as vozes e vargas

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Faculdade Cásper Líbero As vozes e Vargas O Globo e Ultima Hora em agosto de 1954 Alexandre Aragão São Paulo / 2009

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O Globo e Ultima Hora em agosto de 1954

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Page 1: As Vozes e Vargas

Faculdade Cásper Líbero

As vozes e VargasO Globo e Ultima Hora em agosto de 1954

Alexandre Aragão

São Paulo / 2009

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Page 3: As Vozes e Vargas

Faculdade Cásper Líbero

As vozes e VargasO Globo e Ultima Hora em agosto de 1954

Alexandre Aragão

São Paulo / 2009

Monografia apresentada à Faculdade

Cásper Líbero, como resultado de pesquisa

de Iniciação Científica desenvolvida no CIP

— Centro Interdisciplinar de Pesquisa, sob

a orientação do Prof. Dr. Cláudio Novaes

Pinto Coelho

Page 4: As Vozes e Vargas
Page 5: As Vozes e Vargas

À Amanda

Page 6: As Vozes e Vargas
Page 7: As Vozes e Vargas

Resumo

Análise da posição ideológica dos jornais O Globo e Ultima Hora durante o

segundo governo de Getúlio Vargas (1951-54). Por meio de textos publicados nos

diários em junho de 1953 — tendo como referência a posse do ministro do

Trabalho João Goulart — e agosto de 1954 — após o Atentado da rua Toneleros

—, utilizando os conceitos de Louis Althusser, situamos ambos os jornais como de

situação (Ultima Hora) e de oposição (O Globo). Também há uma breve

contextualização da situação dos jornais brasileiros na década de 1950. Com

técnicas norte-americanas, havia uma tendência à modernização gráfica e

editorial.

Palavras-chave: Getúlio Vargas, história da imprensa, O Globo, Ultima Hora

7

Page 8: As Vozes e Vargas
Page 9: As Vozes e Vargas

Introdução: a modernização da

imprensa na década de 1950

De São Borja ao Catete

Ultima Hora

O Globo

Considerações finais

Anexos

p. 11

p. 19

p. 37

p. 59

p. 77

p. 83

Page 10: As Vozes e Vargas
Page 11: As Vozes e Vargas

Introdução: a modernização

da imprensa na década de 1950

Page 12: As Vozes e Vargas
Page 13: As Vozes e Vargas

Mesmo com o momento político conturbado, os jornais produzidos durante

a década de 1950 se destacam não apenas pelos assuntos que tratam, mas

também pela maneira com que tratam tais assuntos. O desenvolvimento

tecnológico das gráficas, aliado às novas técnicas jornalísticas introduzidas no

Brasil, fez com que os jornais dessem um salto qualitativo enorme em

comparação ao que era feito nos anos anteriores. Vamos mostrar este salto

utilizando não apenas os jornais que são objeto de estudo deste trabalho, como

também outros exemplos pertinentes.

Além desta introdução o trabalho mostra o contexto histórico em que O

Globo e Ultima Hora se puseram em lados opostos do jogo político — e quais

eram os grupos interessados em cada lado. Nos capítulos seguintes, através de

textos retirados dos jornais, é feita uma análise de como cada ideologia é

defendida na disputa pela hegemonia. Para entendermos como O Globo e Ultima

Hora se posicionam perante os acontecimentos de agosto de 1954 — o que o

presente estudo se propõe a fazer —, é necessário compreendermos as mudanças

pelas quais a imprensa da época passa.

De acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE), citado por Ribeiro, na década de 1950 cerca de 10% dos

jornais de todo o Brasil eram feitos na cidade do Rio de Janeiro. Apesar disso, é

perceptível uma queda no número de periódicos. Em 1953, dos 254 jornais

brasileiros, 29 eram cariocas (11,4%). No ano seguinte, a proporção diminuiu: 26

cariocas de um total de 261 (9,9%). Após a morte de Getúlio Vargas, em 1955,

mais jornais cariocas deixaram de existir — eram 20, de um total de 235 no País

Introdução: a modernização da imprensa na década de 1950

13

Page 14: As Vozes e Vargas

(8,5%)1. Esses dados mostram que o mercado jornalístico, principalmente na

capital brasileira, estava passando por um período de refinamento.

Os jornais brasileiros da primeira metade do século XX eram dominados

por “escritores”, não por “jornalistas”. Com forte influência do jornalismo francês

da época, as notícias eram apresentadas com longos trechos de “nariz de cera”:

textos com pouca informação e muita pompa. Nas palavras de Pompeu de Souza,

do Diário Carioca, citado por Barbosa, “ninguém publicava em jornal nenhuma

notícia de como o garoto foi atropelado aqui em frente sem antes fazer

considerações filosóficas e especulações metafísicas sobre o automóvel”2.

Nesse mesmo momento, os jornais de William Hearst e de Joseph Pulitzer,

a yellow press norte-americana, publicavam textos curtos e informativos, tendo a

objetividade como um dos ideais máximos. Apesar da veracidade não ser um dos

pontos fortes dos jornais da yellow press, as técnicas que utilizavam eram

inovadoras, e definiram as feições do jornalismo da segunda metade daquele

século. Foram essas empresas que desenvolveram os conceitos de lead, copy-desk

e style book. Três conceitos que, mais tarde, acabaram incorporados aos jornais

brasileiros — e ganharam nomes aportuguesados: lide, copidesque e manual de

redação.

O lide consiste em exibir, no primeiro parágrafo do texto jornalístico, as

informações mais importantes (“o quê”, “quem”, “quando”, “onde”, “como” e “por

quê”, não necessariamente nesta ordem). Isso aumenta a objetividade à medida

que diminuem os rodopios até o que, de fato, é notícia. A técnica de copidesque

pressupõe uma equipe responsável por ela, normalmente formada por jornalista

As vozes e Vargas

14

1 RIBEIRO, A. Imprensa e história no Rio de Janeiro dos anos 1950. Rio de Janeiro: E-papers, 2007. p. 58

2 BARBOSA, M. História cultural da imprensa — Brasil 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. p. 159

Page 15: As Vozes e Vargas

experientes. As pessoas responsáveis por copidesquear os textos do jornal devem

fazer com que haja uniformidade e coerência interna no jornal. Desse modo, são

retirados vícios de linguagem e traços do estilo pessoal de cada redator.

O manual de redação tem a finalidade de definir todas as características

descritas acima. É um livro que reúne como os textos do jornal devem ser

escritos, tanto do ponto de vista estilístico quanto da técnica. Outra prática

incorporada aos textos jornalísticos da yellow press é a pirâmide invertida, que

hierarquiza as informações apresentadas em escala, e apresenta as mais

importantes primeiro, deixando as menos importantes para o “pé” do texto. Isso

facilita a edição, uma vez que o responsável pode apenas “cortar o pé da matéria”

caso não caiba mais texto na diagramação. Ajuda também os leitores, que podem

ficar inteirados do mais importante apenas com os primeiros parágrafos.

As mudanças foram assimiladas facilmente e aprovadas pelo público, que

não tinha o mesmo tempo disponível para a leitura dos jornais. O ciclo de

crescimento econômico que teve início nos Estados Unidos após a segunda metade

da década de 1930 fez com que a “velocidade” da vida aumentasse. Cada vez mais

carros eram vistos nas ruas, a urbanização era crescente, a população operária

aumentava. Por isso, a leitura das principais notícias não poderia requerer

grandes reflexões e horas de atenção. As técnicas e conceitos apresentados acima

foram vitais para que os jornais se adequassem à nova realidade.

O Brasil da década de 1950 passava por mudanças análogas às que os

Estados Unidos passou anos antes. O primeiro jornal a perceber esta

movimentação e tentar se aproximar do modelo de jornalismo norte-americano foi

o Diário Carioca, dirigido por Danton Jobim e Pompeu de Souza. Ambos eram, a

propósito, professores do curso de jornalismo da Universidade do Brasil, atual

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da disciplina “Técnicas de jornal

Introdução: a modernização da imprensa na década de 1950

15

Page 16: As Vozes e Vargas

e do periódico”. O ensino de comunicação no Brasil também está ligado à

modernização da imprensa, e teve início em 1947 com o curso de jornalismo da

Faculdade Cásper Líbero — seguido, em 1950, pela Universidade do Brasil. Antes

de se tornar uma profissão, o ofício de “jornalista” era exercido, em geral, por

bacharéis e intelectuais, e era considerado uma atividade secundária.

Pompeu de Souza morou nos Estados Unidos por anos, e voltou ao Brasil

em 1943. Foi quando percebeu o quão antiquada era a imprensa brasileira em

relação à norte-americana. O único canal pelo qual poderia aplicar o que vira na

América do Norte era o jornal em que passou a trabalhar, o Diário Carioca. A

primeira pista de que Souza está mudando a situação aconteceu em 1945, com a

publicação das “Cartas a um foca”, no Diário. Trata-se de várias dicas e caminhos

a serem seguidos por um jornalista iniciante (no jargão jornalístico, “foca”).

Apesar de não serem assinadas, suspeita-se que tenha sido escrita por Pompeu de

Souza. O aprimoramento das “Cartas” foi publicado em 1950, as “Regras de

redação do Diário Carioca”, o primeiro manual de redação da imprensa

brasileira, esse sim, assinado por Pompeu de Souza. A obra continha orientações

acerca das técnicas da yellow press e do estilo a ser usado no DC — como tratar

um político, quando usar números em arábico e quando por extenso, etc.

Mais um fator de progresso para a imprensa brasileira foi o

desenvolvimento da vanguarda artística da “Semana de Arte Moderna de 1922”.

A liberdade estética dos escritores dessa geração e das seguintes fez com que a

linguagem utilizada nos jornais se aproximasse da oral. Desse modo, um prédio

passava a ser situado na avenida Paulista nº 900, e não mais à avenida Paulista

nº 900. A leitura se torna mais simples e “natural”, aumentando o interesse das

classes baixas pelos diários. Exemplo disso é que a tiragem do Diário Carioca

subiu para números em torno de 40 mil unidades diárias, atingindo picos de 45

As vozes e Vargas

16

Page 17: As Vozes e Vargas

mil3 , após as mudanças, padrão alto para os anos 1950, levando em conta a

população brasileira, 51 milhões de pessoas4. Mesmo assim, o Diário não tinham

uma das maiores tiragens da cidade — apesar de manter uma importância

político-ideológica destacada.

A linguagem visual dos jornais também é revolucionada durante o período.

O grande expoente destas mudanças é o Jornal do Brasil5 , que, a partir de 1956,

retirou fios, blocos de texto quase encostados uns nos outros e aumentou a

quantidade de fotografias nos jornais. As mudanças fizeram com que o jornal, que

era “quase ilegível e pouco atraente”6, melhorasse substancialmente a fluência de

suas informações. Com isso, o JB perde seu antigo apelido, “jornal das

cozinheiras”, que havia sido ganho décadas antes, quando o diário começou a

publicar uma pequena chamada na primeira página cercada de diversos anúncios

classificados. Esta fórmula durou até a reestruturação gráfica da publicação.

A trajetória de mudanças do Jornal carioca começou com o lançamento do

“Suplemento Dominical do Jornal do Brasil” (“SDJB”), que se tornaria o

“Caderno B”, em 1960. Trata-se do primeiro caderno inteiramente dedicado a

assuntos culturais de um jornal brasileiro. As inovações, porém, tomaram corpo

apenas no ano seguinte, 1957, com a vinda de boa parte da equipe do Diário

Carioca para o Jornal do Brasil. A influência do artista plástico Amílcar de

Castro é evidente: a diagramação do “SDJB” é cartesiana, organizada, utiliza os

espaços em branco de forma inteligente; a informação, entretanto, é o mais

importante, e acaba privilegiada junto com a estética. O maior número de fotos

Introdução: a modernização da imprensa na década de 1950

17

3 RIBEIRO, A. Op Cit. p. 60

4 HUGON, P. Demografia brasileira. São Paulo: Atlas, 1977. p. 205

5 FERREIRA JR. J. A linguagem gráfico-visual dos jornais brasileiros. Núcleo de pesquisa semiótica da comunicação, XXV Congresso anual em Ciência da Comunicação, Salvador, 2002.

6 BAHIA, J. Jornal, história e técnica: história da imprensa brasileira. São Paulo: Ática, 1990.

Page 18: As Vozes e Vargas

melhorou também a qualidade das informações, que tornaram-se mais claras,

levando em conta que a linguagem visual é imediata, ao contrário da escrita.

As cores de Ultima Hora podem ser consideradas expoentes das melhorias

visuais no jornalismo brasileiro. O logo azul era marca registrada do periódico, e

o destacava nas bancas em relação aos concorrentes, que eram impressos apenas

com tinta preta. Outro ponto importante de ser destacado no Ultima Hora é a

utilização de fotografias na primeira página do jornal, algo totalmente inovador.

Apesar de não ter sido o único ciclo de modernização da imprensa

brasileira, a década de 1950 foi, sem dúvidas, a mais importante nesse aspecto.

