend, the Evil will be presented beyond an ontological problem, as we analyze thequestion of the evil integrating ontology and ethics on the theological aspects of theincarnated Evil on “sin” .

Key-words: Evil; System-theory; Onto-ethics; Sin.

1.0 Da Ontologia à Ética

Ricoeur, no último estudo constituinte de seu tratado acerca da Metáforareprova, em Heidegger, a criação de um supra-conceito em sua filosofia no qualenquadrava toda a filosofia que vinha antes dele; todo o pensamento ocidental que seteria prostradoequivocadamente em torno da questão do Ser: a “metafísica” (Ricoeur,2000).

1 Acadêmico de Direito da Universidade de São Paulo. Contato:[email protected]. http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4424783E6

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É conhecida a cisão que Heidegger fez entre a reflexão sobre o Ser, realizada porsua ontologia fundamental, a partir deSer e Tempo , e a reflexão proposta pelaMetafísica ocidental. Esta perdeu de vista o Ser (“esquecimento do Ser”) filosofando

não sobre oSein (Ser), mas sobre oSeyn (Seer).Seyn é uma forma antiga do verboalemãoSein , traduzida para o português por uma correspondente forma antiga do verboSer – Seer – , que representaria simbolicamente a reflexão metafísica acerca do Ser, aqual não atinge o patamar de ontologia fundamental, ficando sempre presa ao ente.

A crítica da ontologia fundamental se deu em diversos aspectos. Adorno (2009),na Dialética Negativa , ressuscita Hegel para lembrar Heidegger que todoser é em ente e que todoente é pela mediação (pelo ser); que a separação entre ser e ente não é o

ápice da realização filosófica, mas o proton pseudos que esta nunca anuncia pelareflexão do Da-sein – quer seja o pessoal, quer seja o comunitário (o “ Da-sein do povoalemão”).

A crítica de Adorno visa a algo mais que às tautologias heideggerianas(“ser é

ser”, “linguagem é linguagem”, entre outros). Visa a denunciar o envolvimento político

da filosofia heideggeriana que se viuontologizado e, de certo modo,determinado . Apartir do momento que a ascensão doFührer é a manifestação do Ser pelo Da-sein do

povo alemão, assim como a poesia, a manifestação artística do Ser pelo Da-sein dopoeta2, o Mal encontra uma casa.

Adorno é um dos nomes associados ao pensamento Crítico da Escola deFrankfurt. Além do desafio de fundamentar o pensamento, intrínseco a todo filósofo na“era hermenêutica da razão”, Adorno precisava fundamentar a crítica. Auschwitz

tornou-se a materialização deste Mal ontologizado, que Hannah Arendt depois diria“banalizado” (1999).

Tanto Adorno quanto Heidegger ou ainda Hannah Arendt puderam enxergar adimensão ontológica do Mal, arraigada ao Ser ou à “Natureza”.

A filosofia, porém, mudou de direcionamento desde a era ontologista do séculoXX, que fora certamente coroada com Heidegger. Quer seja por meio do pensamento

2 Para mais sobre os caminhos políticos da filosofia de Heidegger, cf. Habermas, Discurso Filosófico da Modernidade (São Paulo, Martins Fontes, 2003); sobre a imagem do poeta e crítica à arte como expressão do ser, vero prefácio de Luckács,Teoria do Romance (São Paulo, Editora 34, 2010) e o primeiro capítulo de Bakhtin, Estéticada Criação verbal (São Paulo, Martins Fontes, 2010). Aspectos estéticos da filosofia de Heidegger, conferir, doautor, A Origem da Obra de Arte (Lisboa, Edições 70, 2010).

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crítico, ou pelos próprio seguidores de Heidegger, o aspecto ético da filosofia, quedelimitaremos à frente, passou ao centro dos holofotes da reflexão filosófica – abrindocaminho para que pensemos, aqui, na natureza sistêmica do Mal.

