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As três faces da intolerância religiosa no Maciço de Baturité: análises de um conflito silencioso, alimentado por legitimidades sociais e resistências identitárias. Francisco Érick de Oliveira 1 Luís Tomás Domingos 2 1. INTRODUÇÃO Este trabalho contém as análises finais de uma pesquisa de iniciação científica (PIBIC), iniciada em setembro de 2015 e finalizada em agosto de 2016. Possui a finalidade de detectar, entender e dissertar acerca dos motivos que geram conflitos entre as igrejas cristãs e as religiões de matriz africana, em dois recortes do Maciço de Baturité 3 , no Ceará: Antônio Diogo (distrito da cidade de Redenção) e Baturité. As hipóteses iniciais foram embasadas por meio de uma ampla literatura interdisciplinar, que tentava reconstruir os trajetos de opressão que as religiões de matriz africana vivenciaram em território brasileiro, desde sua composição enquanto américa portuguesa, até a contemporaneidade. O preconceito e discriminação relacionados às religiões de matriz africana foram relacionados ao racismo colonial, que se perpetuava nas relações sociais e que se estendia à cultura religiosa descendente da diáspora africana no Brasil. No entanto, com o trabalho de campo, estas afirmações hipotéticas foram relativizadas, visto que não uma homogeneidade de composições religiosas, e, portanto, de identidades religiosas. O racismo colonial, perpetuado nas relações sociais e institucionais é peça chave para compreender este fenômeno de intolerância e discriminação, mas não é suficiente para frente as complexidades que o campo apresenta. 1 Graduando em Sociologia, UNILAB. Pesquisador do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-brasileiros – NEAAB. Pesquisador do grupo de pesquisa Políticas públicas, diversidade cultural e inclusão social, CNPq/UNILAB. Bolsista de Iniciação Científica, PIBIC/UNILAB. Endereço eletrônico: [email protected]. 2 Orientador desta pesquisa, PIBIC/UNILAB. Doutor em Antropologia e Sociologia da Política, Universidade de Paris, 1998-2002. Professor Adjunto I, UNILAB. Gerente do NEAAB/UNILAB/PROPAE. Líder do grupo de pesquisa Políticas públicas, diversidade cultural e inclusão social, CNPq/UNILAB. Endereço eletrônico: [email protected]. 3 Região serrana, localizada no sertão central do Estado do Ceará.

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As três faces da intolerância religiosa no Maciço de Baturité: análises de um conflito

silencioso, alimentado por legitimidades sociais e resistências identitárias.

Francisco Érick de Oliveira1 Luís Tomás Domingos2

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho contém as análises finais de uma pesquisa de iniciação científica (PIBIC),

iniciada em setembro de 2015 e finalizada em agosto de 2016. Possui a finalidade de detectar,

entender e dissertar acerca dos motivos que geram conflitos entre as igrejas cristãs e as

religiões de matriz africana, em dois recortes do Maciço de Baturité3, no Ceará: Antônio Diogo

(distrito da cidade de Redenção) e Baturité.

As hipóteses iniciais foram embasadas por meio de uma ampla literatura

interdisciplinar, que tentava reconstruir os trajetos de opressão que as religiões de matriz

africana vivenciaram em território brasileiro, desde sua composição enquanto américa

portuguesa, até a contemporaneidade.

O preconceito e discriminação relacionados às religiões de matriz africana foram

relacionados ao racismo colonial, que se perpetuava nas relações sociais e que se estendia à

cultura religiosa descendente da diáspora africana no Brasil. No entanto, com o trabalho de

campo, estas afirmações hipotéticas foram relativizadas, visto que não há uma

homogeneidade de composições religiosas, e, portanto, de identidades religiosas. O racismo

colonial, perpetuado nas relações sociais e institucionais é peça chave para compreender este

fenômeno de intolerância e discriminação, mas não é suficiente para frente as complexidades

que o campo apresenta.

1 Graduando em Sociologia, UNILAB. Pesquisador do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-brasileiros – NEAAB. Pesquisador do grupo de pesquisa Políticas públicas, diversidade cultural e inclusão social, CNPq/UNILAB. Bolsista de Iniciação Científica, PIBIC/UNILAB. Endereço eletrônico: [email protected].