Até hoje os jornais brasileiros utilizam técnicas introduzidas e refinadas durante

aquela época. Posteriormente, no final da década de 1970, mais mudanças

gráficas seriam introduzidas principalmente pelo Jornal da Tarde e, nos anos

1990 e 2000, técnicas jornalísticas diferenciadas seriam impostas pelos jornais

Valor Econômico e Correio Braziliense.

A controvertida figura de Getúlio Vargas foi o principal tema de cobertura

política na primeira metade da década de 1950 pelos jornais. Ex-ditador do

Estado Novo, Vargas ressurgiu através, exatamente, da imprensa, em entrevista

a O Jornal. Para que fique claro como esse processo foi possível, iremos ver uma

breve análise da trajetória política do “líder de massas”.

As vozes e Vargas

18

Page 19: As Vozes e Vargas

De São Borjaao Catete

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Page 21: As Vozes e Vargas

Para termos a real dimensão dos eventos que aconteceram em agosto de

1954, é necessários que compreendamos o processo que levou Getúlio Vargas de

volta ao poder quatro anos antes. Mais que isso, é necessário que seja levado em

conta todo o histórico do líder petebista, desde a Revolução de 1930, passando

pelo Estado Novo, até a deposição, em 1945. O intuito do presente capítulo é

apresentar de maneira sucinta esta visão da disputa entre Vargas e as várias

correntes oposicionistas, e como esses movimentos tiveram influência em 1954.

A influência de Getúlio Vargas na política brasileira no período que vai da

Revolução de 1930 à sua morte, em 1954, é inegável. Mesmo durante o tempo em

que não esteve, de fato, no poder, Vargas e os partidos criados por ele, o Partido

Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), são grandes

participantes do jogo político e eleitoral nas décadas de 1940 em diante.

A imagem de ditador é imposta a Vargas após a renúncia forçada, em 1945.

A construção desta imagem é, segundo Hélio Silva, feita pelas “elites”, com a

ajuda da “grande imprensa”. Essa ideia vai ao encontro do pensamento de Louis

Althusser, que apresenta o conceito de Aparelho Ideológico de Estado (AIE)7. Para

o francês, qualquer instituição que não faz parte do Aparelho Repressivo de

Estado (a saber: exército, polícia, judiciário, etc.) é, por conseguinte, um Aparelho

Ideológico de Estado, que serve para reproduzir as relações de produção

perpetuando a dominação de uma classe em determinada sociedade. Desse modo,

para Silva, é possível que se misturem, “na mesma ação, militares e civis, liberais

e pan-americanistas, patriotas sinceros e representantes dos interesses

estrangeiros, para forçar a renúncia de Vargas, sob o pretexto de impedir o

continuísmo”8. A ideologia, portanto, é capaz de fazer com que diferente grupos

De São Borja ao Catete

21

7 ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 67-73

8 SILVA, H. 1954: um tiro no coração. São Paulo: L&PM, 2004. p. 27

Page 22: As Vozes e Vargas

ligados às classes dominantes se movimentem de maneiras distintas, para que o

Aparelho de Estado seja adquirido. Em 1954, a dimensão ideológica da disputa

entre UDN e Vargas é não apenas importante, como crucial para que os eventos

se desenrolem, e as partes se articulem no jogo político.

Mesmo após deixar o mais alto cargo da República, Getúlio Vargas

contraria o movimento contra ele e mantém uma vida política ativa. Assim nasce

o PTB, partido pelo qual o ex-presidente se elege, no pleito de 1945, senador por

dois estados (Rio Grande do Sul, mandato pelo qual optou em dezembro de 1946,

e São Paulo) e deputado por nove.

Na eleição do presidente general Eurico Gaspar Dutra (PSD), em dezembro

de 1945, o apoio de Getúlio Vargas e do partido em que seria afiliado até o resto

de sua vida, o PTB, é decisivo para a vitória9. Após o pleito, o partido de Dutra é

flagrantemente majoritário, com a maioria no Congresso, a Presidência da

República e diversos cargos no Executivo.

Mesmo assim, para a sucessão de 1949, um acordo interpartidário se

mostra necessário para que o PSD continue no poder. A União Democrática

Nacional (UDN), cujo candidato, brigadeiro Eduardo Gomes, fora derrotado em

1945, vê na aliança com o PSD uma oportunidade de, finalmente, chegar à

Presidência.

Apesar de, historicamente, a UDN ser identificada com ideais direitistas,

as raízes do partido são muito mais amplas. Maria Benevides explica: “A UDN

surgiu como uma frente, organizou-se como um partido e identificou-se, também,

como um movimento (o udenismo)”10 . A formação de uma ampla frente de

As vozes e Vargas

22

9 Idem. p. 34

10 BENEVIDES, M. A UDN e o udenismo: ambiguidades do liberalismo brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1981. p. 12

Page 23: As Vozes e Vargas

oposição a Vargas é o que ocasiona o surgimento do partido. Para Benevides,

apenas o contexto de desagregação de fins do Estado Novo possibilita a reunião de

elementos tão distintos em um mesmo grupo. A criação de um partido nacional e

coeso, segundo a autora, pode acontecer somente com “a polarização em torno de

um inimigo comum, ou herói comum. A futura UDN os tinha, ambos”11,

respectivamente: Getúlio Vargas, o “ditador”, e brigadeiro Eduardo Gomes.

Enfim: com a UDN, “adversários de tempos imperiais, velhos inimigos, desafetos

jurados, reúnem-se com a finalidade única de apressar a queda de Vargas e

suprimir seu regime”12.

A desavença política entre Eduardo Gomes, e sua UDN, e Getúlio Vargas

fica clara nas opiniões expressas pelo militar na obra “Campanha de libertação”,

publicada em maio de 1946. O livro reúne diversos discursos proferidos pelo

candidato à Presidência da República, entre 16 de junho e 18 de dezembro de

1945, durante a campanha. Na obra, Eduardo Gomes destila todo seu ódio contra

o golpe de 1937. Nos vários excertos, ele ataca não apenas pontos “maiores”, como

a política econômica (em textos como “Papel-moeda não cria riqueza” e “Soluções

financeiras primaciais”), mas também problemas considerados menos

importantes, como o sistema de educação implantado por Vargas (críticas

presentes em “O fascismo na educação” e em “Desamparada a criança brasileira”,

entre outros). Na primeira citação do nome de Getúlio Vargas na obra, retirada de

um discurso proferido em São Paulo — o primeiro da campanha —, tem-se ideia

do que vem a seguir:

De surpresa, ante o pasmo das correntes de opinião, valendo-se de

providências excepcionais solicitadas pelas classes armadas ao

De São Borja ao Catete

23

11 Idem. p. 23-4

12 Idem. p. 28

Page 24: As Vozes e Vargas

Parlamento para defender a legalidade, realmente enfraquecida desde que

se restringe a esfera dos direitos dos cidadãos — o sr. Getúlio Vargas

vulnerou, de frente, o estatuto constitucional, substituindo-o por uma

carta de sua outorga, e investindo-se, por via dela, no cargo cujo

preenchimento se convocara o país à competição das urnas.

Essa Constituição, ninguém o ignora, foi um tapume quase

imprestável para encobrir a miséria das ambições personalistas. Não

houve quem pretendesse praticar o novo texto, o qual se podia limitar à

regra de um só dos seus artigos, que dava ao Presidente da República,

'autoridade suprema', a direção da política interna e externa.13

Apesar do acordo interpartidário que se desenha, a linha política

independente traçada pela UDN não sofre desvio dos outros partidos envolvidos.

O acordo é homologado em 22 de janeiro de 1948 e junta, além de PSD e UDN, o

Partido Republicano (PR). A independência de cada partido fica clara na minuta

do acordo, assinada pelos presidentes dos três partidos, uma vez que no

documento é “ressalvada a autonomia das respectivas organizações”14.

Com o acordo consumado, começa a ser desenhada mais claramente a

sucessão do presidente, o general Eurico Gaspar Dutra. Porém antes mesmo de

UDN, PSD e PR se unirem, Vargas já excursiona pelo Brasil em campanha pelo

PTB. O ex-presidente viaja e discursa não como candidato, mas, “rompido com o

governo, durante o ano de 1947 Vargas alinhou-se na campanha eleitoral ao lado

do PTB (…) Em linhas gerais, seus discursos centraram-se: a) na crítica ao

governo federal; b) na defesa de seus quinze anos de governo, sempre com ênfase

nas conquistas econômicas e sociais; e c) na propaganda dos 'ideais do PTB'”15. A

eleição é para a escolha dos governos estaduais e assembleias legislativas.

As vozes e Vargas

24

13 GOMES, E. Campanha de libertação. São Paulo: Martins, 1946. p. 11

14 SILVA, H. Op. Cit. p. 279

15 FONSECA, P. Vargas: o capitalismo em construção. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 340

Page 25: As Vozes e Vargas

A aproximação de Getúlio Vargas ao PTB tem várias interpretações

possíveis. Uma delas é exatamente a de que o alinhamento das ideias de Vargas

com os tais “ideais do PTB” era evidente. E fica cada vez mais claro com o

decorrer das deliberações da Assembleia Constituinte, já que está em discussão a

extinção de algumas leis trabalhistas. Fora isso, mesmo após ter deixado o cargo

de Presidente da República, Vargas continua a se dirigir, em seus discursos, ao

“povo” ou aos “trabalhadores”. Apesar de, à primeira vista, essa atitude poder ser

encarada como apartidarismo, na verdade ela faz parte da própria ideologia

petebista16.

Como explica Jorge Ferreira, “Getúlio Vargas, até então, era maior que o

PTB. Sem grandes líderes em nível nacional e estadual, desprovido de máquina

partidária como as outras agremiações, os petebistas tinham algo nada

desprezível: o que, na época, era definido como 'getulismo'. Contudo, o partido não

crescia, limitado e cerceado por uma liderança incontestável, verdadeiro mito

político vivo”17. As práticas adotadas por Vargas, bem como seu discurso, a

princípio faziam parte do “getulismo”. Entretanto, a postura é incorporada ao

PTB de maneira arraigada, fazendo com que parte das práticas de Getúlio Vargas

sejam atribuídas aos políticos do PTB como um todo.

O discurso varguista de apoio aos trabalhadores é parte de um processo de

dominação. Mesmo fora do Aparelho de Estado, Vargas continua a exercer,

através da produção de bens simbólicos — dos quais falaremos mais adiante —,

parte do imaginário popular e, portanto, continua presente na mente dos

eleitores. Uma vez fora do Aparelho de Estado, essa construção simbólica se vê

De São Borja ao Catete

25

16 Idem. p. 334

17 FERREIRA, J. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 204

Page 26: As Vozes e Vargas

dificultada. Mas de volta ao poder, em 1951, Vargas tem poderes suficientes para

criar um jornal chapa-branca, o Ultima Hora, o tornando capaz de retocar sua

imagem como bem entender.

Os opositores de Vargas, por sua vez, também produzem propaganda

contra o ditador. Por serem instrumento de reprodução da ideologia dominante,

os Aparelhos Ideológicos de Estado constituem campo de batalha ideológica. O

fenômeno é possível de duas maneiras: entre classes e intraclasse — esta última

representa a disputa entre projetos discordantes dentro da classe dominante, o

que, veremos adiante, é o caso de 1954. Fora isso, as disputas no interior das

classes dominantes muitas vezes têm vínculo com as relações entre dominantes e

dominados. Isso também ocorre em 1954 — já que Vargas defende políticas

trabalhistas mais liberais, enquanto o projeto udenista prevê supressão de

direitos aos trabalhadores. Em ambos os casos, os AIE são utilizados como

“ponte” para a obtenção dos Aparelhos Repressivos de Estado. Tanto em 1947,

quando não é candidato, quanto em 1950, quando se elege presidente, Vargas

utiliza os Aparelhos Ideológicos de Estado de maneira hábil para chegar aos fins

que desejava.

O contexto às vésperas do início da corrida eleitoral de 1950 é o seguinte: a

UDN se une, mais uma vez, em torno do nome de Eduardo Gomes. Entre o PTB

permanece a indecisão, apesar de Getúlio Vargas ser lembrado ocasionalmente. O

PSD, esse sim, é o mais indefinido. Três linhas principais se combatem dentro do

partido: a primeira, que ainda leva em conta o acordo interpartidário, pretende

apoiar a UDN de Eduardo Gomes; a segunda, solidária ao presidente Dutra,

deseja aguardar a decisão dele; e a terceira, mais popular, se volta para o nome

do ex-presidente Vargas18. Como maior partido em número na Câmara, o PSD é

As vozes e Vargas

26

18 SILVA, H. Op. Cit. p. 62

Page 27: As Vozes e Vargas

um apoio importante tanto para o PTB quanto para a UDN, e a indecisão deixava

em aberto o contexto para a escolha do novo Presidente da República. Nenhuma

das três tendências terminou por se sobressair, já que, por fim, o mineiro

Cristiano Machado foi escolhido como candidato próprio do PSD à presidência —

mesmo não sendo uma decisão unânime. A principal discordância parte da ala

gaúcha do PSD, encabeçada por apoiadores de uma possível candidatura de

Nereu Ramos — que viria a se tornar Presidente da República posteriormente,

por um curto período de tempo. A pendenga termina por criar uma dissidência do

partido, o Partido Social Democrático Autonomista (PSDA), formado por ex-

integrantes do PSD gaúcho, mas não trouxe maiores danos à candidatura de

Cristiano Machado.

