asmodeu - os prisioneiros do demônio - primeira parte

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um reality show, doze participante, um milhão de libras em jogo e um demônio com sede de vingança...

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Nonne ego vos duodecim elegi?Et ex vobis unus diabolus est.

No escolhi eu a doze de vocs? Contudo, um de vocs o diabo. - Evangelho de So Joo: 6.70

Prembulo...Eu era bom e compreensivo. Foi a desgraa que me converteu em demnio. Mary Shelley.

Inglaterra, Julho de 1448.

T

udo aconteceu de repente e com a presteza de quem no pode falhar. Archotes incandescentes surgiam de todas as direes, movendo-se de forma rpida e sincronizada, formando um enorme crculo luminoso em volta da manso dos Jourdemain. Cavalos emparelhados largando grandes baforadas, e marchando inquietos sem sair do lugar, como se adivinhassem uma batalha renhida. Cavaleiros, talvez duas centenas deles, todos bem armados e cobertos de compridas vestes negras com capuzes que lhes escondiam as feies.

Dez destes cavaleiros usavam mscaras de chumbo que lhes cobriam os rostos e que refletindo a claridade das tochas faziam-nos parecerem caveiras cinzentas. Eram eles os lderes do macabro ajuntamento de invasores que num estalar de dedos havia se apoderado da suntuosa residncia do Conde Simon Jourdemain. A manso foi tomada sem dificuldades ou resistncias, pois os guardas que deveriam fazer a segurana dos seus senhores tinham pactuado com os misteriosos invasores e at os conduziram aos pessoais aposentos do proprietrio, o qual juntamente com a sua esposa e filhos foram arrastados da cama no meio da noite e levados grande sala comunal, onde o sacrifcio seria realizado. Primeiro os cavaleiros da morte deitaram a mulher do Conde com as costas voltadas para o piso de mrmore negro. Dois deles seguraram as suas pernas retesadas, e outros dois abriram os seus braos at que formassem uma perfeita cruz. Ento usaram grandes cravos com os quais a pregaram sobre o pavimento sem compaixo. Depois foi a vez do Conde, mas com uma diferena: puseram-no de costas para cima, de modo que pudesse continuar acompanhando o desenrolar da tortura. Depois disso, trouxeram um menino de cerca de dez anos e o fizeram ajoelhar diante daquele que devia ser o lder supremo do bando.

Ele passou a mo por sob o seu queixo e levantou-lhe a cabea de modo que pudesse olhar nos seus olhos antes de murmurar num tom de total desdm: _ Fratres gemini! Assim, e sem se ater mais criana, ele acena para que o crucifiquem semelhana do seu pai. Feito isso, fizeram vir uma menina ainda no pbere. A sua me, pressentido o que estava por vir, implorou com lgrimas pela vida da criana, mas seus rogos foram ignorados. Quanto ao Conde Jourdemain, esbravejava, pronunciando maldies e juras de vingana contra aqueles aos quais chamou de prfidos conspiradores. E viu arrastarem a sua herdeira at os ps do grande inimigo cujo rosto se mantinha oculto pela mscara de chumbo. Como se mostrara relutante fizeram-na prostrar diante do lder supremo. A menina o encarou com impvido valor, e soberba, se encurvou voluntariamente, oferecendo a cabea ao algoz. Seu pai, sua me e seu irmo, embora supliciados e postos em grande agonia, assistiam a tudo com admirao. Ento o carrasco se aproximou sem sutileza e com um golpe certeiro do seu machado decapitou-a. Depois ele mesmo empurrou o corpo inerte para o lado com um brusco movimento do p e foi recolher a cabea para deposit-la em um saco.

Passadas estas coisas, o lder dos cavaleiros gesticulou aos seus lacaios que sem detena manietaram todos os criados da casa e os conduziram para a morte moda de Sevilha no lago da propriedade. E como no podiam ter diferente sorte, os soldados que faziam a segurana da manso e que tinham trado a confiana dos seus senhores, foram capturados e degolados ali mesmo na sala comunal. E com macabro adendo quele crime hediondo, eles atearam fogo casa estando os donos ainda vivos e presos por pregos ao cho. Igualmente, incendiaram os estbulos, os celeiros e depsitos, matando, inclusive, todos os animais, tais como cavalos, bois, ovelhas, porcos, galinhas, gansos, faises e mesmo os ces de estimao que l existiam. De sorte que quando o dia amanheceu as chamas ainda ardiam em grandes protuberncias. Mais tarde, havendo o fogo j se extinguido, moradores de vilarejos vizinhos encontraram os cadveres de todas as vtimas ali executadas, mas aos restos mortais do Conde Jourdemain no viram em parte alguma. Veio ento acontecer que no perodo mximo de uma dcada os escombros da manso foram revolvidos por habitantes alhures para que pudessem ser reaproveitadas em novas construes. De modo que o local onde antes houvera existido a soberba residncia de uma tradicional famlia

judaico-britnica, agora no abrigava nada alm de uma funesta recordao. Viajantes e andarilhos, porm, que por aquelas plagas passavam, podiam jurar que vultos eram ali avistados, e que do pntano onde antes havia existido um belo lago, ouviam-se as vozes, clamores, uivos e lamentos das vtimas que l encontraram as suas sepulturas. Mas isso foi h muitos anos. E essa histria j caiu no esquecimento...

1

A

gatha acenou com a mo aos seus colegas enquanto se dirigia para as escadas. Fez isso por pura educao, no querendo transmitir uma impresso distorcida de sua imagem. Como as pessoas pararam para ouvi-la, ela comentou: _ Pessoal, me desculpem a ausncia, mas estou bastante cansada. Os ltimos trs dias no foram nada bons para mim. Amanh nos apresentaremos melhor. Obrigada e boa noite. Ningum respondeu coisa alguma. Estavam todos mastigando e apenas dois ou trs balanaram com a cabea em sinal de assentimento. Agatha no se importou. Estava mesmo enfadada e queria se recolher para dormir e reorganizar os pensamentos. Subiu sem saltar degraus e sem fazer barulho. Pouco tempo aps j estava trancada em seu quarto. L em baixo uma voz feminina murmurava: _ Ela sequer olhou para a comida... E outra voz de mulher replicou:

_ Deve estar mesmo cansada. A sua cara no das melhores. Atirando-se sobre a cama Agatha se descalava usando os prprios ps; esfregou as mos e depois o rosto, expelindo um longo bocejo. Acariciou os cabelos com leveza e deixou escapar um suspiro: _ Nick... Puxou o travesseiro para debaixo da cabea e tentou se concentrar na realidade presente. Aceitara o convite de participar do reality show e ficara deveras empolgada ante a oportunidade de se tornar nacionalmente reconhecida e ainda incorrer na sorte de poder embolsar um milho de libras, mas desde que tomara o nibus que a trouxe para a manso, j no se sentia to segura de sua deciso. Dentro de si Agatha acreditava que noventa por cento de sua razo no sabia o motivo de estar ali. Entendia, todavia que uma vez que terminara o noivado com Nick precisava respirar novos ares, d um tempo a si mesma e se retirar de Londres por algumas semanas at sentir que o trauma comeava a ser superado. O que no seria nada fcil, principalmente se considerava que era o terceiro noivado que descia pelo ralo em menos de cinco anos. E justamente agora que faltava menos de um ms para a concretizao do seu casamento!

Ali deitada, pernas cruzadas e mos postas sob a nuca, ela contemplava o teto do seu quarto. Um aperto na alma, corao aos cacos, mas o orgulho empedernido. Estava muito magoada e ao mesmo tempo ressentida consigo mesma, afinal, foi por motivo to bobo que pusera um ponto final no seu noivado com Nick, um jovem estudante de medicina que era filho do melhor amigo de seu pai. O rapaz havia ingressado com outros estudantes para um intercmbio de cinco meses em Colnia, Alemanha, e atrasara o seu retorno em cinco dias; motivo suficiente para deix-la furiosa e provocar uma discusso na qual apenas ela reclamava com gritos e agresses verbais que s terminou depois de haver arremessado pela janela o buqu de rosas que o seu noivo lhe trouxera. Em seguida e sem pensar no que estava por fazer, Agatha torceu a cara apontando-lhe a direo da porta, e exigiu que sumisse da sua frente. Boquiaberto e sem saber o que responder, Nick rumou para a porta em silncio, e to desnorteado ficara que sequer lembrara-se de recolher o casaco que tinha deixado sobre o encosto do sof. Prepotente, Agatha ficou a dizer no seu interior enquanto via o moo desaparecer: Quando sentir minha falta ele vir me procurar! Mas depois de haver se passado trs dias sem receber ao menos um telefonema seu, a orgulhosa garota de irredutvel ndole

caiu na real. Foi quando veio saber, por meio de amigos comuns, que Nick tinha viajado com um grupo de torcedores para acompanhar uma partida de futebol entre o time do Arsenal e uma equipe da segunda diviso do Campeonato Ingls. Isso s serviu para deix-la ainda mais enervada. Surgiu ento a oportunidade de se vingar em alto estilo, pois nesse mesmo dia o seu telefone tocou e a mensagem que recebera deixou-a deveras eufrica ao assegurar-lhe que havia sido escolhida atravs de uma ligao aleatria para assumir o lugar de algum que sem explicaes tinha acabado de desistir de participar do The Garden, o reality show que entregar ao vencedor o fabuloso prmio de um milho de libras. Agatha tinha ouvido falar a respeito do programa cuja estria nacional estava prevista para a noite daquele dia, mas no havia cogitado nem por um instante que por qualquer reviravolta do destino viesse a integrar o seu seleto grupo de participantes. Ela no teve tempo para pensar e nem precisava com isso queimar os neurnios. Aceitou no ato, e s lhe deram tempo suficiente para arrumar as coisas e deixar um bilhete fixado na porta do refrigerador, avisando ao seu pai que estaria fora por algum tempo, mas que ele a veria todas as noites na televiso em pleno horrio nobre. Naquele momento estava radiante, mas desde que tomara o nibus

que a conduziria com os demais participantes para o mundo das possveis celebridades, j se sentia meio que arrependida. Sabia que podia desistir do programa j no dia seguinte, e era bem possvel que o fizesse, mas era obrigada a estar l quando as imagens do reality fossem pela primeira vez levadas ao ar. Agora devidamente acomodada em seu quarto ela comeava a considerar que valeria a pena resistir um pouco na competio e at imaginava cada um dos participantes bem como as reais probabilidades que cada um teria de embolsar o valioso prmio ao final do jogo. O primeiro nome a figurar na sua lista era o de Norman Maxwell, um jovem de boa aparncia que se vestia com elegncia e falava com moderao de quem vive a vigiar a prpria lngua. Assemelhava-se a um daqueles apresentadores da CNN, exceto pela inconfundvel cara de fraldinha. Ademais, era esguio, tinha porte atltico de um nadador e cabelos castanhos sempre penteados. Max era formado em marketing, mas pretendia mesmo era seguir carreira nos tribunais. A segundo participante a despontar na lista era Layde Alice. Loira, estilo patricinha, extremamente exigente, mas em particular quanto maneira de se vestir e locomover, dando a si mesma a impresso de estar o tempo inteiro sobre uma passarela. Sua ficha dizia que ela dava palestras