1.1 O Mal sistêmico – approche sociologique

No decorrer do século XX, podemos enxergar pelo menos três grandes correntes,desenvolvidas, sobretudo, na Europa, que tentaram desarraigar-se da ontologiadependente, de uma maneira ou de outra, de uma concepção de “sujeito” mais ou menos

transcendental. Trata-se, primeiramente, do estruturalismo francês, tão devedor deHusserl quanto de Saussure, principalmente em sua guinada “pós” (pós -moderna, pós-estrutural) representada, entre outros, por Althusser, Foucault, Derrida3. Em segundolugar, tem-se o desenvolvimento de uma filosofia que adota como ponto de partidaaquilo que somente surge quando há, ao menos, dois sujeitos interagindo comunicativo-simbolicamente; trata-se, assim resumimos, da “filosofia da comunicação”, que remete

para Habermas e Otto-Appel4. Em terceiro lugar, a teoria sistêmica de Luhmann eTeubner5, que encontra cada vez mais solo fértil entre juristas para entender os sistemassociais de modo autônomo tanto do sujeito quanto da imediatidade material6.

Essas três correntes parecem tratar a filosofia seguindo aquela intuição deLévinas que afirmou ser a ética anterior à ontologia. De modo resumido, diríamos queessas três correntes diversas e complexas opõem-se à ontologia pelo caráter extra-subjetivo na qual se baseiam, caráter este que – assim como na ética clássica – pressupõe a atuação dos sujeitos, mas não se limita à filosofia neles centrada.

Nestas correntes, porém, temas “clássicos” da filosofia não aparecem com a

mesma “cara”, devido às exigências da modernidade contemporânea, ou da pós-

3 Acerca de Foucault, a obra marcante de seu envolvimento com o estruturalismo é Les mots et les choses . Quanto aAlthusser, cf.Sobre a Reprodução (Petrópolis, Vozes, 2009). Sobre Derrida,Gramatologia (São Paulo, Perspectiva,2008), sendo que este último, de modo especial, é também em muito devedor à Heidegger.44 De Habermas, conferir os três últimos capítulos de Discurso (...). De Otto-Apel, cf. A Transformação da Filosofia I (São Paulo, Loyola, 2007). A filosofia da comunicação desenvolveu-se, também, quase que em paralelo nos EstadosUnidos, graças à tradição pragmática enraizada em Pierce e Dewey, e conta com grandes nomes como o de Rorty eMead.5 Diferentemente dos demais citados, é difícil dizer que Luhmann e Teubner são filósofos (Teubner, ainda vivo em2011, Luhmann, já falecido). Luhmann foi, sem sombra de dúvidas, um sociólogo – creio muito particularmente,porém, que seu olhar acerca da sociedade não dialoga fortemente com a filosofia à toa. A teoria sistêmica é tambémum posicionamento filosófico que nos leva para além de cisões e clausuras operacionais entre filosofia e sociologia,cf. Social Sistems . Teubner destaca-se por seus trabalhos em Direito, como, por exemplo,O Direito como Sistema

Autopoiético .6 No Brasil, de modo especial nas obras de Tercio Sampaio Ferraz Junior ( Introdução ao Estudo do Direito . SãoPaulo: Atlas, 2007), Marcelo Neves ( Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil . São Paulo: Martins Fontes, 2010) eOrlando Villas Boas Filho (Teoria dos Sistemas e o Direito Brasileiro. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2009).

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modernidade ou como se queira chamar os tempos que se desenvolvem cada vez maiscomplexos desde o marco da queda do Muro de Berlim.

As preocupações da filosofia neste início de século XXI parecem ser mais

focadas nas instituições sociais7, com suas dimensões políticas, jurídicas e midiáticas, asquais foram se autonomizando e se especializando, tornando-se cada vez maiscomplexas e que foram, por muito, ignoradas pela filosofia – presa a temas clássicoscomo o “Mal”.

Entendemos que o Mal, de que nos falou Ricoeur como“um desafio para afilosofia e para a teologia”8 não se limita às análises histórico-centradas do “código

moral” vigente de uma comunidade específica. O Mal de que nos advertiu Ricoeur é um

tema recorrente na filosofia e na teologia, o qual pode mascarar-se e mutar-se nacomplexa sociedade super-institucionalizada, mas não pode ser simplesmenteaniquilado.

A extrema formalização do processo legislativo em um país democrático, paracitar um exemplo, não é capaz de esconder o poder de exclusão que sistemas deinclusão formal podem gerar. O aspecto cada vez mais tecnológico de assuntos típicosda “política” não é capaz de esconder dados cada vez mais absurdos como o número de

pessoas que passam fome no Mundo ou a taxa de mortalidade infantil por causa dedoenças que – como a Malária, no Brasil – poderiam ser melhor combatidas sem aexigência de grandes esforços9.