O panorama da campanha à Presidência da República — e o subsequente

desfecho — se mostra claro apenas quando levada em conta a movimentação

política de Getúlio Vargas nos anos anteriores. Ao contrário do que muitos

autores afirmam, o ex-ditador não se afasta completamente da política. “Já na

primeira manifestação pública após sua deposição, em São Borja a 10 de

novembro de 1945, Vargas conclamou os trabalhadores a aderirem ao PTB,

'herdeiro e continuador dos postulados da Revolução de 30'”19. Principalmente em

nível regional, Vargas continuou falando “ao povo” ou “aos trabalhadores”, já

claramente alinhado à ideologia petebista, deixando o PSD de lado.

Apesar da dura campanha pela Presidência da República, Vargas inicia seu

segundo período como presidente nomeando ministros de todos os partidos.

Mesmo assim, o único representante da UDN, João Cleofas (Agricultura), não

pode ser pensado como representante do seu partido — uma vez que os outros

De São Borja ao Catete

27

19 FONSECA, P. Op. Cit. p. 333

Page 28: As Vozes e Vargas

políticos udenistas viram com maus olhos a aceitação do convite20 . Um dos

nomeados, Ricardo Jafet, presidente do Banco do Brasil, seria de suma

importância para o financiamento do jornal de Samuel Wainer. As bases para que

o capitalismo brasileiro se consolide são plantadas principalmente a partir de

1937, e, com a população urbana em grande número a partir de 1950, Getúlio

Vargas vê suas bases eleitorais constituídas principalmente na ideologia

trabalhista.

Em linhas gerais, a política econômica durante o período em que Vargas

está à frente do País é coerente. Mesmo assim, não há projeto de longo prazo,

apesar de, a princípio, o presidente sempre optar pelo capital nacional em

detrimento do capital estrangeiro, e buscar investimentos na área de infra-

estrutura e na indústria de base21 . A composição de seus ministérios com os

partidos conservadores (uma cadeira para a UDN e quatro para o PSD) não

muda, e substância, na reforma ministerial de 1953. A principal mudança, que

teve influência inegável na opinião pública, foi a escolha de João Goulart para

ocupar a única cadeira petebista, do Trabalho.

Mesmo defendendo a industrialização brasileira, Vargas não quer que a

agricultura seja esquecida. Há uma busca pela modernização e mecanização do

campo, que acompanha e aumenta a velocidade de processos demográficos dos

quais falaremos adiante. É exatamente neste ponto que os projetos udenista e

petebista entra em conflito. A UDN apóia o capital estrangeiro, como forma de

alavancar a industrialização e, por conseguinte, a economia brasileira. Além

disso, a opção por privilegiar as indústrias de base também não é apoiada pela

bancada oposicionista, uma vez que os lucros de empresas como a Petrobras só

As vozes e Vargas

28

20 SILVA, H. Op. Cit. p. 98

21 FONSECA, P. Op. Cit. p. 354-9

Page 29: As Vozes e Vargas

viriam no longo prazo. A disputa ideológica acontece principalmente por causa

desses dois projetos de desenvolvimento. Mesmo com o projeto de Vargas sendo

implantado durante a primeira metade da década de 1950, a UDN conseguiria

reverter o quadro e pôr em prática suas ideias no governo de Juscelino

Kubitschek.

Para que tenha apoio não apenas político, como também do “povo” a que

tanto se refere, o presidente eleito tem que trabalhar o símbolo Vargas. A criação

do jornal Ultima Hora está inserida, principalmente, nesse contexto — de

construção da imagem de Getúlio Vargas. A UDN, que anteviu a movimentação

política do PTB e de Vargas, se viu encurralada, como explica Jorge Ferreira:

Incapaz de competir com a aliança PSD-PTB, com um projeto excludente

e conservador, derrotada desde 1945, a UDN, ao apresentar Vargas como

a desgraça do país, estava descrevendo, na verdade, a matriz de seu

próprio infortúnio político. (…) O conflito entre trabalhistas e liberais,

contudo, era travado em águas mais profundas e girava em torno de

projetos alternativos de desenvolvimento econômico para o país e de

cidadania política para os trabalhadores.22

A construção da imagem de líder conferida a Getúlio Vargas deveria ser

feita de forma gradual e com linguagem inteligível a essa classe, para que seja

absorvida pelo senso comum. A “difusão orgânica de um modo de agir e de pensar

homogêneo”23 — a ideologia trabalhista — é feita por um “centro homogêneo” — o

Ultima Hora —, e, complementar a isso, são recorrentes os símbolos e ideias que

ligavam Vargas à figura heróica que se confirma após o suicídio. Claro, contribui

também para a construção desta imagem os inúmeros ataques da oposição ao

De São Borja ao Catete

29

22 FERREIRA, J. Op. Cit. p. 172

23 GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, vol. II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 205

Page 30: As Vozes e Vargas

presidente, inclusive os difundidos por O Globo. De pouco em pouco, o ferrenho

processo de descrédito de Getúlio Vargas e, em menor grau, do PTB, — operado

por Carlos Lacerda e a UDN — fez com que o tiro no peito se tornasse,

instantaneamente, o ponto final de um martírio. Pelo menos aos olhos do “povo”,

ou dos “trabalhadores”.

O embate entre a UDN e Vargas representa, de maneira ampla, o embate

entre dois projetos de desenvolvimento para o Brasil. Desde 1930, quebrada a

hegemonia dos cafeicultores sobre a política nacional, não existe uma classe forte

o suficiente para subir e se manter no poder. Esta característica se torna, daí

para frente, preponderante na política brasileira, até o Golpe de 1964. É o que

explica Guita Debert:

A Revolução de 30, o Golpe de 37, e a reabertura de 45 não seriam a

expressão do processo de ascensão de uma nova classe hegemônica ao

poder de Estado. Ao contrário, se a Revolução de 30 põe fim à hegemonia

da burguesia do café, o que caracteriza a nova forma política é a ausência

de uma nova classe que pudesse assumir papel hegemônico.

(…) isso permite uma rápida rearticulação das oligarquias não

vinculadas ao café com diferentes áreas militares que se opunham ao

acordo entre as cúpulas do Exército e os setores cafeeiros.24

Desse modo, com interesses distintos em disputa, o nacional-desenvolvimentismo

do PTB e de Vargas não é condizente com os planos udenistas de abertura ao

capital externo. Esse é o principal motivo pelo qual, através de Aparelhos

Ideológicos de Estado, como os jornais, UDN e Vargas travam uma batalha

ferrenha pela máquina de Estado. A “República do Galeão”, instaurada logo após

o Atentado da rua Toneleros, é um exemplo de como a oposição legitima-se, por

As vozes e Vargas

30

24 DEBERT, G. Ideologia e populismo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979. p. 20

Page 31: As Vozes e Vargas

breve momento, como poder legítimo — tomando o aparelho de Estado. Como que

em um Estado paralelo ao de Vargas, que está, à essa altura, afundado no “mar

de lama”.

Entretanto, para que Vargas ponha em prática o plano político da chegada

ao poder em 1951, mudanças sócio-econômicas que tomam parte na sociedade

brasileira durante as décadas de 1940 e 1950 são cruciais. Somadas às mudanças

nos jornais, que falaremos mais adiante, as mudanças na sociedade são vitais

para que a ideologia trabalhista tenha espaço para se difundir. Para explicar a

importância dessa plasticidade social, Guita Debert, citando Francisco Weffort,

faz um paralelo entre os conceitos de coronelismo e populismo — a ideologia do

PTB se encaixa neste último, afirma a autora, baseada na trajetória política de

outro gaúcho, Leonel Brizola:

Embora tanto o líder de massas como o coronel se apóiem em relações do

tipo afetivo, de confiança e de dependência social, [Weffort] considera que

populismo e coronelismo são fenômenos basicamente distintos. No

coronelismo, 'temos contatos nos limites sociais e econômicos sob o

domínio do senhor rural (…)

Por outro lado, o mesmo autor considera que o populismo só pode

ser entendido como fenômeno de massas em determinadas circunstâncias

históricas. No Brasil, teríamos o que o autor chama de 'massificação

prematura' ou 'antecipada'. Este conceito serve não para negar o conteúdo

político da presença das massas, mas, ao contrário, para afirmá-lo. A

massificação, aqui, não teria significado basicamente a pulverização das

classes portadoras de uma tradição política e ideológica, mas a ascensão

à vida urbana e aos processos políticos das camadas do interior e do

campo.25

De São Borja ao Catete

31

25 Idem. p. 2

Page 32: As Vozes e Vargas

A industrialização do Brasil, fora os óbvios impactos econômicos, ocasiona

mudanças geográficas importantes na distribuição da população. Apesar da

região sudeste ser, desde a década de 1890, a mais populosa, sua taxa de

crescimento populacional aumenta bruscamente a partir de 1950. Os reflexos

desse aumento são visíveis principalmente nas décadas seguintes: entre 1950 e

1970, o número de habitantes da região sudeste sobe de 22 milhões para pouco

mais de 41 milhões de pessoas — um crescimento de 86%26. O dado mostra que, a

partir da década que Vargas toma posse, diversos fatores aumentam a velocidade

do crescimento populacional.

A mobilidade interna dos habitantes faz com que muitos migrantes

venham ao eixo Rio-São Paulo, principalmente da região nordeste, que apresenta

saldo migratório negativo de 936 mil pessoas em 1950. O êxodo rural foi

acentuado pelo aumento do número de indústrias no país. O fenômeno ocorre não

somente inter-regionalmente, como também de maneira intrarregional, ou seja,

com população rural se deslocando em direção aos centros urbanos da mesma

região em que vivem.

Os critérios para classificação da população em urbana ou rural são

subjetivos. A depender da metodologia adotada em cada país, são levados em

conta fatores administrativos, número de habitantes ou ocupação da população.

Deixando de lado essa discussão, levaremos em conta os critérios adotados pelos

recenseamentos feitos no Brasil. Entre 1940 e 1950, a população urbana aumenta

45,5%, enquanto a rural apenas 17,4%. Entre as décadas seguintes, 1950 e 1960,

a diferença percentual é maior: 72% contra 13,3%27. Mesmo com as taxas de

As vozes e Vargas

32

26 HUGON, P. Op. Cit. p. 173

27 Idem. p. 205

Page 33: As Vozes e Vargas

natalidade das áreas rurais sendo maiores, há crescimento acentuado nas regiões

urbanas, o que indica uma movimentação interna em direção a elas.

O progresso técnico nas plantações é um fator de repulsão dos

trabalhadores. Com máquinas para colher, plantar e arar a terra, a oferta por

empregos nas zonas agrícolas desenvolvidas diminui e parte da mão-de-obra fica

ociosa, levando a um excedente de população ativa. Até 1946, são utilizados seis

mil tratores no Brasil. Entre aquele ano e 1954, outros trinta mil, importados,

chegam às lavouras brasileiras28.

A relação entre a população urbana e a população rural do Brasil, em 1950,

indica que o país ainda era essencialmente agrícola: 64% das pessoas viviam no

campo. A tendência de fuga em direção às cidades se consolidou, e, em 1970, a

economia brasileira já é considerada industrial, com 56% dos habitantes vivendo

nas cidades.

Durante o primeiro governo de Getúlio Vargas, de 1930 a 1945, tanto houve

mecanização das zonas agrícolas quanto fomento à industrialização. Além disso,

várias grandes obras são realizadas na capital federal, abrindo um grande

número de vagas na construção civil. O projeto da avenida Presidente Vargas é

um exemplo. Pensada durante a presidência de Washington Luís, a obra

desapropriaria grande parte dos prédios entre as ruas São Pedro e General

Câmara, e se chamaria avenida das Bandeiras29 , em homenagem aos

bandeirantes paulistas. Por motivos diversos, entretanto, o projeto não é posto em

prática até o governo de Getúlio Vargas, que concede seu nome à nova via.

De São Borja ao Catete

33

28 Idem. p. 194

29 HENRIQUES, A. Ascensão e queda de Getúlio Vargas — o Estado Novo. Rio de Janeiro: Record, 1966. p. 51-2

Page 34: As Vozes e Vargas

O contexto em que Vargas assumiu a presidência pela primeira vez, em

1930, é de crise econômica, com o principal produto brasileiro, o café, em brusca

queda de preços no mercado internacional. Apesar do estouro da crise da

economia cafeeira só ocorrer durante a égide de Vargas, de toda a produção

cafeeira de 1927 a 1929, apenas dois terços foi exportado30 . As principais medidas

do governo para combater o problema são a compra e queima dos estoques.

A política econômica brasileira a partir de 1930 visa à superação do modelo

agroexportador, e não sua perpetuação. Desse modo, representa uma quebra em

relação às políticas econômicas anteriores31. O mercado consumidor interno se

torna, pouco a pouco, tão quanto ou mais importante que o externo. O volume de

exportações também diminui graças a uma política econômica de substituição de

importações, tornando a economia brasileira menos dependente. A acumulação de

capital é decisiva para o aumento do parque industrial no Brasil, assim como a

intervenção do estado, que cria empresas como a Companhia Siderúrgica

Nacional (CSN) — fundada em 1941 —, dando base para uma posterior

implantação, nos anos 1960, de indústrias de bens de consumo.

