a produção de sentidos do surdo entre o silencio e as múltiplas vozes

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA

    SNIA FERREIRA DE LIMA NAVES

    A PRODUO DE SENTIDOS DO SURDO: ENTRE O SILNCIO E AS MLTIPLAS VOZES

    UBERLNDIA 2003

  • SNIA FERREIRA DE LIMA NAVES

    A PRODUO DE SENTIDOS DO SURDO: ENTRE O SILNCIO E AS MLTIPLAS VOZES

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Lingstica da Universidade Federal de Uberlndia, como requisito parcial para obteno do ttulo de mestre em Lingstica.

    rea de Concentrao: Lingstica Aplicada Linha de Pesquisa: Estudos sobre o Ensino-Aprendizagem de Lnguas Orientador: Prof. Dr. Ernesto Srgio Bertoldo UBERLNDIA MG 2003

  • FICHA CATALOGRFICA Elaborado pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogao e Classificao / mg N323p Naves, Snia Ferreira de Lima, 1962- A produo de sentidos do surdo: entre o silncio e as ml- tiplas vozes / Snia Ferreira de Lima Naves. - Uberlndia, 2003. 130f. Orientador : Ernesto Srgio Bertoldo. Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Uberln- dia, Programa de Ps-Graduo em Lingustica. Inclui bibliografia. 1. Anlise do discurso - Teses. 2. Lngua inglesa - Estudo e ensino Estudantes estrangeiros - Teses. 3. Surdos-mudos - Teses. 4. LIBRAS (Lngua Brasileira de Sinais). I. Bertoldo, Er - nesto Srgio. II. Universidade Federal de Uberlndia. Programa de Ps-Graduao em Lingustica. III. Ttulo. CDU: 801(041.3)

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA

    Snia Ferreira de Lima Naves

    A produo de sentidos do surdo: entre o silncio e as mltiplas vozes

    Tese aprovada em 20/02/2003 para obteno do ttulo de Mestre em Lingstica Aplicada. rea de concentrao: Lingstica Aplicada Linha de pesquisa: Estudos sobre o ensino-aprendizagem de lnguas Banca Examinadora: _____________________________________________ Prof. Dr. Ernesto Srgio Bertoldo - UFU _____________________________________________ Prof. Dr. Joo Bsco Cabral dos Santos - UFU _____________________________________________ Profa. Dra. Maralice de Souza Neves - UFMG

  • minha famlia, pelo estmulo, carinho e compreenso.

  • AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Ernesto Srgio Bertoldo, pela orientao competente. Ao Prof. Dr. Waldenor Barros Moraes Filho, atual coordenador do

    Curso de Mestrado em Lingstica e Profa. Dra. Alice Cunha de Freitas, ex- coordenadora, pela ateno.

    Aos professores do Curso de Mestrado em Lingstica, pelos

    valiosos ensinamentos, em especial aos professores Joo Bsco e Cleudemar, pela disponibilidade amiga, pelas sugestes e pela participao em minha banca de qualificao.

    Paula e ao Bento, pela reviso. Eneida e Solene, secretrias do Curso de Mestrado em Lingstica,

    pelo carinho e ateno. Aos sujeitos dessa pesquisa, por compartilharem sua experincia e

    contriburem para esta reflexo. Ao Daniel, pela disposio em colocar-se interlocutor do surdo. Escola Estadual Bueno Brando, por facilitar o desenvolvimento

    dessa pesquisa. s colegas do Curso de Mestrado em Lingstica, Carla e Rosi, pela

    interlocuo amiga e inteligente. Ao meu esposo, Alexandre, pelas palavras encorajadoras, pelo apoio

    moral, pelo apoio tcnico em informtica e pela compreenso. s minhas filhas, Ceclia, Marina e Letcia, pelo carinho, pelo

    chamego e pela compreenso. minha me, pelo exemplo. Aos amigos e familiares, pela compreenso por muitos momentos de

    ausncia. A Deus, pela sade.

  • Existe em muita gente, penso eu, um desejo semelhante de no ter de comear, um desejo de se encontrar, logo de entrada, do outro lado do discurso, sem ter de considerar do exterior o que ele poderia ter de singular, de terrvel, talvez de malfico. A essa aspirao to comum, a instituio responde de modo irnico; pois que torna os comeos solenes, cerca-os de um crculo de ateno e de silncio, e lhes impe formas ritualizadas, como para sinaliz-los distncia. Michel Foucault

  • RESUMO

    A presente dissertao tem o objetivo de explicitar a formao

    discursiva de sujeitos surdos para compreender como eles re-significam

    suas identidades a partir da experincia de se defrontarem com outras

    formaes discursivas e como, desse confronto, o processo de produo de

    sentidos desencadeado. O material para anlise resulta de eventos de

    leitura em aulas de lngua estrangeira (LE) - Ingls, gravados em vdeo e

    transcritos e de um questionrio de identificao desses sujeitos e das

    condies de produo de seus dizeres. A hiptese direcionadora desse

    trabalho a de que, ao tratarmos as aulas de leitura em LE sob a

    perspectiva discursiva e ao permitirmos que os alunos surdos usem a

    LIBRAS para interpretarem os textos em Ingls, esses alunos podem se

    engajar numa posio em que tomam a palavra, produzindo sentidos e no

    assumindo uma postura meramente reprodutora frente aos textos lidos, o

    que pode contribuir para que esses sujeitos sofram deslocamentos em seu

    processo de Letramento.

    Para a fundamentao terica da pesquisa, recorreu-se aos

    conceitos da Anlise do Discurso de linha francesa, em que a leitura

    concebida como espao de produo de sentidos.

    Os resultados da anlise indicam que, dada a contingncia do surdo,

    no podemos idealizar a produo de sentidos em outras bases, seno via

    LIBRAS. A perspectiva discursiva de leitura coloca-se como espao para o

    surdo se constituir sujeito. na heterogeneidade do discurso que acontece

    a produo dos sentidos.

    PALAVRAS-CHAVE: 1- Anlise do Discurso 2- Surdo 3- Sujeito 4-

    Leitura 5- Sentidos 6- Lngua Estrangeira 7- LIBRAS (Lngua Brasileira de

    Sinais)

  • SUMMARY

    This research aimed, by explicitating the discursive formation of deaf

    students, at understanding how they (re)signified their identities. It was also

    its goal to verify how meaning was produced in foreign language reading

    classes.

    Data were collected by recording reading classes of English for a

    year. A questionnaire, meant to identify the conditions of production of

    discourse of these students, was also applied.

    The hypothesis that guided this research took into account that if

    reading classes were taught on a discursive perspective, allowing deaf

    students to use LIBRAS in order to interpretate the texts in English, they

    would take the word, producing meaning and not assuming the mere

    position of reproducing meanings already given in the text. This would also

    enable these students to improve their Literacy process.

    Theoretically based on the French approach of Discourse Analysis

    this research understood reading as a space of production of meaning in

    which the subject was seen as effect of language.

    Results have shown that the production of meaning of deaf students

    should not be idealized. By expressing their interpretation of texts through

    LIBRAS, the reading experience deaf students had let them produce

    meaning at the same time that they constituted themselves as subjects.

    KEY-WORDS: 1- Discourse Analysis 2- Deaf subject 3- Subject

    4- Reading 5- Meanings 6 Foreign Language 7 LIBRAS ( Brazilian

    Sign Language)

  • SUMRIO

    INTRODUO: Retratando o surdo entre crenas, incluso e perspectivas............................................................................................................10 CAPTULO 1: Sob a luz da teoria...........................................................................22

    1.1- Percurso terico das concepes de leitura....................................................22

    1.2- Anlise do Discurso- Trs fases... ..................................................................25

    1.3- A noo de sujeito-efeito ................................................................................29

    1.4- Leitura, um processo discursivo......................................................................36

    CAPTULO 2: O sentido, efeito das condies de produo..................................41

    2.1- Das condies de produo dos discursos e a memria discursiva do

    surdo.......................................................................................................................42

    2.2- Da constituio do sujeito e a produo de sentidos no ato de ler.................52

    2.2.1- Evento de leitura 1: In the year 2001.................................................54

    2.2.2- Evento de leitura 2: Were all created equal. After that, baby, youre on

    your own........................................................................................................64

    2.2.3- Evento de leitura 3: Footprints............................................................90

    CONSIDERAES FINAIS: O sujeito surdo, sentidos e deslocamentos...........104

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.....................................................................111

    ANEXOS...............................................................................................................114

  • LEGENDA

    P- Professor

    I- Intrprete

    A- Aluno ( A1 , A2, A3, A4, A5, A6, A7, A8 )

    AA- Comunicao de dois ou mais alunos, ao mesmo tempo

    { } Comentrios do Pesquisador

    / - Pausa breve na fala

    // - Pausa longa na fala

    (XXX) Seqncia incompreensvel na fala

    {...} Omisso de trechos

    X Omisso de nome prprio

    I (P) Fala do professor, interpretada pelo Intrprete em Lngua de Sinais

    I (A) Fala do aluno, interpretada pelo Intrprete de Lngua de Sinais

    { I / A } Comunicao do Intrprete / Aluno

  • INTRODUO

    Retratando o surdo entre crenas, incluso e perspectivas

    Assumimos o compromisso de ministrar aulas de Ingls para uma turma de

    deficientes auditivos da rede pblica em meio a certas crenas a respeito de suas

    limitaes para a leitura de textos.

    Essa situao deixou-nos intrigados, uma vez que apontava para a

    questo: Como podemos fomentar a leitura nessas aulas de lngua estrangeira1?

    Decidimos, ento, proceder a uma investigao que nos desse um feed-

    back sobre os papis que os surdos desempenham no processo de leitura em LE

    e como essa leitura se configura.

    Assim, o corpus deste estudo se constitui de eventos de leitura em aulas de

    LE, gravadas em vdeo e transcritas, e de respostas, de nossos sujeitos, ao

    questionrio de identificao das condies de produo de seus dizeres.

    O procedimento tcnico para a coleta de dados constou de observao de

    aulas, gravao de aulas em vdeo, entrevistas escritas e notas de campo. A

    transcrio dessas aulas seguiu o sistema ortogrfico, segundo a escrita-padro.