A análise do “poder”, segundo Foucault, e a “colonização do Mundo da Vida”,

segundo Habermas, são bons nortes paraa explicação de inúmeras “patologias sociais”,

mas estão longe de esgotar um problema de simplicidade maléfica, que é o Mal.

Neste ponto a metafísica dos Sistemas de Luhmann parece ter uma pequenavantagem. Ela enxerga algo de concreto, algo de existente, para além das açõeshumanas (envolvendo o “poder”, a “razão -com-respeito-a-fins” ou a “racionalidade

7 Foi marcante em especial, para este autor, a curta, porém profunda divagação de Ricoeur acerca da democraciaenquanto instituição que se lê na última parte de Hermenêutica e Ideologias (Petrópolis, Vozes, 2003).8 Referimo-nos, claramente, a Ricoeur, P. Le Mal – um défit à la philosophie et à la théologie . 1999. Genebra,Labour et Fide.9 O exemplo em questão é extremamente localizado, temos consciência disso. Entendemos que um dos efeitos daglobalização é, por outro lado, a regionalização, que nos obriga a focar, as vezes, em problemas específicos elimitados, que são diluídos em uma falaciosa construção detotalidade que acaba sendo sempre aparente, como é ocaso da noção de Estado . No Brasil , a malária, problema gravíssimo na região amazônica (cf. dados emhttp://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/avaliacao_malaria_jan_maio_19_07_2010.pdf ) é muito pouco debatidanas demais regiões.

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comunicativa”). Os Sistemas existem para além do homem e do humanismotoujours en

vogue . Ferraz Jr., jurista brasileiro, afirmou certa vez que Luhmann eraum “metafísico

inconfesso” e talvez tenha sido isso que nos permita olhar o Mal que a sociedade

esquizofrênica não consegue mais imputar a um só homem.

Na sociedade sistêmica10, os sub-sistemas (política, direito, moral, economia,arte...) especializam-se e operam enclausurados com seus respectivos códigos,reproduzindo-se a si próprios de maneira autopoiética, de forma que do ponto de vistade um sub-sistema social, os demais são “ambiente”. Esta cisão real entre o sistema e o

ambiente (que depende do “entorno” entre ambos) é que dá ares de metafísica à teoria

sistêmica, pois prolonga as clássicas oposições da metafísica, como o visível e o

invisível; o sensível e o inteligível; o sujeito e o objeto...11

Se pensarmos o Mal como umvírus que pode ser parte integrante de uma

mensagem, no interior de uma comunicação social no sub-sistema da política, porexemplo, como a “corrupção” que é aceita, mas mascarada, esta comunicação e,

consequentemente, este mal são independentes do juízo moral (o qual se dá, paraLuhmann, sob o código “consideração/desprezo”) enquanto seu sentido ( Sinn ) estiverdependendo do código político que se resume a “poder/não - poder”.

Os males da sociedade moderna, em cada um de seus sub-sistemas sociais, podem estar “comunicando” sob diversos códigos (lícito/ilícito; belo/feio;

transcendente/imanente) de maneira independente do juízo do sistema da Moral daSociedade, o que talvez seja uma boa explicação sociológica para aquilo que Arendtchamou “banalização do mal” – mas sob o olhar de uma “ontologia” política 12.

Não haveria somente uma banalização, mas, sim, uma funcionalização viral que

permanece protegida do juízo moral enquanto esta não puder ser traduzida para o

10 Lembramos, somente, que para Luhmann a sociedade não é composta de homens, mas de comunicações.Comunicações compõem a unidade da sociedade, enquanto que os homens e os meios materiais são para ela“Ambiente”. De forma semelhante, um sub -sistema social acaba se tornando, para um outro, ambiente, enquanto queele fecha-se em si mesmo operando sob um código binário único sendo capaz de re-produzir seus próprios elementos