2 Orientador desta pesquisa, PIBIC/UNILAB. Doutor em Antropologia e Sociologia da Política, Universidade de Paris, 1998-2002. Professor Adjunto I, UNILAB. Gerente do NEAAB/UNILAB/PROPAE. Líder do grupo de pesquisa Políticas públicas, diversidade cultural e inclusão social, CNPq/UNILAB. Endereço eletrônico: [email protected].

3 Região serrana, localizada no sertão central do Estado do Ceará.

Neste sentido, considerando que o trabalho de campo altera a conceituação teórica e

os ordenamentos fenomênicos, outras explicações (baseadas em entrevistas individuais

semiestruturadas, observação de cultos e de momentos festivos, tanto em religiões de matriz

africana quanto em igrejas cristãs) foram surgindo e tornaram-se fundamentais para explorar

e reconsiderar até mesmo os próprios elementos racistas no cotidiano das realidades

abordadas.

O recorte da pesquisa corresponde, por fim, a um Terreiro de Umbanda em Baturité,

um Terreiro de Quimbanda e um de Umbanda em Antônio Diogo, uma Assembleia de Deus

em Baturité e outra em Antônio Diogo. No entanto, as projeções iniciais desenhavam outro

cenário, que não pode ser alcançado, mas que importa para as análises de campo e serão

abordados no texto.

2. A RELAÇÃO ENTRE A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA DE HOJE E O RACISMO COLONIAL.

Para embasar as hipóteses de que a intolerância religiosa de hoje possui, ainda,

ligações com o racismo do período colonial brasileiro, investiu-se numa revisão da literatura,

sob uma perspectiva histórico-sociológica, que considera as relações sociais de determinados

períodos como um produto das relações sociais dos períodos anteriores.

Existe uma vasta literatura acerca destes relacionamentos religiosos durante o período

colonial. Dentre estas obras, destaca-se o trabalho de Reis (2008), que faz referência a história

de um Sacerdote africano, Domingos Sodré, trazido para a Bahia, no século XIX. Domingos

Sodré e sua história são referências concretas acerca da opressão do sistema colonial sob as

manifestações religiosas de africanos e afrodescendentes, pois ele foi um dos que confrontou

a polícia e teve seus Terreiros de Candomblé invadidos e fechados. A política do século XIX

intensificou a perseguição às diversas formas de manifestação religiosa dos escravizados (o

que já vinha ocorrendo nos séculos anteriores), pois elas serviam, também, para organizá-los

como um grupo revoltoso e possibilitava a tomada efetiva de consciência para com aquele

sistema que os explorava, mesmo com a independência.

Ao destacar que a intolerância religiosa da contemporaneidade carrega traços de uma

perseguição referenciada ao fim do século XVIII e início do XIX, pretende-se apontar que há

uma conservação, na contemporaneidade, de elementos argumentativos e institucionais

observados nestes dois períodos. As perseguições religiosas coloniais e ligadas ao pós-

independência estruturavam-se em torno da demonização da cultura africana presente (e

insistente) durante os séculos da atuação portuguesa no território, tanto por apontá-la como

inferior à do colonizador, num sentido das lógicas de desenvolvimento, quanto por classificá-

la como pagã, ou seja, não cristã/católica. Portanto, logo que se sabia da localização das casas

de batuque onde os/as negros/as escravizados/as realizavam suas cerimônias diversas, as

forças de repressão buscavam destruí-las, no sentido de silenciar aquilo que não era

condizente com o plano civilizatório do ocidente.

No entanto, Reis (2008) adverte que, mesmo que o plano civilizatório tenha sido a

justificativa de oprimir estas manifestações religiosas, tornou-se muito mais importante

impedir que os/as escravizados/as tomassem consciência de que sua cultura permanecia viva,

driblando possíveis organizações que, mais tarde, tornar-se-iam revoluções organizadas,

como a Revolta dos Malês4, em janeiro de 1835.

Memmi (2007) orienta neste sentido de que o sistema colonial, além de ser uma forma

de agressão e dominação física do colonizado, também possui a capacidade de manipulação

no plano cognitivo, do apagamento cultural e da opressão de consciências. Reprimir as

manifestações religiosas, invadir Terreiros, prender Sacerdotes, promover legislações que

submetem acusados/as a penas severas, são formas (materiais) de silenciar e sufocar culturas

(formas imateriais) que são carregadas nas memórias de sujeitos que nada mais eram do que

objetos para a exploração do trabalho, e que, portanto, não representavam os valores da

sociedade europeia, branca, cristã, civilizada e desenvolvida.