de etiqueta, mas que morria de medo de viajar de avio. Agatha de cara no simpatizou com Alice, principalmente depois de v-la algumas vezes em confabulaes ao ouvido de outra participante que no conseguia parar de avali-la com olhares rpidos, mas sem dissimulaes, como se a estivesse acusando de algo. Ento passou para o nome seguinte: Jennifer Nicholson. Uma jovem senhora de trinta e quatro anos, professora de literatura, meiga, frgil e aparentemente confusa. Tinha os olhos um pouco esbugalhados, como algum que tinha acabado de ver o Gasparzinho. Seus cabelos eram ruivos e um pouco ondulados, o rosto alongado e meio sardento; mas no era feia, apenas no demonstrava possuir muito amor prprio. Se Agatha tivesse de apostar sobre quem seria a primeira pessoa a desistir do The Garden ela depositaria todas as suas fichas em Jennifer, sobretudo, por saber que para ingressar no reality ela havia deixado dois filhos ainda pequenos aos cuidados de uma amiga que no tinha tino algum para tratar de crianas. O prximo era Luiz Alejandro, um espanhol quarento que conseguira cidadania inglesa h alguns meses. Era especializado em botnica, mas tinha servido igreja como padre em sua terra natal at h pouco mais de dois anos. Tagarela e muito descontrado, gostava de danar, era

inteligente e muito fino no tratamento com as pessoas Para Agatha ele seria um forte candidato ao prmio. Mas logo veio a vez de avaliar a Wilde Sanford, um rapaz de trinta anos, gordinho e barulhento que puxava assunto com todo mundo a qualquer instante. Brincalho, mas o seu humor era quase sempre negro e Agatha preferiu acreditar que isso estava associado profisso de mdico legista que vinha exercendo. Wilde mastigava com a boca aberta, s vezes falava borrifando saliva e no conhecia hora ou ambiente que no pudesse liberar seus arrotos ou flatulncias. Entretanto, Agatha entendia que ele fazia isso de propsito e para chamar a ateno dos que o rodeavam, pelo que seria penoso conviver com o moo sob o mesmo teto por tempo indeterminado no fosse pelo montante de dinheiro que disso podia advir. Agora ela se concentrava em na enigmtica figura de Zetta Parker Hill. Psicloga, ar esnobe e se comportando como se o Universo gravitasse ao seu redor. Era alta, esbelta e muito bonita, seus cabelos longos e negros faziam um belo contraste com a sua tez alva, mas em palidez. No rosto ovalado, duas mas levemente rosadas, tendo ainda um par de olhos que pareciam piscinas. Sua postura altiva de quem sabe-tudo era-lhe quase natural e isso a tornava ainda mais segura, decidida e obstinada. Zetta era aquele

tipo de mulher que parecia existir apenas para os estudos e o trabalho, raramente dando descanso sua mente. Jacob Evans era o nico rapaz negro a participar daquele grupo de sonhadores. Rosto anguloso, troncudo, pescoo rolio com uma tatuagem na parte lateral esquerda. Tava na Cara que era um lutador jiu-jtsu. Veio da Amrica h cerca de um ano e servira marinha em seu pas por algum tempo, mas ultimamente trabalhava como segurana particular de alguns endinheirados londrinos. Apesar de seus mais de cem quilos, Evans era gentil e educado como um lorde, no tendo o costume de usar a sua estatura como meio de intimidao. Logo veio a oportunidade de estudar o perfil de Linda Kellaway, aquela moa que Agatha havia flagrado em confabulaes com Layde Alice. Essa era formada em direitos, mas nunca chegou a exercer tal funo. Magra como uma vassoura, cabelos ralos e dourados como os pelos de uma espiga de milho, culos de armao quadrada (para emitir a impresso de intelectualidade) sempre pousados sobre o nariz. Era realmente entendida das coisas e possua o hbito de ler pelo menos dois bons livros por ms. Mas Linda era claustrofbica e tinha alergia poeira domstica, de modo que evitava elevadores e raramente visitava uma biblioteca.

Desta vez sua ateno se prendia a Verdelet, um moo distinto cuja presena jamais passaria sem ser percebida. Face angulosa, queixo espevitado com uma profunda covinha. Seus olhos verdes estavam quase sempre escondidos atrs das mechas de cabelos que ele fazia questo que lhe cassem sobre o rosto. A voz era macia, articulada e glacial como a de um serial killer. Falava com estranha lentido, mas sem pausas excessivas e jamais deixava interromper o seu raciocnio. Quase no ria ou alternava de humor; os amigos diriam que Verdelet era um rob programado para viver, mas sem exprimir sentimentos. Ainda assim, tinha formao em veterinria e possua consultrio prprio. Os dois ltimos da lista (Agatha estava quase adormecendo) eram um fotgrafo profissional que chamava a si mesmo de J.D. Wallace, e uma moa bonita que atendia por Brenda Latmer. O primeiro j havia encarado o altar por trs vezes e por trs vezes entrara com pedido de divrcio. Quanto jovem morena, era filha de um casal de franceses que viviam na Inglaterra h mais de trinta anos e Agatha estivera levemente persuadida de que a conhecia de algum lugar. Brenda era poliglota e... Agatha deu um ltimo bocejo antes de se apagar, mas sem dor na conscincia, pois acreditava que quela altura

cada um dos participantes do reality estava igualmente se ocupando de estudar os demais competidores.

2

F

oi durante o jantar de confraternizao que Wilde Sanford se levantou, tendo em uma das mos uma coxa de frango qual mordiscava, e na outra a sua taa de vinho tinto. Propositalmente assumira a cabeceira da mesa como se fosse ele o anfitrio da casa e com largo sorriso estampado na sua cara redonda disse: _ Pessoal, eu proponho um brinde aos participantes do The Garden. A idia agradou a todos, pelo que levantando-se de seus lugares e estendendo as mos com as respectivas taas, brindaram com alegria. Quando outra vez sentam-se Evans fez a seguinte declarao: _ Vamos aproveitar bastante a tertlia desta noite, porque amanh comearemos a torcer uns contra os outros. Ningum respondeu s suas palavras, e o prolongado e enigmtico silncio que se seguiu acompanhado de uma coletiva troca de olhares o deixou desconfiado, pelo que corroborou:

_ Eu falei algo que no devia? Isso aqui um jogo, pessoal; ganha quem for mais ladino. E isso nada tem a ver com deslealdade ou desvio de carter. Nisso Verdelet fez ouvir a sua voz metlica: _ Acho que compreendo o seu pensamento, amigo. A verdade que l dentro cada um de ns est desejando m sorte ao outro; da natureza do jogo que nos esforcemos em transformar a vida do prximo num inferno astral to pssimo que ocasione a sua desero. Quero antecipar, entrementes, que a competio s termina quando restar aqui apenas o vencedor: eu. Apesar de frgil e tmida, Jennifer se fez perceber, embora a sua voz surgisse carregada de melancolia: _ No minto que a minha deciso de resistir ao jogo por no mximo noventa dias e que se algo deve disso advier, que seja lucro. Wilde reage, ainda mastigando frango: _ Gente, ser que temos aqui algum suficientemente tolo a ponto de imaginar que pode se desprender dessa casa? Olhem para tudo em redor: luxo total! Tudo o que eu possa desejar est aqui dentro. A professora retoma a palavra:

_ Wilde, sempre existe algum bem mais precioso l fora. E Linda, ajeitando os culos: _ Nossa, Jennifer! Do modo como voc fala me faz imaginar que no vai durar muito no jogo. Voc realmente acha que fcil desistir de um milho de libras totalmente livre de impostos? A meu ver, e assim como Wilde, penso que poderia resistir aqui pelos prximos cinqenta anos. Abruptamente Wallace tomou a fala: _ Fao apostas com quem quiser que nenhum de ns resistir aqui dentro por mais de dois meses. No por nada, gente, mas uma manso to antiga e to grande no pode ser um lugar maravilhoso o bastante para se permanecer por muito tempo. Evans, torcendo um pouco a cara com ares de surpresa, deu com os ombros e perguntou ao amigo: _ O que est querendo dizer com isso? _ Me refiro s energias e vibraes. Pense que prdios antigos como esse certamente acobertam crimes brbaros de um passado distante. bvio que a casa tenha passado por reformas para encenar o reality show, mas isso no pode inibir as influncias de malficos acontecimentos que aqui ocorreram e que de algum modo podem interferir em

nossos comportamentos, alterando-nos a vida sem que percebamos ou reconheamos as causas. Assim sendo, pessoas podem sofrer distrbios emocionais que as levem a abandonar a competio. Evans outra vez exprimindo incredulidade: _ Voc acaso no est se referindo a assombraes e fantasmas que se apresentaro bem diante das cmeras, certo? _ Longe disso recobrou Wallace. - Mas pense apenas que voc vai dormir em um cmodo onde vrias pessoas foram brutalmente torturadas at a morte, h, quem sabe, duzentos anos. O que acha que pode te acontecer durante o sono? O ex- fuzileiro coou a testa sem saber ao certo o que responder, mas Zetta Parker deu o seu parecer: _ primeira vista Wallace parece possuir o pessimismo flor-da-pele, mas o que disse tem plausividade. Conheo diversos casos de pacientes que foram tratados de estranhos distrbios psicolgicos sem sucesso por vrios anos, at se descobrir que as origens do problema estavam justamente no domiclio em que viveram. Quanto ao que disse de no durarmos mais que dois meses aqui dentro, de igual possibilidade, mesmo porque depois de tantos dias o pblico comear a perder o interesse pelo programa e os

prprios idealizadores se vero na obrigao de abreviar o jogo. Portanto, senhoras e senhores, no alimentem vs fidcias de lanarem razes nesta casa. Ao que Verdelet argumentou: _ E caso no desejemos desistir? O pblico no tem a obrigao de nos aturar, mas os organizadores do reality no podem simplesmente nos convencer a abandonar o jogo. _ No problema nosso respondeu Zetta. - Eis um impasse que eles tero de contornar. Como ia contagiando a conversao e o entrosamento entre todos se tornava evidente, as pessoas podiam se sentir mais vontade para externar suas opinies. Por esse motivo Brenda Latmer no precisou fazer vnia para expor o que se passava em sua mente, por isso disse: _ Agora que estou aqui posso anuir que as regras desse jogo so pouco viveis. Como pode ser possvel um reality show que no tem data prevista para acabar? Igualmente, acho tolice ficar esperando que algum venha desistir de permanecer enclausurado numa manso onde o luxo, a comodidade e o cio se combinam possibilidade real de se tornar rico e famoso. No que toca minha percepo, de se considerar que alguma coisa no ficou bem esclarecida,

ou quem sabe a produo do programa no pensou em todos os detalhes, o que acho bastante improvvel. Verdelet comentou em um tom assaz preocupante: _ Talvez eles nos subestimem, ou quem sabe estejam cientes do tempo mximo que nos seja possvel resistir aqui dentro. E voltando-se para o fotgrafo, disparou: _ Em todo o caso, Wallace, aceito a sua aposta, desde que nos revele por antecipao o nome do primeiro desistente do jogo. Ao que Wallace respondeu depois de um breve sobressalto: _ Como assim? E o outro, usando de maior acinte: _ Pelo que entendi voc capaz de prever qual de ns abandonar a competio primeiro. Se assim , aceito a aposta, desde que voc pronuncie diante de todos o nome deste desafortunado. Mas Wallace se esquivou, dizendo: _ No apostarei coisa alguma, mas no ficarei admirado se logo pela manh um de ns aparecer aos prantos implorando para ir embora. E se no me falha a memria,

caro Verdelet, eu apenas afirmei que nenhum de ns permanecer aqui por mais de dois meses. Logo o assunto foi posto de lado e to logo as pessoas foram se fartando do jantar e algumas delas iam deixando a mesa, Alejandro ficou esttico a contemplar uma enorme tela exposta na parede da grande sala contgua, que por sinal situava-se bem s costas de Wilde. quelas alturas Brenda tambm havia se levantado e acompanhou o espanhol, vindo a postar-se bem ao seu lado. A pintura era de uma cena medieval retratando uma conversa entre dois senhores feudais em um ambiente que fazia lembrar uma feira. O trabalho era composto em quatro planos, tendo ao fundo e bem ao longe alguns pescadores recolhendo as suas redes. _ Um trabalho magnfico, no mesmo? disse Brenda, quase num sussurro. O espanhol apenas se virou um pouquinho para dar assentimento ao que a moa dissera: _ Sem comentrios. Mas estou a me perguntar se um artista to completo cometeria erro to infantil na composio do seu trabalho. Naquele instante outras pessoas j havia se aproximado para igualmente admirar a pintura. Brenda, no entanto, no

pde captar o sentido das palavras de Alejandro e por isso indagou-lhe: _ Consegue encontrar defeitos nesse quadro? A meu ver ele perfeito. Alejandro, por sua vez, tratou de se explicar, mas sem remover o olhar da pintura: _ No direi que seja um defeito de fato; na verdade estou a pensar que esse quadro deve ter sido pintado por mais de um artista. Uma oportunidade para Wallace manifestar os seus talentos atravs da percepo arguta peculiar a um fotgrafo profissional. Pelo que apontando com o dedo na direo de um dos cavalheiros representados na pintura, ele comentou: _ Observem aqui. O artista projetou a luz indevidamente sobre o rosto deste senhor. Olhem para a tela no seu todo e percebam que pela posio da luz o Sol estava a cerca de vinte graus quando o pintou comps a sua obra, no entanto, a luz projetada sobre o rosto do cavalheiro esquerda vem de um ngulo totalmente oposto. Mas isso no deve constituir um erro. H uma famosssima pintura de Nicolas Poussin...