por um processo chamado “autopoiese”. Para mais sobre a teoria do Sistemas, cf. A introdução feita pelo próprioautor inTeoria dos Sistemas (Petrópolis: Vozes, 2009) e suamagnum opus , La Sociedade de la Sociedad (Ciudad delMéxico: Herder, 2010).11 Assim como Derrida, na verdade, Luhmann opera com conceitos semanticamente fortes, em oposição a uma teoriaprocedimentalista como a de Habermas, ou contextualista como a Rorty, aproximando-se neste sentido, àdesconstrução. É justamente por colocar em xeque os conceitos que Derrida parece acreditar neles, para além dascamadas sobrepostas de escrituração metafísica – não é à toa que tanto Luhmann quanto Derrida ganharam, emcontextos diferentes, uma mesma alcunha, a de serem, cada um a seu modo, os “Hegel” do século XX. 12 Para uma breve exposição do pensamento de Arendt, uma boa opção é constituída pelos textos do próprio Ricoeursobre a discípula de Heidegger em Lectures I /Leituras I.

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sentido mesmo do código moral. Esta proteção se dá cada vez mais pelo formalismo epelo tecnicismo envolvendo as inúmeras formas de comunicação social.

Esta possível análise do Mal está muito distante de uma explicação ontológica

no sentido heideggeriano da palavra, e muito próxima de uma concepção clássica de“ética”, como o ethos , o espírito que se desenvolveinter-homines , mas que com elesnão se confunde.

Neste sentido, é necessário pensar o Mal para além da ontologia, aproximando-ode seu caráter ético que nos revela o conceito de “pecado” da teologia cristã. Tal poderá

nos levar a um pensamento onto-ético do Mal.

2.0 Da Ética à Ontologia, e de volta à ÉticaRetomando a crítica de Ricoeur à Heidegger, lembramos que o hermeneuta

francês afirma que, querSein ou Seyn, o que se questiona é o Ser, em suas diferentesfacetas, e não adianta tentar – por um golpe de “preguiça mental” – resumir tudo o quese disse sobre o assunto na mística palavra “metafísica”, até por que, como vimos

anteriormente em Luhmann, a aproximação metafísica da realidade ainda pode nosensinar muito, sem que Kant seja esquecido13.

E, se o Mal, para ser compreendido, precisa ser visto em sua facetaautonomizada, anti-ética, isso não quer dizer que a problemática ontológica do Mal foideixada de lado.

Neste ponto, porém, é a teologia que tem muito a contribuir para a temática, emespecial, a teologia cristã que é, em muitos lugares, cada vez mais ortodoxa, focandomais na exegese do texto bíblico sem a ele incorporar muitas “muletas -hermenêuticas”,

para não correr o risco de desvirtuar a “Mensagem”.

Para o cristianismo e para a teologia cristã, o Mal é constituinte do homem. Esseconstituinte alerta-nos para o caráter “ontológico” do Mal.

Na narrativa da criação, porém, é preciso ressalvar que Deus (necessariamentecompreendido trinitariamente, ou, ao menos, como União YHWH e Espírito de Deus,

13 A teoria luhmanniana não ignora o paradigma kantiano do conhecimento, muito pelo contrário, radicaliza-o quandoafirma que a sociedade somente pode ser conhecida parcialmente, de acordo com o código comunicacional do sub-sistema em questão e esta é, justamente, a possibilidade de nossa hipótese de uma funcionalização viral do mal nasociedade.

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por causa do plural que será usado na seguinte passagem) diz: “façamos o homem à

nossa imagem, conforme à nossa semelhança” (Gn 1: 26a) e, em seguida, “viu Deus

tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom” (Gn 1: 31a).

Assim, todo o cosmo criado, e também o homem nele criado (homem, “macho efêmea os criou”), era muito bom , a partir do que se conclui que o mundo tem um valor

primeiro aos olhos de seu criador, que é o “bom”. Este bom, lembramos, é um“agradável”, um “bem -feito” e não necessariamente o “Bem”, em contraste com o Mal,

até por que, não é do Deus bíblico a natureza maniqueísta do Bem, em oposição ao Mal:“Eu formo a luz e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu , o Senhor, faço todasestas coisas” (Is 45: 7).