    Os sujeitos de pesquisa so oito alunos surdos, com idades entre 18 a 30

    anos, sendo que cinco deles so do sexo feminino e o restante, do sexo

    masculino, matriculados na primeira srie do ensino mdio, noturno, de uma

    escola pblica regular.

    vista disso, o procedimento metodolgico desse trabalho consistiu em

    promover o estudo das condies de produo da leitura em LE na perspectiva

    terica da Anlise do Discurso de linha francesa (AD), em consonncia com a

    1 Doravante trataremos lngua estrangeira por LE. Fizemos a opo pela terminologia Lngua Estrangeira ao invs de Segunda Lngua para no entrarmos na questo da relao do status do Portugus, como Lngua 2, para o surdo, uma vez que a Lngua Brasileira de Sinais (LIBRAS) se configura como a primeira lngua para o surdo.

  • hiptese que norteia essa dissertao. Por conseguinte, tambm sob esse vis

    que estamos tratando a anlise dos registros coletados na sala de aula.

    Portanto, esse trabalho demanda reflexes acerca do conceito de leitura,

    sujeito, formao discursiva, condies de produo, interdiscurso, memria

    discursiva e outros conceitos correlatos. Como tambm faz-se necessrio tecer

    consideraes sobre a surdez e a educao de surdos, com o objetivo de

    reconhecer o nosso sujeito de pesquisa nesse contexto.

    Os nossos sujeitos de pesquisa sero aqui chamados de A1, A2, A3, A4,

    A5, A6, A7 e A8, como tambm o Professor ser identificado pela inicial P e o

    Intrprete em Lngua de Sinais, que acompanhou todos os momentos da nossa

    pesquisa, ser identificado por I, conforme especificado no incio desse trabalho,

    por meio de legenda.

    Atualmente, h uma tendncia de pesquisa na rea de

    ensino/aprendizagem de lnguas no para a sala de aula, mas na sala de aula,

    conduzida por professores em suas prprias prticas. Essa pesquisa em sala de

    aula de lnguas ligada ao movimento do professor-pesquisador est relacionada

    com a pesquisa qualitativa etnogrfica, em que se prioriza a observao da

    natureza da interao na sala de aula, como espao de aprendizagem. A esse

    respeito, Moita Lopes (1996, p.88) afirma:

    Basicamente, tem havido um interesse pelo estudo dos processos sociointeracionais enquanto elementos geradores da construo do conhecimento, isto , da cognio. Esse interesse pelo estudo da interao em contexto de aprendizagem ou no contexto de ao da sala de aula de lnguas parte de um interesse mais amplo em vrias reas de investigao (anlise do discurso, estudos cognitivos, educacionais, etc.) pela questo da interao, baseando-se na premissa de que o significado, a compreenso e aprendizagem devem ser definidos em relao a contextos de ao(...) onde atores reais interagem na construo do significado, do conhecimento e da aprendizagem, ou seja, tanto a aprendizagem quanto o significado so definidos como formas de co-participao social.

    Moita Lopes (1996, p.89) destaca os aspectos positivos desse tipo de

    pesquisa:

    ...gostaria de lembrar que talvez a grande tendncia da pesquisa em sala de aula de lnguas hoje esteja relacionada ao chamado movimento

  • do professor-pesquisador em que o professor deixa seu papel de cliente/consumidor de pesquisa, realizada por pesquisadores externos, para assumir o papel de pesquisador envolvido com a investigao crtica de sua prpria prtica...

    Essa pesquisa em sala de aula de lnguas difere de outras metodologias de

    pesquisa, uma vez que situa o professor como o pesquisador, que se abstrai da

    condio de consumidor de pesquisa para a condio de meditador crtico da sua

    prpria prtica de sala de aula.

    Para autores que concebem este tipo de pesquisa, como o caso de Moita

    Lopes, h fatores importantes que contribuem para essa perspectiva de

    investigao ganhar espao nos estudos da rea, a saber: uma forma

    privilegiada de conceber o conhecimento sobre a sala de aula, em funo de uma

    percepo interna que o professor tem do processo, e como uma forma de avano

    educacional, uma vez que o professor se envolve nessa reflexo crtica do seu

    trabalho.

    Trazemos mais uma vez as colocaes de Moita Lopes (1996, p.13) em

    relao ao papel de observador crtico do professor-pesquisador, ante a sua

    prtica, torn-lo mais perspicaz sobre os processos nos quais est envolvido em

    sala de aula de modo que possa submeter sua prtica a uma crtica constante, e

    gerar progresso educacional, baseado em pesquisa conduzida por ele prprio em

    sala de aula.

    Nosso trabalho se enquadra, portanto, nesta perspectiva de pesquisa-ao,

    pois somos a professora e pesquisadora de nossa prpria prtica.

    Isto posto, achamos conveniente, agora, tecermos algumas consideraes

    preliminares sobre a surdez e a educao do surdo, com o objetivo de situar

    nosso sujeito de pesquisa nesse contexto.

    Segundo Fernandes (1990, p.26), a Sociedade Otolgica Americana

    aprovou, em 1940, que, surdo o indivduo cuja audio no funcional na vida

    comum; hipoacstico (hard of hearing) aquele cuja audio, ainda que

    deficiente, funcional com ou sem prtese auditiva.

  • As perdas auditivas podem ser congnitas ou adquiridas. Estas ltimas

    ocorrem por causas patolgicas como: meningite, ictercia, vrios outros

    processos infecciosos durante a infncia, viroses, otites, intoxicaes

    medicamentosas e outros; ou ainda por traumatismos, como exposio contnua a

    rudos acima de 80 dB2. As perdas congnitas podem ter origem hereditria ou

    durante o processo de gestao. No Brasil, cerca de 20% dos casos de deficincia

    auditiva grave so causados por rubola durante a gestao.

    Os graus de perda auditiva, segundo classificao da ISO (International

    Standars Organization), em 1964, so os seguintes:

    limites normais 10 a 26 dB perda leve 26 a 40 dB perda moderada 41 a 55 dB perda moderadamente severa 56 a 70 dB perda severa 71 a 90 dB perda profunda acima de 90 dB A histria da educao do surdo datada de cerca de 400 anos, sendo que

    nos seus primrdios, havia pouca compreenso da psicologia do problema e os

    indivduos deficientes eram isolados. A surdez e a conseqente mudez

    confundiam-se com uma inferioridade de inteligncia.

    Os primeiros educadores de surdos na Europa, no sculo XVI, criaram

    diferentes metodologias de ensino, que faziam uso da lngua auditiva-oral nativa,

    lngua de sinais, datilologia (representao manual do alfabeto) e outros cdigos

    visuais, podendo-se, ou no, associar estes diferentes meios de comunicao.

    A literatura registra que, no sculo XVIII, o Abade de lEpe, fundador da

    primeira escola pblica para surdos no mundo, j reconhecia a importncia da 2 . Decibel- Unidade adimensional us. para exprimir a razo de duas potncias, igual a 1/10 do bel, correspondendo, pois, a 10 vezes o logaritmo decimal da razo das potncias [smb.: dB ] . (Aurlio eletrnico)

  • Lngua de Sinais Francesa na educao de surdos.

    Porm, o oralismo3 comeou a ganhar fora a partir da segunda metade do

    sculo XIX, em detrimento da lngua de sinais, que acabou sendo proibida. A

    filosofia oralista baseia-se na crena de que a modalidade oral da lngua a nica

    forma desejvel de comunicao para o surdo, e que qualquer forma de

    gesticulao deve ser evitada.

    No sculo XX, nos anos 60, a lngua de sinais ressurgia, associada forma

    oral, com o aparecimento de novas correntes, como a Comunicao Total, que

    defende a utilizao de todos os recursos lingsticos, orais ou visuais,

    simultaneamente, privilegiando a comunicao, e no apenas a lngua.

    Baseado em concepes sociolgicas, filosficas e polticas surge, no final

    da dcada de 70, a Proposta Bilnge de Educao do Surdo. Nessa perspectiva,

    acreditava-se que o surdo deveria adquirir a lngua de sinais como lngua materna,

    com a qual poderia desenvolver-se e comunicar-se com a comunidade de surdos,

    e fazer uso da lngua oficial de seu pas como segunda lngua.

    Nesse perodo, tiveram incio estudos lingsticos sobre as lnguas de

    sinais, especificamente a Lngua Americana de Sinais. As primeiras pesquisas

    foram realizadas no incio dos anos 60 e tiveram como objetivo mostrar que os

    sinais podiam ser vistos como mais do que gestos holsticos aos quais faltava uma

    estrutura interna. Houve uma investigao da formao do sinal, que se definiu

    por trs parmetros realizados simultaneamente na formao de um sinal

    particular: configurao das mos, localizao e movimento. Um quarto

    parmetro, orientao, que se refere orientao das palmas das mos, foi

    acrescentado. Estudos posteriores incluram traos no-manuais, como expresso

    facial, movimentos da boca, direo do olhar, como distintivos na Lngua

    Americana de Sinais.

    A anlise das propriedades formais da Lngua Americana de Sinais revelou

    que ela apresenta organizao formal nos mesmos nveis encontrados nas lnguas

    3 Metodologia de educao para surdo, que privilegia a aquisio e desenvolvimento da fala, no sendo permitido o uso da Lngua de Sinais.

  • faladas, incluindo um nvel sub lexical de estruturao interna do sinal (anloga ao

    nvel fonolgico das lnguas orais) e um nvel gramatical, que especifica os modos

    como os sinais devem se combinar para formar frases e sentenas. Outros

    estudos seguiram tendo como objeto as Lnguas de Sinais usadas pelas

    comunidades surdas em diferentes pases.

    No Brasil, a educao dos surdos teve incio durante o segundo imprio,

    com a chegada do educador francs Hernest Huet. Em 1857, foi fundado o

    Instituto Nacional de Surdos-Mudos, atual Instituto Nacional de Educao dos

    Surdos (INES), que, inicialmente, utilizava a lngua de sinais, mas, em 1911,

    passou a adotar o oralismo puro. Na dcada de 70, com a visita de Ivete

    Vasconcelos, educadora de surdos da Universidade Gallaudet, chegou ao Brasil a

    filosofia da Comunicao Total. O Bilingismo passou a ser difundido, somente na

    dcada seguinte, a partir das pesquisas sobre a Lngua Brasileira de Sinas

    (LIBRAS) realizadas pelas professoras Lucinda Ferreira Brito e Eullia Fernandes.

    A LIBRAS , basicamente, produzida com as mos, embora movimentos do

    corpo e da face tambm desempenhem diferentes funes. Por ser uma lngua de

    modalidade gestual-visual, a LIBRAS faz uso de movimentos gestuais e

    expresses faciais que so percebidos pela viso. Como ocorre com outras

    lnguas de sinais, a LIBRAS apresenta regras que especificam combinaes

    possveis e no possveis, entre os parmetros de configurao de mo,

    movimento, localizao e orientao das palmas das mos na formao dos

    sinais, sendo que duas condies tm que ser cumpridas: a condio de simetria

    e a de dominncia.