_ Os pastores da Arcdia interfere Alejandro, dando provas de seus conhecimentos na rea dessa arte. Wallace o fuzilou com um reprovador olhar de soslaio, mas retornou ao seu raciocnio: _ Como eu estava dizendo, na referida obra de Poussin vemos alguns pastores admirando um misterioso sepulcro, e um deles se agacha como que para averiguar algo mais de perto. Pois bem, se atentarmos para a sombra do seu brao que se projeta sobre a tumba concluiremos que ela no corresponde com a inciso natural da luz lanada sobre o restante da pintura. Isso no acontece por inpcia do artista, mas ao seu capricho de querer transmitir certa informao que apenas aos mais aproximados amigos ser dado a conhecer. E retornando para o quadro na parede ele arremata: _ Aqui a minha experincia diz que o artista lanou sombra onde deveria existir luz e vice-versa. S no me perguntem a razo, pois para tanto, eu poderia suscitar mil especulaes. No nterim, Wilde fez a seguinte constatao: _ Observem bem esse nobre: ele possui expresses meio que familiares. Sei l, faz lembrar vagamente a algum que estamos acostumados a ver na televiso, quem sabe...

Mas no lhe deram ateno, pois todos j estavam inteirados que Wilde tinha como hobby o falar bobagens se desejava atrair as atenes para si. Enfim, Max se fez notar naquela reunio, emitindo a sua voz loquaz e quase didtica, como se explicasse os detalhes da pintura aos seus colegas: _ Notaram como o cavalheiro da esquerda est bravo com o outro? Deve ser uma conversa entre senhor e subalterno; o homem direita mantm-se cabisbaixo pelo fato de estar sendo humilhado em pblico e diante de sua esposa. Ao ouvir isso a psicloga Zetta Parker levantou a voz com segurana de quem sabe o que est dizendo. Era de impressionar a forma como conseguia se impor sem apelar para a arrogncia ou o pedantismo. Seus colegas sempre a escutavam, pois entendiam que ela no costumava discorrer sem conhecimento de causa. E a sua objeo foi assim justificada: _ Pobre Norman, se pudesse morrer e renascer dez vezes no lhe seria bastante para enxergar a verdade to bvia por trs da cena. Primeiro porque os dois senhores em questo no esto discutindo o relacionamento entre patro e empregado, mas o preo estipulado por determinada mercadoria. Em segundo lugar, o cavalheiro da direita est de cabea baixa no por vergonha, e sim para avaliar a

proposta comercial que lhe fora feita. Em terceiro lugar, a jovem senhora qual voc se referiu no esposa de ningum, mas o objeto direto da prpria permuta. A quarta observao a ser feita, e isso vlido para todos aqui presentes: a pintura retrata a redeno, a liberdade e o triunfo de uma escrava judia que certamente encomendou o quadro posteriormente. Todos os olhares se voltaram espantados para Zetta. A intrigante incredulidade expressa em cada semblante fazia petrificar, pois era de impressionar que a jovem psicloga conseguisse fazer to estupenda leitura de uma obra artstica em to curto espao de tempo. Por isso, e embora tomado pela surpresa, Verdelet questionou: _ Como conseguiu tirar tantas concluses em apenas algumas piscadelas? O que mais me inquieta, porm, o fato de voc saber que a moa na pintura seja uma escrava judia! Zetta responde sem hesitar ou insinuar menosprezo pela ignorncia do amigo: _ uma questo de enxergar os fatos no seu todo. Se prestarem ateno podero notar que essa mesma jovem reaparece em outras pinturas espalhadas pela casa. Logo na sala ao lado, por exemplo, h um quadro retratando uma cena bblica onde vemos o general Naam, o profeta Eliseu

e uma jovem escrava hebria, a mesma que apresenta o vidente ao guerreiro leproso. Conseguem imaginar quem seja a escrava em questo? Dito isso ela aponta para outro cmodo da manso e prossegue: _ Igualmente, na biblioteca alm encontra-se uma tela com outra cena bblica. Sarah lamenta a morte dos seus sete maridos diante do Arcanjo Rafael. Comparem os rostos nas trs pinturas e vero que se trata de uma nica pessoa. A propsito, o fato de estas trs telas estarem na mesma casa no sugere que tenham sido feitas por encomenda de um nico comprador, exatamente aquele que aparece em cada uma delas? Aps dizer estas coisas Zetta se retira garbosa, os cabelos longos, negros e lisos caindo-lhe s costas como se fossem uma capa. Atrs dela ficou Alejandro a murmurar com seus companheiros: _ Eu juro que essa mulher me mete medo! Brenda, notando o espanto estampado no rosto de cada um, faz o seguinte questionamento: _ Como ser que ela consegue se antecipar a tudo e a todos?

Ao que Wilde interpe: _ No me digam que acreditaram em cada palavra que ela pronunciou! Qual , pessoal? Est na cara que ela blefou; e olhem que de anatomia eu entendo, pelo que posso assegurar-lhes que aqueles trs rostos nas pinturas nunca foram de uma mesma pessoa! Wallace retorquiu: _ De rosto eu tambm entendo, e sei que a leitura de Zetta est corretssima. Mas afinal, que importncia tem isso. Vamos dormir que o dia de amanh uma promessa. Alejandro no concorda: _ No costumo me recolher antes da meia-noite. _ E por acaso vossa excelncia sabe dizer a que horas da noite estamos? Isso um reality show, cara; aqui ningum tem noo de tempo! Ouvindo isso o espanhol coa a testa com as pontas dos dedos e admite: _ Est coberto de razo, amigo. Acontece que o meu relgio biolgico no costuma erra e neste caso ele me faz entender que ainda no passamos das vinte e trs horas. Subam vocs, pois irei apreciar um pouco da noite l fora.

E correndo com os olhos em volta do grupo at se deparar com Max ele lhe fala: _ Por acaso voc tem cigarros. Retiraram-se aos pares; Wilde ia conversando ao ouvido de Wallace. Pelos gestos que faziam e pelos risos impressos em seus lbios dava para inferir que a conversa soava agradvel para ambos.

3

E

ra ainda madrugada e o cu do horizonte sequer havia dado os primeiros sinais de rubor que anunciam o romper da aurora. Gritos de pavor e desespero eclodiam, quebrando o sepulcral silncio que reinava no interior da manso e despertando todos os participantes do reality show, os quais foram se levantando uma a um e ainda desajeitados correram para o corredor sem saber direito o que ou porque estavam fazendo aquilo. Os gritos histricos vinham do quarto de Linda Kellaway e pelo desespero de sua reao era de se temer que algo realmente srio estivesse acontecendo com ela, pois espancava com violncia a porta, chorando e dando soluos que causavam arrepios em quem a ouvia. As trs primeiras pessoas a correrem em sua ajuda foram Evans, Wallace e Alejandro, mas foi o lutador de Jiu-jitsu quem primeiro chegou porta, e encostando a boca a esta falou: _ Linda, o que est acontecendo? Viemos para ajudar.

Do outro lado a moa responde num berro de causar preocupao e d: _ Me tira daqui! Tem algum aqui dentro!!! Em menos de vinte segundos todos os ocupantes da casa j estavam diante da porta do quarto de Linda, que no conseguia parar de gritar. Evans, sempre colado porta, tentava acalm-la: _ Est tudo bem, garota. J estamos todos aqui. Agora procure se acalmar e abra a porta, ok? No entanto, ela s conseguia exclamar, j ficando afnica: _ Tem algum aqui! Oh meu Deus! Por favor, me ajudem! E colando porta ela chorava mais ainda. Logo, Alejandro tambm tratou de ajudar, dizendo-lhe: _ Senhorita Kellaway, acalme-se e tente usar a chave. Voc tem uma chave, no tem? _ A chave no est na porta; algum a levou! respondeu ela num frmito. _ Entendido. Voc ao menos pode se afastar um pouco para que derrubemos a porta?

Nisso aproximou-se Zetta Parker e dirigiu sua voz jovem e aflita advogada. Seu tom foi acetinado e bastante pausado quando ecoou: _ Linda, reconhece a minha voz? Eu quero que voc me escute bem e tente acender a luz, pode ser? Funcionou, pois de imediato todos puderam notar a estreita claridade que surgiu entre a porta e o piso. Por que ser que ningum havia pensado nisso? E a prpria Linda em sua afobao no conseguira entender que em todo o tempo que estivera gritando apenas a lnguida luz do abajur emprestava o mnimo de claridade ao aposento. Assim, e aps um longo suspiro, ela diz num fio de voz: _ Pronto, a luz est acesa. Ento Zetta prossegue: _ Muito bem. Agora olhe o cho em volta e tente localizar a chave. Consegue fazer isso? A tcnica funcionou outra vez e depois de meio minuto a porta se abriu num lampejo e Linda se projetou atravs dela para ir se abrigar nos braos de Zetta e por alguns minutos seu pranto foi ao pice, acompanhado de espasmos cortavam o corao de quem a via. A psicloga acenou para que ningum a interrompesse, e pela leitura de seus lbios

todos conseguiram entender que tal reao era normal. Portanto, ficaram em silncio at que as coisas voltassem ao normal. Depois de algum tempo Zetta deu um beijo em sua testa e disse: _ Est tudo bem, menina. Voc apenas teve um pesadelo. Se quiser nos contar o que houve ns a ouviremos, mas se deseja evitar o incmodo, fique vontade. Evans e Alejandro adentraram no quarto apenas para dar a certeza de que tudo estava em ordem. Apenas a cama ficou desarrumada e uns poucos objetos pessoais juntamente com um livro e algumas pginas de revistas estavam espalhados pelo cho. Quando Zetta sentiu que o peito da amiga j no estava to arfante e que os soluos haviam passado, murmurou-lhe ao ouvido: _ Est melhor agora? Linda, olhos inchados e ainda marejados, responde num suspiro: _ Eu quero ir embora...! Ento Zetta a aperta outra vez contra o seu prprio corpo e lhe diz: _ No seja boba, a casa inteira est sendo filmada. A Inglaterra inteira deve estar rindo de voc. Escuta-me: Se

houvesse acontecido alguma coisa anormal a produo do programa j teria tomado uma providncia. Com isso ela levanta o rosto de Linda de modo que possa olhar no fundo dos seus olhos, e continua: _ Foi s um pesadelo idiota, Docinho. No deve acontecer de novo. Est me entendendo? Foi s um pesadelo. O resto da turma em silncio, sem saber o que pensar ou dizer. Agatha, no entanto, havia se retirado por alguns instantes e ao retornar tinha um copo com gua na mo o qual ofereceu para Linda: _ Toma, isso vai te fazer sentir melhor. Linda lanou-lhe um olhar comprido como se relutasse, mas Zetta tomou o copo da mo de Agatha e agradeceu: _ Ela est mesmo precisando.