O golpe do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937, dá poderes

praticamente ilimitados a Getúlio Vargas. Com o apoio dos militares, o ditador

fecha todas as casas parlamentares do Brasil e passa a nomear interventores nos

estados. A presença estatal na economia aumenta, com uma tendência

centralizadora, e a industrialização passa a ser a linha mestra da política

econômica. A atuação do governo de Vargas a partir do Estado Novo, portanto,

pode ser interpretada como um aprofundamento das medidas tomadas durante o

As vozes e Vargas

34

30 FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Nacional, 1979. p. 183-5

31 FONSECA, P. Op. Cit. p. 147-8

Page 35: As Vozes e Vargas

governo provisório32 . No discurso que profere no dia em que toma o governo, o

ditador diz que o aparelho de Estado que existia até então “não se ajustava às

exigências da vida nacional; antes, dificultava-lhe a expansão e inibia-lhe os

movimentos”.

Portanto, a partir do Estado Novo — período que consideramos crucial

para que o capitalismo brasileiro se consolide, anos depois — são criadas as

condições para que as mudanças ocorridas na distribuição geográfica brasileira de

1950 em diante acontecessem. O processo, analisado em termos gerais, é claro.

Os moradores das cidades são o público leitor do que viria a ser o jornal Ultima

Hora, criado por Samuel Wainer com a ajuda do presidente. O apoio de Vargas é

indispensável para que Wainer possa sustentar seu novo empreendimento; por

outro lado, o apoio de Wainer é indispensável para que Vargas possa governar por

mais tempo. Por esse motivo, é preciso analisar as trajetórias do jornalista e do

jornal, que estão inseridas no contexto da modernização da imprensa durante a

década de 1950. Este é o assunto que trataremos no próximo capítulo.

De São Borja ao Catete

35

32 Idem. p. 147-50

Page 36: As Vozes e Vargas
Page 37: As Vozes e Vargas

Ultima Hora

Page 38: As Vozes e Vargas
Page 39: As Vozes e Vargas

A criação do jornal Ultima Hora está ligada diretamente à boa relação que

existe, em 1951, entre Samuel Wainer — o dono do diário — e o então presidente,

Getúlio Vargas. Apesar disso, a trajetória profissional de Wainer se cruza em

diversos pontos com o período anterior de Vargas no governo, apenas de maneira

inversa: como adversário, não como aliado.

O primeiro órgão da imprensa passível de citação pelo qual o jornalista

passou é Diretrizes, uma revista fortemente influenciada pelas vanguardas

artísticas do início do século XX e berço de uma intelectualidade emergente. No

quadro de Diretrizes estão figuras como Rubem Braga, Astrogildo Pereira — um

dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro (PCB) — e Azevedo Amaral.

Antes, Wainer trabalhara na Revista Contemporânea, publicada pela editora de

Caio Prado Júnior, que possui ideias alinhadas às da Aliança Nacional

Libertadora (ANL), que Getúlio Vargas desfez em 1937, durante a ditadura do

Estado Novo.

Durante a década de 1940, Diretrizes sofre censura prévia do

Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo. Apesar disso, até

1940, a publicação nunca tivera problemas com seu conteúdo. É naquele ano que

o DIP impõe o afastamento de Maurício Goulart, dono e colunista da revista.

Wainer passou a ser o proprietário de Diretrizes, e o DIP, momentaneamente, se

torna mais tolerante quanto ao conteúdo publicado. Mesmo assim, duas

reportagens são as responsáveis pelo declínio da revista. A primeira, uma

entrevista com Fernando Lacerda — tio de Carlos Lacerda e um dos mais famosos

integrantes do PCB —, rende ao entrevistado e a Wainer 28 dias de prisão. A

segunda e derradeira é mais uma entrevista, com o general Miguel Costa, um dos

comandantes da Coluna Prestes. O resultado, segundo o novo dono da revista,

não pode ser pior:

Ultima Hora

39

Page 40: As Vozes e Vargas

No dia 4 de julho de 1944, mandei o material para o DIP. Poucas horas

depois, recebi um aviso que significava uma sentença de morte para

Diretrizes: por ordem do diretor do DIP, a revista perdera o direito à cota

de papel que garantia sua impressão. (…)

Comuniquei ao pessoal da redação, por telefone ou pessoalmente, o

que acabara de ocorrer, e recomendei a todos que se dispersassem.

Tomadas essas providências, tomei um táxi e me refugiei na embaixada

do México. (…) Assim, quando o embaixador do México comunicou ao

Itamaraty que eu pedira asilo, emissários do governo esclareceram que

aquilo era desnecessário — eu obteria um visto de saída sem maiores

complicações.33

Após o período conturbado, Wainer viaja aos Estados Unidos, em exílio. O

jornalista se sustenta como correspondente de O Globo, veículo que, em 1954, se

tornaria adversário declarado do vindouro Ultima Hora. É, também, durante o

exílio que Wainer cobre o Julgamento de Nuremberg — o julgamento dos oficiais

nazistas —, sendo o único brasileiro no evento histórico. Além disso, entre 1945 e

1947, realiza diversas entrevistas e coberturas na Europa, como o julgamento dos

chefes de governo de Vichy34. De volta ao Brasil, já com fama e credibilidade

consolidadas, Samuel Wainer é contratado como chefe de redação de O Jornal,

um dos principais veículos dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. E é

neste jornal que realiza a entrevista que mudou os rumos de sua carreira.

Acompanhado de um fotógrafo de O Jornal, Wainer viaja a São Borja, Rio

Grande do Sul, a trabalho. Aqui há uma bifurcação na história: em sua auto-

biografia, Wainer afirma que havia sido enviado à cidade para escrever uma

pauta sobre a produção de trigo local. Segundo esta versão, falar com o Getúlio

As vozes e Vargas

40

33 WAINER, S. Minha razão de viver — memórias de um repórter. Rio de Janeiro: Record, 1987. p. 67

34 Idem. p. 90-5

Page 41: As Vozes e Vargas

Vargas, então um ex-presidente recluso na fazenda Itu, teria sido ideia do próprio

Wainer. Apesar disso,

a versão de que fazer a entrevista tinha sido decisão sua [Wainer] e não

uma ordem de Chateaubriand, no entanto, é contestada por todos os seus

colegas de direção dos Associados na época — Carlos Castelo Branco,

Austregésilo de Athayde e Freddy Chateaubriand, entre outros — que

sustentam que o patrão o enviou ao Sul com a missão específica de

entrevistar Vargas. A tal reportagem do trigo teria sido, segundo esses

depoimentos, um mero pretexto para justificar a viagem do repórter ao Rio

Grande do Sul.35

Ainda de acordo com Morais, antes do encontro em São Borja, Wainer e Vargas

haviam se visto apenas ocasionalmente, nos corredores do senado.

Não fazendo diferença de quem foi a ideia, fato é que a entrevista, escrita

por Wainer e publicada em O Jornal, fez com que Vargas reaparecesse no plano

político nacional — apesar de, reiteramos, nunca ter deixado de exercer forte

influência no plano regional.

Após a eleição de Getúlio Vargas, o presidente convida Samuel Wainer a se

tornar dono de seu próprio jornal. Essa e a versão do próprio Wainer, em suas

memórias, segundo a qual o barão Assis Chateaubriand teria ficado muito

irritado com a decisão do então repórter de O Jornal. Em “Botando os pingos nos

is — as inverdades nas memórias de Samuel Wainer”, o ex-assessor de imprensa

de Vargas, Rivadávia de Souza, conta que, na verdade, o próprio Wainer deu a

Ultima Hora

41

35 MORAIS, F. Chatô — o rei do Brasil. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2001. p. 495

Page 42: As Vozes e Vargas

ideia ao presidente36. Dito por não dito, não demorou para que Wainer começasse

a se articular para viabilizar a existência de Ultima Hora.

A redação do Diário Carioca, um jornal essencialmente anti-Vargas, ficava

na avenida Presidente Vargas. Lá também ficava a editora “Érica”, que pertencia

ao jornal e tinha um dos parques gráficos mais modernos do Brasil. Mesmo com

uma equipe de redação moderna e com técnicas trazidas do jornalismo

estadunidense, o Diário Carioca passava por uma situação financeira ruim.

Samuel Wainer ficou sabendo disso, como conta em suas memórias, através de

José Jobim, irmão de Dantom Jobim, redator-chefe do DC. Assim sucedeu-se a

compra da empresa “Érica”: com dinheiro emprestado dos banqueiros Walter

Moreira Salles e Ricardo Jafet (presidente do Banco do Brasil), e do industrial

Euvaldo Lodi, Wainer adquire todo o parque gráfico que pertencia ao Diário

Carioca. No contrato de compra e venda, estava prevista a impressão, por dois

anos, do DC, garantindo a subsistência do periódico. Graças à boa qualidade da

gráfica, era possível imprimir Ultima Hora com o logo azul, “da cor dos olhos do

dono”, como havia prometido o diagramador André Guevara a Samuel Wainer.

Perante a maneira como os fatos ocorridos em agosto de 1954 são

noticiados pelo Ultima Hora, é possível determinar quatro movimentos que têm

como intuito a defesa do PTB e de Getúlio Vargas.

O primeiro, e mais importante, é o descrédito empregado aos adversários

da imprensa, nominalmente citados: Diários Associados, de Assis Chateaubriand;

Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda; e O Globo, de Roberto Marinho. Na

contramão do primeiro movimento, aparece a exaltação das qualidades de

petebistas, principalmente Lutero Vargas, João Goulart e, claro, o presidente

As vozes e Vargas

42

36 SOUZA, R. Botando os pingos nos is — as inverdades nas memórias de Samuel Wainer. Rio de Janeiro: Record, 1989.

Page 43: As Vozes e Vargas

Getúlio Vargas. Com o passar das investigações, e o envolvimento de Gregório

Fortunato com o Atentado da rua Toneleros, a maneira como as notícias são

colocas tende a desvincular a imagem de Vargas da imagem do ex-guarda; além

disso, os outros acusados são tratados como criminosos profissionais. Em todos os

momentos, até mesmo após o suicídio do presidente, os militares — tanto os

presentes no governo, como ministros, quanto os ausentes — foram tratados como

aliados.

Ao longo das próximas páginas, mostraremos cada um dos quatro tópicos

apresentados no parágrafo anterior, através de textos publicados no Ultima Hora

em agosto de 1954. Apesar dessa delimitação temporal, a posse de João Goulart

como Ministro do Trabalho, em 19 de junho de 1953, também foi considerada,

para fins de exemplificação.

Ultima Hora

43

Page 44: As Vozes e Vargas

Os adversários

Como dono da Tribuna da Imprensa, nada mais esperado que Carlos

Lacerda, udenista fervoroso, ataque Vargas e seu governo através do diário. Desse

modo, Lacerda é o principal adversário de Wainer e do Ultima Hora. Apesar

disso, como vítima no Atentado da rua Toneleros, o político da UDN não é

atacado de forma direta nos textos do jornal de Wainer — ao menos até a morte

de Vargas, em 24 de agosto.

O descrédito da imagem de Carlos Lacerda está diretamente vinculado ao

crédito dado ao major Ruben Florentino Vaz, que morrera no atentado. Em todas

as passagens em que ferimento no pé de Lacerda é citado, a morte de Vaz vem

logo em seguida, quase como um lembrete de que o udenista não fora o maior

prejudicado:

Foram de intensa movimentação as últimas quarenta e oito horas no

Palácio do Catete, em consequência dos inesperados e surpreendentes

rumos que tomaram as investigações em torno do bárbaro crime da rua

Toneleros em que perdeu a vida o major Rubens Vaz e saiu ferido o

jornalista Carlos Lacerda.37

Além disso, petebistas, como Lutero Vargas, negaram publicamente que o

jornalista tenha levado um tiro38. Levando em conta os padrões sociais da década

de 1950, o comportamento masculino perante uma situação de perigo deveria ser

corajoso — o que, como os textos de Ultima Hora insinuam, não foi o caso de

As vozes e Vargas

44

37 Ficaram acesas até tarde as luzes no Palácio do Catete. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 9 de agosto de 1954. p. 2

38 RIBEIRO, J. A era Vargas — agosto 1954. Rio de Janeiro: Casa Jorge, 2001. p. 9

Page 45: As Vozes e Vargas

Lacerda. Esse argumento é usado mais uma vez em chamada na primeira página,

em frase atribuída ao pistoleiro João Alcino: “Enquanto o major Vaz procurava

revidar, Carlos Lacerda corria para a garagem”39.

Através da voz oficial do coronel Adil de Oliveira, responsável pelo

Inquérito Policial-Militar (IPM) que investigou o assassinato de Vaz — a

conhecida “República do Galeão” —, o Ultima Hora confere descrédito à briga do

dono da Tribuna da Imprensa com Vargas. Sob o sub-título “Lacerda briga com

muita gente”, é atribuída a seguinte frase ao militar: “Lacerda briga com muita

gente, prosseguiu o coronel Adil de Oliveira. E não só com gente do governo”40.

