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Ascetismo e práticas cristãs: um olhar para a atuação feminina nos círculos urbanos tardo- antigos João Carlos Furlani 1 1. Introdução Pensar em cidade, de certo modo, é refletir sobre um núcleo populacional caracterizado por um amplo espaço no qual ocorrem relações sociais, culturais, políticas e econômicas. Todavia, não nos prendendo a um modelo único de cidade, o qual acreditamos não prosperar, dificilmente chegaremos a uma definição padrão, o que não quer dizer que seja impraticável realizar inferências a respeito. Gordon Childe (1950, p. 3) já declarava que o conceito de cidade é indubitavelmente difícil de se definir. Contudo, se pensarmos numa espécie de equação análoga, é plausível assumir que a urbs se situa no âmbito das reflexões sobre o espaço e a sociedade, uma vez que é um produto dessa relação. Em outras palavras, os domínios citadinos são produzidos historicamente por relações socioculturais em determinadas espacialidades. Alguns autores ressaltam que as cidades são, antes de tudo, construções humanas voltadas para os próprios interesses humanos (MARCUS; SABLOFF, 2008, p. 10). É fato que as cidades, como objeto, possuem narrativas próprias que abrangem temporalidades distintas, além dos mais variados aspectos, como, por exemplo, os objetivos de sua criação, o local, os recursos naturais existentes, as edificações, a arquitetura, além da pluralidade cultural e as relações contidas no interior do espaço urbano. Uma mesma cidade, portanto, é múltipla. Nesse sentido, torna-se claro que as urbi não são pontos estáticos, fixos e indeléveis, uma vez que elas diminuem, expandem, são destruídas, reconstruídas e remodeladas pela ação do tempo. 1 Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGHis) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), sob orientação do prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva. Licenciado e bacharel em História pela mesma instituição. Faz parte do Grupo de Pesquisa em História de Roma da Ufes e do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir). Possui fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E-mail: [email protected].

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Ascetismo e práticas cristãs: um olhar para a atuação feminina nos círculos urbanos tardo-

antigos

João Carlos Furlani1

1. Introdução

Pensar em cidade, de certo modo, é refletir sobre um núcleo populacional

caracterizado por um amplo espaço no qual ocorrem relações sociais, culturais, políticas e

econômicas. Todavia, não nos prendendo a um modelo único de cidade, o qual acreditamos

não prosperar, dificilmente chegaremos a uma definição padrão, o que não quer dizer que

seja impraticável realizar inferências a respeito. Gordon Childe (1950, p. 3) já declarava que

o conceito de cidade é indubitavelmente difícil de se definir. Contudo, se pensarmos numa

espécie de equação análoga, é plausível assumir que a urbs se situa no âmbito das reflexões

sobre o espaço e a sociedade, uma vez que é um produto dessa relação. Em outras palavras,

os domínios citadinos são produzidos historicamente por relações socioculturais em

determinadas espacialidades. Alguns autores ressaltam que as cidades são, antes de tudo,

construções humanas voltadas para os próprios interesses humanos (MARCUS; SABLOFF,

2008, p. 10).

É fato que as cidades, como objeto, possuem narrativas próprias que abrangem

temporalidades distintas, além dos mais variados aspectos, como, por exemplo, os objetivos

de sua criação, o local, os recursos naturais existentes, as edificações, a arquitetura, além da

pluralidade cultural e as relações contidas no interior do espaço urbano. Uma mesma

cidade, portanto, é múltipla. Nesse sentido, torna-se claro que as urbi não são pontos

estáticos, fixos e indeléveis, uma vez que elas diminuem, expandem, são destruídas,

reconstruídas e remodeladas pela ação do tempo.

1 Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGHis) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), sob orientação do prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva. Licenciado e bacharel em História pela mesma instituição. Faz parte do Grupo de Pesquisa em História de Roma da Ufes e do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir). Possui fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E-mail: [email protected].