E o elevou at os lbios de Linda que no ofereceu mais resistncia. No mesmo instante uma idia ocorreu ao espanhol e ele tratou de bot-la em prtica, dizendo: _ Pessoal, no acham legal irem todos para a sala enquanto o Evans e eu iremos cozinha preparar uma bebida quente? Como sempre, foi Zetta quem deu a palavra:

_ Muito boa idia, afinal todos concordamos em que ningum mais retornar para a cama at que o dia amanhea. E a propsito, algum pode apanhar um cobertor para Linda? Ela est congelando. Ah, tragam tambm as suas sandlias. Layde Alice se afastava naquele momento e alguns imaginaram que ela estava se dirigindo ao quarto de Linda para apanhar-lhe o que precisava. Havendo ento se retirado dali, Alejandro comentava com Evans: _ O que voc achou de tudo isso? Ao que o americano responde com o seu costumeiro movimento de ombros: _ Tudo o qu? _ Esse escndalo todo e a maneira estranha com que Zetta agiu. Como ela sabia que a luz do quarto estava apagada e que a chave tinha cado da porta? _ Pura ilao, amigo. Eu tambm havia deduzido desde o princpio, s no tive a mesma frieza para contornar a situao. Alejandro murmura desconfiado: _ Sei no. Tem alguma coisa errada envolvendo essa mulher...

Evans sorrir com um pouco de malcia e dispara: _ Sente-se inferiorizado? Admitamos, companheiro: ela realmente boa no que faz. _ No se trata disso. que s vezes chego a pensar que estamos vivendo uma histria que ela mesma escreveu e que por isso j conhece o final de cada captulo. O americano seleciona xcaras enquanto o outro preparava chocolate quente. Um minuto aps Alejandro retorna ao assunto: _ Voc acha que o que aconteceu com Linda tem a ver com as coisas que Wallace disse ontem noite? Penso que sim responde Evans, abrindo uma caixa de biscoito de aveia. E bastante lembrar que ela sofre de claustrofobia. Uma coisa deve ter contribudo com a outra. Mas Alejandro tinha outra explicao: _ No sei... Estou imaginando que foi uma brincadeira de mau gosto que acabou excedendo. _ E...? _ apenas uma teoria, mas de qualquer forma, no posso comentar diante das cmeras. Mas se voc me permitir posso dar uma demonstrao.

_ Uma demonstrao? Mas a respeito do que voc est falando? _ Apenas diga que me autoriza e eu darei uma prova do que estou imaginando. E olhando de lado para Evans ele concluiu: _ Foi uma brincadeira de muito mau gosto. No se demoraram mais e havendo preparado uma boa quantidade de chocolate quente seguiram para a sala onde todos estavam esperando-os. L encontraram a turma espalhada em sofs, alguns abraados a almofadas; Linda envolta em um cobertor e Layde Alice botando as sandlias nos seus ps. Zetta enche uma xcara da bebida e oferece a advogada, permitindo-lhe dar alguns tragos antes de perguntar: _ Ento, j pode nos contar o que aconteceu l encima? Linda enche bastante o peito, libera o ar e comea a falar quase totalmente recomposta: _ Eu dormia e tive um pesadelo horrvel. Havia um mostro me perseguindo dentro de uma casa velha e malassombrada. Ele conseguia me encurralar em um cmodo bastante exguo e eu me recordava que tinha claustrofobia. Foi quando comecei a gritar e a chorar desesperadamente.

Ele ento me agarrou pela cabea e ficou dando baforadas ptridas ao meu pescoo. Eu relutava com tapas e pontaps, mas nada podia faz-lo parar. Acho que foi por puro reflexo que acertei um chute no que ma pareceu ser o seu abdmen. Ele ento me largou aps soltar um urro de dor e fugiu de mim. Foi ento que despertei a tempo de ver um vulto que se atirava para fora do meu quarto. Foi muito real; eu gritei e logo a porta bateu. Eu podia jurar que aquela coisa havia trancado a porta por fora, por isso me desesperei ainda mais. Desculpa, gente, eu s conseguia pensar que ele, ou melhor, que aquela coisa ainda estava l dentro do meu quarto. Mas graas a Deus, logo apareceram Evans e Alejandro para me socorrer. To logo ela concluiu o seu relato, Evans lhe falou: _ Por obsquio, Linda. Voc pode retirar o cobertor s por um instante? A jovem o atendeu sem relutncias, descendo o cobertor e expondo-lhe o pescoo de modo que todos puderam ver uma mancha vermelha logo abaixo de sua orelha esquerda. _ O que aconteceu? questiona Evans ao notar o hematoma. _ Ah, eu havia esquecido de mencionar esse detalhe. que na hora que acertei o chute naquele ser asqueroso, ele revidou com um soco to forte que me lanou ao cho.

Fiquei ali estrebuchando por pelo menos uns dois minutos antes de me erguer e correr para a porta. Mas agora que estou me recordando sinto doer-me o meu pescoo. Ficaram todos em silncio, como se imaginassem uma natural explicao para aquela mancha roxa na parte posterior do pescoo de Linda. O hematoma era por demais evidente e devia existir uma forma de esclarec-lo. Wallace ento pigarreia antes de assumir a palavra: _ Respeito o atual estado de nervos em que voc se encontra, mas acho que posso explicar o que aconteceu. J se deu uma vez comigo. Foi h quatro anos, eu viajava com um amigo para uma entrevista de emprego e tivemos de passar uma noite em um desses hotis beira da estrada. O quarto era exguo e os poucos mveis que comportava ficavam muito prximos uns dos outros. Assim, aconteceu que enquanto dormia sonhei que estava sendo acossado por um co raivoso. Para me defender dele tive de desferir um chute na boca, mas antes no o tivesse feito, pois acabei acertando em cheio na quina do guarda-roupa e fraturei o p. No final retornei para casa desempregado e andando com a ajuda de uma muleta. Penso que tenha acontecido algo semelhante com Linda e que ela, tentando se safar do monstro com o qual sonhava, acabou acertando a si mesma.

Calou-se, e Max entrou para corroborar com o seu raciocnio. _ Segundo o contrato que cada um de ns assinou, qualquer tipo de agresso fsica pode ocasionar a imediata eliminao do programa. O que penso o seguinte: caso algum houvesse invadido o quarto de Linda para agredi-la durante o sono a produo h muito teria se manifestado nesse sentido. Mas como no ocorreu qualquer reao da parte deles porque tudo no passou de mero pesadelo. assim que eu vejo a coisa. Wilde, todavia, gostava de fazer fumaa em tudo. Por isso ele achou que era j a hora de dar a sua opinio de mdico legista ainda que soubesse que ningum o levaria em conta: _ Gente, de hematoma eu entendo. Ser que ningum consegue enxergar que a marca no pescoo de Linda Kellaway tpica de um cruzado de direita? Antes que Linda se deixasse convencer pela brincadeira feita por Wilde, Layde Alice interfere: _ No comea, o pessoal de casa est vendo tudo!

4

H

avendo anto amanhecido o primeiro dia desde o isolamento na manso do The Garden, os competidores deixaram as paredes do secular edifcio e foram se deliciar em um passeio atravs dos incontveis jardins que iam se estendendo por todos os lados, formando verdadeiros labirintos nos quais apenas com muita dificuldade seria possvel no se perder. As rvores, sendo elas frutferas ou no, foram plantadas em perfeita ordem, e dentre estas havia algumas que estavam podadas de modo to caprichoso que bem pareciam esculturas. Mas aqui e ali se viam ciprestes de troncos avantajados e sequias gigantes cujas idades davam testemunho de que no haviam sido plantadas por mos humanas, mas que l estavam desde tempos imemoriveis. Afastando-se um pouco era possvel ter uma viso geral da imponente manso. Era em estilo vitoriano, mas com um toque de contemporaneidade, ladeada por colunas torneadas que

faziam lembrar a arquitetura jnica. As janelas, cento e vinte no total, eram todas retangulares. Quanto s portas, ficam sempre na parede central de cada andar, eram largas e arqueadas, tendo um par de janelas de cada lado. Havia uma mureta sustentada sobre balastres esculpidos manualmente em algum tipo de mrmore branco. As paredes eram revestidas externamente com uma espcie de ladrilho natural num tom acinzentado e nas arestas destacavam-se placas retangulares de arenito que subiam num revezamento de duas por uma e meia at a altura do telhado. A frente da manso era voltada para o nascente, onde havia uma rea plana toda coberta por gramas verdejantes e muito bem aparadas, to extensa que podia ser usada como campo para a prtica do futebol. Uns cem metros aps comeavam os jardins com pequenas praas construdas estrategicamente, todas com bancos sombra ou sob o Sol, tendo sempre ao centro um chafariz vigiado por esttuas de anes, Cupidos ou imagens da Primavera. O dia estava ameno e o Sol despontava melindroso a uma altura que dava a entender que ainda no havia ultrapassado s nove da manh. Os eufricos competidores agora passeavam enquanto colhiam frutas e ervas aromticas para o consumo do grupo. Alejandro era o mais empolgado e at selecionara algumas folhas de plantas

exticas com as quais prometia fazer um ch excepcional para a tarde. Max deixou que Jennifer apoiasse a mo sobre o seu ombro e seguiam numa descontrao que apenas aos velhos e bons amigos seria comum. Agatha mantinha-se calada a maior parte do tempo, abrindo a boca apenas quando tinha de murmurar um sim um no ou um talvez. Zetta, Alice e Linda eram as que mais conversavam e o assunto gravitava sempre em torno de algo relativo s relaes humanas. Brenda e Evans riam de qualquer coisa que dissessem enquanto caminhavam. Wilde seguia bem atrs, pois queria comer dos frutos de praticamente todas as rvores que encontrava pela frente. Verdelet vinha pensativo ao lado de Wallace que tambm dava cordas sua imaginao, mas sem se mostrar to distrado quanto o amigo. Ao notar, porm, que o seu semblante denunciava uma grande preocupao, parou e perguntou-lhe: _ O que h com voc, cara? Vejo que vez por outra fica a olhar desconfiado para a paisagem como se procurasse algo que no pode encontrar... Num tom que oscilava entre o curioso e a desconfiana, Verdelet respondeu: _ No tem notado alguma coisa estranha nestes jardins? _ Voc quer dizer estranho do tipo anormal ou tem a ver com excentricidade?

_ No sente a ausncia de alguma coisa... digo: no est faltando algo por aqui? Max aguou o olhar, tentando encontrar entre a paisagem algo que no sabia o que pudesse ser, e como tudo lhe parecesse mais do que normal ele respondeu sem nada entender: _ Sinceramente no vejo nada de anormal. Ao que o outro reage: _ Consegue ver algum animal ou escutar qualquer pssaro entre as rvores? estranho que no tenham aparecido desde que estamos a caminhar por entre os jardins! Max parou um pouco para reconsiderar e notou que naquele instante estavam deveras afastados do restante do grupo, mas como houvera em vo buscado qualquer sinal de pequenos animais entre as plantas e rvores ao redor, volta o rosto para encarar Verdelet com desinteressada surpresa. E exclama: _ Que importncia tem isso, amigo? Aqui quem deve ser visto somos ns. Tentou apertar o passo para alcanar o grupo, mas Verdelet o deteve ao segurar-lhe o brao, dizendo: _ No d as costas para mim enquanto lhe falo.