    A condio de simetria estabelece que, caso as duas mos se movam na

    produo de um sinal, ambas devem ter a mesma configurao, a localizao

    deve ser a mesma ou simtrica e o movimento deve ser simultneo ou alternado.

    Na condio de dominncia, se as configuraes das mos forem diferentes,

    apenas uma das mos, a ativa, se move,enquanto a outra serve de apoio.

    Como ocorre tambm com as outras lnguas de sinais, na LIBRAS, o

    espao e as dimenses so usados tanto para a constituio de seu sistema

  • fonolgico, como tambm o morfolgico, sinttico e semntico.

    Podemos afirmar que, atualmente, estas trs filosofias educacionais ainda

    persistem paralelamente no Brasil, fato que nos leva a inferir que a educao do

    surdo no inconteste, como tambm a poltica educacional de incluso de

    portadores de necessidades educacionais especiais tem sido contestada, em

    virtude da forma como vem sendo implantada.

    A partir da Declarao de Salamanca4, a grande maioria dos pases do

    mundo comeou a estabelecer polticas de incluso dos alunos com dficits de

    toda ordem, permanentes ou temporrios, mais graves ou menos severos, no

    ensino regular.

    O Brasil, mesmo no sendo signatrio da referida Declarao, tem

    procurado adot-la sob a alegao de que a incluso a forma mais democrtica

    para a efetiva ampliao de oportunidades educacionais para essa minoria, como

    pode ser verificado nos vrios documentos oficiais em relao educao

    especial.

    Essa posio inclusiva baseia-se em dois fatores: a perspectiva poltica da

    construo de um sistema escolar de qualidade para todos e a constatao de

    que qualquer pessoa possui caractersticas, interesses, habilidades e

    necessidades nicas e que, portanto, a escola precisa se adequar a ela.

    Assim, a escola regular, que possui a orientao nesses moldes, constituiria

    o meio mais eficaz de combater atitudes discriminatrias, a partir da ao de

    acomodar todas as pessoas, independentemente de suas condies fsicas,

    intelectuais, sociais, emocionais, lingsticas, ou outras.

    Existe um consenso emergente de que os programas educacionais devem

    desenvolver pedagogias direcionadas a atender as necessidades individuais,

    levando em conta a vasta diversidade dos sujeitos.

    4 A Declarao de Salamanca aconteceu no momento histrico da Educao Bilinge e teve como seu escopo a Conferncia Mundial sobre Educao para Todos, realizada em 1990, cuja idia de eqidade de oportunidades est presente nos documentos emanados do MEC relativos Educao Especial.

  • Em relao educao do surdo, entretanto, a Declarao de Salamanca

    parece reconhecer a necessidade de escolarizao especial, na medida em que

    recomenda o reconhecimento da importncia da LIBRAS como meio de

    comunicao entre os surdos, mas o que tem ocorrido, muitas vezes, uma m

    interpretao e aplicao dessa poltica, e, em muitas escolas, o surdo

    simplesmente includo em uma sala regular, sem qualquer critrio que possibilite

    o atendimento especial que a sua diferena exige.

    Nesse sentido, cabe-nos refletir se essa poltica, que pretende exercer uma

    ao contra a discriminao, tem conseguido esse resultado apesar da atual

    conjuntura da maioria das escolas, que, a nosso ver, no d conta do

    cumprimento desse papel.

    Mesmo no sendo o objetivo desse trabalho, no podemos isentar-nos

    diante da polmica5 que o tema incluso tem gerado. A nossa experincia de sala

    de aula com surdo, advinda principalmente da coleta de dados dessa pesquisa,

    nos leva a romper com o processo de incluso nos moldes apresentados pelos

    documentos oficiais que regem a educao especial.

    Percebemos que a poltica da educao inclusiva tem, muitas vezes,

    provocado um reverso nos objetivos da incluso; ao invs de incluir, est

    excluindo, ora o grupo portador de surdez, ora, o outro grupo de ouvintes.

    Temos a convico de que o surdo, para ser bem atendido, precisa estar

    em uma sala, destinada s a alunos surdos, em que o nmero de alunos seja

    reduzido, as adequaes curriculares sejam possveis e o tempo para realizao

    das atividades de sala de aula seja flexvel, de acordo com a necessidade desse

    aluno.

    A questo da incluso ser retomada no segundo captulo deste trabalho,

    em que ser feita a anlise das respostas de nossos sujeitos ao questionrio

    aplicado. Entretanto, achamos importante, desde j, assinalarmos que a sala de

    aula do sujeito de nossa pesquisa no se enquadra nessa poltica inclusiva, uma

    5 O tema incluso tem sido discutido com veemncia, sem se chegar a um consenso sobre os aspectos positivos e/ou negativos dessa poltica educacional.

  • vez que uma sala de aula s para surdos, fato que teve as suas implicaes

    para o desenvolvimento de nossos trabalhos.

    O exame que fizemos sobre a surdez e a educao do surdo fundamenta a

    conjectura que se criou, de que o surdo no seja um leitor proficiente. Essa crena

    parece decorrer, principalmente, da concepo de leitura que privilegia a

    compreenso dos vocbulos isolados, como pr-requisito para a compreenso do

    texto.

    A surdez uma deficincia, que traz conseqncias extraordinrias no que

    diz respeito ao desenvolvimento emocional, social e educacional do surdo.

    Um exemplo disso a relao conflituosa desse sujeito com a leitura, em

    que fica explcita a sua dificuldade com as abstraes e generalizaes da

    linguagem escrita, o que resulta, muitas vezes, em instituio de crenas a

    respeito da leitura do surdo.

    Acredita-se que a falta da capacidade de deduo do surdo est

    relacionada com determinadas regies enceflicas, encarregadas de funes

    psicolingsticas. A surdez bloqueia o desenvolvimento da linguagem e,

    conseqentemente, limita os processos verbais da mente6.

    Deste modo, natural que o surdo se comporte, no processo de leitura, de

    acordo com os parmetros de um deficiente auditivo. O que pode fazer a

    diferena e romper com a crena de que o surdo seja um mau leitor a mudana

    das variveis do ensino de leitura em LE. Nessa nova configurao a leitura se

    apresenta como espao para o surdo se constituir, levando em conta o aspecto

    discursivo da exterioridade, que constitui tanto a lngua como o sujeito que nela

    tambm se constitui.

    Acreditamos que, se mudarmos as variveis e convertermos as aulas de

    leitura em espaos para o surdo se posicionar e produzir sentidos, ele poder

    sofrer deslocamentos no seu processo de Letramento7. Em decurso dessa viso,

    a leitura se mostra como um processo de produo de sentidos em que, em ltima 6 Para um aprofundamento nessas questes, ver Fernandes (1990). 7 Gee (1990) define Letramento como domnio de, ou o controle fluente de um discurso secundrio.

  • instncia, permitir que o surdo produza seu texto.

    O surdo tem uma peculiaridade de ordem patolgica, falta-lhe a audio e,

    conseqentemente, preciso assumir que esse fato impe limitaes aos alunos

    surdos. Nesse caso, diramos que o seu processo de produo de sentidos e a

    sua relao com a linguagem escrita devem sofrer as implicaes ligadas a essa

    impossibilidade.

    Entendemos que preciso criar condies, em sala de aula, para o surdo

    usar a LIBRAS como instrumento de comunicao e como mediadora do seu

    processo de produo de sentidos, pois esse o meio pelo qual ele se constitui

    como sujeito, que toma a palavra e significa.

    Com base no reconhecimento das necessidades educacionais especiais do

    surdo, acreditamos que a atividade pedaggica de sala de aula deve ser

    adaptada, resguardando o carter flexvel e dinmico, convergente com as

    condies do aluno, e a correspondncia com a finalidade da educao, na

    dialtica ensino e aprendizagem.

    O surdo no pode ser visto como algum incapaz ou menos capacitado

    para atividades intelectuais, mas, como algum diferente. E, isso demanda

    considerar a diferena, como ponto de partida, para as decises pedaggicas de

    sala de aula.

    Devemos dizer que a conjuntura pedaggica que envolve as aulas de

    leitura em LE para essa turma de surdos leva em conta as consideraes

    discutidas aqui e, portanto, apresenta um cenrio de mudana de variveis, na

    abordagem do texto em ingls.

    Enfim, esta dissertao parte do pressuposto de que a adoo da

    perspectiva discursiva de leitura em LE pode contribuir para que os alunos surdos

    sofram deslocamentos em seu processo de Letramento. Isto porque essa

    concepo possibilita colocar os alunos surdos numa perspectiva em que, ao

    tomar a palavra, valendo-se para isso da LIBRAS, esses alunos tm as condies

    necessrias para produzirem os seus textos ao entrarem em contato com textos

  • em LE, caracterstica prpria de uma abordagem discursiva de leitura8.

    Essa hiptese leva-nos a buscar em nossa pesquisa respostas para as

    seguintes perguntas:

    Qual o papel da LIBRAS na interlocuo com a outra lngua? Como o surdo produz sentidos nesta perspectiva de leitura? Em que medida os discursos via texto em LE atravessam o imaginrio

    discursivo do sujeito surdo e quais as implicaes disso no seu processo de

    Letramento?

    Em termos gerais, esta pesquisa tem por objetivo:

    Contribuir para a construo do saber cientfico em torno da sala de aula de alunos surdos.

    Estreitar as relaes entre a pesquisa em Lingstica Aplicada e a sala de aula, na medida em que se pretende criar oportunidades de discusso e promover

    a troca de experincias entre pesquisados e professores da educao especial, j

    que estes esto diretamente implicados na formao inicial daqueles.

    E, de modo especfico, pretende-se:

    Explicitar a formao discursiva de sujeitos surdos, a partir da interao com eventos de leitura em LE, para compreender como eles re-significam suas

    identidades a partir da experincia de produzir sentidos ao texto.

    Problematizar a crena de que o surdo seja um mau leitor. Este trabalho est estruturado em dois captulos. No primeiro, discutimos os

    pressupostos tericos que fundamentam a nossa anlise. No segundo, tratamos

    da anlise dos dados.

    A anlise ocorre em duas etapas. Inicialmente, analisamos a materialidade

    lingstica que constitui as respostas de nossos sujeitos ao questionrio sobre

    seus histricos de vida. Achamos importante resgatarmos as condies de

    8 Tratarems disso ao longo da discusso terica.

  • produo dos discursos e a memria discursiva desses sujeitos antes de

    tratarmos da anlise dos eventos de leitura.