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Ao adotar a perspectiva supramencionada, nos é permitido visualizar documentos

com cautela e refletir sobre os variados processos de modernização, reformulações e

adaptações que os espaços urbanos sofreram em períodos específicos. Não obstante, a

preocupação de indivíduos em preservar elementos culturais e históricos constituintes da

memória urbana também são passíveis de serem evidenciados. O sentido envolto na cidade

e nos atos cotidianos pertencentes ao seu meio são responsáveis por criar leituras e

representações distintas entre os grupos que convivem e interagem nesses lugares, que,

além de serem território, são espaços complexos e repletos de sentido (PEYRAS, 1986, p.

213).

Tal constatação é válida ao pensarmos sobre o cristianismo e sua institucionalização

na Antiguidade Tardia, uma vez que a expansão dos distintos grupos cristãos interferiu na

capacidade que os mesmos tinham de exercer sobre as paisagens arquitetônicas citadinas.

Nosso objetivo, nesta comunicação, é refletir sobre algumas transformações

produzidas no espaço urbano das cidades romanas, no período tardo-antigo – mais

especificamente no século IV, com vistas ao Oriente – tendo em mente a ampliação dos

credos cristãos e a interferência que os mesmos exerceram sobre as paisagens

arquitetônicas citadinas. Nesse sentido, buscaremos discorrer sobre os ideais ascéticos

cristãos que envolviam as práticas de caridade, como o desapego às fortunas e a doação de

grandes quantias à Igreja. Tomaremos como exemplo o caso das devotas cristãs que

despojavam de seus bens para sustentar bispos, diáconos e importantes figuras cristãs, além

de desapegarem-se de suas fortunas que eram convertidas em estruturas urbanas,

principalmente, pela construção e manutenção de edifícios e monumentos, bem como

asilos, hospedarias e leprosários. Contudo, ressaltamos que a proposta preliminar e geral

deste trabalho associa-se a brevidade deste. Decerto, o processo de compreensão da relação

entre feminino e cidade antiga possui suas especificidades em cada período e recorte

espacial delimitado.

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2. A cidade e seus espaços de culto

Em meio as transformações presentes no interior do espaço citadino, aquelas

ocorridas no âmbito da religião e da cultura das sociedades do mundo tardo-antigo

apresentam características importantes a serem analisadas, uma vez que constituem

elementos decisivos para a compreensão da Antiguidade Tardia. No que se refere ao meio

urbano, é imprescindível nos atermos à expansão dos cultos cristãos no Mediterrâneo,

levando em consideração a integração, em nível cultural, de religiosidades distintas,

responsáveis por constituir um contexto díspar e se comparado aos séculos anteriores

(SILVA; CRUZ, 1997, p. 135). A esse respeito, Mazzarino (2003) declara que é no mundo

romano tardio que podemos compreender a transformação do Império, sem perder de vista

a sua complexidade social e cultural, que inclui a construção da própria noção de religio,

doravante aplicada ao paganismo, ao judaísmo e ao cristianismo.

Uma característica curiosa percebida em muitas análises sobre o cristianismo, porém,

mais comum do que se imagina, é a ausência das relações com a cidade. Amiúde, a

impressão que temos é que as comunidades cristãs viviam num mundo à parte, com

nenhum ou pouquíssimo contato com a sociedade romana, assumindo uma espécie de

identidade superior às demais. Naturalmente, isso é um equívoco, pois os cristãos não só se

relacionavam com a sociedade, como eram parte dela, agindo e interagindo conforme as

situações, como bem ressaltam os padres da Igreja, como Tertuliano, Cipriano, Ambrósio,

Jerônimo, João Crisóstomo e Agostinho, entre outros. Um exemplo claro dessa situação

encontra-se nas festividades e celebrações judaicas, que davam ensejo à participação de

pagãos e de cristãos, atraídos pelo soar das trombetas na sinagoga e pela exuberância do

canto e da dança (SILVA, 2012, p. 13).

