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AS VOZES DO SILÊNCIO TRÁS-OS-MONTES NO CINEMA E NO MUSEU DOSSIER DE IMPRENSA Ciclo de Cinema 1 a 4 Setembro 2010 Museu do Abade de Baçal Bragança

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Page 1: As Vozes Silencio Dossier de Imprensa

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AS VOZES DO SILÊNCIOTRÁS-OS-MONTES NO CINEMA E NO MUSEU

DOSSIER DE IMPRENSA

Ciclo de Cinema1 a 4 Setembro 2010

Museu do Abade de BaçalBragança

Page 2: As Vozes Silencio Dossier de Imprensa

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ÍNDICE

3 Apresentação

5 Programa

5 Realizadores convidados

6 Apresentação dos filmes programados

14 Nota biográfica

15 Ficha técnica

16 Contactos

Imagens (capa e última página)Máscaras, Noémia Delgado

Page 3: As Vozes Silencio Dossier de Imprensa

3APRESENTAÇÃO

O ciclo As Vozes do Silêncio – Trás-os-Montes no Cinema e no Museu, a apresentar entre 1 e 4 de Setembro de 2010, no Museu do Abade de Baçal, em Bragança, dará a ver uma selecção criteriosa dos mais importantes filmes que nesse território se fizeram. Se na mostra A Reposição – O Cinema em Trás-os-Montes (decorrida entre 30 de Agosto e 2 de Setembro de 2007, na Casa da Cultura de Vimioso) procurávamos repor in loco a imagem cinematográfica do nordeste trans-montano, traçando uma panorâmica alargada pelo cinema que, nos últimos cinquenta anos, aí se realizou, em As Vozes do Silêncio, os critérios de programação são mais exigentes. Sem apagar a diversidade de abordagens cinematográficas e a pluralidade de perspectivas inerente aos próprios objectos e aos realizadores que filmaram Trás-os-Montes, a mostra que agora apresentamos incide apenas em obras centrais da nossa cinematografia. Filmes a vários títulos fundamentais, quer pelo olhar particular que dirigem à região e pelas questões que fazem emergir, quer pelo lugar privile-giado que ocupam na história do cinema português. O que em A Reposição foi entendido como reconhecimento de terreno – não se pretendendo uma mostra exaustiva, o objectivo era, então, o de oferecer uma perspectiva tão ampla quanto possível sobre o retrato cinematográfico da região transmontana, cruzando filmes de qualidade e pertinência muito diversas – dá lugar, em As Vozes do Silêncio, a um ciclo de cinema que se apresenta como uma exposição de obras maiores.

O espaço do Museu do Abade de Baçal é, em Bragança, o lugar de excelência para levar a cabo esta revisitação. Sendo o principal núcleo museológico do nordeste transmontano, dotado de uma vasta e diversificada colecção que incide em domínios como o arqueológico, o etnográfico e o artístico e que atravessa todas as épocas da história local, o Museu do Abade de Baçal acolhe uma mostra que estabelece um contraponto entre as peças que tem à sua guarda e o cinema que se fez por Trás-os-Montes. O ciclo As Vozes do Silêncio convida ao diálogo entre diferentes períodos, formas de expressão, objectos estéticos e documentos históricos de naturezas e pro-veniências heterogéneas e promove o confronto entre uma memória remota e uma memória recente, entre a materialidade dos artefactos e a reanimação imaterial das tradições, das gentes e das paisagens locais através das imagens em movimento. Pretende-se, deste modo, repensar, a um tempo, o estatuto dos objectos artísticos e o papel do museu quanto às possibilidades de dinamização do legado histórico (de que o cinema faz parte), à luz das concepções contem-porâneas da museologia, na expectativa de abrir uma brecha entre duas maneiras de entender e dar a ver o património cultural de Trás-os-Montes, de interpelar as figurações do passado para melhor compreender as representações do presente.

Uma das imagens mais repetidas da lusitanidade desenha-se na bissectriz entre centralismo – Portugal é Lisboa, o resto é paisagem, diz-se – e provincianismo – o país é um lugar periférico, afastado das grandes capitais e dos centros de civilização –, retrato para que muito contribuiu alguma literatura, sobretudo a oitocentista. Já no século XX, uma fracção significativa da nossa produção cinematográfica veio abalar os preconceitos e inverter essas coordenadas. Posta a vocação regionalista de alguns cineastas das décadas de 1930 a 1950, empenhados em confirmar, na praia ou no campo, entre os campinos do Ribatejo ou os pescadores da Nazaré, uma vertente pitoresca da portugalidade, conforme com o folclore nacionalista de que se alimentava a ideologia do Regime, muitos seriam os realizadores que, mormente a partir dos anos 1970, apontariam, com outros fins, as suas objectivas ao interior do país. Poucas serão, no entanto, as regiões portuguesas que, no encalço do Cinema Novo, podem, como Trás-os-Montes, reclamar-se como centro e suporte de uma cinematografia particular. Com efeito, não só uma boa parte dos nossos mais importantes cineastas filmaram em Trás-os-Montes, como muitos dos filmes que aí realizaram constituem peças fulcrais dos seus percursos e obras incontornáveis do moderno cinema português. Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Noémia Delgado, António Campos, Fernando Lopes e, muito especialmente, António Reis e Margarida Cordeiro (que votaram toda a sua produção conjunta à região transmontana), são alguns desses autores; Acto da Primavera, Máscaras, Veredas, Ana e Terra Fria, programados no ciclo As Vozes do Silêncio, são alguns desses filmes de referência.

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4Respondendo a uma grande diversidade de propósitos (éticos, estéticos, políticos, sociológicos) e de pontos de vista (ficcionais, documentais ou no cruzamento dos dois registos), as excursões cinematográficas a Trás-os-Montes polarizam-se entre abordagens decorrentes da antropologia visual e da representação paisagística, entre aproximações que visam, com maior ou menor objec-tividade, decifrar as tradições locais e perspectivas que recorrem à região e às suas gentes como pano de fundo. Nos melhores dos casos, Trás-os-Montes surge como cenário idealizado, propício a lendas e contos tradicionais, que servem de pretexto para comentários políticos.