Estes elementos argumentativos mais subjetivos (inferioridade do negro, como

pertencente a um sistema primitivo) e institucionais (a Igreja, como representante dos valores

mais substanciais da sociedade europeia) prevalecem no cenário contemporâneo brasileiro.

Se não por meios visíveis e mais incisivos, como legislações, por exemplo, aparece no plano

simbólico e cultural, de um Brasil desenhado por intelectuais, mídias e políticas, como um

prolongamento da sociedade ocidental (FREYRE, 2011), no qual estes elementos negros,

4 A Revolta dos Malês foi organizada, basicamente, por negros/as mulçumanos/as. Neste sentido, o que se pretende apontar é que a religião aparece, claramente, como ferramenta de organização de ideias revoltosas e de grupos que se identificavam com determinados ideais.

oriundos da (desagradável) presença africana na formação da sociedade brasileira, tornam-se

obstáculo para o cumprimento das metas de igualar-se as antigas metrópoles coloniais, hoje

consideradas como grandes centros de desenvolvimento e modelos de civilização.

(GUIMARÃES, 2009; MUNANGA, 2009).

Portanto, ao enxergar ideologias de discriminação colonial nas relações religiosas

contemporâneas, aponta-se para um processo de síntese cultural, referente à formação

histórica da sociedade brasileira que, não obstante, possui raízes em diversos momentos

formativos, não só do século XIX, como recortam Reis (2008) e Prado Jr (2011) – para uma

análise mais ampla, além da religião –, mas que são iniciados nos primeiros séculos de

exploração da colônia portuguesa nos trópicos, do XVI ao XVIII, como destaca Souza (1993).

Cada sociedade que formava a estrutura colonialista na colônia portuguesa da América

via-se embasada por seu convívio cultural referente ao território de nascimento, origem. O

choque é relativo a esta cultura que cada um cultivava em seus territórios e que, quando

postas frente a frente num sistema que definia com rigor quem era superior e quem era

selvagem, despontavam diferenças, resistências e opressão.

Entre os séculos XVI e XVIII, as culturas presentes no território da colônia portuguesa

na América foram se modificando, aglutinando, e criando formas cada vez mais distintas das

que eram encontradas nos anos iniciais do colonialismo brasileiro, desembocando no século

XIX como uma síntese histórico-social: mais brasileira do que portuguesa ou africana, por

exemplo. Obviamente, estes recortes entre séculos não são precisos o suficiente para

descrever os processos de interação social do colonialismo. Para atender a realidade deste

sistema é necessário assumir que isto é bem mais flexível. Porém, para efeitos de recorte

teórico-metodológico, faz-se necessário este apontamento.

Cada período possuí sua importância para a compressão de como o tráfico negro, a

presença portuguesa, a exploração dos povos autóctones, etc., contribuíram para a criação

desta sociedade. Porém, o século XIX, com a mudança da sede da monarquia para o Brasil,

com a intensificação de revoltas, que se tornaram cada vez mais recorrentes, foi decisivo para

diversos setores desta sociedade, pois carregava uma história de três séculos de experiência

colonial que gerou uma sociedade nova, um Império, que requeria Independência e buscava

desenvolver-se sob as lógicas de industrialização. A junção cada vez mais imbricada de

diversos elementos que, aos poucos, viram-se modificados pelo sentimento nacionalista,

intensificou as contradições sociais e sistemáticas. O século XIX foi um momento de eclosão

(definitiva) cultural, religiosa, política e econômica, gerada pelos longos séculos de sistema

colonial, no qual as relações entre os indivíduos que aqui se encontravam formaram um

cosmos diferente e cada vez mais característico deste espaço específico.

3. A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA EM BATURITÉ E ANTÔNIO DIOGO: O TRABALHO DE CAMPO

E AS ESPECIFICIDADES DE TEMPO E ESPAÇO.

O campo delimitado correspondia ao seguinte modelo:

Tabela 01: Campo de estudo.

Desses/as 13 líderes religiosos/as que haviam sido mapeados/as, 3 concederam

entrevistas (os Pais de Santo da Umbanda de Baturité e da Quimbanda de Antônio Diogo; uma

rezadeira de Antônio Diogo), sendo que somente os 2 primeiros autorizaram a gravação. As

outras 4 umbandistas mapeadas em Antônio Diogo não se interessaram pela pesquisa e

sentiram-se profundamente incomodadas por serem denominadas como umbandistas.