Assim, a pergunta que se pode fazer é: como o homem, enquanto parte dacriação (ainda que a “coroa” da criação) teria passado de “bom” para ser o homem em

cuja “carne” (e não em cujo “corpo”) habita o Mal? 14

Chesterton sempre soube a resposta: esta transformação deu-se na Queda.15

A Queda marca a entrada do “Pecado”, isto é, do Mal, no mundo. Este é um

detalhe importante, anotado em inúmeras obras por Ricoeur16: o pecado não era

intrínseco ao mundo, mas a elefoi “incorporado” e, hoje, “toda a criação geme e está

juntamente com dores de parto até agora” (Rm. 8: 22).

Além disso, a Bíblia aponta o pecado como o originário de toda morte. Aprimeira, inclusive, teria ocorrido pelas mãos do próprio Deus, que matou um animal

para, com sua pele, gerar roupas para “encobrir a vergonha” de Adão e Eva, então já

pecadores (Gn 2: 21). O pecado é apontado como a origem da morte do corpo, em quese encontra o homem desde que vem à vida.

A Queda, neste sentido, permitiu a entrada do Pecado no mundo e – com ele – de todo o Mal, que hoje se encontrano mundo,no homem. A morte, o “salário do

pecado”, está presente em toda a natureza desde que o pecado nela se fez presente. Por

causa da Queda, o Mal ontologizou-se em tudo o quehá , em tudo o queé .

14 Certamente a passagem mais marcante quanto ao assunto encontra-se em Romanos 7, mas é tema recorrente nasepístolas paulinas. Ver, também, a explicação de Tiago sobre a tentação e o pecado, em Tiago 1: 2-18.15 Conferir toda a sua obra, em que o tema é recorrente, mas, principalmente, Hereges , Orotodoxia e O Homem

Eterno .16 Conferir sobretudoPenser La Bible , com André LaCocque e Herméneutique Biblique .

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O próprio conceito de Mundo ganha, no cristianismo, uma feição ambígua. Podeser, por um lado, o “Cosmo”, o Mundo criado, a totalidade mesma da criação, do

contexto, como em “No princípio criou Deus os céus e a terra” (Gêneses 1:1), ou, poroutro lado, pode ser a encarnação da totalidade do pecado não redimido que se opõe àIgreja. Assim, os crentes formam um todo que se caracteriza pela redenção do Pecadona pessoa de Cristo. De tal forma, a Igreja opõe-se ao “mundo”, o qual se encontra

igualmente em pecado e não se redimiu. Esta concepção é similar à contraposiçãoCivitas Dei / Civitas Hominis, em Agostinho.

Ricoeur aponta17 que a questão de Adão e Eva não necessita ser tomada em umacronologia histórica “krono -lógica”, mas pode representar a queda de cada homem, a

cada vez, “kairo -logicamente”18

. O que importa é ressaltar que Hoje (krono e kairos) oMal estáno mundo, e tambémna carne do homem, sem a qual este não vive no mundo, já que no mundo, o corpo do homem é a carne19.

Do ponto de vista teológico, podemos afirmar que a natureza do mal éontológica. Essa questão, no entanto, não pode ser encerrada agora, pois o Pecado é denatureza relacional. Na verdade, no cristianismo, a própria ontologia é relacional, porduas razões.

Em primeiro lugar, é preciso entender que a possibilidade do pecado surge coma primeira regra (“não comerás do fruto...”) com a qual surge, também, a liberdade

humana, ou o livre-arbítrio. Este momento é aquele em que Deus “corre um risco”, em

que Deus abre mão de seu poder de tudo controlar e coloca nas mãos do homem o poderde decisão, dando-lhe a liberdade, mas, ao mesmo tempo, dando-lhe a possibilidade deuma absoluta separação gerada pela desobediência.

A desobediência constitui, pois, pecado, cuja possibilidade é a raiz do livre-arbítrio. A desobediência já é uma deturpação da criação, que se vê afastada de Deus, etem como consequência direta, escatológica, a morte (em pequena e em grande escala).A partir de então, a morte é exigida pelo pecado (o poder da morte se encontra noPecado, cuja autoridade advém da própria lei, como nos explica Paulo em Romanos),

17 Em seu primeiro estudo emPenser La Bible (Paris: Seuil, 1998).18 “Kronos” entendido como “tempo histórico do homem” e “Kairós”, tempo de Deus. 19 Na Bíblia e na Antropologia cristã, o homem, como se sabe, possui uma alma, mas esta é sempre vista em conexãocom um corpo,seja a carne, seja o corpo incorruptível, para os que “herdam o céu” (Cf. I Co 6 e 12). O Corpo -carneé, na Terra, o templo do Espírito santo, segundo I Co 6, também.