Enquanto alguns realizadores, como João César Monteiro e Pedro Sena Nunes, encontram na região e nos seus traços específicos elementos motivadores para falar do país – do isolamento, das distâncias ao litoral, dos desequilíbrios demográficos –, outros preferem centrar-se no drama-tismo da paisagem e nos modelos ancestrais de práticas agrárias e de organização social. Contor-nando habilmente os indícios mais evidentes da modernidade, de que as casas dos emigrantes são um bom exemplo, muitos dos realizadores convertem Trás-os-Montes num lugar mítico, fora do espaço, do tempo e da história, pronto a acolher todo o tipo de projecções.

Para alguns, como Manoel de Oliveira, Fernando Lopes e Noémia Delgado, os rituais locais oferecem-se como ponto de partida para reflexões de ordem sociológica e humanista. A partida dos jovens para a Guerra Colonial ou o êxodo para as cidades do litoral e para o estrangeiro provo-cam alterações profundas no tecido populacional e colocam em risco a continuidade de práticas como os Autos populares ou as festas dos rapazes. Uma destas festas, a da aldeia de Varge, foi inclusivamente ressuscitada aquando da rodagem do filme Máscaras, de Noémia Delgado, no Inverno de 1974, facto que representa menos uma inversão dos princípios elementares do cinema antropológico do que prova cabal da interferência do cinema no meio sociocultural que pretende documentar.

Para outros, como António Campos, a pobreza da terra e a prevalência de práticas comu-nitárias nalgumas aldeias nortenhas apresentam-se como justificação e molde de uma ideia de “comunismo natural”. Para outros, ainda, como António Reis e Margarida Cordeiro (que é orig-inária desta região), Trás-os-Montes é lugar de uma estranha familiaridade, espaço social, interior e paisagem onde desenvolveram uma aturada observação, tão mais votada à realidade concreta quanto comprometida com uma interrogação metafísica.

Atentos ao modo como as modificações económicas foram reconfigurando a região, Regina Guimarães e Saguenail serão dos poucos realizadores que passaram por terras transmontanas a pensar, historicamente, a transformação do território, partindo da convicção de que toda a paisa-gem é profundamente humanizada e precisa de ser decifrada.

São, por isso, necessariamente múltiplos os Trás-os-Montes que se avistam neste cinema, muitas e, por vezes, contraditórias, as suas faces e vozes. Perceber que cinema se fez em Trás--os-Montes equivale, assim, a perguntar que Trás-os-Montes se fez nesse cinema. No âmbito da museologia, a fotografia foi, como bem o referiu André Malraux em As Vozes do Silêncio – título que esta mostra revisita – um importante factor de aproximação, de nivelamento comparativo e de compreensão das relações e vias comunicantes que podem estabelecer-se entre as mais díspares obras de arte, tanto quanto agente de divulgação e circulação de imagens dos objectos artísticos com que só nalguns museus podemos confrontar-nos face a face. A reprodução fotográfica desses artefactos seria, como o propõe Malraux, responsável pela perda da dimensão aurática da obra de arte, tradicionalmente ligada a valores como a autenticidade e a unicidade dos objectos, à sua capacidade de tornar distante o que está próximo, mas também pela constituição de um museu imaginário, imaterial, desterritorializado, mnemónico.

Se o cinema – filho da fotografia – é, por excelência, a arte da reprodução e da presentifica-ção, a sua investida pelo território transmontano foi, aí, um dos principais instrumentos de fixação e reanimação do passado recente, porventura o mais importante operador contemporâneo na cons-trução do imaginário da região. Os filmes que em As Vozes do Silêncio pretendemos dar a ver são, assim, parte integrante do património transmontano. À margem da museologização do cinema ou da região, trazer estes filmes para o espaço do Museu do Abade de Baçal, confrontando-os com a memória que aí se guarda e mostra, restituindo-os ao lugar onde foram realizados e àqueles que os protagonizaram, poderá ser um momento privilegiado de encontro para repensar as repre-sentações que o cinema conferiu a este território “encantado”.

António Preto

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5PROGRAMA

O ciclo de cinema As Vozes do Silêncio – Trás-os-Montes no Cinema e no Museu decorrerá ao longo de quatro dias, de 1 a 4 de Setembro de 2010, contando com duas sessões diárias, uma à tarde (18h00), no espaço expositivo do Museu do Abade de Baçal, em Bragança, e outra à noite (22h00), nos jardins do Museu.

O acesso às sessões é livre (entrada gratuita).

No início de cada sessão, os filmes serão apresentados por António Preto (programador do ciclo) e pelos realizadores convidados, abrindo-se a discussão ao público no final de cada projecção.

1 Setembro (Quarta-feira)

2 Setembro (Quinta-feira)

3 Setembro (Sexta-feira)

4 Setembro (Sábado)

18h00 SABORES

Regina Guimarães e Saguenail

MATAR SAUDADESFernando Lopes

MARGENS Pedro Sena Nunes

TERRA FRIAAntónio Campos

22h00 MÁSCARAS

Noémia DelgadoACTO DA PRIMAVERA Manoel de Oliveira

VEREDASJoão César Monteiro

ANA António Reis e Margarida Cordeiro

REALIZADORES CONVIDADOS

Manoel de Oliveira

Noémia Delgado

Margarida Cordeiro

Regina Guimarães e Saguenail

Pedro Sena Nunes

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6APRESENTAÇÃO DOS FILMES PROGRAMADOS

SABORESRegina Guimarães e Saguenail1999

Em resposta a uma encomenda específica da Escola Superior Agrária de Bragança para a reali-zação de um documentário sobre os recursos ambientais da bacia hidrográfica do Alto Sabor, Regina Guimarães e Saguenail acabariam por produzir um filme centrado na paisagem transmon-tana e na mundividência e função político-cultural dos “guardadores de paisagens”. Estes seriam, segundo o olhar resoluta e manifestamente exteriorizado dos autores, dois dos principais pilares da riqueza patrimonial da região.Estabelecendo um diálogo com a pintura impressionista, saída do atelier para o ar livre, e subs-tituindo o cavalete pelo tripé, Sabores apresenta-se como um exercício de cinema paisagista. Mediante a constatação de que “a paisagem precisa de ser decifrada”, Regina Guimarães e Saguenail procuraram dar resposta a duas questões fundamentais: por um lado, “como filmar uma paisagem interrogando-a?”; por outro, “como mostrar precisamente aquilo que nela nos interroga?”. Nessa demanda, o calendário dos registos seria submetido ao ritmo das estações e das lides que com elas se relacionam. Porque interrogar a paisagem corresponde a conhecer a sua história, a perceber o que há de recente naquilo que parece imutável, de antigo no que se apresenta como novo e de construído no que se afigura como selvagem, a acção do homem sobre a natureza (e vice-versa) emerge assim como tema fundamental do filme. Quer isto dizer que natureza e cultura se mostram, aqui, não como termos antagónicos, mas sinónimos: “a terra virgem foi terra mãe de saia arregaçada”, sentencia o comentário que acompanha as imagens.