Os 2 pastores pentecostais previstos, das Assembleias de Deus de Baturité e Antônio

Diogo, não concederam entrevistas, porém, autorizaram que se participasse de alguns cultos,

a fim de realizar um trabalho de observação e etnografia. Os 2 pastores neopentecostais, das

IURDs de Baturité e Antônio Diogo, não autorizaram entrevistas e nem a observação dos

cultos. O Padre de Baturité também não colaborou com as análises. No caso de Antônio Diogo,

BATURITÉ ANTÔNIO

DIOGO

UMBANDA 1 5

QUIMBANDA 0 1

CATÓLICA 1 1

PENTECOSTAL 1 1

NEOPENTECOSTAL 1 1

entrevistou-se 2 representantes da paróquia, mas não houve gravação do diálogo, pois os dois

não permitiram.

De forma geral, mesmo que, dos 13 líderes, apenas 4 tenham concedido entrevista5, o

trabalho de campo realizado nas Assembleias de Deus foi considerável e enriquecedor para a

pesquisa, e possibilitou uma abertura maior daquilo que havia sido delimitado

metodologicamente. O contato com as umbandistas de Antônio Diogo também revelou

diversas questões, mesmo que elas não tenham concordado com o diálogo. No entanto, o

lado Católico de Baturité e dos pastores das IURDs não pôde ser alcançado.

É necessário considerar, primeiramente, que existe, sim, intolerância religiosa contra

as religiosidades de matriz africana nos dois locais destacados, Baturité e Antônio Diogo.

Porém, elas diferem não só das notícias que instigaram o desenvolvimento desta pesquisa,

mas são enxergadas, entendidas e combatidas de formas mais diversas, e isto diz respeito a

aspectos muito específicos, tanto da filosofia de cada religião, quanto da formação pessoal

dos/as líderes destes espaços. Para tanto, analisa-se as duas primeiras entrevistas (dos Pais-

de-Santo da Umbanda de Baturité e da Quimbanda de Antônio Diogo) de forma comparativa.

Os dois relatos não são completamente opostos um do outro, mas possibilitaram enxergar

como cada Pai de Santo age quanto à questão, e isto diz respeito a caminhada individual,

familiar, religiosa, política, social, etc., de cada um. Os cenários são múltiplos, logo, os sujeitos

partem de princípios diferentes (GOFFMAN, 2002).

Em Baturité, segundo as entrevistas, é possível perceber uma certa camuflagem de

ocorrências intolerantes no cotidiano. O Pai de Santo até rascunha alguns acontecimentos,

assim como alguns/as filhos/as da Casa, mas justifica-os e, por fim, utiliza a filosofia

umbandista na forma de tratar tais ocorridos. Eles/as declararam que tanto na rua onde

moram, quanto no supermercado, e em diversos outros lugares, é possível sentir um

tratamento diferente na forma de olhar, de falar e de cumprimentar, assim como casos de

discriminação mais direta. Isto é e deve ser normal, pois os trajes da Umbanda, os costumes,

e outros muitos aspectos, não são comuns as pessoas, de modo geral, visto que a religião

5 Atentando para o fato de que, no caso dos católicos de Antônio Diogo, duas pessoas concederam entrevista ao mesmo tempo, mas aparecem apenas como sendo uma só.

precisou se esconder do público por muito tempo, condenada até mesmo pela Constituição

do país.

Mesmo que seja normal (e deva ser), os/as filhos/as da Casa afirmam que isto deve

mudar, e com o passar do tempo, devem sentir-se respeitados/as, pois a Umbanda é uma

religião como qualquer outra, e que deve conquistar seu direito de existir. Esta forma de

encarar e de descrever a discriminação, se considerarmos esta Casa, pode ser entendida, pelo

menos, em dois sentidos: a Umbanda é uma religião que busca integrar um conjunto de

crenças, encontradas na américa portuguesa colonial e no Brasil pós-colonial6, desde o

espiritismo kardecista, os candomblés brasileiros, religiões indígenas, ciganas, cristãs

católicas, etc., e isto promove um sentimento de igualdade e de integração social, não só das

crenças, mas de sujeitos.