    No segundo momento, analisamos como nossos sujeitos se constituem a

    partir do contato/confronto com o texto em LE, como os sentidos so produzidos e

    quais os efeitos de sentido que esses eventos provocam, enquanto

    desencadeadores de vozes.

    Conclumos este trabalho com algumas consideraes finais, em que

    retomamos os aspectos mais relevantes dos resultados da anlise do corpus de

    nossa pesquisa.

    Esta dissertao no se prope a apresentar receitas prontas para a

    educao do surdo, dado que o processo de leitura e a produo de sentidos

    envolvem fatores de mltiplas ordens. Mais especificamente, tratamos de

    possibilidades de leitura em LE sob uma concepo em que os surdos tomam a

    palavra e se constituem. Essa a nossa perspectiva.

  • CAPTULO I

    Sob a luz da teoria

    Nesta etapa de nossa dissertao, discutimos os elementos tericos que

    embasaro a nossa anlise.

    Como vimos argumentando, trabalhamos com a hiptese de que, ao

    tratarmos as aulas de leitura em LE sob a perspectiva discursiva e ao permitirmos

    que os alunos surdos usem a LIBRAS para interpretarem os textos em ingls,

    esses alunos podem se engajar numa posio em que tomam a palavra,

    produzindo sentidos e no assumindo uma postura meramente reprodutora frente

    aos textos lidos.

    Em funo disso, inicialmente, apresentamos um panorama de estudos

    sobre leitura em LE para mostrar que essas concepes no problematizam a

    questo do sentido.

    1.1- Percurso terico das concepes de leitura

    Devemos dizer que no objetivo desta dissertao tecer um panorama

    exaustivo, a respeito de estudos sobre a leitura. Pretendemos esboar

    consideraes abrangentes, suficientes para situar a problemtica da leitura,

    quando se opera com a concepo de que o texto contm um sentido necessrio

    e intrnseco.

    Carrell (1995, p.1-2) afirma, as teorias iniciais sobre leitura em segunda

    lngua, especificamente sobre leitura em ingls como segunda lngua, supunham

    uma viso bastante passiva e ascendente da leitura em segunda lngua: isto , a

  • leitura era abordada fundamentalmente como um processo de decodificao.9

    Essa concepo v a leitura como um processo de decodificao de letras

    em sons e a associao destes ao significado. A tarefa bsica do leitor deve ser

    apreender o significado dado, decodificando-o. Nessa perspectiva, possvel dizer

    que esse conceito de leitura tem suas bases na concepo estruturalista da

    linguagem, em que ler significa decifrar os cdigos da lngua.

    Esse tipo de processamento textual, com nfase no resgate do significado a

    partir das menores unidades lingsticas, conhecido como processamento

    ascendente ou bottom-up, isto , o processamento, pelo qual o leitor parte dos

    elementos lingsticos do texto e procede, linearmente, em direo ao significado.

    Sob a influncia da psicologia cognitiva, as teorias sobre leitura passam a

    dar nfase aos processos mentais durante o ato de ler, em que o leitor ativo no

    ato de interpretao. A leitura, nas palavras de Goodman (1995, p.12):

    um processo psicolingstico, pois comea com uma representao lingstica de superfcie codificada por um autor e termina com o sentido construdo pelo leitor. H, portanto uma interao fundamental entre linguagem e pensamento no ato de ler. O autor codifica o pensamento em linguagem e o leitor decodifica a linguagem em pensamento. 10

    Na perspectiva cognitiva de leitura, o leitor eficiente deve minimizar a sua

    dependncia em relao informao grfica, formulando as suas hipteses a

    respeito do significado do texto, confirmando-as a partir das amostras textuais.

    Esse processamento textual conhecido como processamento descendente, ou

    top-down, em que o sentido construdo a partir do conhecimento de mundo do

    leitor e no apenas dos grafismos do texto. O leitor tem armazenadas, em sua

    mente, as estruturas de conhecimento abstrato e pode ativ-las durante a leitura,

    portanto, a leitura se configura na interao entre o conhecimento de mundo do

    leitor e a informao contida no texto. 9 Nossa traduo do original em Ingls: Early work in second language reading, specifically in reading in English as a second language, assumed a rather passive, bottom-up, view of second language reading; that is, it was viewed primarily as a decoding process {...}. 10 Nossa traduo do original em Ingls: It is a psycholinguistic process in that it starts with a linguistic surface representation encoded by a writer and ends with meaning which the reader constructs. There is an essencial interaction between language and thought in reading. The writer encodes thought as language and the reader decodes language to thought.

  • Logo, uma tentativa de colocar os dois nveis de leitura juntos, bottom-up

    e top-down, faz surgir a abordagem interativa de leitura. Um modelo interativo

    aquele que consegue integrar o processamento de decodificao linear dos

    menores itens lingsticos do texto ao processamento que se refere construo

    de sentido textual, a partir do conhecimento prvio do leitor, em que ambos

    exercem entre si uma influncia recproca.

    Kato (2000, p.72) aborda, ainda, um outro significado para a expresso

    leitura, como processo interativo, este modelo v o ato de ler como uma

    interao do leitor com o prprio autor, em que o texto apenas fornece as pegadas

    das intenes deste ltimo.

    Nessa concepo, a leitura adequada seria aquela em que o leitor

    consegue captar as intenes do autor, fazendo uso de seu conhecimento de

    mundo e de pistas lingsticas, fornecidas pelo texto.

    Portanto, o significado o resultado do encontro entre leitor, texto e autor,

    em que esse leitor encarado como participante cooperativo, de um ato de

    comunicao que ora recupera, ora capta o significado posto no texto.

    inegvel a importncia dessas abordagens de leitura, em seu tempo, para

    o processo de ensino/aprendizagem de lnguas, assim como inquestionvel sua

    contribuio para a Lingstica Aplicada.

    Entretanto, abordar a leitura como processo de recuperao das intenes

    do autor parece um tanto simples, como se houvesse uma cadeia homognea de

    autor/texto/leitor, em que o autor usasse a escritura (texto) como suporte de

    significao de suas intenes, e o leitor fizesse o resgate. Ora, isso implica no

    se considerar a exterioridade scio-histrica, que determina os dizeres e

    pressupem sujeitos centrados, que tm controle consciente de seus dizeres.

    No podemos nos iludir a respeito da conscincia do sujeito, tampouco

    acreditar que o texto tem uma significao intrnseca.

    A nosso ver, o aspecto discursivo da linguagem tem que ser levado em

    conta, uma vez que constitui tanto a lngua como o sujeito, que tambm se

  • constitui nela. Nesta perspectiva, seria possvel dizer que a leitura o estopim

    para gerar situaes e conflitos que fogem ao domnio dos sujeitos.

    Interessa-nos, nesse trabalho, justamente analisar o momento conflituoso

    da leitura, em que o sujeito-leitor, no caso o surdo, vai se defrontar com outras

    formaes discursivas e, desse confronto, o processo de produo de sentidos

    desencadeado. O sujeito entra em um jogo discursivo na rede histrica de

    constituio do sentido e coloca em xeque a idia de que o texto possuiria um

    significado intrnseco e necessrio.

    Tendo em vista esse quadro, entendemos que os eventos de leitura que

    pretendemos analisar representam um rompimento com as concepes que no

    consideram esse aspecto.

    Feitas estas colocaes, achamos elucidativo fazermos um breve relato

    sobre o percurso da Anlise do Discurso de linha francesa (AD) e os conceitos

    correlatos, de modo a ressaltar os aspectos pertinentes questo da leitura na

    perspectiva discursiva.

    1.2- Anlise do Discurso- Trs fases

    A teoria da AD de Michel Pcheux passou por trs fases. A primeira fase se

    caracterizaria por uma posio estruturalista a partir de duas noes bsicas: o

    sujeito-estrutura, que determina os sujeitos como produtores de seus discursos,

    e a distino entre dois nveis: base lingstica e processos discursivos. Nas

    palavras do filsofo Pcheux (1990, p.13):

    - Um processo de produo discursiva concebido como uma mquina autodeterminada e fechada sobre si mesma, de tal modo que um sujeito-estrutura determina os sujeitos como produtores de seus discursos: os sujeitos acreditam que utilizam seus discursos quando na verdade so seus servos assujeitados, seus suportes.

    - Uma lngua natural (no sentido lingstico da expresso) constitui a base invariante sobre a qual se desdobra uma multiplicidade heterognea de processos discursivos justapostos.

  • Essa explorao metodolgica da noo de mquina discursiva estrutural

    concebe a produo discursiva de forma que os sujeitos se acreditam produtores

    de seus discursos, quando, na verdade, so apenas assujeitados. Da mesma

    forma, o conceito de lngua natural concebido como a base invariante, que

    recebe os desdobramentos discursivos.

    Presumia-se, com essa concepo, a existncia de discursos homogneos

    sem considerar qualquer forma de heterogeneidade11.

    Todavia, esta fase apresenta aspectos positivos, uma vez que consistia em

    uma tentativa de se proceder a uma anlise no subjetiva dos efeitos de sentido,

    em que j no se tinha a iluso de o sujeito ser a origem do sentido12. Outro

    aspecto seria o rompimento com uma concepo reducionista da linguagem. A

    linguagem passa a ser vista como atravessada pela ideologia e irredutvel a uma

    ou a outra. Um ltimo aspecto a elaborao do conceito do discurso, em relao

    aos mltiplos sentidos. Um discurso vai remeter a outro discurso, que remete a

    vrios outros, sendo invivel a determinao da origem desse discurso.

    Nas palavras de Pcheux (1990, p.77), um discurso sempre pronunciado

    a partir de condies de produo dadas.

    Essas postulaes tm uma implicao para a anlise dos eventos de

    leitura, na medida em que colocam o texto no como uma seqncia lingstica

    fechada sobre si, mas como um conjunto de discursos possveis a partir de suas

    condies de produo. Os sentidos sero resultado da relao de foras

    existentes entre elementos, tais como: quem o sujeito produtor de sentidos, de

    onde ele vem, qual a posio que ele ocupa etc.

    Mas, falta nesta fase uma reflexo sobre a noo de sujeito que, embora

    entendido como assujeitado, ainda no concebido como sujeito constitudo na

    alteridade.

    Na segunda fase da AD, h um deslocamento terico resultado da

    11 Mais adiante, retomamos a noo de heterogeneidade por meio dos conceitos de interdiscurso, intradiscurso e alteridade. 12 Pcheux postula sua reflexo a respeito da noo de sujeito e linguagem.