3. Prática e caridade cristã

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As transformações nos espaços urbanos relacionadas ao cristianismo indicam uma

visão peculiar dos bispos sobre o território e o cotidiano. Havia uma forte relação entre a

utilização espacial e arquitetônica como meio de educação religiosa. Num contexto de

aumento do número de fiéis, tornou-se propício a difusão de ideais ascéticos cristãos, como

o celibato, e o fortalecimento do poderio episcopal que, como sabemos, tornaram-se

elementos de grande importância na sociedade romana tardo-antiga.2

Peter Brown (2009, p. 249) declara que a Igreja tardo-antiga, na ótica de seus

dirigentes, seria “uma nova comunidade pública unida pela extraordinária importância

atribuída a três temas, delimitados com uma acuidade até então inexistente no mundo

antigo: o pecado, a pobreza, a morte”. Esses três conceitos, certamente, faziam parte da

educação cristã tardo-antiga. Ao lidar com tais assuntos, de maneira definida pelo clero, é

que homem e mulher comuns poderiam receber as recompensas de servir o deus

considerado único e verdadeiro. Tal associação, assim como ressalta Silva (2005, p. 168),

“implicou, por um lado, a produção de uma identidade que poderíamos definir como

romano-cristã e, por outro, a emergência de uma representação que concebe o “outro”, a

alteridade, sob um crivo político-religioso”.

A luta pela formação de uma identidade romano-cristã foi travada por séculos.

Durante todo esse tempo, variadas estratégias foram empregadas, o que, aos poucos,

modificou a relação e a influência do cristianismo sobre a esfera urbana, que inclui, além do

espaço físico, o cotidiano dos habitantes. É em meio a essas estratégias de expansão do

credo religioso que a imagem dos ascetas começa a prosperar, em grande parte, devido às

práticas de caridade.

Assim como nas comunidades judaicas, um dos princípios mais difundidos entre os

cristãos é o de ajuda mútua, no qual os membros contribuíam de acordo com suas posses,

oferecendo esmolas, oportunidades de emprego e outras formas de ajuda aos humildes e

desprovidos. A prática de caridade aos pobres logo se tornou um sinal evidente da

2 Em meados do século III, de acordo Cornélio, em uma carta enviada a Fábio de Antioquia (Eusébio de Cesareia, Historia ecclesiastica, 6, 43), a igreja de Roma dispunha de um contingente de membros, entre fiéis e clérigos, extremamente numeroso, vindo a ser equiparado às mais importantes corporações da cidade.

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solidariedade dispensada àqueles que se encontravam numa posição instável (BROWN,

2009, p. 235-236). De certo modo, a caridade cristã, além de seu caráter instrutivo e

edificante, também se tratava de uma atitude protetiva a uma parcela dos fiéis, imersos na

pobreza e na miséria.3 Além disso, a caridade pode ser considerada um catalizador simbólico

importante para a definição da comunidade urbana cristã na Antiguidade Tardia (CORASSIN,

1998, p. 18). Vale ressaltar que as esmolas cristãs não constituíam necessariamente um

sistema, uma vez que somas pequenas ou médias eram oferecidas por fiéis tanto de

condição mais humilde quanto por abastados. Não se estipulavam datas e eram aceitas

doações de homens, bem como de mulheres (CORASSIN, 1998, p. 19).

4. Ascetas e as práticas caritativas

A solidariedade e ajuda mútua que se faziam presentes nas comunidades cristãs

foram essenciais para o estímulo às práticas ascéticas e para o reconhecimento dispensado a

elas, principalmente no caso das mulheres. Muitas exerceram influência na Igreja graças à

fortuna que dispunham, a posição que ocupavam na sociedade, mas também pela devoção

exercida à causa cristã. Como esperado, as ascetas da aristocracia se distinguiam das mais

pobres, principalmente por desempenharem um papel público no socorro aos menos

favorecidos e aos doentes. Brown (2009, p. 253) ressalta que, como protetoras dos pobres,

mediante a caridade e os cuidados com os doentes e os estrangeiros nos hospitais, as

mulheres abastadas desfrutavam de uma posição importante nas cidades da região

mediterrânea, o que era extremamente incomum em outras esferas da vida pública.