O segundo ponto capaz de proporcionar um entendimento destes relatos está

relacionado à participação cidadã do Pai de Santo, referente a suas contribuições na

Prefeitura, tanto em algumas ações da Secretaria de Cultura, quanto em grupos e conselhos

de juventude. Esta Casa de Umbanda está instalada em um Terreiro de excelente estrutura

física, no qual é possível identificar a crença umbandista. Em outros termos: há afirmação

identitária. Portanto, o Pai de Santo e seus/as filhos/as carregam e afirmam o signo social de

umbandistas. Ao participar de suas atividades fora do Terreiro, estes sujeitos viabilizam o

convívio de opressores e oprimidos, e confrontam/transformam a realidade.

O estudo da Quimbanda de Antônio Diogo, através do método comparativo, é um

pouco oposto a algumas situações de Baturité. Com as entrevistas, foi possível perceber uma

afirmação mais concreta de casos de intolerância. Segundo o Pai de Santo entrevistado, só

não se consumam casos de violência direta porque as pessoas têm medo de que ele, como

indivíduo demonizado, possa fazer algo pior. Há restrições de convívio na vizinhança, na rua,

no supermercado, nos transportes coletivos, etc. E, devido à estas restrições, ele tomou a

decisão de viver a vida do Terreiro, por completo, extrapolando este espaço somente em casos

6 Usa-se estes dois períodos no sentido de destacar que os elementos integrantes da Umbanda não aparecem apenas em seu século de surgimento, o século XX, pois eles são resultantes de processos de bricolagem, de transposição de religiosidades de outros territórios que se referem à própria experiência cultural do Colonialismo da américa portuguesa (ROHDE, 2009).

de real necessidade. Outro fator que o Pai de Santo destaca como impedimento para

ocorridos piores está relacionado a sua imediata disposição de denunciar à polícia. Foram

relatadas diversas situações nas quais ele se encontrou em mesa de delegacia e teve que

reivindicar seus direitos com voz altiva (inclusive, com os delegados envolvidos, que também

se posicionaram discriminatoriamente).

Contudo, diferente das filosofias umbandistas, a Quimbanda é, de fato, uma religião

mais fechada. Ela é um tipo de Candomblé, o que requer muito critério em suas atividades

cotidianas. Não são todas as pessoas que podem participar dos rituais ou frequentar o

Terreiro. Há uma lógica rígida de funcionamento que não permite que qualquer pessoa integre

o meio, ou que frequentem e decidam seguir a religião como adepto. Por exemplo, foram

realizadas tanto entrevistas na Umbanda de Baturité, quanto observações de cultos, de festas,

etc. Na Quimbanda de Antônio Diogo, o Pai de Santo concedeu entrevista na parte da frente

de sua casa, pois nem todos os presentes poderiam conhecer outro cômodo da casa, quanto

mais do Terreiro.

Os estudos de campo apontam neste sentido de afirmação identitária. Mesmo que o

Pai de Santo da Quimbanda de Antônio Diogo tenha escolhido viver, estritamente, o cosmos

do Terreiro, isto não significa que ele, como o de Baturité, não assuma sua identidade de

quimbandeiro. Porém, mesmo que a intromissão social dos/as umbandistas de Baturité cause

discriminação e olhares tortos, conquista-se espaço, fortalece-se o direito de participar e de

se opor à discriminação que limita a existência. Por outro lado, não menos complexo e

adequado, o quimbandeiro combate a discriminação reforçando a sua crença e a crença

dos/as seus/as filhos/as, conduzindo-os/as para o cosmos da vida no Terreiro e deixando de

lado o que aqueles/as, que não pertencem ao espaço, pensam sobre suas práticas. Cada um

deles compreende a resistência de sua forma: pelo embate cotidiano ou pelo culto pessoal e

engajado da vida no Terreiro.

A entrevista com a senhora da Umbanda de Antônio Diogo só confirmou o que as

leituras anteciparam: não há um completo acordo sobre o que é, afinal de contas, Umbanda,

e, principalmente, quem é umbandista. Esta senhora, que reside na localidade Susto, assim

como as outras 4 que foram mencionadas, não se identifica como umbandista, mas como

rezadeira/benzedeira/curandeira, etc. No entanto, ela concedeu uma prolongada conversa,

mesmo com todas as dificuldades de comunicação e aproximação, pela sua idade avançada e

surdez aguda.

A sua identificação como não-umbandista foi fundamental para compreender como,

mesmo assim, ela era discriminada, não só pelos arredores da sua casa, mas pelos/as

próprios/as filhos/as, que passam bastante tempo sem visitá-la. Todos/as são evangélicos/as,

residem, em sua maioria, em Fortaleza, mas evitam vê-la, por acreditar que a sua crença é um

culto demoníaco; que sua casa é um templo que desonra a deus.