  • necessidade de postular as noes de interdiscurso, formao discursiva e

    relaes entre processos discursivos.

    Uma das contribuies importantes de Foucault (1987, p.43) para a AD o

    conceito de formao discursiva (FD), um conjunto de regras annimas,

    histricas, sempre determinadas no tempo e no espao, que definiram, em uma

    poca dada, e para uma rea social, econmica e geogrfica ou lingstica dada,

    as condies de exerccio da funo enunciativa.

    Esse conceito implica levar em conta a exterioridade das relaes

    discursivas. preciso repensar a noo da mquina estrutural fechada, pois no

    se pode falar de qualquer coisa em qualquer lugar.

    Pcheux se contrape a uma concepo idealista de linguagem, que

    entende o sujeito como fonte de seu sentido e toma por emprstimo o conceito

    althusseriano de interpelao ideolgica13 para aderir idia de que o sujeito se

    constitui no discurso, a partir da posio que ele ocupa e do lugar de onde ele fala.

    Esse locus caracterizado como uma FD, que determina o que pode e deve ser

    dito pelo sujeito, que por sua vez regulado por uma formao ideolgica,

    resultando em sujeitos que servem s regras das formaes discursiva e

    ideolgica.

    A noo de interdiscurso introduzida para caracterizar o exterior de uma

    formao discursiva, ou seja: o entrecruzamento de outros discursos. O nvel

    interdiscursivo compreende a dimenso vertical, no linear do dizer em relao

    rede de formaes discursivas em que ele se insere. Para se compreender esse

    nvel preciso considerar as noes de pr-construdo e a de articulao14.

    Pcheux (1990, p.314) conceitua interdiscurso:

    A noo de interdiscurso introduzida para designar o exterior especfico de uma FD enquanto este irrompe nesta FD para constitu-la em lugar de evidncia discursiva, submetida lei da repetio estrutural fechada: o fechamento da maquinaria pois conservado, ao mesmo tempo em que concebido ento como o resultado paradoxal da irrupo de um alm exterior e interior.

    13 Conceito apresentado por Althusser (1987) em sua obra: Aparelhos Ideolgicos do Estado. 14 Segundo Pcheux o pr-construdo corresponde ao sempre-j-a da interpelao ideolgica que impe um sentido e a articulao constitui o sujeito em sua relao com o sentido.

  • No entanto, a noo de sujeito permanece como efeito do assujeitamento

    maquinaria da FD com a qual ele se identifica. um sujeito que opera em dois

    nveis, chamados de esquecimento um e dois.

    Em um nvel inconsciente, ideolgico, o sujeito esquece, apaga qualquer

    elemento que se remeta ao exterior de sua FD, aceitando certa seqncia

    lingstica e recusando outra, a fim de produzir determinados sentidos.

    Em outro nvel, pr-consciente ou consciente, o sujeito controla o seu dizer,

    entre o que pode ser dito e o que no pode ser dito, dando ao sujeito essa iluso

    de que seu discurso reflete o conhecimento que tem da realidade, de que senhor

    de sua palavra, origem e fonte do sentido.

    Os dois nveis com que o sujeito do discurso opera (esquecimento um e

    dois) marcam o trao peculiar dessa fase da AD: a iluso de que o sujeito tem de

    ser o detentor de um sentido original.

    Mas a problemtica dos confrontos internos da FD faz surgir a questo da

    alteridade na identidade discursiva, colocando em causa o fechamento da noo

    de maquinaria discursiva estrutural.

    Na terceira fase da AD h um movimento em direo desconstruo15 da

    mquina estrutural e o sujeito passa a ser visto sob outra perspectiva. O sujeito se

    configura como o sujeito clivado, perpassado pelo outro. um sujeito cujo

    discurso lhe escapa, disperso, sujeito constitudo de mltiplas vozes. Essa

    articulao faz emergir o confronto de identidade/alteridade que vai colocar o

    sujeito como sendo efeito de linguagem, no no interior de uma fala homognea,

    mas na diversidade de uma fala heterognea, que conseqncia de um sujeito

    da contradio.

    15 Termo utilizado no sentido literal e no no sentido derrideano.

  • 1.3- A noo de sujeito-efeito

    Authier-Revuz, baseando-se em posicionamentos tericos desenvolvidos

    por Pcheux, em torno da elaborao da noo de interdiscurso, distingue duas

    concepes de sujeito. Tomando as palavras de Authier-Revuz (1998, p.16):

    A considerao dos fatos metaenunciativos, com o que eles implicam na auto-representao do dizer, e portanto no distanciamento interno em uma enunciao desdobrada por seu prprio reflexo, coloca de modo especificamente agudo a questo da escolha dos exteriores tericos, relativos questo do sujeito e de sua relao com a linguagem, nos quais se apia a descrio: a linha de fratura fundamental que passa entre o sujeito-origem - o da psicologia e das suas variantes neuronais ou sociais e o sujeito-efeito aquele assujeitado ao insconsciente, da psicanlise, ou o das teorias do discurso que postulam a determinao histrica em um sentido no individual... (grifos da autora)

    No nos interessa, nesse trabalho, a primeira concepo de sujeito,

    sujeito-origem, por no compartilharmos da idia de termos um sujeito que

    fonte intencional do sentido, que se expressa pela lngua compreendida como

    instrumento de comunicao.

    Filiamo-nos segunda abordagem, sujeito-efeito de linguagem, que se

    insere no conceito de subjetividade da AD, a quem a noo de interdiscurso

    enquanto lugar de constituio de um sentido nos remete. Esse sujeito clivado

    pelo inconsciente no se configura completo, acabado, mas anseia pela

    completude, marcado pelo desejo de ser inteiro. E justamente a emergncia

    desse carter de sujeito da contradio que pretendemos perceber em nossos

    sujeitos de pesquisa, durante os eventos de leitura em LE.

    A materialidade discursiva produzida por nossos sujeitos ser analisada

    considerando os dois nveis do discurso: interdiscurso, j mencionado

    anteriormente, e intradiscurso.

    Segundo Orlandi (1999, p.82-83):

    Na anlise de discurso, h noes que encampam o no-dizer: a noo de interdiscurso, a de ideologia, a de formao discursiva. Consideramos que h sempre no dizer um no-dizer necessrio. Quando se diz x, o no-dito y permanece como uma relao de sentido que informa o dizer

  • de x. Isto , uma formao discursiva pressupe uma outra: terra significa pela sua diferena com Terra, como coragem significa pela sua relao com sem medo etc. Alm disso, o que j foi dito mas j foi esquecido tem um efeito sobre o dizer que se atualiza em uma formulao. Em outras palavras, o interdiscurso determina o intradiscurso: o dizer (presentificado) se sustenta na memria (ausncia) discursiva.

    As noes de interdiscurso e intradiscurso so de extrema importncia para

    a anlise de nosso corpus, uma vez que nos permitiro reconhecer as outras

    vozes, o discurso do outro, o confronto de FDs de nossos sujeitos, que ora se

    afirmam surdos, ora negam a sua surdez, constitudos que so por diversas FDs.

    O nvel intradiscurso compreende a dimenso linear da linguagem. A

    articulao que se d nesse nvel no se reduz ao consciente, ou seja, s relaes

    de causa, de concesso, de ligao temporal, dentre outras. O intradiscurso est

    associado ao lugar de manifestao do imaginrio16.

    Ento, podemos dizer que a leitura em LE desencadeia a emergncia de

    processos identitrios, que constituem nossos sujeitos de pesquisa. Isso nos

    impulsiona a repensar o conceito tradicional de identidade17, que no suficiente

    para abarcar as questes que emergem sobre a subjetividade.

    Signorini (2001, p.9) apresenta a necessidade de questionar a noo de

    identidade:

    Apoiado no princpio derrideano da no saturao de contextos, articulado ao da disperso ilimitada do significante lingstico, bem como no exame de estudos sobre [...] linguagem de sinais, o autor prope uma inverso na conceituao tradicional da identidade: no lugar de um todo estvel e homogneo, teramos processos proteiformes em permanente estado de fluxo.

    Esse posicionamento vem ao encontro de nossas expectativas, uma vez

    que trabalhamos com a concepo de um sujeito que ocupa posies e sofre

    deslocamentos diante das tenses geradas pela instaurao do processo de

    16 Conceito elaborado por Pcheux. 17 Conceito tradicional de identidade colocado como totalidade homognea, estvel e incorruptvel, por um lado e completamente acessvel ao sujeito cognoscente, pelo outro.

  • leitura em LE. Buscamos as palavras de Rajagopalan ( 2001, p.42)18:

    A identidade de um indivduo se constri na lngua e atravs dela. Isso significa que o indivduo no tem uma identidade fixa anterior e fora da lngua. Alm disso, a construo da identidade de um indivduo na lngua e atravs dela depende do fato de a prpria lngua em si ser uma atividade em evoluo e vice-versa. Em outras palavras, as identidades da lngua e do indivduo tm implicaes mtuas. Isso por sua vez significa que as identidades em questo esto sempre num estado de fluxo.

    Portanto, ao acatarmos a idia de que o surdo se constitui sujeito do

    discurso19 ao se colocar em contato com o texto em LE, em que ele toma a

    palavra e significa, para isso, usando a LIBRAS, precisamos operar com o

    conceito de identificao, que permite trabalhar com os efeitos da relao do

    sujeito com segundas lnguas.

    Parafraseando Souza (1994), cada sujeito adquire no a sua unidade, mas

    sua singularidade, assegurando, assim, o carter dinmico, que a identidade por si

    s no teria. A identificao estabelece relao com o dizer, enquanto a

    identidade refere-se ao ser.

    Pensando em termos de processos de identificao, diramos que a noo

    de posio do sujeito e a sua histria de vida sero determinantes neste processo,

    visto que esses elementos permitem ao ser responder para si a questo: quem

    sou eu?.

    Nesse processo de identificao, devemos considerar a relao intrnseca

    entre o sujeito e os sentidos, em que um se constitui medida que constitui o

    outro.

    Nas palavras de Orlandi (2001, p.205), os sentidos no so algo que se d

    independente do sujeito. Ao significar, nos significamos. Sujeito e sentido se

    configuram ao mesmo tempo e nisto que consistem os processos de

    identificao. Os mecanismos de produo de sentidos so tambm os

    18 Traduo de Almiro Pisetta, in Signorini (org.) (2001) 19 O sujeito do discurso trabalha com a noo de elo social da lngua com o sujeito. Todo discurso, potencialmente, representa um deslocamento nas filiaes sociohistricas de identificao e das quais o sujeito efeito.

