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As três faces da intolerância religiosa no Maciço de Baturité: análises de um conflito
silencioso, alimentado por legitimidades sociais e resistências identitárias.
Francisco Érick de Oliveira1 Luís Tomás Domingos2
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho contém as análises finais de uma pesquisa de iniciação científica (PIBIC),
iniciada em setembro de 2015 e finalizada em agosto de 2016. Possui a finalidade de detectar,
entender e dissertar acerca dos motivos que geram conflitos entre as igrejas cristãs e as
religiões de matriz africana, em dois recortes do Maciço de Baturité3, no Ceará: Antônio Diogo
(distrito da cidade de Redenção) e Baturité.
As hipóteses iniciais foram embasadas por meio de uma ampla literatura
interdisciplinar, que tentava reconstruir os trajetos de opressão que as religiões de matriz
africana vivenciaram em território brasileiro, desde sua composição enquanto américa
portuguesa, até a contemporaneidade.
O preconceito e discriminação relacionados às religiões de matriz africana foram
relacionados ao racismo colonial, que se perpetuava nas relações sociais e que se estendia à
cultura religiosa descendente da diáspora africana no Brasil. No entanto, com o trabalho de
campo, estas afirmações hipotéticas foram relativizadas, visto que não há uma
homogeneidade de composições religiosas, e, portanto, de identidades religiosas. O racismo
colonial, perpetuado nas relações sociais e institucionais é peça chave para compreender este
fenômeno de intolerância e discriminação, mas não é suficiente para frente as complexidades
que o campo apresenta.
1 Graduando em Sociologia, UNILAB. Pesquisador do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-brasileiros – NEAAB. Pesquisador do grupo de pesquisa Políticas públicas, diversidade cultural e inclusão social, CNPq/UNILAB. Bolsista de Iniciação Científica, PIBIC/UNILAB. Endereço eletrônico: [email protected].
2 Orientador desta pesquisa, PIBIC/UNILAB. Doutor em Antropologia e Sociologia da Política, Universidade de Paris, 1998-2002. Professor Adjunto I, UNILAB. Gerente do NEAAB/UNILAB/PROPAE. Líder do grupo de pesquisa Políticas públicas, diversidade cultural e inclusão social, CNPq/UNILAB. Endereço eletrônico: [email protected].
3 Região serrana, localizada no sertão central do Estado do Ceará.
Neste sentido, considerando que o trabalho de campo altera a conceituação teórica e
os ordenamentos fenomênicos, outras explicações (baseadas em entrevistas individuais
semiestruturadas, observação de cultos e de momentos festivos, tanto em religiões de matriz
africana quanto em igrejas cristãs) foram surgindo e tornaram-se fundamentais para explorar
e reconsiderar até mesmo os próprios elementos racistas no cotidiano das realidades
abordadas.
O recorte da pesquisa corresponde, por fim, a um Terreiro de Umbanda em Baturité,
um Terreiro de Quimbanda e um de Umbanda em Antônio Diogo, uma Assembleia de Deus
em Baturité e outra em Antônio Diogo. No entanto, as projeções iniciais desenhavam outro
cenário, que não pode ser alcançado, mas que importa para as análises de campo e serão
abordados no texto.
2. A RELAÇÃO ENTRE A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA DE HOJE E O RACISMO COLONIAL.
Para embasar as hipóteses de que a intolerância religiosa de hoje possui, ainda,
ligações com o racismo do período colonial brasileiro, investiu-se numa revisão da literatura,
sob uma perspectiva histórico-sociológica, que considera as relações sociais de determinados
períodos como um produto das relações sociais dos períodos anteriores.