A primeira constatação dos autores, face à geografia enclaustrada do Nordeste Trans-montano, é que se atrás dos montes não se avista o mar, nem atlântico nem mediterrâneo, “os transmontanos inventaram outro mar”. Enquanto o “mar transmontano” é descrito como “o vestígio plástico do trabalho do homem”, o mar que não se avista é identificado com o “oceano que a história oficial da nação elegeu como emblema”, frustrando desse modo “as imagens ne-cessárias de uma vocação rural”, até há pouco tempo dominante.

Convergindo com outras abordagens cinematográficas de Trás-os-Montes quanto à lonjura da região face à abstracção do poder central, Sabores parece, no entanto, querer contrapor à ideia generalizada da rusticidade interior, o reconhecimento da matriz rural da urbanidade do litoral. Rural e urbano não são porém tratados como os pólos opostos da corrida do progresso, em que num sentido se encontraria o desenvolvimento e no outro o atraso, mas como uma necessidade imperiosa de reavaliar as políticas e os desígnios demográficos nacionais, questões que moldam em profundidade a paisagem ao mesmo tempo que nela se traduzem. O que a paisagem transmontana hoje dá a ver é assim uma imagem recente, simultaneamente produto e reflexo de um desequilíbrio populacional, ou seja, ecológico.

Realização e montagem: Regina Guimarães e Saguenail; imagem: Paulo Américo, José António Manso, Lília Magalhães, Saguenail, Rui Rufino e Rui Coelho; som e misturas: Rui Coelho; tratamento de imagem: Paulo Américo; assistentes: Pedro Nobre de Figueiredo e Benjamim Masset; produtores: Sílvia Nobre e Tomás de Figueiredo; produção: Hélastre, Carrefour de Bragança, Instituto Politécnico de Bragança, Escola Superior Agrária de Bragança; entrevistas: Dionísio Gonçalves, Carlos Aguiar, António P. Tiza, José Eduardo C. Fer-nandes e José Monteiro; cantares em Babe: Cristina Santos Fernandes, David António Mesquita, Elias Trino, Maria José Fernandes, Maria Ermelinda Marrão, Ana Maria Trino, Maria do Carmo Reis, Manuel João Trino, Maria Cândida Sousa e Sebastião Trino; cantares em Baçal: Olga de Fátima Pinelo, Eliseu Mariz, Luiza Martins, Miguel Rodrigues e Júlia Almeida; dizeres em Guadramil: Albano Joaquim Neves. música adicional: Carlos Guedes e Filarmónica de Pinela; apoios: APIARTE e ESMAE; financiamento: Comissão Europeia, Carrefour Bragança; betacam, cor, 75 min., 1999.

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7MÁSCARASNoémia Delgado1976

Rodado em Trás-os-Montes, poucos meses depois do 25 de Abril, entre o Natal de 1974 e Fevereiro de 1975, o filme Máscaras dá conta dos rituais dos “caretos”, “chocalheiros” e outros mascarados que, tanto no período do Natal como no do Carnaval, saem à rua nalgumas loca-lidades da região transmontana. Recorrendo ao documentário e à reconstituição etnográfica, Máscaras regista alguns festejos hoje perdidos ou profundamente reconfigurados. Algumas des-sas tradições, desaparecidas já na altura da realização do filme – facto a que não serão alheias as modificações demográficas, motivadas tanto pelas sucessivas vagas de emigração como pela incorporação de jovens no contingente da Guerra Colonial –, seriam assim recriadas pela câmara de Noémia Delgado (tal é o caso das figuras da “Morte” e do “Diabo” que integravam os rituais da Quarta-feira de Cinzas, em Bragança), ou mesmo ressuscitadas (como veio a verificar-se com a “festa dos rapazes”, na aldeia de Varge).

Além da recuperação destes dois rituais, Máscaras documenta ainda o Sto. Estêvão, em Grijó de Parada – celebração dividida entre uma refeição colectiva, a “Mesa de Sto. Estêvão”, instalada ao ar livre no largo da aldeia, e a festa de mascarados, conduzida por dois figurantes, o “Rei” e o “Bispo”, símbolos dos dois poderes, temporal e espiritual –, o Fim do Ano, em Bemposta – em que o “chocalheiro”, figura que mostra os atributos do Diabo e age fora das convenções sociais, percorre de noite a aldeia recolhendo esmolas para Nossa Senhora e o Menino –, a recriação do Dia de Reis, em Rio de Onor – festejo que integra o sacrifício de um bode para a ceia dos rapazes e a ronda com a “Filandorra”, as “Madamas” e outros mascarados –, e o Carnaval, em Podence – em que, durante o dia, os “caretos” perseguem as raparigas fazendo todo o tipo de tropelias e, à noite, os rapazes anunciam ao povo os “casamentos”, explorando aí, em tom satírico, situações reais ou fantasiosas, com conotações burlescas.

Contando com a locução de Alexandre O’Neill, o filme Máscaras analisa as diferenças, os pontos de convergência e as variações dos rituais que, no distrito de Bragança, integram figuras de mascarados, produzindo uma reflexão em duas frentes. Por um lado, procura uma contextuali-zação das celebrações no âmbito das estruturas sociais e económicas, bem como dos ciclos da natureza. Por outro, desenvolve uma abordagem que visa interpretar as traduções iconográficas e a incorporação de ritos pagãos levadas a cabo pelo cristianismo.

Entre o propósito de uma objectividade científica, que a supervisão e texto de Ernesto Veiga de Oliveira e de Benjamim Pereira reforçam, e a plena assumpção estética da presença da câmara – para já não referir as consequências da realização do filme no que concerne à reabilitação de algumas das tradições locais retratadas – Máscaras apresenta-se, assim, como nítido exemplo da interferência activa do cinema documental na realidade (e na suposta pureza etnográfica) que toma por objecto e necessariamente transforma.