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mas o pecado somente pode exigir tamanho mal, se houver uma lei que o autorize e umaresponsabilidade humana20.

Conforme afirma o apóstolo Paulo, o pecado até existe sem lei, mas Deus não o

leva em consideração (v. Rm 2).

Uma palavra que pode ser útil para a compreensão do conceito de pecado é“normatividade”, muito utilizada em correntes sociológicas, presente, por exemplo, em

Habermas. A normatividade tal qual apresentada sociologicamente já é trabalhada emum contexto de intersubjetividade com normas que – em um meio social, justamente – são postas e reciprocamente aceitas, podendo ser, pois, aplicadas.

No caso, nossa hipótese é de que a única norma imposta pelo Criador foracondição mesma da liberdade – a qual não existe sem a sua limitação – e, nesse sentido,a imposição primeira desta norma não precisava seraceita, pois ainda não era o homemlivre, somente o foi, após a primeira norma.

Ainda queimposta por Deus ao homem, para que este último fosse livre, anorma já aponta seu caráter relacional, deste contato, entre homem e Deus, que eraperfeito no contexto do paraíso.

Lembramos que esta hipótese não precisa ser adotada como uma verdadehistórica (apesar de poder sê-lo), como um fato ocorrido nos primórdios da humanidade,mas pode ser pensada como “regra geral” do relacionamento homem -Deus. Tal regraapontaria, pois, que existência do pecado afasta o homem de Deus por meio do pecadodo homem: falha na comunicação, falha na relação21.

Em segundo lugar a ontologia também é relacional no exemplo maior que é o

próprio Deus. Para além do desafio de pensar o que é “Deus”, nem tanto em referência àsua existência, mas ao significado de seunome , adotamos aqui o paradigma da trindadepara mostrar que se fosse possível pensar uma ontologia de Deus, esta já seria umaontologia relacional, uma onto-ética, visto que Deus só é Deus na medida em que é

20 Lembramos, porém, que o processo de imputação independe da existência do livre arbítrio e isso pode ser inferidocom certeza desde, pelo menos, Hegel, em seusPrincípios de Filosofia do Direito (São Paulo: Martins Fontes, 1998)e, mais recentemente, com as primeira e segunda partes daTeoria Pura do Direito (São Paulo: Martins Fontes, 2000)de Hans Kelsen, que explica detalhadamente a separação da liberdade de ação e da relação de imputação.21 Nenhum filósofo mostrou isso de maneira melhor, que Kierkegaard em Migalhas Filosóficas (Petrópolis: Vozes,2010). Kierkegaard faz quase que uma teorização da separação entre o homem e Deus pela culpa pecaminosa dohomem, e a possibilidade paradoxal de reaproximação por Cristo.

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“Pai, Filho, Espírito Santo” e isso é um fator que pode ajudar no questionamento – inclusive – acerca do nome de Deus.

O “ que é Deus ”, que Heidegger apontou como o “Nada”, próximo do

“totalmente outro” de Horkheimer 22, não pode ser pensado sem o “ como é Deus ” e orelacionamento entre aqueles que, para nós, apresentam-se como diferentes seres partesde um só – em perfeita co-munhão.

2.1 Deus e os efeitos do mal

Além do efeito que o Mal causa no relacionamento entre Deus e o homem, o malque o homem cometeu causa efeitos no próprio Deus, gerando uma interferência em sua

própria inter-relação. Se trabalharmos com a teoria da pré-existência do Cristo, ou seja,se pensarmos que Deus é sempre trindade, kairo-logicamente, o “ Eli, Eli, lamásabactâni” (Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste) ganha o significado dopreço do Mal, sentido por Deus, que, naquele momento, entrou em suspensão.

Dizemos suspensão na medida em que, se Deus exige trindade para ser, osacrifício de Cristo custou, krono-logicamente, o sacrifício de Deus. Deus que, naquelemomento, sofreu o Mal em seu próprio estado ético-relacional. Isso gerou o resultado

ontológico do abandono do Filho, o qual – por carregar o pecado em si – não podia estarem co-munhão com o Pai e o Espírito.