  • mecanismos de produo dos sujeitos.

    Evocamos as palavras conclusivas de Souza (1994, p.Xiii), quando ele tece

    as suas justificativas para no falarmos de identidade e sim de identificao:

    No entanto, vale acrescentar que a identidade do sujeito se torna periclitante na medida em que, como acabamos de dizer, os contedos que a constituem podem sempre ser reduzidos a um significante no-predicativo. Isso no impede que a identidade do sujeito seja sempre relanada num outro patamar. Mas, nesse caso, j no podemos mais falar de identidade nos termos de ser o sujeito ele mesmo o mesmo consigo mesmo. A identidade no apenas uma faceta do sujeito, mas uma faceta que muda a cada instante em que o sujeito efetivamente diz o que tem a dizer. Acreditamos ter esclarecido, com o que vem de ser dito, as dissenses que presidem o entre-jogo da identidade e das identificaes. Resta acrescentar que, quando for o caso de nos determos no aspecto coletivo da questo em seu aspecto radical, antes o trao identificatrio constitutivo de um ideal do ego nacional do que uma iluso egica que poderamos, teoricamente, com facilidade criticar.

    O processo de identificao se instaura, quando da insero de nosso

    sujeito de pesquisa em espao discursivo de aula de leitura em LE, cujo papel

    fundamental na produo de sentidos, como o mecanismo que coloca mostra

    um sujeito do desejo, que toma a palavra, significa, desloca e se constitui.

    A esse respeito, Serrani (2001, p.252) reflete sobre o conceito de

    identificao:

    ... a identificao como a condio instauradora, a um s tempo, de um elo social e de um elo com o objeto de desejo do sujeito. Isso tanto no plano da relao imaginria ( qual correspondem as diversidades e semelhanas entre uns e outros), como no plano da relao simblica, que no dual, mas ternria, por conta da mediao significante. Quando falamos tanto em primeira como em segunda(s) lngua(s)) o que est sempre em questo o agenciamento de significantes. Convm lembrar que no se trata, aqui, do significante saussureano, mas do significante no sentido que leva em conta a teoria psicanaltica lacaniana da subjetividade.

    Ler e produzir sentidos, ento, equivale a poder deslocar-se nas

    contingncias scio-histricas pelas quais o sujeito afetado. Assim, espera-se

    que nossos alunos produzam sentidos diferentes, a partir de suas identificaes.

    Nesse processo de identificao, o sujeito articula o deslizamento dos

    significantes, que cedem lugar a sentidos procedentes de outros discursos e

  • sentidos novos, num movimento que conduz multiplicidade de sentidos.

    Ora, no podemos pensar esse sujeito-efeito da linguagem sem pens-lo

    efeito da exterioridade. O nosso sujeito de pesquisa simultaneamente o suporte

    e o efeito das condies que o constituem, uma vez que lhe cabe o papel de

    dinamizador dos sentidos, aquele que provoca mudanas por meio de sua relao

    com a lngua na histria.

    Nessa linha de pensamento, no podemos proceder anlise dos eventos

    de leitura sem problematizar as condies em que os sentidos so produzidos.

    Grosso modo, diramos que o sujeito no se diz sozinho. Ao produzir seu

    discurso ele se situa em um tempo, um lugar, uma posio e uma filiao.

    Poderamos perguntar: por que o sujeito produz esse sentido e no outro?

    Com certeza, as condies de produo nos responderiam, ou contextualizariam

    essas opes.

    por meio da noo de interdiscurso que a exterioridade constitutiva do

    discurso abordada por Pcheux (1990, p.314):

    ... o dispositivo da FD est em relao paradoxal com seu exterior : uma FD no um espao estrutural fechado, pois constitutivamente invadida por elementos que vm de outro lugar ( isto , de outras FD ).

    A exterioridade do discurso se refere ao fato de que todo dizer se configura

    histrica e lingisticamente a partir de uma memria histrica de sentidos. Essa

    memria discursiva permite engatilhar o eixo do discurso com palavras j-ditas.

    Conforme as palavras de Orlandi (1999, p.31)20

    (...) o que chamamos memria discursiva: o saber discursivo que torna possvel todo dizer e que retorna sob forma do pre-construdo, o j-dito que est na base do dizvel, sustentando cada tomada da palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situao discursiva dada.

    20 Orlandi volta a discutir estas questes em artigo publicado em obra organizada por Signorini (2001), j mencionada anteriormente.

  • Entretanto, se de um lado a memria discursiva constitutiva dos sentidos

    produzidos pelo sujeito e, por outro lado, o interdiscurso se coloca disposio,

    com dizeres j cristalizados, podemos assegurar que o interdiscurso e a prtica

    discursiva do sujeito se constituem mutuamente, pois quando o sujeito se filia a

    um sentido e esquece outro, ele estaria produzindo deslocamentos nas redes de

    significao.

    Enfim, o saber discursivo, que foi se constituindo ao longo da histria e

    produz dizeres, compe a memria discursiva do sujeito, que armazena e torna

    possvel em determinados momentos a emergncia dessa voz, cujo fio de

    constituio representado pelas condies de produo.

    A anlise do discurso dos eventos de leitura em LE pode propiciar que

    todos esses elementos tenham a sua voz, o que permite explicitar como o

    sujeito-leitor produz sentidos.

    Entretanto, o dizer do sujeito no deve ser abordado como apenas mera

    reproduo de processos discursivos historicamente constitudos, mas tambm

    como produo do novo.

    O sujeito que colocamos em cena justamente aquele cujo dizer e fazer

    rompe com a linearidade do imaginrio discursivo. Ao produzir sentidos novos,

    que atravessam as fronteiras ideolgicas do discurso, o sujeito deixa emergir algo

    da ordem do desejo inconsciente. O desejo de ser completo e de ser a fonte de

    seu discurso.

    Deste modo, a produo de sentidos dissociada de uma noo simplista

    de linguagem, que a coloca como, simplesmente, um universo de signos, que

    servem como instrumento de comunicao ou suporte de pensamento. O

    processo de produo de sentidos rompe com a concepo de linguagem,

    enquanto entidade abstrata-neutra.

    Em uma retrospectiva, poderamos conceituar a linguagem sob trs pontos

    de vista:

    1 linguagem como instrumento de comunicao que o locutor pode utilizar

  • na comunicao de suas intenes e necessidades.

    2 linguagem definida pela prpria existncia do homem, pois na e pela

    linguagem que o homem se constitui sujeito, como afirma Benveniste (1966).

    3- linguagem enquanto trabalho, atividade, processo de produo de

    sentido, numa dada formao discursiva, em dadas condies histrico-poltico-

    sociais (Orlandi, 1987).

    Interessa para a produo de sentidos a vertente que v a linguagem como

    discurso de interao social, lugar das manifestaes ideolgicas, linguagem que

    no inocente, neutra e nem natural.

    Essa tomada de posio coloca o surdo, nosso sujeito-leitor, em uma

    situao de sujeito heterogneo, marcado scio-historicamente e pertencente a

    uma dada formao discursiva que, por sua vez, decorre de uma formao

    ideolgica. Esse sujeito, em contato/confronto com o texto em LE, sofre

    deslocamentos em sua formao discursiva. interpelado por outras FDs, apaga

    vozes, silencia, resiste, enfim, participa do fluxo discursivo.

    Por conseguinte, concebemos a sala de aula como o espao, que no

    inerte, no homogneo; sim lugar de movimento, em que se cruzam os

    sujeitos de linguagem. A sala de aula o lugar, em que permeiam o mesmo e o

    diferente, a memria e o esquecimento, a reproduo e a transformao e que

    expe vista esse sujeito-aluno, que ao tomar a palavra e ser tomado por ela, se

    inscreve em processos discursivos.

    Encontramos eco em Foucault (2000), quando ele destaca o sistema de

    educao como uma maneira poltica de manter ou de modificar a apropriao dos

    discursos. Assim, no caso de nossa pesquisa, a sala de aula apresenta-se como

    um palco de mltiplas vozes, constitudas em formaes discursivas, histrica,

    social e ideologicamente determinadas, em que algumas vozes so impostas e

    outras silenciadas, refletindo uma estreita relao entre linguagem, ideologia e

    poder.

    Os conceitos da AD que delineamos acima parecem ter preparado o

  • terreno para, enfim, retomarmos a questo da leitura, nos moldes discursivos,

    que o objetivo dessa pesquisa. Optamos por abordar a leitura sob esse ponto de

    vista, dado que essa abordagem permite problematizar a noo de sentido.

    Talvez estejamos agora em condies de abordar a seguinte questo: O

    que a AD tem a dizer sobre leitura?

    1.4- Leitura, um processo discursivo

    Abordar a leitura em LE como processo discursivo coloca em cena

    elementos incompatveis com as noes de leitura, como processo

    exclusivamente bottom-up ou top-down, ou como interao entre estes dois

    diferentes nveis de processamento, ou ainda, abordar o ato de ler como interao

    entre o leitor e o autor, via texto.

    Coracini (1995, p.15), em suas reflexes sobre a leitura como processo

    discursivo, diz:

    H uma outra concepo de leitura que se encontra na interface entre a anlise do discurso e a desconstruo que considera o ato de ler como um processo discursivo no qual se inserem os sujeitos produtores de sentido- o autor e o leitor - , ambos scio-historicamente determinados e ideologicamente constitudos. o momento histrico-social que determina o comportamento, as atitudes, a linguagem de um e de outro e a prpria configurao do sentido.

    A relao dos sujeitos produtores de sentido com a exterioridade,

    representada pelo sistema de valores sociais, histricos, as crenas e as

    ideologias, constitui o que chamamos de condies de produo dos sentidos,

    uma vez que determina o comportamento desses sujeitos no momento da

    configurao do sentido.

  • Orlandi (2000, p.37-38) faz consideraes acerca da forma como a AD se

    ope leitura decodificadora:

    {AD}...no v na leitura do texto apenas a decodificao, a apreenso de um sentido (informao) que j est dado nele. No encara o texto apenas como produto, mas procura observar o processo de sua produo e, logo, da sua significao. Correspondentemente, considera que o leitor no apreende meramente um sentido que est l, o leitor atribui sentidos ao texto. Ou seja: considera-se que a leitura produzida e se procura determinar o processo e as condies de sua produo. Da se poder dizer que a leitura o momento crtico da constituio do texto, o momento privilegiado do processo de interao verbal, uma vez que nele que se desencadeia o processo de significao. No momento em que se realiza o processo da leitura, se configura o espao da discursividade em que se instaura um modo de significao especfico.