Realização e montagem: Noémia Delgado; supervisão e texto: Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira; consultor musical: Madeira Luís; fotografia: Acácio de Almeida e José Reynès; som: Philippe Costantini; assistentes: Henrique Paula Nogueira, Raymond Frèmont e Carlos Mena; electricista: João Silva; narração: Alexandre O’Neill; arranjos musicais: Luís Represas e João Represas; laboratórios: Ulyssea Filme e Valentim de Carvalho; produção: Centro Português de Cinema; 16mm, 116 min., cor, 1976.

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8MATAR SAUDADESFernando Lopes1987

A vinda de um emigrante à sua aldeia natal, em meados dos anos 80, serve a Fernando Lopes de pretexto para reflectir sobre as diferentes razões que a muitos obrigaram a sair do país, sobre a fidelidade às origens, sobre o desenraizamento e sobre a condição social de quem parte e de quem regressa, mas também para fazer um balanço do que foram algumas das modificações ocorridas em Portugal durante os primeiros dez anos de vivência democrática que se seguiram ao 25 de Abril. Estabelecendo um constante paralelismo entre a vida privada das personagens e as opções políticas que foram moldando os destinos nacionais, Matar Saudades traça um retrato pouco optimista do Portugal moderno, identificando algumas das principais questões que, à data da realização do filme (como ainda hoje), não são debatidas com a necessária profundidade. Entre elas encontramos o processo de descolonização, os traumas da guerra no Ultramar, todas as contradições das várias diásporas, a industrialização do litoral por oposição à falência da reforma agrária e o conservadorismo, simétrico ao rápido esquecimento e apagamento da história.

A história da emigração, sintetizada em Matar Saudades na vivência de três gerações de uma mesma família, é uma história que, com contornos, motivações e implicações distintas, se repete em Portugal ao longo da segunda metade do século XX. Os que o Estado Novo condenou ao de-gredo, os que o mesmo estado mandou combater para as colónias, os emigrados por questões económicas, os exilados políticos e os que por cá ficaram, são assim alguns do protagonistas dessas várias histórias que fizeram a história do país e que sobre ele foram lançando olhares diferenciados. Esta forma de presença na ausência, que assim se adivinha, é, provavelmente, a tese central do filme de Fernando Lopes: é no afastamento que se conseguem as imagens mais nítidas. Como se diz no filme, “o tempo e a distância mudam tudo, até a terra e os olhos com que a vemos”. E é assim que o pensamento sobre o país se desenha, em Matar Saudades, a partir da reconstituição da história obliterada, sobre um hiato entre datas, lugares e aconteci-mentos, num lapso retrospectivo.

A ideia de repetição e de retorno que o filme propõe é atravessada por uma narrativa paralela que dá conta da preparação, pelos habitantes da aldeia de Sonim (Valpaços), de uma representação da Paixão de Cristo. Fundindo-se, no final do filme, com o drama ficcional, a representação do auto popular (uma clara citação de Acto da Primavera, de Manoel de Oliveira) sugere assim que há uma matriz comum entre todas estas histórias de partidas e regressos, que há uma história que se repete e que é necessário recuar, voltar atrás e reavaliar para perceber o que aí se reproduz. Encabeçando, na representação da Paixão de Cristo, o cortejo da Via Dolo-rosa, Verónica exibe a verdadeira imagem da reprodução: o que o seu véu parece dizer é que nunca se matam saudades nem se apaga o passado.

Realização: Fernando Lopes; argumento: Carlos Saboga, A. Pedro de Vasconcelos e Fernando Lopes; diálogos: Carlos Saboga; director de fotografia: António Escudeiro; operador de câmara: Michel Tomasi; assistente: Carlos Mena; director de som e misturas: Antoine Bonfanti; assistente: José Gamboa; montagem: Alexandre Gonçalves; assistente: Manuel Águas; interpretação: Rogério Samora, Teresa Madruga, Alexandre de Sousa, Pedro Efe, Manuel Cavaco, Lurdes Rodrigues, João Cabral, António Reis, Laura Soveral e Canto e Castro; participação especial: Eunice Muñoz; produção executiva: Fernando Matos Silva e José Luís Vasconcelos; imagem: Humberto Alves; electricistas: Hélder Mendes e Raul Soares; maquinistas: Vasco Sequeira, Vítor Moreira e Saul Pessoa; guarda-roupa e adereços: Gabriela Cerqueira; caracterização: Margarida Miranda; selecção musical: Diogo Seixas Lopes; equipa de produção: Ricardo Cordeiro, Cláudia Lopes e Margarida Almeida; equipa de realização: José Miguel Figueiredo, António Rosas e Manuel Águas; laboratórios: Tóbis Portuguesa, Auditel (Paris) e Cinearte (Madrid); financiamento: Instituto Português de Cinema e Fundação Calouste Gulbenkian; apoio: RTP; 35mm, cor, 76 min., 1987.

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9ACTO DA PRIMAVERAManoel de Oliveira 1962

Acto da Primavera, filme rodado entre 1961 e 1962, é a versão cinematográfica da preparação e representação de um auto popular pelos habitantes da Curalha, aldeia do concelho de Chaves, a partir de um texto escrito no século XVI por Francisco Vaz de Guimarães. O texto conta a história, por todos conhecida, da paixão de Cristo. O dramatismo do filme, que se joga entre o enquadramento de elementos paisagísticos e da humanidade das personagens, mas também através do distanciamento crítico, da recusa da ilusão e do tom recitativo (ou mesmo litúrgico) com que é proferido o texto, resulta, assim, menos de efeitos de montagem do que da maneira de filmar. Se é verdade que, como pretende Manoel de Oliveira, o cinema apenas pode restituir o que se encontra diante da câmara, é no entanto ainda o cinema que permite extrapolar a narrativa do «Auto da Paixão» e recontextualizar tanto o texto como a representação, complexifi-cando-os e investindo-os de diferentes sentidos e pressupostos, divergentes daqueles que seriam os seus propósitos mais imediatos, sem todavia os deturpar.

Exemplo paradigmático da modernidade do cinema de Oliveira e do que foi designado como o Novo Cinema Português, Acto da Primavera é o resultado de uma pesquisa de novas maneiras de fazer cinema – fora dos estúdios e circuitos habituais de produção, interpretado por actores não profissionais –, mas também da reflexão aprofundada do autor sobre os estatutos da imagem e da representação, sobre os diferentes usos da linguagem e sobre as relações que podem estabelecer-se entre a palavra, o tempo e o lugar, entre o cinema, o teatro e a celebra-ção ritual.