O descrédito à Tribuna da Imprensa é sempre personificado à imagem de

Carlos Lacerda. Durante todo o mês de agosto, há apenas um ataque direto ao

jornal concorrente. Mesmo assim, ele é feito contra o seu dono. O texto aproveita,

ainda, para ligar a Rádio Globo — outra adversária de Vargas e Wainer — à

Tribuna da Imprensa e a Lacerda.

[Carlos Lacerda] Confessou, ontem, pela “Rádio Globo”, que há vários

dias já sabia que Lutero não era o mandante do atentado da rua

Toneleros, mas continuou divulgando, na “Tribuna da Imprensa”, essa

mentira consciente.41

O verbo utilizado neste caso, “confessar”, é cuidadosamente escolhido, uma vez

que, para “confessar” algo, é necessário ter culpa.

Ultima Hora

45

39 Declara o pistoleiro Alcino no seu depoimento. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1954. p. 1

40 Primeiras fotos dos pistoleiros!. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1954. p. 2

41 Lacerda sabia que Lutero não era o mandante!. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1954. p. 1

Page 46: As Vozes e Vargas

Ao citar um caso de informação falsa, ou “mentira consciente”, do Tribuna

da Imprensa próximo a uma citação da Rádio Globo, o texto do Ultima Hora

acaba por atribuir os mesmos valores aos dois veículos. Ou seja: se um mente, o

outro também. Mesmo que não sendo um ataque direto, a passagem é uma das

formas de descreditar também O Globo e todos os veículos de Roberto Marinho.

Há apenas um ataque direto, dentre os textos analisados, direcionado à

família Marinho. Em 3 de junho de 1953, uma Comissão Parlamentar de

Inquérito (CPI) é instaurada para investigar a relação entre o Ultima Hora e o

Banco do Brasil, através da resolução número 313. Concomitante a essa

investigação, é realizada uma outra, por meio da resolução 314, que pretende

investigar a relação do banco estatal com os jornais impressos em geral. Ambas

as CPIs foram encerradas em novembro daquele ano — chegando à conclusão de

que as empresas jornalísticas tinham regalias como um todo. Mesmo assim,

talvez no afã de reverter a campanha que Vargas e seu jornal sofriam, Wainer

publica, na mesma edição citada acima, as dívidas de O Globo e dos Diários

Associados nas páginas do Ultima Hora.

Finalmente, ontem, após laborioso parto, foi dado à publicidade pela

mesa da Câmara dos Deputados, o relatório da Comissão Parlamentar de

Inquérito sobre as transações do Banco do Brasil com a imprensa falada e

escrita do país.42

Mesmo que houvesse dívidas do próprio Ultima Hora, há uma tentativa de

justificar a publicação apenas das dívidas alheias:

As vozes e Vargas

46

42 Divulgadas as dívidas dos “Diários Associados” e do “Grupo Roberto Marinho” no Banco do Brasil. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1954. p. 4

Page 47: As Vozes e Vargas

Tratando-se de um documento muito extenso, divulgamos hoje aqui

apenas a parte referente aos dois grupos jornalísticos e radiofônicos, cujas

dívidas com o nosso principal estabelecimento de crédito assumem

proporções mais vastas: o “Grupo Chateaubriand” e o “Grupo Roberto

Marinho”.43

O texto ainda chama a atenção para a “atitude covarde e indigna do

presidente da Comissão Parlamentar, o deputado Castilho Cabral”, do Partido

Social Progressista (PSP), “que, contrariando os objetivos dessa comissão, não

exigiu de seus componentes, inclusive o relator Guilherme Machado”, da UDN,

“conclusões sobre o caráter irregular dessas operações”44. É necessário lembrar

que Carlos Castilho Cabral, o presidente da CPI, fora fundador da União

Democrática Nacional, antes de se filiar ao PSP. Em outubro de 1954, se elegeria

deputado pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN).

Três empresas relacionadas ao “Grupo Roberto Marinho” são mencionadas

no relatório publicado: Rádio Globo S.A., com uma dívida de 36.574.945 cruzeiros;

Viúva Irineu Marinho e Filhos (e Outros), devendo 3.103.573 cruzeiros; e,

finalmente, Empresa Jornalística Brasileira S.A., com débito de 16.606.976

cruzeiros.

Ultima Hora

47

43 Idem.

44 Idem.

Page 48: As Vozes e Vargas

Os militares

Apesar de os livros de história apontarem, genericamente, os agentes

militares da crise, que organizaram a “República do Galeão”, como adversários

políticos de Vargas, em nenhuma momento o Ultima Hora expõe os generais e

brigadeiros dessa forma. Na verdade, os textos coletados deixam explícito apenas

cautela e respeito no tratamento dispensado a eles. Além disso, tentam

aproximar tanto Getúlio quanto Lutero Vargas das “causas” supostamente

defendidas pelos militares — principalmente a defesa de legalidade.

Em carta publicada imediatamente após o Atentado da rua Toneleros,

Lutero Vargas ressalta, em diversas passagens, que serviu na Segunda Guerra

Mundial como médico da Aeronáutica — a mesma arma, afinal, da vítima fatal do

tiroteio, o major Rubens Vaz. Após discorrer sobre a confiança que tem nos

tribunais brasileiros, o deputado federal e presidente do PTB no Distrito Federal

vai direto ao ponto:

Como segundo tenente da Aeronáutica, classe a que me liguei mais

fraternalmente nos campos de batalha da Itália, onde servi como médico

do Primeiro Grupo de Caça, manifesto mais uma vez os meus sentimentos

de pesar pelo ocorrido, recordando hoje com mais emoção do que nunca

todos os momentos em que, como um só homem, estivemos lado a lado na

luta por ideias comuns.45

Citar seu passado militar é uma forma que Lutero Vargas encontra de criar

empatia nas Forças Armadas, principalmente na Aeronáutica. No meio de uma

As vozes e Vargas

48

45 “Enquanto meu pai for presidente da República, eu me empenharei para que Carlos Lacerda não sofra qualquer atentado”. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 6 de agosto de 1954. p. 1

Page 49: As Vozes e Vargas

crise política latente, permeada de diversos elementos de colisão — mas que,

àquela altura, ainda não havia eclodido completamente —, ter os militares como

opositores era algo, como se vê, totalmente indesejável.

Outro ponto importante da abordagem dada pelo diário de Wainer aos

militares é o uso da voz oficial dos integrantes da “República do Galeão”. O

general Caiado de Castro, chefe do Gabinete Militar da Presidência da República

— e um dos principais responsáveis pelo IPM —, por exemplo, é consultado como

fonte em uma extensa reportagem publicada no dia 19 de agosto. Além disso, o

Ultima Hora, ao utilizar a voz oficial de outro coronel, Adil de Oliveira, aproveita

para desacreditar, mais uma vez, a imagem de O Globo:

Ao iniciar sua palestra com os jornalistas, o Coronel Adil referiu-se

indignado às publicações de “O Globo”, nas quais foram publicadas

declarações suas apontando como mandante do crime uma alta figura da

República.

— Eu próprio não sei quem teria mandado assassinar o major,

afirmou diante da reportagem de todos os jornais, o coronel encarregado

do inquérito.46

Além de “indignado”, o coronel Adil de Oliveira fez suas afirmações “diante da

reportagem de todos os jornais”, o que, em tese, aumenta a credibilidade do que

foi publicado, uma vez que há testemunhas.

O tom oficial do que é dito pelos militares ainda é aproveitado para

desfazer supostos boatos — que, não necessariamente, sejam boatos. A apreensão

das cartas do ex-chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas, Gregório Fortunato,

foi noticiada de maneira tímida pelo Ultima Hora, com uma pequena nota

Ultima Hora

49

46 Primeiras fotos dos pistoleiros!. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1954. p. 2

Page 50: As Vozes e Vargas

localizada no canto inferior-direito de uma página interna do jornal. O texto, na

íntegra, é o seguinte:

Na manhã de hoje, o coronel Adil de Oliveira, representante da

Aeronáutica no Inquérito Policial-Militar para apurar o crime da rua

Toneleros, esteve no Palácio do Catete, acompanhando o investigador João

Valente, sub-chefe da extinta guarda pessoal da Presidência da República

que está preso incomunicável sob a vigilância imediata de um tenente da

Aeronáutica e de duas praças.

O objetivo da diligência foi o de levar todo o arquivo de

correspondência particular do tenente Gregório, constituído de milhares

de cartas. A diligência foi rápida, durando apenas cerca de 10 minutos.47

Ao ler as explicações dadas pelo mesmo Adil de Oliveira, dois dias depois, é

preciso nos questionarmos se, levando em conta a relevância da notícia acima — e

o modo como foi publicada —, Vargas não estaria perdendo as rédeas dos

acontecimentos até mesmo no Catete:

Esclarecendo a apreensão, no Palácio do Catete, do arquivo onde se

continha a correspondência particular do tenente Gregório, o coronel Adil

disse que não foi feita uma diligência invadindo o Catete, como se quis

fazer crer. Mas, sim, foram postos à sua disposição pelo general Caiado de

Castro, esses arquivos que poderiam ser elementos úteis a apuração dos

fatos.48

Ainda como modo de aproveitar o que é dito pelos militares, os textos

publicados no Ultima Hora ressaltam que, segundo os coronéis da “República do

As vozes e Vargas

50

47 Apreendida, esta manhã, no Catete a correspondência particular do ten. Gregório. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1954. p. 3

48 Primeiras fotos dos pistoleiros!. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1954. p. 2

Page 51: As Vozes e Vargas

Galeão”, Getúlio Vargas e o Palácio do Catete estão dando total apoio às

investigações — em consonância com o que é dito por Lutero Vargas em 6 de

agosto. Desse modo, as claras desconfianças que recaem sobre o governo, porque o

adversário Carlos Lacerda fora o principal alvejado no atentado, seriam

infundadas. Ou seriam, pelo menos, equivocadas. Mais uma vez, fala o coronel

Adil de Oliveira:

— Como poderia, portanto, estar eu apontando como mandante uma alta

figura do governo? Quanto ao deputado Lutero Vargas, cada vez acredito

menos na sua culpa. A comissão não tem elementos que o apontem como

suspeito. A imprensa é que o acusou como possível mandante.

E mais adiante, frisou incisivamente o Coronel Adil de Oliveira,

respondendo a uma verdadeira saraivada de perguntas que lhe faziam os

repórteres:

— O deputado Lutero Vargas apresentou-se espontaneamente à

Comissão de Inquérito Policial Militar, e suas informações foram de

máxima utilidade na elucidação dos fatos. Várias investigações foram

feitas baseadas nessas informações.49

A única exceção dentre os aspectos atribuídos aos militares, no que diz

respeito a uma voz oficial endossando o que é afirmado pelo jornal, é o motivo pelo

qual o Inquérito Policial-Militar, a “República do Galeão”, é tão fechada em si.

Apesar de citar, mais uma vez, o coronel Adil de Oliveira, o texto faz uso da voz

passiva, que aumenta a subjetividade.

Diante da estranheza dos repórteres, sobre a vigilância e o aparato bélico

em que se encontra a Base Aérea do Galeão, o que dificulta a cobertura

jornalística, esclareceu o Coronel Adil que, além da própria segurança em

Ultima Hora

51

49 Idem.

Page 52: As Vozes e Vargas

torno do inquérito, há necessidade de se estabelecer segurança para os

presos, que assim exigem. Daí não considerar, ele, como excessiva, aquela

vigilância, mas sim necessária.50

O discurso de que o governo está empenhado em encontrar a solução do

inquérito vai ao encontro do modo com que os acusados são apresentados pelo

jornal petebista. Com o passar dos dias, fica clara uma tentativa de afastar os

acusados das figuras do Palácio do Catete — principalmente o acusado mais

próximo, Gregório Fortunato.

As vozes e Vargas

52

50 Idem.

Page 53: As Vozes e Vargas

Os acusados

“Capturado vivo na selva o assassino do major Vaz!”51 É assim que, em 17

de agosto, o diário de Samuel Wainer noticia a prisão de João Alcino do

Nascimento, o atirador que matou o major Vaz. Não tarda para que, com o

desenrolar da investigação, Alcino aponte Climério Euribes de Almeida, que

compõe a guarda pessoal de Getúlio Vargas, como a pessoa que o contratou para

disparar. Uma coisa leva à outra e, logo em seguida, o chefe da guarda pessoal,

Gregório Fortunato, o “Anjo Negro”, também vai preso, assim como João Valente

de Sousa, outro integrante da guarda pessoal.

A preocupação do Ultima Hora, em relação aos acusados, é distanciá-los o

máximo possível de Getúlio e Lutero Vargas — desacreditando, assim, a hipótese

de que o presidente ou de que o deputado federal sejam mandantes do atentado.