    Nesse vis, no o texto que determina as leituras, mas o espao da

    discursividade, que instaurado pelo leitor a partir da dinmica de atribuir

    sentidos. O leitor, enquanto sujeito clivado, heterogneo, perpassado pelo

    inconsciente e participante de uma determinada formao discursiva, vai se

    confrontar com o texto, cuja linguagem no fechada em si mesma, e dessa

    dinmica vai resultar a leitura como um processo discursivo.

    Conforme postula Brando (1993, p.12):

    A linguagem enquanto discurso no constitui um universo de signos que serve apenas como instrumento de comunicao ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto discurso interao, e um modo de produo social, ela no neutra, inocente (na medida em que est engajada numa intencionalidade) e nem natural, por isso o lugar privilegiado de manifestao da ideologia. Ela o sistema-suporte das representaes ideolgicas (...) o medium social em que se articulam e defrontam agentes coletivos e se consubstanciam relaes interindividuais (Braga, 1980 apud.). Como elemento da mediao necessria entre o homem e sua realidade e como forma de engaj-lo na prpria realidade, a linguagem lugar de conflito, de confronto ideolgico, no podendo ser estudada fora da sociedade uma vez que os processos que a constituem so histrico-sociais. Seu estudo no pode estar desvinculado de suas condies de produo...

    A linguagem passa a ser um fenmeno que deve ser estudado no s em

    relao ao seu sistema interno, mas enquanto formao ideolgica, que se

    manifesta pela relao scio-ideolgica.

  • As consideraes de Brando a respeito da linguagem so de extrema

    importncia, pois rompem com a noo de linguagem como sendo s um universo

    de signos, que serve como instrumento de comunicao ou suporte de

    pensamento. A linguagem concebida como um discurso, lugar de manifestao

    da ideologia.

    Atrelando discurso e ideologia, buscamos as palavras esclarecedoras de

    Eagleton (1997, p.194-195):

    A ideologia antes uma questo de discurso que de linguagem, mais uma questo de certos efeitos discursivos concretos que de significao como tal. Representa os pontos em que o poder tem impacto sobre certas enunciaes e inscreve-se tacitamente dentro delas. Mas no deve, portanto, ser igualada a nenhuma forma de partidarismo discursivo, discurso interessado ou vis retrico; antes, o conceito de ideologia tem como objetivo revelar algo da relao, entre uma enunciao e suas condies materiais de possibilidade, quando essas condies de possibilidade so vistas luz de certas lutas de poder centrais para a reproduo (ou, para algumas teorias, a contestao) de toda uma forma da vida social.

    Essa viso de ideologia resultante de uma profunda reflexo,

    empreendida por Eagleton (1997), por meio da confluncia dos diversos fios

    conceituais de autores que abordam essa questo.

    Em sua teorizao sobre AD, Orlandi (1999, p.45-46) afirma que um dos

    pontos fortes da Anlise de Discurso re-significar a noo de ideologia a partir

    da considerao da linguagem.

    O fato mesmo da interpretao, ou melhor, o fato de que no h sentido sem interpretao, atesta a presena da ideologia. No h sentido sem interpretao e, alm disso, diante de qualquer objeto simblico o homem levado a interpretar, colocando-se diante da questo: o que isto quer dizer? Nesse movimento da interpretao o sentido aparece-nos como evidncia, como se ele estivesse j sempre l. Interpreta-se e ao mesmo tempo nega-se a interpretao, colocando-a no grau zero. Naturaliza-se o que produzido na relao do histrico e do simblico. Por esse mecanismo- ideolgico- de apagamento da interpretao, h transposio de formas materiais em outras, construindo-se transparncias - como se a linguagem e a histria no tivessem sua espessura, sua opacidade para serem interpretadas por determinaes histricas que se apresentam como imutveis, naturalizadas. Este o trabalho da ideologia: produzir evidncias, colocando o homem na relao imaginria com suas condies materiais de existncia.

  • Como mecanismo de produo de um imaginrio, a ideologia, enquanto

    efeito da relao do sujeito com a lngua e com a histria, constitui toda prtica

    discursiva.

    Portanto, podemos dizer que o texto enquanto discurso porta-voz de um

    dado momento. lugar das manifestaes ideolgicas que, de certa forma,

    entraro em conflito com a FD do sujeito-leitor.

    Decorre da que no podemos achar que a produo de sentidos vai ser

    ponto pacfico, como era concebida em outras abordagens. O sujeito entra em

    cena para produzir sentidos a partir da materialidade lingstica do texto. A esse

    respeito, Coracini (1995, p.16) enfatiza a condio de sujeito do leitor:

    Quando falamos de diferentes leituras, referimo-nos no apenas leitura realizada por cada indivduo em particular, mas aos diferentes momentos de sua vida: na verdade, o sentido de um texto, por ser produzido por um sujeito em constante mutao, no pode jamais ser o mesmo; alis como bem coloca Foucault (1971), tudo comentrio: o dizer inevitavelmente habitado pelo j-dito e se abre sempre uma pluralidade de sentidos, que, por no se produzirem jamais nas mesmas circunstncias, so, ao mesmo tempo, sempre e inevitavelmente novos.

    Enfim, na tica da AD francesa, o texto deve ser visto como um espao de

    produo de sentidos, inacabado e incompleto, derivado de sua relao com as

    condies de sua produo. O discurso que emerge desse texto caracterizado

    pela multiplicidade de sentidos possveis, que resultam de uma situao discursiva

    que retoma, s vezes, o j-dito no eixo do interdiscurso ou na memria discursiva.

    Com base em Pcheux (1990), possvel estabelecer o jogo do estatuto

    social da memria, como condio de seu funcionamento discursivo, na

    interpretao do conjunto dos traos grficos. Nessa perspectiva, a memria se

    refere a um corpo scio-histrico de traos, pr-existente e exterior ao organismo.

    Por sua vez, esse corpo inscrito nesse espao discursivo remete-se noo de

    memria coletiva.

    Todas essas consideraes a respeito de leitura, ditas sob a luz da AD,

    assinalam que o ato de ler constitui-se como espao discursivo, que d lugar a um

    sujeito, que produz sentido, envolvendo-se, dizendo-se, significando-se,

  • identificando-se. Enfim, a leitura, nestes moldes, assume um leitor que

    constitudo pela heterogeneidade. Esse sujeito tem a sua histria, e vez por outra

    rompe a trincheira das palavras e se deixa representar por meio do processo de

    produo dos sentidos.

    Ora, como vimos, a AD tem muito a dizer sobre leitura.

    A adoo dessa perspectiva de leitura em nosso trabalho se pauta,

    principalmente, em duas justificativas. Acreditamos que a leitura vista como uma

    prtica social pode provocar deslocamentos no processo de Letramento de nossos

    sujeitos. Compartilhamos da idia de que o processo de leitura vai instaurar um

    espao, de onde o sujeito vai despontar em sua singularidade para alm da

    configurao histrica da significao.

    O prximo captulo reserva-se anlise dos dados que constituem o corpus

    dessa pesquisa, a partir da qual pretendemos elucidar os processos discursivos

    de produo de sentido de nossos sujeitos de pesquisa.

  • CAPTULO 2

    O sentido, efeito das condies de produo

    Este captulo apresenta-se organizado em duas etapas. Primeiro,

    levantamos as condies de produo do discurso e a memria discursiva de

    nossos sujeitos, por meio da anlise da materialidade lingstica, resultado do

    questionrio aplicado aos nossos sujeitos sobre seus histricos de vida.

    Recuperar essas condies de produo implica conhecer o contexto scio-

    histrico e ideolgico e as circunstncias imediatas que entremeiam o discurso de

    nossos sujeitos, que tm, acondicionados em suas memrias discursivas, recortes

    que obedecem ao jogo de poder e desejo. J na parte introdutria desse trabalho,

    comevamos esse resgate, quando fizemos consideraes sobre a surdez e a

    educao dos surdos.

    Acreditamos que trazer tona a exterioridade que constitui nosso sujeito de

    pesquisa equivale a montar peas bsicas de uma engrenagem, responsveis

    pelo suporte de outras peas. Ou seja, as peas bsicas representam as

    condies de produo, que so responsveis pelos sentidos, dentro da

    engrenagem, leitura.

    Sendo assim, as condies de produo da leitura tero os seus efeitos

    para a produo de sentidos, conforme pondera Orlandi (1999, p.32):

    Ao falarmos nos filiamos a redes de sentidos, mas no aprendemos como faz-lo, ficando ao sabor da ideologia e do inconsciente. Por que somos afetados por certos sentidos e no outros? Fica por conta da histria e do acaso, do jogo da lngua e do equvoco que constitui nossa relao com eles. Mas certamente o fazemos determinados por nossa relao com a lngua e a histria, por nossa experincia simblica e de mundo, atravs da ideologia.

  • Em seguida, no segundo momento, procedemos anlise dos eventos de

    leitura em aulas de LE, gravadas em vdeo e transcritas, em que pretendemos

    saber como os sentidos so produzidos e quais os efeitos de sentido que os

    eventos de leitura provocam, enquanto desencadeadores de vozes.

    2.1- Das condies de produo dos discursos e a memria discursiva do surdo

    A experincia de vida de nossos sujeitos de pesquisa elucida as prticas

    que constroem e medeiam a relao desse sujeito, consigo mesmo e com os

    outros, constituindo as condies de produo de seus discursos.

    Em Brando (1991, p.89), encontramos a definio para Condies de

    Produo, constituem a instncia verbal de produo do discurso: o contexto

    histrico-social, os interlocutores, o lugar de onde falam, a imagem que fazem de

    si e do outro e do referente.

    Procuramos resgatar da memria discursiva desses sujeitos informaes21

    que retratam seus histricos de vida: idade, caracterstica da deficincia auditiva,

    descrio do percurso escolar, integrao social com o outro, aquisio e

    desenvolvimento de instrumental lingstico. Enfim, a nossa inteno, com o

    levantamento desses dados, conhecermos melhor o nosso sujeito de pesquisa,

    como pertencentes a uma dada sociedade ideologicamente constituda.

    Procedamos, ento, anlise dos registros relevantes para esse trabalho.

    Dos oito entrevistados, trs sujeitos no trabalham fora. So estudantes. Os

    demais exercem funes de desempenho fsico, sendo que A1 empregada

    domstica, A5 mecnico, A6 e A8 so funcionrios da Empresa de Correios e

    Telgrafos de Uberlndia (fazem a triagem das cartas) e A7 ocupa a funo de

    servios gerais na Prefeitura de Uberlndia, cidade onde esses sujeitos residem .