Sua voz glacial e penetrante nunca esteve to carregada de intimidadora vivacidade. Ia anunciar qualquer coisa ainda mais ameaadora, mas escutou a zombeteira voz de Wilde s suas costas: _ Ora, Verdelet, est precisando urgentemente de um bom oculista! Olha se no so esquilos que esto brincando sob aquela confera. E adiante, na base do chafariz, direita, acaso no um par de lavadeiras, cantando e se sacudindo? Veja ainda aquele lparo coando os bigodes sombra da amendoeira! Primeiro eles tiveram de se refazer do susto provocado pela inesperada apario de Wilde, depois dirigiram os olhos para as respectivas direes que o jovem mdico lhes havia indicado e constataram que de fato existiam animais e passarinhos na flora da manso. _ Como foi que no os vi?! exclamou Verdelet, ainda desajeitado. Mas s encontrou o indisfarvel olhar de desdm que Wilde lhe dirigia. Depois disso ele e Max se afastaram s pressas para irem se juntar ao alegre grupo que naquele momento estava conversando, todos sentados em bancos de uma simptica pracinha circular que tinha uma diminuta piscina rodeada de seixos bem ao centro. Como se afastassem sem olhar para trs, Wilde os acompanhava com significantes acenos

de sua cabea, reprovando a imbecil imaginao de Verdelet. E carregando a voz de um tom ainda mais actico, murmurou: _ Sujeitinho estpido! e seguiu-os em passos lentos. Chegando roda de amigos notaram que eles discutiam sobre a escolha dos nomes, seus significados e importncia. A conversa estava mesmo descontrada, e at Linda, j recuperada do episdio ocorrido pela madrugada, ria em todo o tempo, inclusive se divertia com as combinaes de alguns nomes que Alejandro jurava existirem na sua terra natal. Naquele exato momento o espanhol dizia o seguinte para a descontrao de todos: _ Por exemplo: no rancho em que nasci existiu um capataz cujo nome era Manuel Nascimiento de La Buena Muerte, o que a meu ver uma questo de muito mau gosto. Mas Verdelet parecia no se interessar pelo assunto e foi se afastando sorrateiro at se achegar a uma macieira da qual escolhera um fruto para a sua degustao. Wilde, no entanto, percebeu essa evaso e comentou aos seus companheiros num fio de voz: _ Decerto tem vergonha do prprio nome.

Ao ouvir isso Layde Alice fez biquinho e virou um pouco a cabea, tendo no rosto uma expresso meio que risonha. Aps quis saber: _ E por que se envergonharia de to extico nome? A mim parece um tanto... Como eu poderia dizer... Diferente? Ao que Wilde responde prontamente; _ No tem nada a ver com o significado, mas com as histrias a ele associadas. Alejandro entra, aproveitando o gancho: _ J foi um nome proibido durante a Europa Medieval. O mdico, no entanto, retificou: _ Voc quis dizer execrado, perseguido. Na verdade, durante a idade da perseguio s bruxas, quando a Inquisio estava na sua maior robustez, qualquer um que atendesse por Verdelet seria arrastado para a fogueira sem compaixo. _ Credo! exclamou Alice num sobressalto. Mas Wilde prosseguiu: _ Surgiram boatos de que algum com o execrvel nome trazia o demnio no corpo, o qual unindo-se a uma virgem do povo haveria de gerar a Besta do Apocalipse, ou mais

popularmente conhecido como o Anticristo. Assim, para garantirem a paz europia bem como a supremacia da prpria igreja, eram caados e torturados at a morte todos os homens que por qualquer motivo tivessem sido batizados com o nome de Verdelet. Excntrico, no? Alice se preparava para fazer nova exclamao, mas Alejandro a antecipou, tentando evitar o assunto: _ Agatha tambm um belo nome... Sua importncia est no no significado, mas no simbolismo do que representa. Era uma das doze pedras que compunham a indumentria que o supremo sacerdote hebreu vergava durante o exerccio de sua dignidade. Jennifer fez sinal com a mo, dando a entender que queria a palavra, e como lhe foi permitido falar ela disse: _ Aqui na Inglaterra um nome bastante comum... Ento Linda Kellaway se atravessou quase gritando, num tom difcil de ser definido: _ Deve igualmente possuir alguma ligao com o mal. Nos livros de aventura que tenho lido so diversos os exemplos de viles com esse nome. E caso algum ainda no saiba, Agatha era tambm o nome da mulher que despertou o amor no corao do demnio de Vitor Frankenstein.

Havendo escutado a ladainha, Wilde exclama, sempre desdenhando: _ No me diga! E Linda, fuzilando-o com o olhar: _ Nunca leu a histria de Mary Shelley? O monstro passou vrios dias e noites s escondidas, acompanhando todos os movimentos de Agatha... Agatha ouvia a tudo, mas sem dar a menor importncia aos comentrios que faziam sobre o seu nome. Ficou, entrementes, a imaginar as coisas que haviam sido pronunciadas a respeito do curioso passado envolvendo o pouco conhecido nome de Verdelet. Em mesmo tempo concluiu que algumas daquelas pessoas tinham atrao pelo humor negro e que havia algo de hostil pairando no ar. Era como se por trs daquele ajuntamento existisse sempre algum conspirando contra algum por razes que ainda no podia compreender. Linda Kellaway, por exemplo, j demonstrara em mais de uma ocasio que abrigava qualquer averso sua pessoa. Mas os seus pensamentos foram interrompidos quando Max levantou a voz um tanto irritado: _ A, vamos ficar a manh inteira sem que ningum se preocupe em preparar o almoo? Por que no nos reunimos

l dentro e cada um faz algo para comer? Vejam que o Sol j est bem alto. Wilde, sem deixar cair o humor: _ Boa idia, Engomadinho. Que tal encomendarmos pizza? Wallace, porm era da mesma opinio de Max. Ento manifesta o seu pensamento: _ Alguns de ns tm de preparar o almoo. Podem contar comigo para o que for necessrio. A terceira pessoa e se declarar favorvel foi Brenda ao dizer: _ Estou penando em algo prtico, tipo fetucine acompanhada de molho branco e batatas gratinadas. Mas Wilde atravessou quase aos gritos: _ Qual ! Sobrou bastante coisa do jantar de ontem. E Max j bufando: _ Wilde, se toca: Somos hspedes numa manso da nobreza britnica; no iremos nem em sonho comer sobras de refeio.

Foi ento que Alejandro apresentou a opo que agradou a todos: _ H um prato excelente e eu terei o maior prazer de preparar para ns. Estou me referindo a uma deliciosa polenta acompanhada de suculentas costelas e regadas a um bom vinho. rpido de se fazer e s precisarei de duas ou trs pessoas que organizem a mesa e outras tantas dispostas a cuidar da loua ao final. Ficou assim combinado e subiram manso para organizar o almoo. Zetta, Jennifer e Alice seguiam a passos bem lentos enquanto conversavam. Foi Alice quem dirigiu a seguinte sentena: _ O que vocs acham de Verdelet? Digo: ele um cara bastante interessante, no mesmo? Zetta foi logo tratando de amainar os nimos da amiga: _ Desista; no tem a menor chance com ele. _ Como assim? questiona Alice, fingindo surpresa. Mas Jennifer, sendo do mesmo parecer de Zetta, responde acrescentando uma explicao: _ Ele do tipo que prefere escolher e perseguir as suas presas antes de abat-las.

Alice buscou compreenso no olhar de Zetta, mas em vez disso a psicloga confirma a as palavras de Jennifer com um aceno de positivo. Layde Alice, todavia, era orgulhosa demais para se dar por derrotada. Por isso reage com ares de deboche: _ Verdade?! Ento, quantos dias me daro at que eu o faa vir rastejando atrs de mim? A psicloga censurou-a com o seu olhar de analista e brincou sem manifestar menosprezo: _ No me diga! Vai amea-lo com uma faca? _ Apenas um pouco de encanto pessoal- respondeu Alice sem perder a pose. Entretanto, Jennifer tratou de lanar por terra a sua bazfia e empfia, demonstrando-lhe que a experincia s vezes supera a formosura de um rosto: _ Se toca, menina. Ainda no notou que aqui dentro ele s tem olhos para Agatha? dela que ele est a fim. Da soberba Alice foi ao repentino nocaute, pois essa declarao da amiga a apanhou de surpresa. Mas no tendo o que argumentar, comentou: _ A-h! Mas isso s at ele descobrir quem ela de verdade. Esperem s para ver.

Jennifer ficou meio que boquiaberta ante a insinuao de Layde Alice, pelo que desejou passar a limpo: _ Como assim, Alice? O que voc pode saber a respeito de Agatha que ns desconhecemos? Um pouco desajeitada e trada pelas prprias palavras, Alice tentou dissimular: _ Quer dizer... ela noiva, sabiam? E havendo abarcado os cabelos com ambas as mos em um nico molho para em seguida lan-los s costas, disse num sorriso amarelo: _ Afinal, eu nem sei por que estamos falando sobre isso. Na verdade eu sequer tenho inteno de ficar com Verdelet, apenas hei insinuado que ele um cara atraente, mas isso tudo. _ Atraente e perigoso- corroborou Zetta sem precisar dirigir o olhar para a amiga. A essa sua abordagem no fizeram questo de replicar. Continuaram em marcha para a manso, mas apenas Jennifer e Zetta insistiam em dialogar. Alice ficou muda como uma pedra, ou, quem sabe, maquinando algo que no desejava compartilhar. Ao chegarem varanda encontram Wilde e Wallace aos cochichos, e como em outras ocasies,

esboando sorrisos ladinos. Ao flagr-los, Jennifer teceu maldoso comentrio, mas de modo que apenas Zetta pudesse escutar e compreender: _ Qual dos dois a Monalisa? Zetta, torcendo um pouco a cara e cerrando o cenho: _ No est achando que eles...? Jennifer respondeu com um sorriso, e sem dizer mais coisa alguma rumaram para o interior da casa.

5

R

ecostado a uma das colunas da sala contgua, Evans acompanhava cada movimento feito por Linda Kellaway estando ela a ponto de tomar a escada para o andar de cima. O moo julgou que a jovem advogada estivesse rumando para o seu quarto e quis se oferecer como companhia. Uma vez que Linda entendeu a boa inteno do rapaz, sorriu insegura e disse: _ Est tudo bem, pode ficar se o desejar. O ex-fuzileiro a encara, perguntando gentilmente: _ Tem certeza? _ Tenho sim. Mas est tudo bem se quiser me acompanhar mesmo assim. Eu s preciso apanhar um livro para ler enquanto o almoo fica pronto. Subiram juntos ento e enquanto faziam o percurso a moa se virou para Evans e perguntou, tendo no rosto uma expresso de desconfiana: _ Assustei voc hoje pela manh?