Transgredindo os princípios, definições e categorias que demarcam fronteiras disciplinares e tradicionalmente contrapõem tanto o teatro ao cinema, como o documentário à ficção, o filme articula num mesmo plano narrativo diferentes níveis de representação. A procura de um sentido religioso nos ciclos da natureza e nos trabalhos agrícolas coexiste com um olhar materialista sobre a aldeia e os seus habitantes, a figuração da vida quotidiana e o ritual confundem-se e comple-mentam-se, o espaço real e o espaço de representação convergem numa mesma paisagem, a maquinaria do cinema entra em diálogo com a encenação teatral, as imagens da repre-sentação do auto confrontam-se com imagens das guerras coloniais, da bomba atómica e da película de cinema. Acto da Primavera é, assim, a reportagem cinematográfica de uma representação teatral, tanto quanto a representação teatral dessa reportagem: ao mesmo tempo, um objectivo documento etnográfico, uma lição de cinema e uma reflexão sobre a situação política do país.

Realização, produção, fotografia, som e montagem: Manoel de Oliveira; consultores: José Carvalhais e José Régio; interpretação: Nicolau Nunes da Silva, Ermelinda Pires, Maria Madalena, Amélia Chaves, Luís de Sou-sa, Francisco Luís, Renato Palhares, Germano Carneiro, José Fonseca, Justino Alves, João Miranda, João Luís, Manuel Criado, gentes da Curalha e de Chaves; ensaiador: Abílio Rosa; narração: Manoel de Oliveira; assistentes de realização: António Reis, António Soares e Domingos Carneiro; selecção de actualidades: Paulo Rocha; guarda-roupa: Jaime Valverde; adereços: Amândio Medeiros; caracterização: Max Factor – Adélia Chaves; operadores de som: Maria Isabel de Oliveira e Fernando Jorge; assistente de som: João Barbosa; transcrição sonora: Arthur M. Smith; laboratório de imagem: Tóbis Portuguesa e Ulyssea Film; laboratório de som: Studios Marignan (Paris); 35mm, cor, 90 min., 1962.

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10MARGENSPedro Sena Nunes1995

À borda das celebrações, mas no centro dos acontecimentos, o filme de Pedro Sena Nunes atravessa a inauguração de uma ponte que, em Chelas (Mirandela), passaria a ligar as margens do rio Tuela, para, paradoxalmente, produzir uma reflexão acerca do isolamento. À margem do tom melancólico com que, não raras vezes, é figurada pelo cinema português a questão da interioridade transmontana, Pedro Sena Nunes não esconde, no entanto, que o que essa ponte aproxima são, afinal, as duas margens de um mesmo território marginalizado pelo poder central. Procurando olhar a montante e a jusante de todos os consensos, e contra a corrente festiva, Margens multiplica os pontos de vista sobre a implantação da ponte, explora os equívocos, as contradições, e as diferentes opiniões dos habitantes, umas favoráveis, outras desfavoráveis que, à margem dos discursos oficiais, mostram o reverso das promessas e das grandes soluções, aqui resumidas de modo eloquente por um representante do poder autárquico: “mandei construir uma igreja, por minha conta própria nesta aldeia, para absorver os pecados do inferno e ajudei a construir a ponte que vos leva a caminho do céu”.

Mas se em Margens todos os caminhos vão dar à ponte, fazem-no em sentidos divergentes. A ponte, que se diz nova, é na verdade uma ponte “em segunda mão”, proveniente da região de Sintra e reinstalada naquele lugar; apresentando-se como uma obra pública, a construção foi, em grande parte, objectivamente paga pela população de Chelas; o que parece corresponder a uma deliberação governativa de apetrechamento público revela-se, no fim de contas, como imposição de uma iniciativa popular. Também entre os habitantes não há unanimidade. Se a maioria aprova e enaltece a construção da ponte por ela reduzir exponencialmente a distância a Mirandela, alguns não esquecem os custos e a morosidade do projecto. Outros, morreram sem ver a ponte inaugurada e não faltam ainda aqueles a quem a obra veio destruir “o cantinho das delícias”, à sombra dos amieiros e à margem do processo de modernização.

Dando, por um lado, a “voz ao povo”, na linha metodológica da antropologia visual de António Campos, mas desconfiando, por outro, da “verdade etnográfica”, o filme Margens, de Pedro Sena Nunes, põe em marcha um permanente jogo de reversibilidade que mostra, de modo mordaz, mas sem ironia, que uma coisa é sempre também outra. Do cinema, capaz de estabelecer pontes entre imagens e discursos, só será por isso legítimo esperar não a explicação, mas o avolumar dos paradoxos da realidade.

Ideia original e realização: Pedro Sena Nunes; montagem: Paulo Belém; assistente de montagem: António Pedro Figueiredo; director de som: Emídio Buchinho; assistente de som: António Pedro Figueiredo; director de fotografia: Paulo Ares; director de produção: Pedro Sena Nunes; chefe de produção: Susana Madeira; cola-boradoras: Patrícia Alves e Paula Macedo; mistura de som: Branko Neskov e Emídio Buchinho; étalonnage: Helena Quaresma; tradução: Sara David Lopes; grafismo: Rodrigo Serqueira; música popular: Grupo Folclórico São Tiago, Ezequiel dos Santos e Acácio Manuel; música: Emídio Buchinho; intervenientes: Acácio Manuel, Adérito Jesus, Estrela do Céu, Ezequiel dos Santos, Marlene, Manuela e outros aldeões de Chelas; 16mm, cor, 28 min., 1995.

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11VEREDASJoão César Monteiro1977

Realizado na senda da Revolução de 1974, Veredas é uma longa descida pelo interior de Portugal. Pelas suas paisagens naturais e sociais, pelas histórias, lendas e tradições, e por tudo o mais que, numa resoluta vontade de descentralização, João César Monteiro elege, a um tempo equi-parando (na sua descoincidência) e diferenciando (na sua simultaneidade), como representações e retratos do país. Ajustando o modelo de Viagens na Minha Terra – obra de Garrett em que o relato da viagem real se mistura com a narração novelesca e com a revisão histórica para produzir uma análise da situação política e social de Portugal no rescaldo da Guerra Civil –, à conjuntura pós-abrilista, César Monteiro irá contrapor o que ainda resta do Portugal “velho” aos recentes valores renovadores e liberais.