É importante destacar que essas mulheres não agiam necessariamente sozinhas. Em

contato com elas, estava uma personagem que dirigia a própria Igreja, o clero e os grupos de 3 Vale ressaltar que a caridade cristã, como prática social dentro da urbs, é constantemente associada ao evergetismo.3 Todavia, não podemos tratar as duas práticas como equivalentes, nem como parte de um processo evolutivo. O evergetismo não pode ser simplesmente limitado à iniciativa ou à doação isoladas de uma estrutura. Para Soares (2015, p. 26), o próprio contrato evergético pressupõe a participação ativa da comunidade presenteada pelo agradecimento ao ato. Quando as “doações” assumem a forma de edifícios ou monumentos, por exemplo, é comum que os mesmos carreguem marcas específicas que identifiquem a procedência do ato (ZUIDERHOEK, 2009, p. 4; SOARES, 2015, p. 26).

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devoção, como as virgens e as viúvas: o bispo. Dentre as inúmeras tarefas designadas ao

epÍskopos, havia a responsabilidade em aconselhar e nomear mulheres ao cargo de

diaconisas (ALEXANDRE, 1993, p. 540). Mulheres essas que, com a ascensão do cristianismo

e do ascetismo, se notabilizaram como modelos de devoção e, ao menos no Oriente,

foram reconhecidas nos circuitos urbano e eclesiástico.

O ascetismo, em linhas gerais, descreve um estilo de vida caracterizado pela

abstinência de vários tipos de prazeres considerados mundanos, principalmente com a

finalidade de atingir objetivos religiosos e/ou espirituais.4 É comum encontrarmos no

cristianismo e mesmo no paganismo ensinamentos de libertação do corpo por meio da

modificação de comportamento e hábitos, como a abstenção de prazeres sexuais e o

desprendimento de riquezas materiais (FURLANI, 2012, p. 157-158).

Os ideais ascéticos, certamente, não são um produto particular dos cristãos, nem há

uma única forma de praticá-los. Inclusive as mulheres possuíam diversas modalidades de

ascetismo dentro das comunidades cristãs a serem seguidas. Em finais do terceiro século,

essas práticas ascéticas distintas tenderam a se integrar numa nova experiência religiosa,

conhecida como monacato.5 A partir desse momento, com a popularização de cebonitas,

certas mulheres passaram a exercer a sua devoção fora do âmbito familiar, tendo como

ponto de convergência os mosteiros, onde se encontravam virgens, devotas, viúvas e

diaconisas, que deixavam seus papéis tradicionais de matronas romanas a fim de viverem

reclusas para realizar práticas ascéticas (SILVA, 2007, p. 63-64).6

4 O vocábulo “ascetismo” deriva do termo grego antigo áskēsis (formação prática, exercício ou treinamento). Originalmente associada com qualquer forma de prática disciplinada, o termo asceta passou a significar qualquer pessoa que pratica uma renúncia à busca de coisas mundanas para alcançar objetivos mais elevados intelectuais e espirituais para si mesmo. Áskēsis é um termo grego, no qual a prática de exercícios espirituais, enraizado na tradição filosófica da antiguidade, originalmente seria a luta espiritual da Igreja contra o estilo de vida carnal. 5 O monacato surge no Egito, em finais do século III, quando eremitas cristãos, ansiando pela purificação e a elevação da alma, se dirigem ao deserto, onde adotam um estilo de vida ascético, regulado por renúncia sexual, jejuns e mortificações, e também pelo combate às tentações associadas aos demônios (SILVA, 2003, p. 196). 6 Um cenobita (do grego, κοινόβιο, de κοινός, transl. koinós, “comum”, mais βίος, transl. bios, “vida”, pode significar “que vive em comunidade) é um indivíduo que vive em comunidades retiradas, geralmente interesses