— A ordem para a concretização do crime não partiu do governo. Governo

é governo; Catete é apenas uma residência, na qual encontram-se

cozinheiros, motoristas e servidores outros, por cujas ações ninguém

poderá responsabilizar o governo.52

Um dos principais problemas para a sustentação da tese de que Gregório

Fortunato havia agido por interesse próprio é o dinheiro dado ao atirador João

Alcino. Não há dificuldade em explicar isso também:

Ultima Hora

53

51 Capturado vivo na selva o assassino do major Vaz!. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1954. p. 1

52 Primeira fotos dos pistoleiros!. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1954. p. 2

Page 54: As Vozes e Vargas

Como lhe fosse perguntado a impossibilidade de Gregório, como simples

serviçal, com ordenado de apenas mil cruzeiros, ter financiado a fuga e os

gastos na execução do atentado, informou o coronel Adil:

— Gregório é um homem de negócios. É um homem rico.

Fazendeiro. E eu, como gaúcho e seu vizinho, conheço muito bem sua

situação financeira. Acredito, porém, que, além de Gregório, haja mais

alguém na história. Posso, entretanto, afirmar que nada existe contra

Jango Goulart, Lutero Vargas ou Benjamin Vargas.53

Todos os pontos apresentados anteriormente têm um único objetivo:

proteger o PTB e, principalmente, Getúlio Vargas. Apesar dos subterfúgios para

mascarar tal fim, o Ultima Hora não se fez de desentendido e também defendeu o

presidente de maneira aberta, como veremos a seguir.

As vozes e Vargas

54

53 Idem.

Page 55: As Vozes e Vargas

Os aliados

O anúncio de João Goulart para o cargo de ministro do Trabalho

desencadeia a reação contra-varguista da UDN. Apesar de Carlos Lacerda e os

udenistas fazerem oposição ao governo desde o primeiro minuto após a eleição, 19

de junho de 1953 é uma data que explica em grande parte o desenrolar dos fatos

no ano seguinte.

Influenciados pelo macartismo nos Estados Unidos, em plena Guerra Fria,

os udenistas veem Jango como uma ameaça à Nação. O discurso do novo ministro

do Trabalho vai além do discurso de ajuda aos trabalhadores de Vargas. Jango

defende, por exemplo, o fortalecimento dos sindicatos — ideia que estremece os

setores reacionários da sociedade brasileira. No discurso de posse, Goulart

pronuncia, com todas as letras, que não tem “outros compromissos senão com o

povo, no mais amplo sentido da expressão, e especialmente com o proletariado,

em cujo meio” tem o orgulho de contar “com inúmeras amizades”54.

A maneira encontrada pelo jornal para amenizar o discurso radical é

apelar para o apoio popular. No primeiro parágrafo da notícia, o leitor é

preparado para o que está por vir:

A posse do ministro do Trabalho João Goulart constituiu um ato festivo

para os trabalhadores. Porque, muito antes das 17h, já estavam

superlotadas as salas do seu gabinete. Inúmeros operários, dirigentes

sindicais, representações oficiais, funcionários do Ministério do Trabalho,

jornalistas e amigos de Jango estavam ali presentes para cumprimentá-lo.

Quase não se podia andar no oitavo andar do Palácio do Trabalho. Em

Ultima Hora

55

54 Mobilização das massas através do sindicato. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 19 de junho de 1953. p. 2

Page 56: As Vozes e Vargas

frente ao Ministério, trabalhadores faziam espoucar foguetes. Eram

marítimos, estivadores, operários das fábricas, metalúrgicos, portuários,

enfim, membros dos mais variados setores profissionais foram

homenagear o jovem líder petebista.55

Por sua vez, para defender Lutero Vargas, o Ultima Hora chama a atenção

pela notícia sobre a abdicação dos direitos especiais que o petebista teria como

deputado federal. Além disso, o fato de ser médico e ex-combatente de guerra

também soma à credibilidade de Lutero Vargas — levando em conta a sociedade

brasileira da década de 1950. Até mesmo a chamada de primeira página, “Lutero

Vargas renuncia às imunidades para que surja toda a verdade!”56 , mostra quais

são as supostas motivações do petebista, a solução do caso. Outras manchetes, na

mesma primeira página, evidenciam outros aspectos da decisão do deputado

federal:

Num gesto inédito na história de nosso Congresso, Lutero não quer ser

tratado pelas autoridades nem como deputado, nem como filho do

presidente da República. — “Estou disposto a ir até as últimas

consequências para que a Câmara atenda o meu apelo” — Durante dois

dias Lutero lutou com os seus companheiros de direção do PTB, que não

concordavam com a sua decisão — Getúlio aprovou comovido a atitude do

filho — Sereno e despreocupado, Lutero mostrou-se ansioso por enfrentar

seus detratores.57

As vozes e Vargas

56

55 Idem.

56 Lutero Vargas renuncia às imunidades para que surja toda a verdade!. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1954. p. 1

57 “Trama urdida pretende atingir a meu pai através do meu nome”. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1954. p. 1

Page 57: As Vozes e Vargas

A passagem acima deixa clara dois aspectos da sociedade e da política brasileira

da época: o favorecimento dos familiares, já que “nem como filho do presidente da

República” Lutero Vargas quer ser tratado — a frase pressupõe que o filho do

presidente deveria ter regalias —; e, através do apelo pai-e-filho, a importância da

honra masculina, uma vez que Getúlio Vargas ficou emocionado com o filho, não

com o deputado federal nem com o presidente do PTB no Distrito Federal.

Por fim, a defesa de Getúlio Vargas é posta como quase-óbvia pelo Ultima

Hora durante toda a crise. O presidente da República é apresentado como aquele

que tenta trazer justiça social ao Brasil. Uma notícia totalmente alheia à crise

política, sobre os funcionários públicos extranumerários, deixa clara a imagem

semi-messiânica que é atribuída a Vargas. O título dá a dimensão: “Vargas

beneficiou milhares de famílias, efetivando os extranumerários da União”. Para

endossar o que foi dito, o texto traz uma fonte oficial:

A propósito, ouvido pela ULTIMA HORA, o líder Lycio Hauer, presidente

da UNSP, e também candidato a deputado federal, assim se expressou:

— “Foi uma grande vitória da classe. O sancionamento do decreto

de efetivação dos extranumerários pelo presidente da República veio

beneficiar milhares de famílias brasileiras, aproximadamente umas cento

e trinta mil. (...)”58

O texto omite apenas um detalhe: Lycio Hauer, além de presidente da União

Nacional dos Servidores Públicos, concorria a uma vaga de deputado federal pelo

PTB — e acabaria eleito.

Ultima Hora

57

58 Vargas beneficiou milhares de famílias, efetivando os extranumerários da União. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 10 de agosto de 1954. p. 2

Page 58: As Vozes e Vargas

Considerações finais

A propaganda política foi um importante instrumento durante o Estado

Novo. No governo de Vargas durante a década de 1950, Ultima Hora pode ser

visto como a maneira que o presidente encontrou para manter a prática de

propaganda política, mas de maneira não-institucional. Com o total apoio de

Wainer, Getúlio Vargas tinha a garantia de que, no mínimo, um jornal iria apoiá-

lo.

O alinhamento à ideologia petebista, entretanto, não tira os méritos

jornalísticos do diário de Samuel Wainer. Ao aproximar-se da zona norte carioca e

aumentar a cobertura esportiva, por exemplo, Ultima Hora se insere no contexto

da modernização da imprensa — ao contrário de O Globo, que não foi pioneiro

nessas mudanças.

A batalha que se travou na imprensa em agosto de 1954 só foi possível

porque os dois lados — duas ideologias, representando um choque entre as

classes dominantes — estavam representados. Ultima Hora representava, como

foi explicado, o projeto petebista de desenvolvimento para o Brasil; por outro lado,

diversos outros jornais, principalmente Tribuna da Imprensa e O Globo, queriam

ver implementado o projeto udenista, e se esforçavam para que, através deste

campo de batalha que se tornara a imprensa brasileira, convencessem o

eleitorado.

As vozes e Vargas

58

Page 59: As Vozes e Vargas

O Globo

Page 60: As Vozes e Vargas
Page 61: As Vozes e Vargas

Para analisarmos a posição de O Globo nos episódios ocorridos em agosto

de 1954, ao contrário do que acontece com Ultima Hora, não é imprescindível

uma retrospectiva histórica ampla do diário. O jornal petebista, apresentado no

capítulo anterior, é criado como um instrumento de dominação e criação da

hegemonia de Vargas; é criado como um Aparelho Ideológico de Estado, pura e

simplesmente. No caso de O Globo, não — o periódico de Roberto Marinho não foi

criado com o intuito claro de obedecer a uma demanda ideológica. Por esse

motivo, o panorama apresentado a seguir é propositadamente enxuto.

O Globo não foi o primeiro jornal fundado por Irineu Marinho. Em 1911, A

Noite chega às ruas cariocas. Apesar do relativo sucesso do diário, “em 1924,

aproveitando-se de que Marinho estava na Europa em tratamento de saúde, seu

sócio, Geraldo Rocha, passou-lhe a perna e tomou-lhe o jornal”59. No ano seguinte,

em 29 de julho, O Globo se torna realidade. Talvez tarde demais, uma vez que, 21

dias após o debute, Irineu Marinho é encontrado morto pelo seu filho Roberto,

após um enfarte.

Roberto Marinho, então com 21 anos de idade, sugere que Euricles de

Matos, secretário de redação de O Globo, assuma a direção do jornal. Segundo

Ribeiro, entretanto, a ideia de que o diário fosse assumido por Euricles de Matos

teria vindo de Francisca Marinho, viúva de Irineu, por considerar Roberto ainda

muito inexperiente60. Até então, Roberto Marinho só trabalhara como copidesque

do jornal. Matos é incumbido de ensinar a Marinho as artimanhas de comandar

uma redação. Alguns anos depois, em maio de 1931, com a morte de Euricles de

O Globo

61

59 CASTRO, R. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 115

60 RIBEIRO, A. Op. Cit. p. 90

Page 62: As Vozes e Vargas

Matos, Roberto Marinho se sentiria pronto a assumir, finalmente, o segundo

jornal fundado por seu pai.

O principal exemplo de que O Globo, ao contrário de Ultima Hora, obedece

mais a anseios mercadológicos que ideológicos, é a campanha pró-Aliança Liberal,

na década de 1930. Com Getúlio Vargas e João Pessoa como candidatos, em

oposição a Júlio Prestes, O Globo apóia Vargas. Roberto Marinho, na época,

chegou a participar do conselho do Departamento de Imprensa e Propaganda

(DIP)61 . Em 1954, com o ex-ditador novamente no poder, a posição do jornal seria

diametralmente oposta.

O ponto é que O Globo define sua postura editorial a depender dos grupos

hegemônicos e das disputas que acontecem pelo poder. Esse comportamento, se

comparado ao comportamento do jornal de Samuel Wainer, é totalmente distinto.

Ultima Hora é um jornal petebista, desde sua criação até sua extinção. O Globo

não apóia a UDN por possuir uma vinculação direta com a UDN, mas por

concordar parcial ou integralmente com a ideologia do partido.

Os textos que analisaremos de O Globo compreendem o mesmo espaço

temporal dos textos analisados de Ultima Hora. Assim como no capítulo anterior,

abriremos a exceção para os dias 18 e 19 de junho de 1953, durante a reforma

ministerial arquitetada por Getúlio Vargas, que julgamos ser relevante para o

objetivo da pesquisa. Além disso, a exemplo do texto assinado por Lutero Vargas

publicado em Ultima Hora na edição do dia 6 de agosto de 1954 — a data do

Atentado da rua Toneleros.

Na conjuntura de 1954, “era no espaço dos jornais que se dava a luta

política”. Mas, apesar disso, o principal adversário de Getúlio Vargas perante a

opinião pública, Carlos Lacerda, “deixou-se levar pelo talento retórico

As vozes e Vargas

62

61 RIBEIRO, A. Op. Cit. p. 90

Page 63: As Vozes e Vargas

extraordinário, especializando-se nas tiradas irônicas mas sem conteúdo, no jogo

de palavras e no sofisma, o que pode ter contribuído para a relativa

desimportância de suas ideias”. Por isso, conclui Bernardo Kucinski, “essa

dimensão da luta entre Lacerda e Wainer pode parecer inexplicável para o leitor

não familiarizado com a história da imprensa brasileira. Pode ficar a impressão

de que o jornal de Lacerda era importante, quando não era”62.

Levando em conta, portanto, que a Tribuna da Imprensa não tem fôlego

suficiente para travar uma campanha anti-Vargas sozinha — principalmente se

compararmos as tiragens daquele jornal às da Ultima Hora —, a ideologia

udenista conta, necessariamente, com o apoio de outros veículos da imprensa. No

Rio de Janeiro, O Globo cumpre o papel de propagar a voz de Carlos Lacerda,

dando maior visibilidade aos ataques contra o presidente da República na capital

federal.

O apoio do jornal de Roberto Marinho à UDN não é comparável ao apoio do

periódico de Samuel Wainer ao PTB. Em Ultima Hora, fala-se abertamente de

como o projeto do presidente da República é bom para o povo, para os

trabalhadores. Em O Globo, o projeto udenista aparece principalmente pela voz

de Carlos Lacerda, nem tanto através do próprio O Globo. Em síntese: o principal

apoio dado por O Globo para a campanha de Lacerda é aumentar o alcance da voz

do político udenista.