Em conformidade com outros cineastas que, nesta altura, percorrem os mesmos trilhos pelo Portugal profundo – entre outros, António Reis e Margarida Cordeiro, Noémia Delgado e António Campos –, a abordagem que César Monteiro faz dessas realidades apresenta, no entanto, claros pontos de rotura. São eles a recusa de um possível rigor etnográfico, sempre desprezado pelo autor em favor da livre recontextualização das imagens e dos textos, colocados ao serviço de um comentário declaradamente político.

Convergindo com o debate em torno da reforma agrária – questão que, à data, estava na ordem do dia – Veredas estabelece um confronto entre o Norte e o Sul do país. O primeiro, é apresentado como uma terra igualitária, perdida no espaço e no tempo, mítica e antiga, orga-nizada em torno de relatos lendários que dão conta das dificuldades inerentes à pobreza do solo. O segundo, pelo contrário, é caracterizado como uma região modernizada, fértil e produ-tiva, cuja riqueza é explorada por um reduzido número de senhores feudais, assombrados pelo fantasma do comunismo. O confronto das diferenças evidentes que separam os dois territórios (que quase prefiguram dois países distintos) é recriado por César Monteiro, de modo emblemático, nos contra-campos regionais em que o Minho (representado pela deusa Atena, numa acrópole de espigueiros) fala com o Alentejo (figurado por um grupo de ceifeiras). A conversa que aqui se estabelece entre o Norte e o Sul, extraída das «Euménides» de Ésquilo e ajustada ao enquadra-mento temático do filme, dá conta de uma necessária superação de concepções de direito e de justiça, em vista de uma unidade conciliadora.

Entre demónios, mouras encantadas, padres, salteadores e lobos, a demanda de César Monteiro pelos problemas, já antigos, a que o 25 de Abril não conseguiu pôr fim e pelos renovados problemas que o projecto de um novo Portugal terá forçosamente de resolver, terminará, sobre a ponte da Mizarela, com um baptismo in ventris desse futuro país, prevendo (e prevenindo), desse modo, uma possível esterilidade ou os contratempos de um parto difícil: “Eu te baptizo criatura de Deus, pelo poder de Deus e da Virgem Maria. Se for rapaz, será Gervás; se for rapariga, será Senhorinha. Pelo poder de Deus e da Virgem Maria, um Padre-Nosso e uma Avé-Maria”.

Realização: João César Monteiro; textos: «História de Branca-Flor» extraída de Contos Tradicionais Portu-gueses, de Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira, Ésquilo (fragmento das «Euménides») e Maria Velho da Costa; colaboração: Manuela de Freitas e João Guedes; narração: Helena Domingos, Margarida Gil e João César Monteiro; música: popular das regiões de Trás-os-Montes e Alto Alentejo, instrumental da Idade Média e 7.a Sinfonia de Bruckner; interpretação: Margarida Gil, António Mendes, Carmen Duarte, Francisco Domingues, Luís de Sousa Costa, Virgílio Branco, Sílvia Gomes Ferreira, Leonor Seixas, Myriam, Miguel João Ravasqueira, Alexandra Barbosa, Minervina Chapanito, Manuel Rocha, José Pequeno, Fernando Araújo, Delfina Ferreirinho, Sérgio da Feliz, António José Dias, Adília Martins, Efigénia de Carvalho, Pedro Gomes Ferreira, Madalena Barbosa, António Matos, José António Candeeira, José Bizarro e João César Monteiro; director de produção: Henrique Espírito Santo; imagem: Acácio de Almeida; som: José de Carvalho e João Diogo; efeitos especiais: Luís de Castro; iluminador: Manuel Carlos de Silva; pintura do genérico: «L’Invitation au Voyage», Menez; figurinos: João Vieira e João César Monteiro; assistente de realização: Margarida Gil; as-sistente de produção: Carlos Mena; assistente de imagem: Octávio Espírito Santo; assistente de som: Filipe Manuel Gonçalves; aderecista: Teresa Caldas; costureira: Amélia Varejão; genérico: Celeste Dias-Santos; exteriores: Arraiolos (Monte da Ravasqueira), Costa da Caparica, Duas Igrejas, Guadramil, Montalegre, Par-adela (Miranda do Douro), Paradela do Rio, Pitões das Júnias, Póvoa de Lanhoso, Ria de Aveiro (Murtosa), Rio Douro, Rio Lima, Rio de Onor, Rio Tuela, Sanfins (Chaves), Serra da Estrela, Serra do Gerês, Serra de Mourela e Soajo; guarda-roupa: Anahory; laboratório de imagem: Tóbis Portuguesa; estúdios de som: Valentim de Carvalho; produção: Instituto Português de Cinema; 35mm, cor, 121 min., 1977.

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12TERRA FRIAAntónio Campos1992

Projecto adiado desde a década de 60 e uma das últimas obras de António Campos (mas, em termos operacionais, a sua primeira grande produção), Terra Fria, só conheceria a luz do dia em 1992. O filme é consequência de um cinema que, firmando uma vocação documentarista – ou, se preferirmos, etnocinematográfica (como se vê, por exemplo, no filme Falamos de Rio de Onor, de 1974 –, sempre tendeu para a ficção, naquilo que esta comporta de confronto directo com a realidade pré-existente. Rodado durante oito semanas do Inverno de 1991, em Padornelos (Mon-talegre), Terra Fria é baseado no romance-reportagem homónimo de Ferreira de Castro, escrito e situado nessa mesma aldeia. Localizando a acção nesse contexto barrosão do início dos anos 40, o filme conta a história de um casal – as suas dificuldades de sobrevivência, os seus pro-jectos de futuro e a exploração a que são sujeitos –, sem menosprezar, no entanto, naquela que é a linha mais reconhecida do cinema de António Campos, uma abordagem antropológica dos costumes e superstições locais (veja-se, por exemplo, o episódio relativo às crenças associadas à ponte da Mizarela). Soma-se a isto uma reflexão de âmbito político sobre a época e a região a que se reporta, e sobre as imagens que o cinema português, nessa altura, produziu (aspecto desde logo assinalado pela primeira imagem do filme, um cartaz de As Festas de Duplo Cente-nário, filme de propaganda nacionalista realizado em 1940 por António Lopes Ribeiro).