_ Ah, no. Eu prefiro dizer que nos deixou um pouco preocupados. Mas procure no pensar sobre isso, ok? Linda apertou os lbios e concordou atravs de um olhar que expressava um pouco das emoes que havia experimentado quela madrugada. Mas no demorou muito para que chegassem porta do seu quarto e Evans queria ter a certeza de que ela havia se recuperado totalmente do susto. Assim que entraram, Linda seguiu direto at o criado-mudo e apanhou um volumoso livro que l estava; quanto ao moo, se agachou para recolher alguns objetos pessoais que tinham se espalhado pelo cho enquanto a amiga era tomada pelo espanto matutino. Preso essa ocupao, Evans ficou ligeiramente absorto, como se alguma coisa ali no estivesse correspondendo ordem natural. Pelo que se virando para Linda, perguntou-lhe: _ No est sentindo falta de nada? Ela virou um pouco com a cabea num gesto de quem reflete sobre coisa alguma, e havendo se passado alguns segundos respondeu: _ No que eu esteja lembrada. De qualquer forma no passam de objetos efmeros que no fariam falta alguma se houvessem sumido. Algum problema? Ele, um tanto inseguro:

_ Nenhum. Eu apenas queria me certificar de que est tudo... _ Em ordem?- complementa Linda, olhando a prpria cama desarrumada. _ No era nisso que eu estava pensando- responde o rapaz. _ Em todo o caso acho que est mais do que na hora de arrumar a cama. _ Tudo bem. Vem que eu te ajudo. Mas no havia muito que se fazer; apenas um lenol para dobrar, e uma cama para ser forrada. Em menos de cinco minutos eles saam dali; Linda seguindo para uma das varandas a buscar um lugar propcio para a leitura e Evans marchando rumo cozinha, onde estavam Alejandro, Max, Brenda e Jennifer, todos ocupados com a preparao do almoo. O espanhol chefiava a diminuta equipe, separando Max e Jennifer para a seleo e disposio dos talheres, louas e cristais que deviam estar sobre a mesa. Quanto a Brenda, atinha-se tarefa de picar e triturar certas ervas, verduras e condimentos que Alejandro lhe havia indicado. Interrompeu o trabalho por um instante para observar mais atentamente o modo peculiar que o ex-padre tinha em flambar as costelas numa grande frigideira. E no se contendo, observou:

_ Sabe que eu jamais comi carne preparada ao vinho? _ Verdade? sussurra o espanhol sem se distrair. _ que nunca me havia apetecido, mas agora que estou vendo o seu preparo posso assegurar que parece muito bom, a comear pelo aroma. Ainda sem se distrair Alejandro fala, ateando fogo s costelas antes de entorn-las com o molho j de antemo preparado: _ Eu optei pelo vinho, mas na minha terra h quem prefira usar conhaque ou mesmo algum licor caseiro que possa dar um toque adocicado carne. S ento olha diretamente para a moa e pergunta: _ Terminou a? Retornando sua ocupao ela responde: _ S mais um minuto. E at agora voc no me disse qual a finalidade dessa coisa. _ para compor meu molho especial. Por aqui no sei como o chamam, mas eu o conheo como vinha- dalhos e duvido que o aprovem. Brenda se mostrou interessada e por isso disse:

_ Acho que vale a pena experimentar, mesmo porque a carne assim preparada pode adquirir um teor adocicado e parecer enjoativa; neste caso bom que se tenha algum tipo de molho acre por perto. Havendo escutado tal observao Alejandro se inflamou de contentamento e explodiu na seguinte exclamao: _ No preciso acrescentar nada! Nisso Brenda olhou para outro ponto alm e viu Wilde que aspirava o ar pelas narinas com sofreguido e fazendo gestos pelos quais dava a entender que o cheiro da comida estava bastante agradvel. Ela lhe sorriu em resposta e acenou um positivo com o polegar direito. Ao lado do mdico estava Evans parado como uma estaca, seus olhos fitos em Jennifer pareciam nem pestanejar. Wilde, atento sua inteno, cutucou-lhe com o cotovelo e fez insinuante comentrio: _ As coisas nem sempre so o que parecem... Evans, como se houvera sido arrancado de um sonho: _ O que disse? E Wilde, de modo que apenas o ele pudesse entender: _ No se iluda com a sua meiguice. Ela pode possuir a candura de uma fada, mas traz veneno debaixo da lngua.

Evans recebeu isso como ofensa, e reprimiu-o: _ Sempre v o mundo sob tica to pessimista? Ela pode ser uma mulher dbil, mas justamente a que est o seu encanto! O gordinho fez chistes com a lngua entre dentes em sinal de reprovao e prosseguiu: _ No tem nada a ver com isso. Mas se quer saber, acho que voc possui pouco ou nenhum conhecimento sobre a ndole humana. O que estou tentando dizer que por trs dessa aparncia enfermia est uma mente abjeta e repugnante. Ao ouvir tal declarao Evans cerrou os dentes por um momento e quando voltou a falar foi para cobrir Wilde de ofensas verbais, acrescentando ao final: _ Mantenha a sua lngua de vbora dentro da boca! Mas Wilde reagiu a isso sem abandonar o seu habitual desdm pelas opinies alheias: _ Tudo bem. Mas procure conhec-la melhor antes que a convide para contar as estrelas no campo. Evans o ignorou a partir da e em conseqncia disso Wilde decidiu se afastar, mas no sem antes erguer as mos altura dos ombros e dizer:

_ Ok. No est mais aqui quem falou. Saindo ele apressado, acabou esbarrando com Agatha que vinha no sentido oposto. Ela tinha os olhos fixos em Brenda que caminhava em sua direo, tendo na mo uma travessa que ia deixar sobre a mesa. Wilde pediu desculpas a Agatha e continuou o seu caminho. E quando as duas moas se cruzaram, Brenda sorriu e lhe falou com dulor: _ S mais alguns minutos e poderemos comer. Agatha nada respondeu, mas deu uma rpida parada e logo prosseguiu, tendo um esboo de sorriso estampado no rosto. Foi se sentar na sala onde Wallace e Zetta estavam a conversar sobre alguns lugares misteriosos da Terra. Quando ela chegou ainda risonha o moo a encarou com certa desconfiana e falou: _ A, de repente deu para rir toa? Ela ento se explica: _ No nada disso. Sabe aqueles momentos em que acontece alguma coisa aparentemente insignificante com a gente, mas que de repente temos a sensao de que isso j nos ocorreu antes e naquele mesmo lugar? Pois , foi exatamente o que acaba de acontecer comigo. Cara, eu estava vindo para c e dei de cara com Brenda; ela me encarou e naquele instante eu tive a exata noo das

palavras que pretendia me dizer. Foi como se estivesse revendo as cenas de um filme e em seguida tudo se confirmou. Acho incrvel quando isso acontece. E foi por essa razo que aqui cheguei meio que sorrindo. Havendo a tudo escutado com total ateno, Wallace estalou os dedos e disse: _ J aconteceu comigo e francamente nunca encontrei respostas que me satisfizessem. Talvez Zetta saiba alguma coisa a respeito. E a psicloga de fato se disps a falar: _ A parapsicologia explica que pode se tratar de uma recordao geneticamente herdada, ou seja: so lembranas de coisas que no ns, mas nossos pais ou avs vivenciaram. Mas existe uma opo, digamos: menos cientfica, que pode vir bem a calhar. _ Sim...? insinua Wallace. _ uma opo mais espiritualista, a qual sugere tratar-se de experincias vividas anteriormente. A isso Agatha interpe: _ Como poderia ser isso possvel, se eu jamais estive aqui antes?

Ao que Zetta responde sobrepujando em segurana: _ Pode ter sido em uma vida anterior. Talvez essa informao no possa ser com facilidade absorvida por seus neurnios, mas ao menos tente imaginar que a alma consegue migrar de um corpo para outro atravs da morte e do renascimento. Deste modo, nada mais natural que a possibilidade de conservarmos algumas recordaes de existncias passadas. Agatha estava se preparando para argir, mas a voz de Alejandro ecoou, anunciando que o almoo j podia ser servido, e posto que todos estivessem famintos, qualquer outro assunto ficaria para depois. Reuniram-se ento na grande sala e desta vez Brenda se antecipou a Wilde, ficando com a cabeceira da mesa. Evans esperou at que Jennifer tomasse assento, ento ele mesmo veio a se quedar sua frente, de sorte que seus olhos pudessem se cruzar enquanto comessem a refeio. Verdelet, por sua vez, foi situar-se diante de Agatha, mas Layde Alice, ignorando o olhar fulminante que Zetta lhe dirigia, se aconchegou bem ao lado do rapaz. Estando enfim todos em seus lugares e j se servindo, Alejandro que estava igualmente sentado, falou olhando diretamente para Norman Maxwell: _ Se tem algo para fazer, faa-o logo.

Max deu uma leve tapa na prpria testa, numa clara demonstrao de que havia olvidado alguma coisa. E foi quando ele se levantava para deixar a mesa que Jennifer fez a curiosa observao: _ Epa! Essa fala eu reconheo; Jesus disse isso para Judas Iscariotes durante a ltima ceia, quando o prfido discpulo abandonou a mesa para pr em execuo o seu plano traioeiro. Max, no entanto lhe disse to somente: _ Voc no perde por esperar. Saiu a toda pressa e no retornou at que se passassem uns longos minutos. Quando reapareceu na sala trazia duas garrafas de vinho, sendo uma na mo direita e a outra sob a axila, conquanto na sua canhota segurasse um clice de prata ricamente adornado com smbolos dourados em altorelevo e cravejado com doze gemas de diferentes cores. Ela vinha muito sorridente, como se ostentasse um trofu que por prprios mritos galgara. Quando a turma percebeu a maravilhosa relquia em sua mo um oh! de coletiva surpresa se fez ouvir na sala. Max com muito garbo disps as duas garrafas sobre a mesa sem se descuidar do clice e antes que pudesse dizer qualquer coisa viu Wilde passar a mo em um dos recipientes de vinho e pux-lo para si. E com exceo do

mdico que mais preocupao tinha em abrir a garrafa, todos os olhares estavam voltados para Max que iniciava um breve discurso: _ Pessoal, esse clice tem uma histria singular. Eu o descobri por acidente em uma das prateleiras da biblioteca, mas isso no tudo. Se prestarem ateno ho de notar que um dos quadros daquele cmodo representa a famosa ceia do babilnico rei Belsazar. Pois bem, no centro da mesa pode ser visto um clice de prata que corresponde a esse em todos os detalhes. Deve haver algum motivo especial para a sua existncia, portanto. Alejandro se levantou, estando Max ainda a tagarelar, e foi se aproximando sem chamar a sua ateno, at que arrebatou-lhe a preciosidade. Ento retornou para o seu lugar lentamente, falando aos seus amigos sem desviar os olhos da jia que segurava com as duas mos: _ Lorotas parte, uma pea deveras admirvel. Calou-se e ficou a examinar a relquia com mais aguada ateno. Seus smbolos eram oriundos de quatro religies cujas origens se confundem: Judasmo, Cristianismo, Ordem do Templo e Maonaria Medieval. Deteve-se por algum tempo com a inspeo do cncavo e julgou que no fosse confeccionado em pura prata, pois estava lustrado de tal maneira que permitia refletir com nitidez o rosto do seu

observador. Divagando ento em seus pensamentos, Alejandro nada dizia e a inquietao j comeava tomar conta de todos, pelo que Max resolveu quebrar o silncio: _ uma taa litrgica, no ? Lanando-lhe um comprido olhar o espanhol respondeu: _ No tenho a menor dvida. O cncavo bastante desproporcional em relao ao convexo, e isso sugere que no confeccionada em pura prata, ou seja: deve haver uma taa menor por dentro. A capacidade de libao no tanta e mesmo assim ela foi feita para ser sustentada com ambas as mos; significativo, pois o importante aqui no a quantidade do vinho a ser servido, mas o emblema do fim a que se destina. Estou cem por cento persuadido de que se trata de um artefato cerimonial, uma relquia to interessante que nem devia estar entre ns. Mas em contrapartida posso assegurar-lhes que um mortal no sabe o que degustar vinho enquanto no o fizer em uma taa de argento. No nterim Wilde interferiu, levantando-se com a garrafa que tinha na mo: _ Pessoal, de vinho eu entendo... O que causou irnica censura por parte de linda:

_ Afinal, do que que voc no entende, Wilde? Ele no deu a menor importncia, antes continuou com o raciocnio que ela havia interrompido: _ Vejam os rtulos destas garrafas se no esto decrpitos; isso deve ter no mnimo uns duzentos anos. vinho de primeira, pessoal! Havendo assim concludo as suas palavras, tratou de abrir a garrafa e encheu a taa. Logo deu um trago que de to grande quase a esvaziou. Mas a completou em seguida. Zetta, no lhe dando ateno, falou ao espanhol como que numa prece: _ Eu posso? Alejandro aquiesceu e passou-lhe a taa sem cerimnias. A mulher a tomou com delicadeza e ficou a inspecion-la, dando maior ateno aos smbolos que a decoravam. Ao final falou: _ Definitivamente um clice sagrado e deve ter sido usado incontveis vezes no ato litrgico. Mas quem disse que eu me importo?! Nisso, estendeu a mo e apanhou a garrafa que Wilde abrira e que agora repousava sobre a mesa; encheu a taa

at a borda e depois a levantou como que em uma saudao, murmurando: _ Esperei muito por isso... E Jennifer outra vez interferiu, fazendo semelhante observao: _ Jesus disse a mesma coisa em relao sua ltima ceia. Zetta, porm, nenhuma importncia deu ao seu comentrio, e sorveu toda a bebida de uma vez, como nem gesto pragmtico, simulando um xtase ao final. E disse: _ No h como comparar1 A prata acrescenta um toque especial a este vinho to senil quanto saboroso. Ento depositou a taa sobre a mesa. Mas Alejandro a tomou rapidamente, enchendo-a do mesmo vinho sem demora. Todavia, o seu gesto foi diferente em relao Zetta, pois a movimentou, fazendo a bebida circular com suavidade enquanto exalava o excelente buqu. Aps, ele a segurou com as duas mos e cerrou levemente os olhos enquanto inalava o suave aroma. S ento deu um trago experimental a fim de sentir o metal frio a tocar-lhe os lbios. Enfim, sorveu a libao bem devagar, mantendo os olhos fechados como que em um ensaio vertiginoso. Feito assim, ele liberou o clice para que outros pudessem igualmente apreci-lo. O que de fato aconteceu, pois

vieram eles um aps o outro, enchendo a taa e a esvaziando. Mas vindo a vez de Verdelet, ele a ofereceu a Agatha para que usasse primeiro. Ela, porm, se recusou, fazendo discreto gesto e afirmando: _ Desculpe, mas no estou a fim. Ento o fizeram seguir para as mos de Wilde, o ltimo deles, que por sinal o rejeitou usando de maior veemncia e asseverando que usaria a sua prpria taa. Destarte, ele tomou outra vez a garrafa (j quase vazia) e derramou o que dela restava em sua taa. Agora a bebida parecia outra; era escura e tinha aroma e sabor diferentes de qualquer vinho que se conhecesse, mas quem o viu preferiu atribuir tais detalhes safra que julgavam haver ocorrido a uns duzentos no mnimo, e at sentiram-se por isso privilegiados. Aconteceu, todavia, que estando Wilde a derramar a poro final em sua taa, pde-se notar que a composio havia se tornado bastante estranha, de um tom amarronzado, espessa; como se no fundo da garrafa houvesse acumulado uma espcie de borra ou poupa negra que ia caindo em quantidades para dentro da taa. Layde Alice foi a primeira que notou, pelo que virou o rosto fazendo caretas e exclamando: _ Credo! No acredito que bebi essa coisa!

E levantando-se, saiu a toda pressa. Quem ali ficou sabia que ela buscava um lugar para vomitar.

6

E

stava enganado quem pensou que Wilde se faria de rogado ao ver aquela coisa estranha a cair para dentro da sua taa. Muito pelo contrrio; ele chegou a dar umas tapas no fundo da garrafa a fim de que nela nada restasse. Em seguida enfiou tudo goela abaixo de uma s vez. A, para maior espanto de todos, ele deixou que um filete negro escorresse no canto da boca para em seguida remov-lo com o dorso da mo. Brenda no resistiu e gritou: _ Que coisa nojenta, Wilde!!! A isso ele respondeu arrotando no seu melhor estilo, ao mesmo tempo em que a voz de Jennifer se fazia ouvir num frmito de incontido horror: _ Isso parece sangue! _ Na verdade o - murmura Wilde. Sangue de uvas de excelente safra.

Agatha, cara de enjo, buscou em Alejandro uma resposta tranqilizadora para o que havia acabado de presenciar: _ Por Deus, me diga que isso normal, porque sinto o meu estmago dando engulhos. O espanhol, igualmente em nsias: _ Confesso minha ignorncia. Se essa coisa asquerosa no for algum tipo de conservante natural ns decerto havemos sorvido de um vinho estragado, se que isso possvel. Verdelet se volta para o mdico, exigindo explicao: _ Seja franco, Wilde: o que foi essa coisa esquisita que voc engoliu? Rindo da situao, como sempre, Wilde o atende: _ Quanta frescura! Era apenas pasta de uvas envelhecida. Mas a resposta que devia tranqilizar a todos no funcionou. No mesmo instante, Agatha, Jennifer e Max se levantaram, afirmando a uma que tinham perdido o apetite. No demorou muito e Linda tambm deixou o seu lugar mesa, sentindo que o estmago j reclamava do alimento ingerido. Estando eles ento dispostos a deixarem a sala, Wilde saltou da sua cadeira e foi lhes falar de uma maneira pouco habitual:

_ Desculpa, pessoal. Est tudo bem. Aquela coisa estranha que vocs me viram engolir verdadeiramente era pasta de uvas e eu tinha prvio conhecimento do que havia no fundo da garrafa. Lembram-se que afirmei entender de vinhos? De outra forma, no gostariam de saber o motivo de eu ter preferido o cristal em vez do clice? Pois , eu havia me antecipado a visitar a adega da casa, e foi por orientao minha que Max escolheu a safra da qual bebemos. Perguntem-lhe e lhes dir se no foi exatamente assim. Olharam para Max e notaram que estava um tanto desajeitado e imediatamente admitiu haver cedido ao conselho de Wilde, mas usou de sinceridade quando afirmou desconhecer a natureza da bebida. Em todo o caso os seus pedidos de desculpas foram aceitos e todos optaram em voltar para a mesa ao mesmo tempo em que viam Layde Alice retornando do banheiro com a cara de quem tinha acabado de vomitar at o fgado. De volta aos seus lugares, tentaram continuar a refeio numa boa, embora o clima que da se instalou fosse de silncio quase total e ningum lembrou sequer de elogiar a comida que Alejandro tinha preparado com tanto esmero. Quanto garrafa de vinho restante, no fizeram questo de olh-la mesmo que fosse com indiferena. Wallace foi o primeiro a limpar o contedo do prato, e havendo se recostado ao espaldar da cadeira deu um longo

bocejo. Aps, enfiou a mo em um dos bolsos da cala e em silncio comeou a brincar de mgico, realizando um truque bastante conhecido. Ele fechava uma mo e com o dedo polegar da outra socava um lencinho at que desaparecesse totalmente, ento abria a mo e eis que o leno desaparecia. Logo expunha as duas mos abertas como se estivesse diante de uma platia a mostrar que o leno verdadeiramente tinha sumido. Repetiu todos os movimentos de trs para frente e outra vez o leno apareceu em sua mo. Mas Layde Alice no estava nenhum pouco impressionada com a exibio. Pelo que disse em tom de reclamao: _ Seu truque to bobo que nem merece ser classificado como mgica. Entretanto, se deseja fazer algo realmente fascinante, experimente entortar um garfo sem precisar tocar nele. Wallace recebeu isso como afronta e rebateu: _ Voc conseguiria? _ Naturalmente. Desenvolvi essa habilidade aos oito anos e no parei mais. Verdelet falou moa e isso a deixou deveras radiante, como estivesse por receber um belo presente: _ Eis um truque que eu pagaria para ver.

_ Verdade? disse Alice se assanhando Ah, se voc me pedir eu fao. Verdelet estendeu a mo apontando para um dos talheres sobre a mesa e disse: _ Por favor, fique vontade. Desde esse instante o silncio desabou sobre todos, pois que ficaram quietos a fim de verem a moa realizar um nmero de ilusionismo que valesse a pena relatar. Dentre todos, Zetta, decerto, era a pessoa mais interessada, pelo que cruzou as mos para que servissem de apoio ao queixo enquanto assistia a execuo da mgica. Alice respirou fundo, olhou com detena para o garfo e falou: _ Preciso me concentrar. Permaneam em silncio, por favor. E assim fizeram. Ela se ps a apertar as tmporas com as pontas dos dedos de ambas as mos, os olhos montando invisvel ponte at o garfo que distava cerca de um metro. Por algum tempo parecia que nada ia acontecer, mas eis que de repente a pea de metal comeou a fazer movimentos oscilantes, para espanto de todos. Jennifer, que a tudo assistia com os dedos enfiados na boca, deixou escapar uma exclamao: _ Nossa!

A despeito desta repentina interferncia, Alice no perdeu a concentrao e o garfo continuava a se mover, dando sinais de que ia se dobrar a qualquer momento, embora parecesse estar encontrando a resistncia de alguma fora estranha. Alice se esforou o quanto pde, mas vendo que o labor estava sendo intil, se deixou vencer e desistiu, lamentando: _ Tem alguma energia negativa me bloqueando. Podem acreditar que j fiz essa mgica inmeras vezes e sempre me sa bem. Zetta enfim abandonou a sua posio de expectadora para declarar o quanto duvidava do sucesso da amiga: _ Foi uma bela tentativa, Alice, mas ficaria surpresa se a tivesse com seguido. Aconteceu de Jennifer sair em favor de Layde Alice: _ Mas vocs puderam ver que o garfo realmente se mexeu, no verdade? Embora sendo de outra opinio, Zetta procura amenizar um pouco a frustrada amiga: _ Talvez o problema no esteja com Alice. Sabiam que existem pessoas cujos crebros no podem ser iludidos? Ao que Verdelet retrucou imediatamente:

_ O que dizer ento da mgica apresentada por Wallace? Ns o vimos fazer uma mgica, no foi? O olhar longo e penetrante de Zetta demonstrava o grau de sua reprovao no tocante s palavras de Verdelet. Movida ento por essa infantil colocao ela se voltou para Wallace e ordenou-lhe: _ Mostra para ele em que consiste a iluso que voc nos apresentou. Wallace riu forado e deu sinais de que no pretendia se pronunciar. E como a isso estivesse determinado, falou de modo que ningum retorquir: _ E por que eu o faria, se a parte mais interessante de uma mgica justamente manter o seu segredo? Entretanto, Zetta no admitia recusas. Por isso o encarou com a determinao de quem sabe estar acima de qualquer situao. Por outro lado, Wallace no apresentou o menor sinal de fraqueza e ainda esboou um sorriso debochado de algum que no est nem a. Como permanecesse irredutvel, a psicloga pronunciou as seguintes palavras: _ Por acaso a frase Mergulhos no Paraso Tailands tem particular significado para voc?