Ela relatou que nunca teve nenhuma formação espiritual com outra pessoa que

possuísse o mesmo dom, e que teve que aprender sozinha a comandar sua cabeça. Declarou

que teve as primeiras manifestações de mediunidade aos 7 anos de idade, na cidade que

nasceu, Mulungu, e que, apenas muitos anos depois de ter mudado para Antônio Diogo, teve

auxílio de alguém que estava envolvido com algo parecido. Foi à Fortaleza e encontrou uma

Mãe de Santo de Candomblé. Esta Mãe de Santo fez todos os processos rituais de iniciação, e

por alguns dias ficou internada naquele Terreiro. Concluiu explicando que apenas depois desta

iniciação que suas dores de cabeça aliviaram, mas que foi o único contato que teve para

ajudar-lhe sobre seu dom.

Ela apresentou seu Terreiro, que é apenas um quartinho com altar, localizado no fundo

de um quintal com algumas galinhas, plantas medicinais, árvores frutíferas, etc., e reiterou

que não era umbandista. As pessoas que a procuravam estavam sempre em busca de algum

tipo de alívio. Ela não os ajudava, mas os espíritos, guias, orixás e caboclos. Ela apenas recebia

a pessoa que a procurava, sentava em uma cadeira dentro do quartinho e todo o resto era

feito pelo espírito que vinha naquele momento. Quando a sessão terminava e ela voltava a si,

perguntava a pessoa que estava lá se ela havia sido ajudada. Despedia-se e voltava a fazer o

que estava fazendo antes de ser abordada.

Esta senhora, por mais que não se identifique como umbandista, pode ser reconhecida

(pela terminologia científica) dentro das características que compõem a Umbanda. Talvez não

necessariamente pelo exercício ritual, mas pela variedade de espíritos, guias, caboclos, orixás,

etc., que aparecem em seu Terreiro para atender quem procura ajuda. A Umbanda é

composta por esta variedade de entidades espirituais que são invocadas para rotinas de cura

e caridade. No entanto, é importante enfatizar a sua auto identificação.

É a ênfase na identidade que o sujeito atribui para si que importa neste estudo de

intolerância. Principalmente neste caso, no qual a senhora é identificada como umbandista,

mas afirma que é uma simples rezadeira. A discriminação religiosa (e intolerância dos/as

filhos/as) está vinculada a uma generalização externa, de alguém que não exerce práticas

cristãs, e que é classificada junto a uma alteridade demonizada da religião de matriz africana.

A pesquisa de campo nas Assembleias de Deus destacou um fator que se tornou

essencial para unir e concretizar as reflexões acerca de todas estas questões: afirmar

identidade é resistir e empenhar-se em classificar e combater o outro (igual ou diferente).

Durante os cultos, é muito comum, de vez em quando, tanto os pastores, quanto os fieis em

suas orações, fazerem referência a um outro que é mundo (o espaço que excede o sagrado da

Igreja) e que é indivíduo. Neste discurso, não são apenas as religiões de matriz africana que

são colocadas como algo a se evitar, a se libertar, mas tudo aquilo que excede ao ambiente

doutrinário da Igreja. As religiões de matriz africana são citadas, inúmeras vezes, como

promotoras de maldades contra fieis, contra os verdadeiros filhos de Deus, e como um símbolo

de culto ao opositor do bem: o diabo. Porém, é reforçado que várias outras coisas devem ser

evitadas e constantemente discernidas como demoníacas, tais como o dinheiro, a fofoca, o

sexo fora de uma relação conjugal, etc.

Isto pode ser importante para compreender o ataque a senhora de Antônio Diogo.

Mesmo que ela destaque que é apenas rezadeira, ela foge daquilo que se prega na Igreja

cristã. Ela é esse outro que excede o espaço do sagrado, ensinado e cultuado pela doutrina. A

sua reza, não sendo uma reza reconhecida por este conjunto de crenças da doutrina, é uma

crença do outro lado, do lado profano. Portanto, como possível conclusão a estas

observações, é necessário compreender que a alteridade afeta e incomoda a igreja cristã,

neste caso, a protestante pentecostal.