É possível pensar, se trabalharmos com o conceito de trindade e com a pré-existência do Cristo, que houve um momento (krono-lógico) em que Deus nãohouve ,em que Deus não foi, em que, efetivamente, “Deus morreu”. Esse é o preço mesmo da

realização da justiça que se exige pela quebra primária da relação homem-Deus queexigiu de Deus a forma humana (Rm 2: 13-15) e o sacrifício de sua própria constituiçãoonto-ético-relacional.

22 É conhecida a percepção heideggeriana de Deus apresentada emQue é Metafísica , no qual, sendo fiel ao intuito deLeibniz que opôs o ser que é ao nada que não é, Heidegger apresenta Deus como sendo o nada, para além do Ser.Horkheimer tinha, aparentemente, algo próximo em mente, quando afirmou que Deus – a partir de um ponto de vistamaterialista – seria o “totalmente outro”, e, neste sentido, radicalmente diferente do Ser que conhecemos. A vantagemde Horkheimer é que ele foi capaz de pensar que este totalmente outro, ainda que difira do nosso Ser, não precisa sero Nada – conceito que, no final de contas, é dependente do nosso conhecimento de Ser, tanto o é que Sartre o colocouno centro da análise do próprio homem, o que é centro do Ser e do Nada. Se Deus é pensado como o Nada, nenhumrelacionamento é possível; já com o Totalmente outro, o relacionamento é possível – não só, a própria noção de“milagre” se instala no seio mesmo da possibilidade de “comunicação” entre o Ser e este totalmente outro para alémdo Ser que é Deus – fonte da normatividade última e fundamento último da Verdade, para Horkheimer. Cf.TeoríaCrítica y religión - Añelo de Justicia (Madrid: Trotta, 2009).

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Este efeito do Mal no próprio Deus coloca em evidência uma outra tensãoconhecida dos leitores de Ricoeur, entre “amor e justiça”, já que, se o amor de Deus

“cobre todos os pecados”, ele não “folga com a injustiça” (I Co 13: 6 e ss.).

3.0 Considerações finais

Este ensaio não tem o objetivo de esgotar nenhum dos aspectos que apontou,visa a – exclusivamente – apontar aspectos que podem ser melhor desenvolvidos acercado problema do Mal que, como Ricoeur mostrou, já em Kierkegaard tornou-se omistério da filosofia: a filosofia precisa compreendê-lo por um lado, por outro, o Malnão pode se deixar compreender, pois deixaria de ser o absurdo, o escândalo23.

O Mal, esta é nossa hipótese, possui inúmeras facetas. Se desejamos conhecê-lo,seja com o nobre objetivo de combatê-lo, seja com o pretencioso objetivo de manipulá-lo, necesitamos pensá-lo para além de uma determinação conceitual ontológica ou ética,psicológica ou sociológica. A breve incursão teológica pode ajudar a entender que aontologicidade do problema deriva de aspectos éticos que ainda precisam seraprofundados.

O problema, complexo, imiscui-se em um mundo também cada vez mais

complexo; dilui-se em códigos de comunicação e de contato humano e espiritual, querseja na figura tradicional e (re)conhecida do pecado, quer seja sob os panos quentes deinúmeros formatos de setores altamentes autonomizados da sociedade, como a política,o direito ou a economia.

O Mal é um problema que atravanca não somente o Bem, mas a prórpiaBondade, para além de uma eticidade racional-prática ou de uma satisfação ontológico-pessoal da ek-sistência. O Mal apresenta aspectos onto-ético que se mostram, ainda,como problemas centrais para a filosofia do século XXI.

Referências:

ADORNO, T. W. Dialética Negativa . São Paulo, Zahar, 2009.

ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do Mal . São Paulo,Companhia das Letras, 1999.

23 Cf. “Kierkegaard et le Mal” in Lectures II – La contrée des philosophes (Paris: Seuil, 1999), pp.16 e ss.

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RICOEUR, P. A metáfora e o discurso filosófico. 2000. In P. RICOEUR, A Metáfora Viva . SãoPaulo, Loyola.