Durante a reforma ministerial de 1953, o estardalhaço em volta da

indicação de João Goulart, petebista de São Borja, como Vargas, não é mera

preocupação eleitoral. Em plena época do macartismo norte-americano, com a

consolidação da Guerra Fria, o avanço do comunismo na América Latina é uma

O Globo

63

62 KUCINSKI, B. A síndrome da antena parabólica. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998. p. 156-60

Page 64: As Vozes e Vargas

preocupação real. (Essa preocupação atingiria o auge na década de 1960, após a

Revolução Cubana.) Desse modo, um ministro que fala em “reivindicações do

operariado”63 faz arrepiar a espinha dos partidos conservadores.

Mesmo assim, em 19 de junho de 1953, a principal notícia de O Globo não é

a posse de João Goulart, e sim a posse de Oswaldo Aranha, novo ministro da

Fazenda. Disso, é possível depreender dois pontos importantes: o público leitor de

O Globo, comparado ao de Ultima Hora, é mais elitizado — porque questões como

entrada de capital estrangeiro e comércio exterior, tratados na reportagem, não

fazem parte do cotidiano dos trabalhadores —; e o projeto udenista de

industrialização do Brasil através da entrada de capital externo já era apoiado

pelo jornal no ano anterior à campanha de Lacerda.

A escolha do novo ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha — que combatera

Getúlio durante o Estado Novo —, é encarada como boa pela publicação, pesando

o apoio à oposição. O título do texto, uma frase atribuída a Aranha, é positivo:

“Servir ao Brasil sem dele me servir”. Além disso, em diversas passagens da

reportagem é possível ver temas relacionados ao projeto udenista e que,

aparentemente, terão apoio de Oswaldo Aranha. Abaixo dos sub-título “Situação

de devedor” e “Capitais estrangeiros”, vem o seguinte trecho:

O sr. Oswaldo Aranha comentou com os presentes, na biblioteca, a atual

situação do Brasil, que é de devedor para quem, consequentemente, tudo

corre difícil. Temos de vender por menos e comprar por mais, e muitas

vezes sujeitar-nos a nada receber. (…) Manifestou-se o sr. Oswaldo

Aranha, no decorrer da conversa, sobre o problema dos capitais

estrangeiros. É favorável à aplicação desses capitais.64

As vozes e Vargas

64

63 Mobilização das massas através do sindicato. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 19 de junho de 1953. p. 2

64 “Servir ao Brasil sem dele me servir”. O GLOBO. Rio de Janeiro, 18 de junho de 1953. p. 6

Page 65: As Vozes e Vargas

Podemos perceber que, apesar de ser favorável à escolha de Aranha para a pasta

da Fazenda, o jornal acredita que mudanças devem ser feitas na política

econômica adotada por Vargas. Porque, como “tudo corre difícil”, os capitais

estrangeiros — que são pouco utilizados, em detrimento do capital nacional —

são um “problema”.

É preciso também observar que, enquanto um ex-opositor de Vargas leva

grande destaque, a mudança ministerial mais importante, dada a conjuntura — a

de Jango —, aparece apenas no 13º sub-título do texto, o penúltimo. E, mesmo

assim, o último sub-título volta a tratar da posse de Oswaldo Aranha.

O Globo

65

Page 66: As Vozes e Vargas

Toneleros

Como não poderia deixar de ser, após o ataque a Carlos Lacerda e ao major

Rubens Vaz, O Globo se posiciona a favor das vítimas — porém toma certa

distância, e não ataca Lutero e Getúlio Vargas logo nas primeiras edições. Em 5

de agosto, dia do atentado, a capa do jornal traz uma frase atribuída ao

brigadeiro Eduardo Gomes. “Para honra da nação brasileira, confio que esse

crime não ficará impune”65. O principal ponto a observarmos é que, mesmo sem

nenhuma ligação direta com o atentado, o udenista Eduardo Gomes, que

concorrera com Getúlio Vargas à presidência, dá sua opinião sobre o fato. A

ausência de fontes ligadas ao presidente Vargas também é indicativa de que O

Globo está alinhado à oposição.

Ao descrever o atentado em si, a reportagem do jornal também é parcial.

Apesar de Carlos Lacerda ser, indiscutivelmente, a fonte mais importante neste

caso, o espaço dedicado ao relato do “combativo jornalista” é desmedido. A seguir,

transcrevo a íntegra do Atentado da rua Toneleros de acordo com Carlos

Lacerda, versão que foi adotada por O Globo como verdadeira, ao dedicar tanto

espaço ao udenista:

Assim palestrando, chegamos à porta de minha casa. Notei, então, sem

maiores preocupações, que próximo à esquina da rua Hilário Gouvêa,

quase em frente ao edifício onde resido, um homem pardo, magro, estava

parado na calçada. Quase em frente ao edifício, do outro lado da rua,

outro homem, este pardo e gordo, mantinha-se na mesma atitude.

Observando que havia esquecido as chaves do edifício no bolso de outra

As vozes e Vargas

66

65 “Para honra da nação brasileira, confio que esse crime não ficará impune” — declara Eduardo Gomes a O Globo. O GLOBO. Rio de Janeiro, 5 de agosto de 1954. p. 1

Page 67: As Vozes e Vargas

roupa, pedi a meu filho que solicitasse ao garagista que abrisse a porta

para nós. Sergio saiu, entrou pela porta de serviço e eu permaneci

conversando com o major Rubens até que ele voltou para comunicar que o

garagista iria abrir a porta. Despedi-me do major, à porta do seu

automóvel e voltei-me na direção da entrada. Vi então o homem pardo e

gordo caminhar para mim, abrir o paletó. Tive a impressão exata de que

ia sacar uma arma, o que ele de fato fez, começando a atirar.

Agarrando meu filho, saquei por minha vez de meu revólver e

atirei enquanto procurava abrigar Sergio, correndo em direção à garagem.

Ali chegando, disse-lhe que corresse para cima e dispunha-me a voltar

quando meu filho abraçou-se comigo, procurando impedir-me de enfrentar

os assassinos. Levei-o para a escada e corri novamente para fora, a tempo

de ver o homem pardo e gordo fugir em direção à rua Paula Freitas. Atirei

contra ele e ele atirou contra mim outra vez. Descarreguei todas as balas

de minha arma. Meu filho voltou à rua. Percebi que, a despeito da fuga

do criminoso que eu enfrentara, alguém continuava atirando. Voltei à

garagem com Sergio. Subi pedindo-lhe que fosse avisar amigos e vizinhos

e mais uma vez descia à rua, já pelo elevador social.66

Afora a descrição dos atiradores ter elementos que, nos dias atuais, depõem

contra o politicamente correto, o relato de Lacerda leva a crer que ele foi, de fato,

“combativo”. E, nos momentos em que esteve ausente do tiroteio, o jornalista tem

uma justificativa: a segurança de seu filho Sergio, de 15 anos de idade. Para o

leitor de O Globo, não é difícil depreender, deste texto, que a vítima central do

atentado é o udenista — e que, provavelmente, esse atentado tem motivação

política, dada a conjuntura que se construía e se consolidou exatamente a partir

desse fato.

A única vítima fatal do tiroteio, o major Ruben Vaz, da Aeronáutica, é

tratado como verdadeiro herói de guerra pela cobertura do diário. O discurso

O Globo

67

66 O atentado contra Carlos Lacerda. O GLOBO. Rio de Janeiro, 5 de agosto de 1954. p. 1

Page 68: As Vozes e Vargas

beira o sentimental, ao ser relatado que “às 3h30, chegava ao Hospital Miguel

Couto a senhora Rubens Vaz, amparada por duas amigas. Ignorava que o marido

houvesse morrido. Vinha do Hospital Central da Aeronáutica, onde um dos

quatro filhinhos do casal se submetera a uma intervenção cirúrgica”. Como não

poderia deixar de ser, a senhora Rubens Vaz entra em desespero ao saber da

notícia: “Debulhada em lágrimas, exclamava: — Meu marido! Por Deus, quero ver

meu marido!Mostrem-me meu marido!”67.

O Globo não fica apenas no plano emocional, e vai para o político. A

repercussão da morte de Vaz dentre os militares é mostrada e, mais uma vez, um

udenista aparece como fonte central, desta vez é o brigadeiro Eduardo Gomes.

Como desdobramento da repercussão negativa na Aeronáutica, de acordo com o

jornal, a instituição faz um “apelo à população para que compareça em massa aos

funerais, como uma demonstração coletiva de repúdio ao atentado”68. Ou o major

Vaz teve mais de um funeral, ou O Globo aumentou a contagem de corpos

propositadamente.

Duas passagens do texto principal ainda fazem referência à UDN. Uma é a

carta assinada por Maurício Joppert da Silva, presidente do diretório carioca do

partido, em que ele garante que “só os criminosos pilhados em flagrante delito

comum seriam capazes do cerco que fizeram à casa de Carlos Lacerda”69. A

referência a um “delito comum” é uma forma de atacar o PTB e, principalmente,

Getúlio Vargas, uma vez que pressupõe-se, com a frase, que o atentado foi um

episódio da guerra política. Em outra passagem, o texto traz o sub-título “A UDN

reúne-se para exigir punição”, em que há o prenúncio do Inquérito Policial-

As vozes e Vargas

68

67 Idem. p. 6

68 Idem.

69 Idem.

Page 69: As Vozes e Vargas

Militar que se seguiria, ou seja, à “República do Galeão”: o partido quer que o

crime seja solucionado “com um inquérito fora da influência e alçada policial,

confiado inteiramente à Justiça”70.

A parte do texto que coroa as relações entre a UDN e O Globo, entretanto,

ainda está por vir. Talvez em um exercício de parapsicologia, o major Rubens Vaz

teria previsto que o atentado contra Carlos Lacerda se desenhava. É o que diz o

sub-título “Há um mês atrás o próprio major Rubens Vaz denunciara o 'complot'

contra a vida de Lacerda”. Confira abaixo:

Por uma impressionante coincidência, foi precisamente o major Rubens

Vaz quem, há cerca de um mês, procurou o vereador Mario Martins para

cientificá-lo de que havia recebido uma denúncia de pessoa idônea,

altamente colocada, de que se tramava um “complot” contra Lacerda.

Imediatamente, o vereador carioca procurou o presidente da ABI, Sr.

Herbert Moses, que, por sua vez, se comunicou com o ministro da Justiça,

Sr. Tancredo Neves, reclamando garantias de vida para o diretor da

“Tribuna da Imprensa”.

O próprio Sr. Moses também procurou logo Carlos Lacerda,

advertindo-o de que deveria tomar precauções. Este, porém, respondeu-lhe:

— Moses, eu também já soube. Mas, que fazer? Agora mesmo vou

para Bangu falar num comício. Os assassinos poderão aproveitar a

oportunidade.

O major Vaz, ao procurar o vereador Mario Martins, estava

acompanhado de vários oficiais da Aeronáutica.71

O que em nenhum momento é posto — talvez fosse pressuposto — é que Herbert

Moses, além de ser o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI),

O Globo

69

70 Idem.

71 Idem.

Page 70: As Vozes e Vargas

acumulava o cargo de diretor-vice-presidente de O Globo. O texto também tem

outras funções, como reiterar a bravura de Carlos Lacerda, que foi a um comício

mesmo sabendo que “os assassinos poderão aproveitar a oportunidade”. Para

sustentar toda a trama, o falecido Vaz teria sido informado por “pessoa idônea,

altamente colocada” e estava acompanhado de “vários oficiais da Aeronáutica”,

quando procurou o vereador Mario Martins, eleito pela, adivinhe, UDN.

As vozes e Vargas

70

Page 71: As Vozes e Vargas

Os militares

Após a morte do major Vaz, era de se esperar que os militares, em especial

a cúpula da Aeronáutica, já não muito simpáticos ao governo de Vargas,

decaíssem ainda mais à oposição. Logo após o atentado, no dia 9 de agosto, as

movimentações começaram a se desenhar nas páginas de O Globo. Na capa

daquela edição, estão “reunidos os brigadeiros”, que “procuram examinar a

situação do País”. Como não poderia deixar de ser, “presente o sr. Eduardo

Gomes”72. Em nenhum momento o texto faz referência ao conteúdo da conversa

que os 17 oficiais da Aeronáutica tiveram em “reunião secreta” no salão nobre do

Ministério da Aeronáutica. De acordo com a reportagem, todos os presentes se

recusaram a comentar o assunto em pauta — como se não fosse de conhecimento

público.

Na mesma edição, em uma página interna, “o general Juarez Távora

explica a reunião em sua residência”73. Segundo o udenista, o encontro entre ele,

o brigadeiro Eduardo Gomes e o general Canrobert Pereira da Costa foi “apenas

para tratar das homenagens fúnebres” ao major Vaz. “A política não ocupou

nenhum capítulo de nossa conversa”, garantiu Távora. Além de fazer parte do

quadro da UDN, Juarez Távora também era comandante da Escola Superior de

Guerra (ESG), que tinha grande influência entre os militares.