Acerca da entrevista com os representantes católicos de Antônio Diogo, as reflexões

são semelhantes. No entanto, como destacou a rezadeira de Antônio Diogo, há uma

relativização do preconceito por meio da necessidade real de ajuda. Os dois entrevistados

destacaram que é comum saber de alguém que precisou de muita oração para se libertar de

alguma maldade trabalhada num Terreiro de Macumba. Mas que isto depende da fé de cada

um. Quem está em dias com deus não teme o diabo, destacaram os dois. A flexibilização do

preconceito diz respeito a necessidade de procurar até mesmo o terreiro de macumba para

desfazer um suposto mal que foi trabalhado em outro Terreiro. Da reza com ervas, dos banhos

das rezadeiras, e de tantas outras formas de religiosidade que são procuradas as escondidas,

por serem discriminadas publicamente.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Todo o reforço bibliográfico aponta no sentido de que as discriminações religiosas

contra as religiosidades de matriz africana eram (e são, como síntese histórica) provocadas

pela lógica do racismo, que condenava a cultura do negro e tudo mais que derivava da

existência deste. No entanto, com o trabalho de campo e a coleta de dados, por meio das

entrevistas individuais semiestruturadas, pode-se flexibilizar esta interpretação, no sentido de

que a teoria contempla uma realidade que não é necessariamente reconhecida por quem

segue estas religiões.

No plano do estudo das formações históricas da sociedade brasileira, a teoria consegue

alcançar o sentido de racismo religioso que se busca. Mas o trabalho empírico revela muitos

outros elementos substanciais. A discriminação, denunciada pelas religiões de matriz africana,

é, num curso histórico da sociedade, uma consequência da exploração racista do

Colonialismo, pois este registrou um estigma negativo na crença e na cultura dos povos da

diáspora, assim como seus descendentes. Porém, é necessário entender as filosofias de cada

seguimento religioso, e categorizar como cada um deles entende as questões raciais dentro

de sua crença.

Desta forma, é possível ir além da noção de discriminação religiosa como síntese social

de ideologias racistas oriundas do período colonial. Pode-se pensar como resultado de

disputas por seguidores religiosos que integram as mesmas classes sociais, e que buscam nos

Templos cristãos ou nos Terreiros de religiosidade de matriz afro formas de aliviar os

problemas da vida cotidiana. Outra linha possível de pensar estas questões, numa lógica mais

contemporânea, tem relação com o crescimento considerável do número de protestantes no

cenário político do país, possibilitando que as ideias referentes aos dogmas religiosos

penetrem o cosmos das ideias políticas (SILVA, 2007; ORO, 2008).

A Umbanda, como religião tipicamente brasileira, formada pelo contato de diversos

elementos religiosos encontrados no Brasil durante o fim do século XIX e início do XX,

certamente não encarará as questões de raça e etnia como a Quimbanda, um tipo de

Candomblé, e como tal, muito mais pautado numa matriz africana. É importante tentar

desvelar estes discursos e pontuar apenas aquilo que o campo revela (ou esconde).

A Umbanda de Baturité não compreende estas lógicas culturais e étnicas de brancos e

negros, muito menos se postas numa crítica de exploração colonial pautada no racismo que

legitimou a exploração de povos. Mas isto diz respeito a formação social da religião e,

consequentemente, as suas filosofias internas de bricolagem social, cultural e religiosa. A

Quimbanda, cultuando Exu, abrange muito melhor os traços de uma matriz africana, e afirma

as possibilidades de um racismo religioso (BASTIDE, 2001; CARNEIRO, 2008; MUNANGA, 2004

e 2009B; ROHDE, 2009). A percepção de que hoje todos os tipos de pessoas, basicamente,

sem unidade de etnia, classe, gênero, etc., frequentam os Terreiros e aderem as práticas

rituais de religiões de matriz africana, supera a noção cotidiana do racismo que se inscreve no

curso da história.

Contudo, no caso da rezadeira de Antônio Diogo, ela nem reconhece que os elementos

rituais e espirituais que circulam no seu Terreiro são típicos de Umbanda (consequentemente,

não se identifica como umbandista), quanto mais que há uma estrutura histórica e social que

sintetizou um profundo preconceito a tudo que excedia a religião cristã no colonialismo, com

ênfase na cultura africana da diáspora e descendentes. Para o conceito terminológico, sim,

ela é umbandista, e para o olhar social de quem a conhece, também, mas no campo das

identidades, ela é apenas uma rezadeira.