Como se fora flagrado em um ato reprovvel, Wallace instantaneamente deixou cair o semblante soberbo que at ento ostentara. E fingindo haver de pronto se recuperado, falou com cinismo: _ No tenho a menor noo do que esteja dizendo. _ No mesmo? Quer dizer ento fazer passar um elefante por debaixo da porta no significa nada para voc? Dessa vez o golpe foi certeiro. Wallace ficou mudo, lvido, quieto. Mordia os lbios enquanto digeria o veneno que Zetta lhe fazia beber. Mas a psicloga no estava com isso satisfeita, e sugeriu: _ Vamos l. um segredo por outro. Como no conseguia manter-se calado, Wilde se intrometeu, a voz untada de sarcasmo: _ A, Wallace, vai afinar para uma mulher? Mas Zetta no pretende submeter o moo a qualquer tipo de humilhao, pelo que fala em tom de brincadeira: _ Ele no se sai muito bem como mgico. Outro dia tentou fazer passar um elefante por sob a porta provocou um alvoroo daqueles. O suficiente para que o fotgrafo se desse por vencido:

_ Tudo bem. Eu explico o truque do leno, afinal algo to idiota que nem merece ser chamado de mgica. Isso concludo, ele enfia a mo no bolso e tira um dedo falso, mas extremamente parecido com um polegar humano. Da usa o indicador e com ele puxa um leno de seda que estava oculto no interior deste dedo de brinquedo. Ento o lana sobre a mesa na presena de todos os seus amigos, quando sem sentir ofendido, diz: _ Eis a em que consiste o meu prodgio. Aps esse gesto Zetta se volta outra vez para Verdelet, censurando: _ V como no passou de um truque barato? Todavia, no houve tempo para que Verdelet se justificasse, posto que Layde Alice aparecesse, desviando as atenes para outro extremo da conversa: _ Tentou mesmo fazer um elefante passar por debaixo de uma porta, Wallace? Poxa! Seria a mgica das mgicas. Ofendido com a ignorncia da moa, Wallace atirou-lhe um olhar oblquo, evitando respostas verbais que rendessem comentrios indesejveis. E teve sorte, pois uma colocao feita por Evans veio-lhe como socorro:

_ Algum aqui j leu o Fausto de Goethe? H nesse livro a narrativa de um demnio que faz estupenda mgica. Certo dia eu mesmo vi um ilusionista a repeti-la com sucesso em plena praa e perante pelo menos umas cem pessoas. O ilusionista apresentou ao pblico uma noz de caju e perguntou se dentre todos havia alguns que desejavam comer do fruto que aquela semente iria dar. Quatro ou cinco voluntrios apareceram e o mgico fez vir uma caixa de areia, enterrando nela a noz que tinha na mo. Aconteceu em poucos instantes: o ilusionista gesticulava como se fizesse subir algo de dentro da caixa de areia e pudemos notar a terra aos poucos se mover at que um broto comeou a pulular. Rapidamente se tornou um ramo e vimos nascerem folhas, formando-se galho e em seguida um pequeno tronco. Logo percebemos que um diminuto fruto estourava, e dentro de pouqussimo tempo j estava pronto para ser colhido. O mgico tirou o caju e o fatiou em cinco partes iguais, distribuindo-as entre os voluntrios aos quais tambm entregou pequenas facas bem afiadas. Ele determinou que deviam segurar a fruta com uma mo, mantendo metade dela entre os dentes, e usando a outra mo com a faca posta sobre a fatia que tinham, aguardassem at que lhes desse o sinal. Assim fizeram, e todos nos assistamos com pacincia. Aquele mgico avisou que iria contar at cinco, mas ao chegar a quatro, interrompeu a contagem e disse aos

seus voluntrios que imediatamente parassem, pois cada um deles segurava uma faca sobre o nariz esperando a ordem para se mutilar. At onde eu possa recordar, foi o nmero de ilusionismo mais impressionante que j presenciei. Concluiu suas palavras e Alejandro se pronunciou, tendo uma mo a coar a barba que j saliente: _ Voc fez meno de Goethe e cabe-me acentuar que a sua literatura foi originada para difundir ensinamentos e frmulas da sociedade secreta a qual pertencia. Sabiam que nos anos imediatos publicao do Wether de Goethe os suicdios por motivos passionais entre jovens decuplicaram nos pases nos quais o livro foi divulgado e lido? _ Pura coincidncia- atalhou Jennifer imediatamente. _ Ah, no foi no insistiu Alejandro com mais veemncia. Voc deve estar ciente de que no Fausto o cerne da coisa o apelo sub-reptcio para que as pessoas rendam as suas almas ao demnio em troca de qualquer bem temporal que lhes parea precioso. Jennifer deu com os ombros, demonstrando indiferena e rosnou: _ E da? Trata-se to somente de uma licena potica.

_ Ser? Acaso preciso lembrar-te que a sociedade secreta da qual Goethe era venervel membro estava garimpando adeptos entre as camadas mais influentes das elites europias e americanas? Ou no igualmente vero que os que nesta viagem ingressavam tinham completa conscincia de que haviam fechado pacto com o demnio? A professora ainda relutando: _ So falcias. A verdade que depois da inveno da imprensa, combinada com a reforma protestante e exploso do iluminismo, foram surgindo sociedades secretas em todas as partes, sendo que a maioria delas era formada por gente medocre e insignificante que ambicionava um lugar ao Sol do Novo Mundo. Acontece que para granjearem seguidores ou simpatizantes, tais sociedades tiveram de recorrer ao artifcio do engano, incluindo em seus respectivos bojos nomes de pessoas famosas e influentes, tais como: Goethe, Bacon, Botticelli, Newton e outros tantos. O ex-padre no quis se estender no assunto, porm, Zetta assumiu a palavra sem ter de usa silogismos que fundissem os raciocnios discordantes: _ Bem, eu devo asseverar que Jennifer verdadeiramente entende de literatura, mas que entre ns a autoridade em assuntos religiosos Alejandro. No que toca a mim, que me

preocupo com o estudo das relaes humanas atravs dos sculos, tenho concludo por meio de pesquisas criteriosas que algumas mentes mirabolantes foram e so capazes de mitificar os fatos e a prpria histria valendo-se de movimentos como a poesia e a literatura, criando com isso um efeito diferente daqueles nos quais ocorrem casos de heternimos. Ou quantos de ns, por exemplo, esto em condio de anuir que Bram Stokcer tenha escrito o seu Drcula para expor ao pblico de forma aparentemente folclrica a histria real de um indivduo sanguinolento? Mesmo vocs devem se recordar do filme Matrix, e embora no devamos ser alienados ou paranicos, ser sempre bom considerar que nem tudo o que ouvimos ou vemos neste mundo o que parece ser. E a propsito, Jennifer, h mais poder e influncias na literatura do que voc consiga imaginar. E a professora dando com os ombros outra vez: _ Eu ao menos sei que a literatura no uma forma de se fazer fofocas. Alejandro fala, mas usando de brandura: _ No se trata de enlamear esse ou aquele personagem que de alguma forma contribuiu para a consolidao de nossa histria, Jennifer. E verdade que a literatura em si possui particular encanto, pois reflete a evoluo do pensamento

humano em suas diversas pocas. O que pretendemos esclarecer que as regras para essa evoluo do pensamento e da prpria condio do homem no surgiram do acaso, mas que em linhas gerais foram premeditadas e incutidas nas sociedades para formarem suas tendncias cvicas, morais, intelectuais e at espirituais. E para isso foram empregadas influncias muitas vezes nocivas por meio do veculo de comunicao mais eficiente de ento, que neste caso era a literatura. Atente, por exemplo, para as palavras de Mahatma Gandhi quando disse: Os missionrios nos deram os livros, mas foram os comunistas que nos ensinaram a l-los. A isso Jennifer reagiu j se alterando: _ Ok. Mas aonde iremos com toda essa charla? _ No dizamos a principio que algumas pessoas so impossveis de ser iludidas? Ora, todo mgico que se preza h de concordar que o grande trunfo do bom ilusionista a sua capacidade de desviar a ateno dos expectadores. Podemos dizer o mesmo acerca de certos gneros literrios que cobrem as nossas prateleiras. Agora Jennifer o ataca: _ Voc que o diga. Afinal, ficou vrios anos mofando na biblioteca escura e fria de um mosteiro a troco de nada.

Alejandro refletiu rpido e entendeu que a professora no estava nenhum pouco equivocada quanto a isso, e embora houvesse sentido o golpe no procurou se esquivar da conversa: _ verdade. Mas toda libertao tem o seu preo, e apesar disso no sei se por conseqncia sou feliz ou infeliz. Mas fechando ele a boca, veio Agatha e se mostrou interessada pela histria da sua desiluso: _ Enfim, Alejandro, qual a razo que te fez abandonar a batina para se dedicar s plantas? A resposta veio imediatamente: _ Minha inteno era nobre e pura. Eu realmente queria servir igreja e ao prximo, mas a despeito de todo esforo, jamais consegui ser um padre de verdade. Assim, cansando-me de acumular fracasso sobre fracasso, questionei se no seria melhor lanar tudo ao vento e soltar os meus demnios de uma vez.

7

V

erdelet divagava em lucubraes h um bom tempo enquanto a conversa ia se desenrolando em torno da mesa onde ainda permaneciam. Seu olhar de gavio a percorrer de esguelha os vrios pontos daquela grande sala sem que encontrasse o objeto de sua procurava. Ningum dava importncia ao curioso gesto ou se inteirava da inquietao que estava a fustigar-lhe a mente. Quando resolveu falar os seus pensamentos se manifestaram: _ Talvez esteja bancando o bobo, mas quero saber se vocs tem se apercebido do mesmo; porque sinceramente, pessoal, at agora no consegui localizar uma nica cmera em toda a casa. Se algum aqui encontrou uma que seja, faa-me o favor de mostr-la. A essa repentina constatao, todos os olhares se cruzaram numa recproca busca por respostas. Na mente de cada um dos participantes foi se formando a mesma indagao: Como que no pensei nisso antes? A partir de ento,comearam a correr com os olhos em volta, tentando descobrir em quais pontos daquela sala seria possvel

ocultar uma cmera. Mas evidentemente no obtiveram satisfatrias respostas. Alguns chegaram a imaginar que o sistema de iluminao podia ser utilizado como via para a transmisso de imagens. Outros afirmaram que as cmeras estavam camufladas sob os inmeros vitrais e espelhos da manso. _ Seja como for argumentava Verdelet, - h muita coisa estranha nesta casa. Brenda parecia ter uma explicao: _ A meu ver uma questo de esttica. Atentem para o ambiente em volta e me digam se tem a ver com a presena de cmeras convencionais. bvio que elas esto por toda parte, mas adaptadas arquitetura e aos mveis da casa. Mas Verdelet persistente no seu raciocnio: _ Por que encenar um reality show em uma construo de estilo to antigo. Estou achando isso tudo to... antiquado! Linda, porm, sentiu que era j o momento de tambm contrariar a opinio der algum. Sua educao e fineza, todavia, a impedia de tratar com aspereza: _ No penso desta forma. A casa est tima e foi adaptada a todas as nossas necessidades, exceto pelas ausncias do

celular e do computador. Mas a coisa que me inquieta de verdade o tdio causado pela falta de msica. Nisso Wilde se apresentou espontaneamente, dizendo: _ Posso cantar para voc se me permitir. E depois de temperara a garganta com alguns pigarros, comeou: _ youre my fire. The one desire. Believe when I say: I want it that way. Linda tampou os ouvidos com as mos e suplicou: _ Basta, Wilde. Est estragando a cano! Mas ele j havia se empolgado demais para se conter: _ Tell me why... _ Wilde, chega! exclamou Linda rindo bea. _ Viu que funcionou? Voc fica melhor quando est sorrindo, menina. _ Voc tambm fica melhor quando no est cantando. Alejandro bocejou cobrindo a boca com a mo e falou:

_ Acho que vou procurar algum lugar para tirar um bom cochilo. Importar-se-ia de me dar alguns cigarros, Max? Max responde com outra pergunta: _ Mas por que os meus? Tem cigarros de sobra na dispensa, cara! _ que os seus esto mais perto. _ Mas voc quer fumar ou dormir? _ Quero fumar e dormir. _ Ta. Mas estes no ficaro de graa. _ De graa? Cara, eu acabei de preparar o seu almoo! Max entregou-lhe alguns cigarros, rosnando em tom de brincadeiras: _ Toma, bandido. Mas estes so os ltimos. Na mesma oportunidade Evans se levantou para deixar a mesa. No demorou muito e Jennifer o imitou, embora todos soubessem que estava indo encontrar-se com o americano. Agatha tambm saiu e o olhar de Verdelet a acompanhou sem que o moo se importasse com o que os outras pensariam a seu respeito. Zetta e L