Para completar as Forças Armadas, só falta a Marinha. É do que um dos

sub-títulos do texto sobre Juarez Távora dá conta. O Globo se apressa em

O Globo

71

72 Reunidos os brigadeiros. O GLOBO. Rio de Janeiro, 9 de agosto de 1954. p. 1

73 O general Juarez Távora explica a reunião em sua residência. O GLOBO. Rio de Janeiro, 9 de agosto de 1954. p. 6

Page 72: As Vozes e Vargas

desmentir que a Marinha esteja de prontidão, “aguardando os acontecimentos

paralelos ao inquérito que ocorre na Polícia Civil sobre o assassinato do major

Rubens Vaz”. De acordo com o ministro da Marinha, Renato Guillobel, a

participação de oficiais da Marinha no Clube da Aeronáutica “trata-se de uma

solidariedade que é prestada, em caráter individual, por oficiais da Marinha aos

da Aeronáutica. Não é um ato oficial. É, apenas, um ato pessoal, individual, aliás

muito compreensível”.

Dali a quatro dias, em 13 de agosto, uma nota publicada no jornal vinha

assinada por “oficiais da Aeronáutica”. Talvez a investida mais incisiva até então

contra o inquérito que investigava o Atentado da rua Toneleros. “Há oito dias foi

covardemente assassinado o major Rubens Florentino Vaz. Eliminado por

facínoras, não lhe foi dada a mínima chance de defesa. Morreu inocente.

Exigimos justiça”, diz a nota.

As vozes e Vargas

72

Page 73: As Vozes e Vargas

A guarda presidencial

Com o avanço das investigações, o envolvimento de Climério de Oliveira e,

mais tarde, do “tenente” Gregório Fortunato no atentado contra Carlos Lacerda

fica cada vez mais evidente. Essa ligação com o governo só aumenta a virulência

dos ataques contra o PTB e Vargas. Em 11 de agosto, após a extinção da guarda

presidencial, O Globo noticia o fato com desvelada ironia, levando em conta que

Gregório, o “Anjo Negro”, não deixaria o Catete. Segundo a nota, “o 'tenente'

Gregório Fortunato, sabe-se agora, continuará no Catete, como servidor do

palácio. Exerce ele as funções de camareiro do Chefe do governo”74.

O mais grave ataque de O Globo contra o governo aparece no dia seguinte,

12 de agosto. Grave não apenas pelo teor do texto, mas também porque o ataque

mistura opinião e jornalismo — uma mistura comum na época, mas que contrasta

com os preceitos que estavam sendo implantados por outros jornais brasileiros,

como o Diário Carioca e o Correio da Manhã. Ao lado de um editorial de primeira

página — conteúdo opinativo —, uma foto, legendada, de um carro da campanha

de Lutero Vargas — conteúdo jornalístico. “O povo ataca, furiosamente, o carro

em que se fazia a propaganda da candidatura do sr. Lutero Vargas”75, é o que diz

a legenda da foto, mais explicativa impossível. É relevante destacar, também, o

uso do termo “povo”, que faz parte principalmente do léxico petebista. O que O

Globo faz é uma apropriação de uma imagem tipicamente usada por Vargas para

atacá-lo.

O Globo

73

74 Ficará no Catete o “tenente Gregório”. O GLOBO. Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1954. p. 6

75 O feixe das varas e a união das classes armadas. O GLOBO. Rio de Janeiro, 12 de agosto de 1954. p. 1

Page 74: As Vozes e Vargas

O editorial possui intertextualidade com o texto do dia 5 de agosto,

referente ao Atentado da rua Toneleros. Uma semana após o ataque a Lacerda e

a morte de Vaz, O Globo reitera que havia um complô para assassinar o

parlamentar, dessa vez de maneira “oficial”, por meio de um editorial:

Já não há mais dúvidas sobre a existência de uma “societas sceleris”76,

que longamente premeditou a eliminação de Carlos Lacerda e a proteção

posterior dos responsáveis pelo crime.77

Como se não fosse o bastante, a continuação do texto vai direto ao ponto: não

importa se Lutero e Getúlio Vargas foram ou não mandantes do crime, o governo

deve ser responsabilizado pelos atos da guarda presidencial:

Não é, porém, necessário atribuir ao sr. Getúlio Vargas nem mesmo a seu

filho Lutero Vargas a ordem de fuzilar traiçoeiramente o jornalista da

oposição, para que se configure, em plena luz, a responsabilidade do

Governo na obra dos assassinos do major Rubens Vaz, quanto mais não

seja pela manutenção de sicários arregimentados numa guarda

presidencial.

O texto pretende, ainda, construir uma imagem popular do brigadeiro

Eduardo Gomes. Logo nas primeiras palavras, o editorial deixa claro que o

Atentado da rua Toneleros atinge não apenas as classes dominantes do País.

Apesar disso, “a nação está longe de convalescer do choque emocional que a

tragédia da rua Toneleros provocou em todas as classes sociais”. A convocação

As vozes e Vargas

74

76 Termo em latim comumente usado para designar uma associação criminosa.

77 O feixe das varas e a união das classes armadas. O GLOBO. Rio de Janeiro, 12 de agosto de 1954. p. 1

Page 75: As Vozes e Vargas

final para o apoio a Eduardo Gomes — e, consequentemente, à UDN — possui até

uma referência histórica, o levante tenentista de Copacabana, em 1922.

A figura do brigadeiro Eduardo Gomes mais uma vez se afirmou na

confiança popular, pela sua nobreza, energia e espírito cívico. Os anos não

arrefeceram, no herói de Copacabana, a chama que lançou na praia,

quase inermes, os jovens tenentes de 1922.78

O Globo

75

78 Idem.

Page 76: As Vozes e Vargas

Considerações finais

A Tribuna da Imprensa, dirigida por Carlos Lacerda, não teria fôlego

suficiente para atacar e manter em voga um ataque a Getúlio Vargas por tanto

tempo. Nesse aspecto, O Globo desempenha papel imprescindível para o aumento

e relativo sucesso dos ataques udenistas — principalmente após o Atentado da

rua Toneleros. O jornal de Roberto Marinho é a principal voz da oposição. E a

oposição fala, principalmente, pelo discurso de Carlos Lacerda.

A ideologia pró-capital estrangeiro da UDN é condizente com a posição das

Organizações Globo que, anos depois, em 1962, assinariam um contrato com a

empresa norte-americana Time-Life. Desse modo, de fato, O Globo apóia um

projeto de governo alheio a o que estava sendo implantado por Vargas no início da

década de 1950. As falas do ministro do Trabalho João Goulart, expostas

principalmente no capítulo anterior, são flagrantes de que os projetos udenista e

petebista são antagônicos.

Por outro lado, não se pode dizer que Vargas fazia parte das classes

trabalhadoras, muito pelo contrário. A disputa entre PTB e UDN representa

divergências entre as classes dominantes. Nos anos seguintes à queda de Vargas,

a economia brasileira seguiu, mais e mais, projetos semelhantes ao udenista. Já

durante a presidência de Juscelino Kubitscheck, apesar do nacionalismo, o

capital estrangeiro participou de maneira relevante. A total implantação de um

projeto com o udenista só aconteceria em 1964, com o Golpe Militar.

Tendo as proposições acima em mente, não é de se admirar que O Globo,

atuando como um Aparelho Ideológico de Estado, aumentou progressivamente

sua influência dentre os jornais brasileiros nos anos seguintes.

As vozes e Vargas

76

Page 77: As Vozes e Vargas

Considerações finais

Page 78: As Vozes e Vargas
Page 79: As Vozes e Vargas

O embate que aconteceu durante a década de 1950 entre os diversos

jornais do Rio de Janeiro, principalmente no contexto de 1954, foi saudável do

ponto de vista jornalístico. Levando em conta a história da imprensa brasileira

como um todo, a morte de Getúlio Vargas foi o momento em que os diários

tomaram partido de uma causa — seja ela a udenista ou a petebista — de

maneira mais ferrenha. Esse movimento foi crucial para a construção de um

espaço público de debates.

O Globo, de acordo com a definição do Anuário Brasileiro de Imprensa de

1955, citado por Ribeiro, era “um jornal combativo, opinando com veemência

sobre política nacional, com posição clara e definida, ainda que apartidária”79.

Talvez no calor do momento, não tenha ficado claro para os editores do anuário

que a posição do jornal não era apartidária. A defesa do ponto de vista da UDN,

nesse caso, parece velada por causa das técnicas jornalísticas introduzidas na

época. Portanto, O Globo estava longe de ser um jornal apartidário, porém

parecia ser um, por causa da maneira com que defendia o partido oposicionista.

Por outro lado, o Ultima Hora “não tardou em disputar com O Globo —

vespertino de maior circulação — o primeiro lugar em tiragem da capital da

República”80. Está aí outro viés para explicar o porquê de o jornal da família

Marinho apoiar os oposicionistas. Com o diário de Samuel Wainer sendo,

notadamente, pró-Vargas — e o principal concorrente de O Globo no mercado

jornalístico dos leitores —, é de se esperar que Roberto Marinho e companhia se

posicionem de maneira oposta no jogo político.

Se a disputa política foi salutar para a imprensa brasileira, por ter agitado

o mercado jornalístico e promovido o enraizamento das mudanças introduzidas

Considerações finais

79

79 RIBEIRO, A. Op. Cit. p. 92

80 Idem. p. 127

Page 80: As Vozes e Vargas

por Diário Carioca na década anterior, o campo político em si, por outro lado,

acabou prejudicado por essa disputa. A busca de Carlos Lacerda em eleger o

Brigadeiro Eduardo Gomes — e a própria postura de Eduardo Gomes, conivente

— fez com que se discutisse menos as ideias e as ideologias e mais os aspectos

pessoais. Nesse ponto, Vargas saiu prejudicado, uma vez que estava na posição

quase indefensável de ex-ditador.

Talvez prevendo que não teria um governo fácil, Getúlio Vargas promoveu a

criação do Ultima Hora por Samuel Wainer. Foi uma jogada política semelhante

às que fizera durante o Estado Novo — o Ultima Hora, assim, pode ser encarado

como ator da propaganda política pró-Vargas. Porém, apesar de o povo ter “posto o

retrato do velho outra vez” na parede, a base de apoio político de Vargas não era

tão sólida quanto antes, principalmente por causa dos militares, que estavam

divididos.

Frustrada com duas derrotas consecutivas para PSD e PTB,

respectivamente, a UDN viu nos militares grandes aliados para desestabilizar o

governo. E assim, quem sabe, obter a hegemonia política. A rachadura que os

ministros militares — principalmente o da Aeronáutica — representavam,

principalmente após a morte do major Rubens Vaz, é crucial para entendermos

como foi possível a instituição da “República do Galeão”, um Estado paralelo.

A “República do Galeão” é o melhor exemplo de como os jornais O Globo e

Tribuna da Imprensa serviram de Aparelhos Ideológicos de Estado, mesmo sem a

UDN ser, de fato, um Estado institucionalizado. O Brasil e, principalmente, o Rio

de Janeiro ficaram em uma situação curiosa: dois Estados, utilizando Aparelhos

Ideológicos de Estado diferentes. O PTB e Vargas ficaram com Ultima Hora. A

UDN, por outro lado, fez uso eficiente de O Globo, dos Diários Associados, além, é

claro, da Tribuna da Imprensa.

As vozes e Vargas

80

Page 81: As Vozes e Vargas

Mesmo com o apoio de boa parte dos industriais brasileiros81, Vargas se viu

acuado com as investidas udenistas. Por fim, o poder dos AIE utilizados pela

oposião se mostrou muito forte, e Vargas optou por uma saída política da crise —

um tiro no coração. Está aí o ato que, talvez, tenha atrasado os planos político-

econômicos da oposição para o País.

Apesar de uma maior abertura econômica durante o governo de Juscelino

Kubitschek, os planos da UDN de entrada do capital estrangeiro não foram

concretizados. Após a saída de JK, novamente a UDN não conseguiu pôr em

prática seus planos, mesmo integrando a situação, no governo Jânio Quadros. A

concretização desses planos só aconteceria em 1º de abril de 1964, com o golpe

militar. E, apesar de fazer parte da base de apoio dos militares, Carlos Lacerda e

a UDN não conseguiram chegar ao poder, como almejavam, e se viram em uma

cilada política.

O ano de 1954, em suma, foi crucial para o que aconteceria tanto no campo

jornalístico quanto no campo político do Brasil nas décadas seguintes. Os diários

brasileiros se modernizaram — e a crise política serviu como incentivo —, e a

construção de um espaço público de debates aconteceu. Na política, a disputa por

hegemonia fez com que os planos udenistas fossem adiados, apesar do poder que

ganharam, e deu sobrevida aos presidentes seguintes, previnidos de um latente

golpe militar.

Considerações finais

81

81 DORETTO, M. Kasinsky — um gênio movido a paixão, a história do fundador da Cofap. São Paulo: Geração Editorial, 2006. p. 288

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Anexos

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Page 85: As Vozes e Vargas

Todas os fac-símiles de O Globo pertencem ao acervo da Biblioteca Nacional

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Page 89: As Vozes e Vargas
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Page 91: As Vozes e Vargas
Page 92: As Vozes e Vargas

Todas os fac-símiles de Ultima Hora pertencem ao acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo

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