    21 Informaes obtidas por meio de questionrio aplicado pela pesquisadora

  • No Brasil, o surdo, como qualquer portador de deficincia fsica, ainda no

    teve os seus direitos legitimados pela sociedade. Um exemplo disso a sua pouca

    aceitabilidade no mercado de trabalho. Durante uma conversa informal,

    constatamos o desabafo de nossos sujeitos, que anseiam por empregos melhores.

    O surdo quer se livrar do estigma a que a histria lhe circunscreveu. Passa pelo

    seu imaginrio esse desejo de transgredir as imposies, que se colocaram em

    sua trajetria. Ele se v como um sujeito capaz de desempenhar funes outras e

    rejeita a imagem que se construiu dele.

    Quando interrogados se j tinham sofrido algum tipo de preconceito, sete

    deles, responderam que sim. Dentre essas respostas22, destaco a resposta (1) do

    sujeito A8:

    (1) A8 - pessoa fica rindo de surdo A4 - Esse sujeito no coloca em questo a sua pessoa, o seu eu. No ele

    que o objeto de riso para as pessoas, mas o surdo. Com essa fala, parece-nos

    que o sujeito A8 desata-se em duas posies: ele, de um lado, e, do outro lado, o

    surdo. O surdo, marcado pela dessemelhana, desperta zombaria. Zombaria a

    manifestao intencional, malvola, irnica ou maliciosa, por meio do riso, de

    palavras, atitudes ou gestos, com que se procura levar ao ridculo ou expor ao

    desdm ou menosprezo uma pessoa... (Aurlio eletrnico).

    A esse respeito, evocamos as palavras de Brait (1996, p.107)23:

    O encaminhamento da perspectiva discursiva [...] confere ironia traos que reiteram a ambivalncia de significao, a dupla isotopia, a confluncia enunciativa, enfim, a maneira de um discurso lidar com outros para coloc-los ou colocar-se em evidncia. Esse jogo que se estabelece entre um texto e as presenas constitutivas de seu interior articula-se

    22 Fizemos um recorte nas respostas ao questionrio aplicado aos nossos sujeitos de pesquisa, trazendo para a anlise as respostas que vinham ao encontro da nossa proposta de anlise. Numeramos os trechos analisados, no intuito de facilitar a leitura e compreenso desse trabalho. 23 Brait (1996) apresenta em sua obra uma abordagem terica atual da ironia, enquanto recurso de linguagem, bem como delineia um panorama de momentos essenciais para a sua compreenso por meio de leituras de textos jornalsticos e literrios considerados irnicos.

  • ironicamente por meio de vrias estratgias de incorporao discursiva, de encenao do j-dito...

    Essa posio enunciativa de nosso sujeito de pesquisa parece inaugurar

    em nossa anlise a noo dos processos de identificao. O surdo no quer

    sofrer chacotas, portanto, quando ele se v nessa condio de desrespeito sua

    diferena, ele usa da artimanha de assumir a posio identitria que o exime da

    sua condio fsica de surdo e declara que o outro, o surdo, que habita nele que

    ridicularizado.

    Esse sujeito promove deslizamento de posies em conseqncia dos

    efeitos de posies que ocupa. nesse sentido que A8 tem a iluso de safar-se

    de efeitos negativos atribudos posio de ser surdo.

    Buscamos sustentao terica nas palavras de Orlandi (1999, p.49):

    Devemos ainda lembrar que o sujeito discursivo pensado como posio entre outras. No uma forma de subjetividade mas um lugar que ocupa para ser sujeito do que diz (M. Foucault, 1969): a posio que deve e pode ocupar todo indivduo para ser sujeito do que diz. O modo como o sujeito ocupa seu lugar, enquanto posio, no lhe acessvel, ele no tem acesso direto exterioridade (interdiscurso) que o constitui.

    Em uma posio contrria quela assumida por A8, o sujeito A4 (ainda em

    (1)) no respondeu essa pergunta e entendemos que esse silenciamento

    representa a negao de sua condio de surdo, pois ao assumir j ter sofrido

    preconceito, ele estaria reforando essa situao. Nesse caso, o sujeito assume

    uma posio discursiva que despreza a condio de ser surdo. O sujeito se aliena

    sua verdade submetendo a sua memria discursiva a um imaginrio que desvela

    um desejo de ser outro.

    (2) A1- pessoa ouvinte j preconceito.

    Em (2), o sujeito A1 assume a identidade de surdo ao declarar que foi

  • vtima de preconceito de pessoa ouvinte. A opo de uso do adjetivo atributivo

    ouvinte, coloca em evidncia a relao binria ouvinte versus surdo, o que para

    ns tem um efeito de sentido significativo, pois coloca em pauta um estado de

    conflito, que o de fazer parte de um dos lados.

    Nesses dois recortes figuram sujeitos que desejam romper barreiras

    construdas pelo momento histrico que imps limites e desatam neles identidades

    transitrias que assumem formaes discursivas que rejeitam ou assumem a

    surdez.

    Brando (1993, p.76-77) nos diz que toda formao discursiva est

    associada a uma memria discursiva:

    a memria discursiva que torna possvel a toda formao discursiva fazer circular formulaes anteriores, j enunciadas. ela que permite, na rede de formulaes que constitui o intradiscurso de uma FD, o aparecimento, a rejeio ou a transformao de enunciados pertencentes a formaes discursivas historicamente contguas.

    O tratamento discursivo que temos dado nossa anlise possibilita-nos ver

    como o nosso sujeito se diz quando se estabelece como sujeito fora de sua

    concepo idealista, imanente, produzida nos moldes cartesianos e positivistas.

    Esse sujeito da linguagem pertence ao social, ao ideolgico, e se constitui no e

    pelo discurso, produzindo os efeitos do ser sujeito: relao de aliana, de incluso,

    de conflito, de determinao e outras, que vo se caracterizar no pelo absoluto,

    mas pela dominncia. O sujeito vai servir s condies de produo, assim como

    servido por elas.

    No contexto analisado, os alunos instauram o processo de identificao no

    momento em que se identificam com o outro, se reconhecem no outro ou escapam

    do ridculo no outro. a lngua, pelo equvoco que a atravessa, que permite ao

    sujeito a prtica dessa liberdade de deslocamentos. Na perspectiva do sujeito-

    efeito da linguagem, o sujeito vai constituindo a lngua e constituindo-se ao mesmo

    tempo.

    O nosso sujeito, enquanto sujeito-leitor, fortemente determinado pela

  • formao discursiva da escola24 e sustentado pelo discurso pedaggico. Como

    exemplo, citamos alguns trechos de falas de nossos sujeitos, quando

    respondiam sobre seus hbitos de leitura:

    (3) A2- estudo leitura (4) A3- gosto de ler dicionrio Ingls e Portugus (5) A4- eu leu Portugus aqui na escola s livro, eu gosto ver televiso de Jornal Nacional Em (3), aparece o verbo estudar que denomina a ao de aplicar a

    inteligncia no aprendizado de alguma disciplina. Parece-nos que nosso sujeito

    apropria-se do discurso escolar ao fazer uso dessa marca lingstica.

    Na resposta (4), o sujeito revela o seu gosto pela leitura de dicionrios. Ora,

    dicionrio instrumento comumente usado nas escolas para consulta de

    vocabulrios, principalmente em aulas de lnguas. Podemos deduzir que, levando

    em conta as condies de produo desse enunciado, nosso sujeito, cujo contato

    com a lngua escrita restrito, dito pela prtica escolar25 que atravessa o seu

    dizer.

    O excerto (5) refora a idia de que o sujeito interpelado pela ideologia da

    instituio escola, ao referir-se a ela, nesse momento, pelo uso do ditico aqui.

    Nesse caso, parece-nos que a escola, autoritariamente, determina as leituras, de

    uma forma que, nem sempre, desperta o interesse do aluno. Nosso sujeito, por

    sua vez, assegura o cumprimento institucional de seu papel de aluno, que no

    busca outras alternativas de leitura. Temos elementos para dizer que a atividade

    de leitura para esses sujeitos no vista como algo prazeroso ou para momentos

    24 Os documentos oficiais, dentre eles, LDB (Lei de Diretrizes e Bases) e PCN (Parmetros Curriculares Nacionais) instituem as bases legais que orientam o sistema educacional. Nesse trabalho, tratamos de Formao Discursiva Institucional, as orientaes advindas desses discursos. 25 Referimo-nos prtica de uso de dicionrios nas aulas de lnguas.

  • de lazer. Quando A4 afirma gostar de ver televiso, Jornal Nacional, emerge

    desse dizer um no-dito que produz efeitos de sentidos e enuncia que nosso

    sujeito s vai ler livro porque exigido dele pela escola.

    Essa situao nos permite apontar para o conflito, que se manifesta da

    relao do sujeito surdo com a LIBRAS e as outras lnguas26. E, seguramente,

    esse confronto vai desembocar na questo da leitura, uma vez que esse evento

    pode representar, para o surdo, momentos de sofrimento oriundos do contato com

    o novo, com o diferente e com o outro. Diramos que a indisposio do surdo

    para a leitura pode estar atrelada a essa questo, ou seja, como uma

    manifestao desse conflito.

    Todavia preciso dizer que, afirmar que o brasileiro no l lugar comum,

    portanto, algo da ordem do sujeito ouvinte, que no questiona se essas relaes

    com a leitura precisam ser dessa forma e no de outra.

    Sabemos que a escola instaura uma prtica de leitura que no dispe de

    mecanismos que garantam a sua continuidade fora dela.

    (6 ) A-5 Livros, revista e jornais

    Dos oito entrevistados, apenas o sujeito A5 informou em (6) que l livros,

    revistas e jornais.

    Talvez esse sujeito seja o nico que mantm o hbito de leitura fora da

    escola e conseqentemente tenha um contato maior com diferentes discursos: o

    da imprensa, o da propaganda e marketing, o poltico, etc.

    A esse respeito, Gee (1990) aponta para o evento de leitura como uma

    importante prtica social que coloca o sujeito letrado em contato com o que ele

    chama de discursos secundrios.

    Diante do caminhar de nossa anlise, diramos que a escola, enquanto

    espao discursivo social e ideolgico, afeta a constituio das identidades de 26 Nesse caso, LIBRAS, Portugus e o Ingls.

  • nossos sujeitos-alunos.

    Quando questionados sobre a poca, em que eles aprenderam a LIBRAS,

    os sujeitos A1, A3, A5, A6 e A8 responderam que iniciaram a aprendizagem de

    LIBRAS antes dos sete