Se o Estado Novo e algum do cinema por ele patrocinado estavam interessados em forjar uma imagem do país assente nas glórias dos descobrimentos, do Império Ultramarino e das obras públicas, António Campos, sempre teve por projecto fazer “o mapa vivo de Portugal”, dar uma imagem cinematográfica às terras e realidades sociais destituídas de visibilidade. Aliando a determinação de, mesmo depois da plena adesão de Portugal à CEE, continuar a filmar a mi-séria de algumas terras do interior Norte, ao desfasamento de trinta anos entre o projecto do filme e a sua efectiva realização, Terra Fria será considerado, por alguns críticos, como reflexo de um neo-realismo atrasado, pessimista, quando os tempos apelavam festivamente a todos os optimismos.

Como o indica o título e o confirma o realizador, em Terra Fria as baixas temperaturas são um parâmetro fundamental. António Campos pretendia que os actores sentissem o frio durante as filmagens e que integrassem esse desconforto físico na construção e interpretação das perso-nagens. O frio (que faz gelar a água e a transforma em neve) e o fogo (que com essas imagens estabelece o maior contraste), são assim os dois pólos estruturantes que vão pontuando o filme, servindo quer de metáfora aos estados psicológicos das personagens, quer de estímulo ao des-empenho dos actores. Mas o frio, que o filme se encarrega de permanentemente transformar em coisa física e significante é, antes de mais, o atributo dessa terra agreste e hostil que não se prova capaz de alimentar os que a trabalham. A estes, restará deixarem-se inebriar pelo perfume do dinheiro com que o patrão lhes acena, abrir uma taberna para vender aos outros os enga-nos do álcool ou fugir do país, para o estrangeiro ou para a prisão.

Realização: António Campos; argumento: António Campos, a partir do romance homónimo de Ferreira de Castro; fotografia: Acácio de Almeida; som: Luís Simões; assistente de realização: João Cavatte; música: Jorge Arriagada; poema: António Campos; montagem: José Alves Pereira; supervisor de montagem: Pablo Del Amo; interpretação: Joaquim de Almeida, Cristina Marcos, Carlos Daniel, Isabel Ruth, Alexandra Leite, António Simon, Maria Emília Correia, Lucinda Loureiro, João d’Ávila, Cremilda Gil, Lola de Paramo, Júlio Cardoso, Bino, Fernando Saraiva, Barros, Zé do Capitão, Padre Fontes, Luís Baptista, Fernanda Gonçalves, Emília Silvestre, Teresa Nunes, José Wallenstein, Raquel Maria, José Pinto, Hugo Chaves, Carlos Mourão, José Eduardo, João Romão, António Reis, Benjamim Falcão, António Pires, Maria Arminda, Teresa Mónica, Ana Bustorff, Simão Cayatte, Carla Nogueira, Alexandra Oliveira, Alexandra Lencastre (voz) e alunos da Academia Contemporânea do Espectáculo; maquilhagem: Teresa Rabal; decoração: Luís Monteiro; guarda- -roupa: Jean Laffront; efeitos especiais: José Vian e Fernando Monteiro; direcção financeira: Fernando Neto; direcção de produção: José Mazeda; produtor delegado: Acácio de Almeida; produção executiva: Acácio de Almeida e Agustín Almodóvar; produção: Inforfilmes (Lisboa), El Deseo (Madrid) e Titane – UGC Images (Paris); apoio: Fundo Eurimages do Conselho da Europa; 35mm, cor, 94 min., 1992.

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13ANAAntónio Reis e Margarida Cordeiro1985

Quase dez anos depois de Trás-os-Montes (1976), Ana é o segundo filme co-realizado por António Reis e Margarida Cordeiro, rodado como as restantes obras do casal no Nordeste Transmontano, entre Miranda do Douro e Bragança. Reconhecem-se em Ana algumas das principais característi-cas do primeiro filme, nomeadamente o olhar reverencial sobre a paisagem, a distância com que aí se enquadra o humano (quase sempre em plano geral), o acentuar do mutualismo entre ima-gens documentais e ficcionais, a reconfiguração do espaço e do tempo através da descontinuidade da montagem. Mas identifica-se também uma progressiva autonomização e radicalização de uma linguagem cinematográfica que se formaliza e especifica na rigorosa estruturação dos planos e na geometria dos enquadramentos, no diálogo com alguma pintura flamenga e renascentista (sobre-tudo na reconstituição de interiores e cenas da domesticidade), e na influência dos princípios de composição e codificação do regime pictórico, na sublimação das potencialidades significativas (e simbólicas) dos elementos cromáticos, postos em ressonância (o filme Trás-os-Montes havia sido montado a preto e branco), na materialização da duração, esquematização do movimento e hieratismo das figuras, no recurso quase exclusivo a actores não profissionais com vista ao aprofundamento das suas virtuosidades e limitações, na colagem e livre associação de elementos literários (em contraste com silêncios prolongados), na intrincada dialectização do sentido entre as sequências. Entre um e outro filme, uma mesma tensão, identificada, por António Reis, como resultante de um “lírico sempre ameaçado”, afronta que decorre, porventura, da irredutível con-cretude das coisas e do convencionalismo que as designa, acrescentamos nós.

Sem a circunspecção temática de Trás-os-Montes – em que a diversidade das imagens e a abrangência do discurso tinham por suporte referencial uma região –, e furtando-se, conquanto o título pareça sugerir o contrário, à concentração da narrativa em torno de um protagonista (que, em todo o caso, seria algo tão definido como uma avó telúrica), o filme Ana constrói-se, a partir do feminino, em vista de uma amplitude dificilmente delimitável. A haver uma história, ela poderá resumir-se no nascimento de uma criança e no simultâneo adoecimento que conduzirá à morte da avó Ana, processo nunca verbalizado, mas apenas anunciado, dramatizado e extrapo-lado através de valores formais e cromáticos (a omnipresença do vermelho ao longo de todo o filme, por oposição ao azul final; a figura ao lado de Ana no seu leito de morte, envergando as cores da bandeira nacional). A convergência do princípio e do fim traduzem-se assim numa circularidade que o palíndromo a-n-a (palavra que é sempre a mesma, lida da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda), a sua etimologia (que se refere à ideia de repetição) e o facto de três das personagens do filme (avó, filha e neta) terem esse mesmo nome sublinham. Uma circularidade que, por questões biográficas, engloba e implica directamente o universo familiar dos próprios realizadores. Sendo Ana inspirado na avó de Margarida Cordeiro, é a mãe da reali-zadora que, no filme, desempenha esse papel, do mesmo modo que a pequena Ana é, também ela, a filha dos realizadores (uma e outra, portadoras desse mesmo nome).