A discriminação nestes dois lugares não é tão evidente quanto as que foram noticiadas

no país ultimamente. Elas se manifestam de várias formas diferentes, de violências muito

simbólicas, mas nenhum relato de agressão física (mesmo pela pressão da discriminação

simbólica) ou material. Cada um dos casos, tanto da Umbanda de Baturité, da Quimbanda de

Antônio Diogo, da rezadeira de Antônio Diogo, das 4 rezadeiras que não concederam

entrevista, reclamam um tipo de discriminação. Seja por meio do embate direto de quem

demoniza as escolhas religiosas, seja pela pressão do não ser, de quem exerce um tipo de

religiosidade que, mesmo sem estar ligada a matrizes africanas, é demonizada. E assim como

são diversas as formas de discriminação são as formas de reação, de combate ou de

isolamento de realidades.

A diferenciação entre esta variedade de outros gera, quase que instantaneamente,

uma força de afirmação identitária, de resistência a afirmação de ser, ou de concessão a

pressão social do que não pode ser (como nos casos em que há a negação de que se pratica a

religião, ou de que não há interesse em conceder entrevista, de dialogar, abrir a realidade

para alguém de fora). Quando um protestante pentecostal afirma que é necessário libertar-

se das tentações do diabo presente na Umbanda, o umbandista de Baturité responde como

alguém que compreende o espaço político e que tem direito de participar. Por meio deste

destaque, há uma troca de experiências, nem sempre voluntárias, na qual os filhos de

Umbanda têm a oportunidade de demonstrar que em sua crença nem mesmo existe a figura

do diabo. Há outro tipo de representação da maldade, que é atribuída, enfaticamente, ao

próprio homem.

A discriminação no caso da Quimbanda empurra o/a seguidor/a para dentro do

Terreiro, em um movimento que não é tão voluntário quanto o Pai de Santo relata, mas que

o/a fortalece na crença que é vivida diariamente, e que se reafirma sem necessariamente

estar sob a pressão externa de quem demoniza a religião.

A expressão entre, referente ao título original do projeto: A demonização e a

discriminação entre cristãos e seguidores de religiões afrodescendentes, expressa uma

hipótese que foi confirmada durante a pesquisa: a discriminação possui dois gumes, numa

rota de ação e reação, que tem como produto o reforço da identificação. Este reforço não é

referente somente a afirmação de ser, mas de deixar de ser, romper, contradizer-se, e afastar-

se da crença. Mas acontece de ambos os lados analisados. Há relatos de protestantes que

aderiram a Umbanda por encontrar na religião muito mais emprego da caridade do que o que

se buscava na igreja cristã. Há outros relatos de umbandistas que encontraram na Quimbanda

uma maior manipulação das energias mágicas e, desta forma, maior potencial e formas de

amparo a outras pessoas.

O racismo é estrutural, sintetizado por meio de uma história de longa exploração

colonial, mas não é reconhecido nas relações do cotidiano. O que se destaca nessas relações

de discriminação entre as religiões cristãs e de matriz africana é a necessidade de encontrar

em cada uma delas a saciedade do que se procura consumir. Nesta busca individual, os

sujeitos se deparam com crenças que envolvem coletivos, e que podem criar, fortalecer e

romper com identidades.

Neste sentido, referencia-se a obra de Bauman (2001), sobre a liquidez das

identidades, que se tornam, cada vez mais, flexíveis e disponíveis, como mercadorias que

podem ser adquiridas em prateleiras do supermercado. Estas máscaras, aliando a teoria de

Goffman (2002), podem ser vestidas de acordo com os cenários que são encontrados nas

relações sociais. Ao mesmo tempo em que os indivíduos exprimem a posição de que são livres

para escolher suas identificações, existem pressões de coletivos que possuem um poder de

convencimento e legitimação conquistado ao longo dos séculos.

As outras formas de identificação que vão surgindo com a modernidade (e mesmo

aquelas que não são tão contemporâneas assim) são encaradas como desvios, e há um

embate acerca do que deve prevalecer e do que deve ser evitado. Este conflito pode

enfraquecer o reconhecimento das consciências individuais e/ou coletivas, no entanto, o caso

analisado, mesmo que com diferentes formas de resistência, o conflito gerado pela

intolerância e discriminação tem fortalecido os desejos de ser e de afirmar ser.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

FREYRE, Gilberto. Novo mundo nos trópicos. 3ª Edição, Editora Global, São Paulo, 2011.

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