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Duas personagens que podem ser evocados como exemplo de ascetas são Melânia, a

velha, e Marcela, que optaram por dedicarem-se às orações e aos serviços da Igreja. Essas

mulheres por meio de ações de caridade, doaram parte de suas riquezas em prol da

construção de monastérios, além do auxílio material de seus mestres espirituais, Rufino e

Jerônimo, respectivamente. Todavia, Melânia, a velha, e Marcela, ao que parece, também se

ocuparam com os debates e reflexões teológicas (SIQUEIRA, 2013, p. 4-5).

Nesse contexto de exercício do ascetismo e da caridade, observamos que, para além

do caráter religioso, essas práticas interferiam no cotidiano das cidades, bem como em sua

espacialidade, uma vez que as doações realizadas por cristãos eram, muitas vezes,

convertidas na elevação de prédios, monumentos, hospedarias e asilos que faziam parte do

ambiente urbano.

As igrejas tardo-antigas prosperaram, em grande parte, por meio de largitiones ou

operationes de esmola, uma vez que mantinham como importantes aliadas as contribuições

financeiras. No que se refere às aristocratas cristãs, essas eram exortadas a não gastar sua

fortuna com maquiagens, joias e vestuários extravagantes. Ao contrário, deveriam preferir a

espiritualidade e para aproximarem-se dela, era necessário adotar um estilo de vida

ascético, que incluía o desapego material, como defendem Tertuliano, Cipriano, Ambrósio,

Jeronimo e Crisóstomo.

Em relação às mulheres da classe senatorial que se converteram publicamente,

Siqueira (2013, p. 4) declara que, mesmo com a adoção de um comportamento austero,

quebrando um pouco um vínculo profundamente tradicional do mos maiorum, as mulheres

não rompiam completamente o papel de mater familias.

Por outro lado, temos as viúvas. Consideradas modelos de devoção, formavam um

grupo em suas comunidades, geralmente reunidas sob o comando de uma delas. Existiam

ainda as virgens, que ocupavam um lugar privilegiado na ekklesia, pois apareciam após o

clero, os monges e as crianças durante as procissões. Assim como as viúvas, as virgens não

e princípios em comum. Vale ressaltar que o cenobitismo foi uma das formas de monasticismo praticado nos primórdios do cristianismo.

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constituíam uma ordem eclesiástica, já que não ofereciam oblação e nem serviços litúrgicos

(BERARDINO, 2002, p. 1427).

Além das viúvas e virgens, existiam, no Oriente, mulheres que eram ordenadas

diaconisas, responsáveis pelo apoio às catecúmenas e às novas cristãs, bem como pelos

serviços litúrgicos. Poderiam ainda ser mensageiras; deveriam estar presentes quando uma

mulher procurava um diácono ou o bispo; deveriam acolher mulheres nas assembleias;

prestar ajuda aos pobres e necessitados e zelar, assim como os diáconos, pela boa ordem

nas reuniões. Contudo, a ação das diaconisas era limitada, pois não poderiam realizar as

tarefas confiadas aos presbíteros e aos diáconos, consideradas de maior importância. Elas

apenas assistiam os presbíteros na administração do batismo, por uma questão

comportamental e de decência (ALEXANDRE, 1993, p. 540-542).

Outra forma de devoção religiosa extremamente ascendente no século IV foi o

cenobitismo, caminho pelo qual o cristianismo conduziu, tanto homens quanto mulheres, a

dedicarem-se estritamente às práticas religiosas, que poderiam suscitar o abandono dos

deveres com a família e o Estado.