O que com tudo isto António Reis e Margarida Cordeiro extremam é uma reflexão sobre os graus de verosimilhança da representação cinematográfica e sobre os respectivos critérios e condições de verdade. É que o trabalho dos autores sobre a desnaturalização implica uma revi-são da concepção do realismo em que a analogia se converte em ontologia: única maneira de desvendar o ser da matéria e das coisas, o ser e o parecer feitos linguagem.

Ideia original, realização, produção, décor e montagem: António Reis e Margarida Cordeiro; imagem: Acácio de Almeida e Elso Roque; assistentes de imagem: José António Figueiredo, Jorge Caldas, Vasco Sequeira, Amadeu Lomar, José Tiago, Emílio Castro, José Albertino e Carlos Sequeira; som: Carlos Pinto e Joaquim Pinto; assistentes de som: Pedro Caldas, Pedro Lopes e Mário Gast; interpretação: Ana Maria Martins Guerra, Octávio Lixa Filgueiras, Manuel Ramalho Eanes, Aurora Afonso, Mariana Margarido, Ilda Almeida, Hermigenes Mazeda, Sónia Afonso, Ana Umbelina C. Reis, Isabel Pinto Coelho, Maria Luís Rodrigues, André Melhã Cordeiro, Arnaldo Araújo, José Mazeda, Paulo Cameirão, Firmino dos Santos, Ester Maria André, Luísa O-Velho, Glória O-Velho, Rita Pereira, Manuel Morais, Luís Ferreira, Manuel Nazaré, Carlos Gonçalo, Ermelinda Afonso, Isabel Fernandes, António Campos Rosado, Ilídio Pereira, Francisco Mora e artistas do Circo Cardinalli; director de produção: José Mazeda; assistentes de produção: João Bénard, Victor Gonçalo, Carlos Gonçalo e Manuel Leitão; produtor associado: Paulo Branco; laboratórios de imagem: Tóbis Portu-guesa e Éclair (França); estúdio de som: Nacional Filmes e Studios Billancourt (França); financiamento: Instituto Português de Cinema e Fundação Calouste Gulbenkian; 35mm, cor, 120 min., 1985.

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NOTA BIOGRÁFICA

António Preto nasceu em 1975. Vive e trabalha entre o Porto e Paris.

Mestre em Teorias da Arte, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, conclui actualmente um Doutoramento em História e Semiologia do Texto e da Imagem, na École Doctorale de Langue, Littérature, Image, civilisations et sciences humaines, dirigida por Julia Kristeva, na Université Paris-Diderot – Paris 7, desen-volvendo uma tese sobre a relação entre literatura e cinema na obra de Manoel de Oliveira. É investigador do Centre comparatiste d’études et de recherches sur les Littératures Antiques et Modernes (CLAM), depar-tamento de Lettres, Arts et Cinéma (LAC – Paris 7), sendo bolseiro da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, desde 2007.

Tem desenvolvido projectos como comissário e programador, quer a título independente, quer em colabora-ção com a Universidade de Paris 7 e a Fundação de Serralves. Merecem destaque a organização e pro-gramação do ciclo de cinema A Reposição – O cinema em Trás-os-Montes, Casa da Cultura de Vimioso (2007); a co-organização, com Claude Murcia e Régis Salado, do colóquio internacional Manoel de Oliveira, L’invention cinématographique à l’épreuve de la littérature, Université Paris-Diderot – Paris 7 e Centro Cul-tural Calouste Gulbenkian Paris (2008); e o comissariado, a convite da Fundação de Serralves, da exposição Manoel de Oliveira / José Régio – Releituras e fantasmas, produzida pelo Museu de Arte Contemporânea de Serralves e pela Câmara Municipal de Vila do Conde, patente no Centro de Memória de Vila do Conde (Dezembro 2009 – Março 2010).

Tem orientado seminários (como Manoel de Oliveira: O moderno paradoxal, Museu de Arte Contemporânea de Serralves, 2008) e participado em colóquios internacionais, publicado ensaios em edições universitárias bem como noutras revistas e canais especializados. Entre 2006 e 2008 foi colaborador da secção de crítica de arte da publicação on-line www.artecapital.net. Mais recentemente, tem colaborado regularmente com o Suplemento Literário de Minas Gerais, editado pela Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais (Brasil). Dentre as publicações mais recentes, podemos mencionar: Manoel de Oliveira / José Régio – Releituras e fantasmas, António Preto (dir.), Porto, Museu de Arte Contemporânea de Serralves / Câmara Municipal de Vila do Conde, 2009; Manoel de Oliveira: o cinema inventado à letra, António Preto (ed.), Colecção Público Serralves de Arte Contemporânea, n.o 11, Lisboa, Fundação de Serralves / Jornal Público, 2008; e A Reposição – O cinema em Trás-os-Montes, António Preto (org.), Vimioso, Câmara Municipal de Vimioso, 2007.

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15FICHA TÉCNICA

TítuloAs Vozes do Silêncio – Trás-os-Montes no Cinema e no Museu

ProgramaçãoAntónio Preto

Local Museu do Abade de Baçal – Bragança

ProduçãoAntónio Preto | Museu do Abade de Baçal

PublicaçãoCoordenação – António PretoEdição – Museu do Abade de Baçal

Convidados Manoel de OliveiraNoémia DelgadoMargarida Cordeiro Regina Guimarães e SaguenailPedro Sena Nunes

Datas 1 a 4 de Setembro 2010

Apoios

RESTAURANTESOLAR BRAGANÇANO

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16CONTACTOS

Museu do Abade de BaçalDirectora: Dra. Ana Maria Afonso

Rua Conselheiro Abílio Beça, 275300-011 Bragança

Telefone 273331595

Fax 273323242

E-Mail [email protected]

António Preto

Telefone 965775312

E-Mail [email protected]