Na História Lausíaca (XLI, 1-5), Paládio menciona um conjunto de mulheres que,

fazendo parte da elite, se notabilizaram pela admirável devoção à causa cristã. Um caso bem

conhecido é o de Melânia, a Jovem, que, dentre suas ações caritativas, teria distribuído no

Egito, em Antioquia e na Palestina grande quantidade de moedas de ouro. Teria ainda

vendido suas posses na Hispânia, Aquitânia, Tarragona e Gália, retendo apenas aquelas da

Sicília, Campânia e África, cujos rendimentos reservou à manutenção dos conventos.

Educada desde cedo aos moldes cristãos, Olímpia pode ser considerada outro caso

notável. Após sua viuvez prematura, a jovem adentrou ainda mais no ascetismo cristão.

Tornou-se benfeitora de pessoas importantes dentro da Igreja, incluindo o bispo Nectário,

que a ordenou diaconisa da igreja de Constantinopla (Vita Olympiadis, 9-10). Após a morte

desse último, a diaconisa militou em favor de João Crisóstomo, de quem foi amiga pessoal

até os últimos dias (CLARK, 1979, p. 107 e ss.).

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Jerônimo (Epístola CXXVII, 1-14), em uma carta à virgem Principia, realiza uma

exaltação à memória de Marcela, apresentando diversas qualidades da mesma, incluindo até

mesmo a comparação da virgem com as mulheres que acompanharam e ajudaram Jesus por

meio da doação de recursos materiais.

5. Considerações finais

A religião constitui elemento de destaque no processo de transformações e

renovações característico do mundo romano cronologicamente demarcado entre os séculos

III e VIII, a que costumamos chamar de Antiguidade Tardia. Nesse momento, os cristãos se

esforçaram em fixar monumentos conectados com devoção cristã, ao mesmo tempo em que

investiam na demonização dos locais de culto de pagãos e judeus.

O culto de figuras importantes para o cristianismo interferia nos ritmos da vida

cotidiana tanto por meio de uma ativa política de construção de martyria, monumentos

destinados a abrigar as relíquias dos defuntos ilustres, quanto por meio do controle do

calendário, multiplicando as datas de festividades em honra aos mártires. Não obstante,

uma nova geografia começa a se esboçar, tanto em termos físicos quanto em simbólicos,

como é possível visualizar pelos discursos de João Crisóstomo, nos quais se esforça para

diferenciar os lugares de culto cristãos e os lugares de culto judaicos e pagãos, muitas vezes

considerados como heterotopias (SILVA, 2012, p. 14).

Confrontados com a necessidade de estabelecer um modus vivendi e de uma

identidade própria que os distinguisse de judeus e pagãos e que lhes permitisse interferir

nos ritmos da vida urbana, os Padres da Igreja fizeram do tema da caridade e do amor aos

pobres a sua profissão de fé (RAPP, 2005, p. 225). Nesse sentido, os bispos desempenharam

um papel fundamental, ao defenderem aqueles menos favorecidos pelo Estado romano. Os

bispos se converteram, então, em amantes dos pobres, “trazendo a primeiro plano as

reflexões acerca de como a riqueza deveria ser redistribuída e a quem caberia a

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responsabilidade de proteger e pacificar as camadas subalternas da sociedade” (SILVA, 2011,

p. 64).

Por fim, podemos dizer que o tema da caridade não se encontrava, em absoluto,

restrito às igrejas e aos mosteiros, nem apenas aos homens, mas alcançava às ruas,

interferindo diretamente nas redes de poder operantes, tendo mulheres como aliadas, uma

vez que as relações entre gênero e religião também estão presentes nos espaços citadinos.

Desconstruindo discursos de inatividade feminina, ressaltamos a presença de devotas cristãs

que despojavam de seus bens para sustentar bispos, diáconos e importantes figuras cristãs,

além de desapegarem-se de suas fortunas que eram convertidas em estruturas urbanas,

principalmente, pela construção e manutenção de edifícios e monumentos, bem como

asilos, hospedarias e leprosários (DANIÉLOU; MARROU, 1984, p. 332-333).

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