Existe uma vasta literatura acerca destes relacionamentos religiosos durante o período
colonial. Dentre estas obras, destaca-se o trabalho de Reis (2008), que faz referência a história
de um Sacerdote africano, Domingos Sodré, trazido para a Bahia, no século XIX. Domingos
Sodré e sua história são referências concretas acerca da opressão do sistema colonial sob as
manifestações religiosas de africanos e afrodescendentes, pois ele foi um dos que confrontou
a polícia e teve seus Terreiros de Candomblé invadidos e fechados. A política do século XIX
intensificou a perseguição às diversas formas de manifestação religiosa dos escravizados (o
que já vinha ocorrendo nos séculos anteriores), pois elas serviam, também, para organizá-los
como um grupo revoltoso e possibilitava a tomada efetiva de consciência para com aquele
sistema que os explorava, mesmo com a independência.
Ao destacar que a intolerância religiosa da contemporaneidade carrega traços de uma
perseguição referenciada ao fim do século XVIII e início do XIX, pretende-se apontar que há
uma conservação, na contemporaneidade, de elementos argumentativos e institucionais
observados nestes dois períodos. As perseguições religiosas coloniais e ligadas ao pós-
independência estruturavam-se em torno da demonização da cultura africana presente (e
insistente) durante os séculos da atuação portuguesa no território, tanto por apontá-la como
inferior à do colonizador, num sentido das lógicas de desenvolvimento, quanto por classificá-
la como pagã, ou seja, não cristã/católica. Portanto, logo que se sabia da localização das casas
de batuque onde os/as negros/as escravizados/as realizavam suas cerimônias diversas, as
forças de repressão buscavam destruí-las, no sentido de silenciar aquilo que não era
condizente com o plano civilizatório do ocidente.
No entanto, Reis (2008) adverte que, mesmo que o plano civilizatório tenha sido a
justificativa de oprimir estas manifestações religiosas, tornou-se muito mais importante
impedir que os/as escravizados/as tomassem consciência de que sua cultura permanecia viva,
driblando possíveis organizações que, mais tarde, tornar-se-iam revoluções organizadas,
como a Revolta dos Malês4, em janeiro de 1835.
Memmi (2007) orienta neste sentido de que o sistema colonial, além de ser uma forma
de agressão e dominação física do colonizado, também possui a capacidade de manipulação
no plano cognitivo, do apagamento cultural e da opressão de consciências. Reprimir as
manifestações religiosas, invadir Terreiros, prender Sacerdotes, promover legislações que
submetem acusados/as a penas severas, são formas (materiais) de silenciar e sufocar culturas
(formas imateriais) que são carregadas nas memórias de sujeitos que nada mais eram do que
objetos para a exploração do trabalho, e que, portanto, não representavam os valores da
sociedade europeia, branca, cristã, civilizada e desenvolvida.
Estes elementos argumentativos mais subjetivos (inferioridade do negro, como
pertencente a um sistema primitivo) e institucionais (a Igreja, como representante dos valores
mais substanciais da sociedade europeia) prevalecem no cenário contemporâneo brasileiro.
Se não por meios visíveis e mais incisivos, como legislações, por exemplo, aparece no plano
simbólico e cultural, de um Brasil desenhado por intelectuais, mídias e políticas, como um
prolongamento da sociedade ocidental (FREYRE, 2011), no qual estes elementos negros,
4 A Revolta dos Malês foi organizada, basicamente, por negros/as mulçumanos/as. Neste sentido, o que se pretende apontar é que a religião aparece, claramente, como ferramenta de organização de ideias revoltosas e de grupos que se identificavam com determinados ideais.
oriundos da (desagradável) presença africana na formação da sociedade brasileira, tornam-se
obstáculo para o cumprimento das metas de igualar-se as antigas metrópoles coloniais, hoje
consideradas como grandes centros de desenvolvimento e modelos de civilização.
(GUIMARÃES, 2009; MUNANGA, 2009).
Portanto, ao enxergar ideologias de discriminação colonial nas relações religiosas
contemporâneas, aponta-se para um processo de síntese cultural, referente à formação
histórica da sociedade brasileira que, não obstante, possui raízes em diversos momentos
formativos, não só do século XIX, como recortam Reis (2008) e Prado Jr (2011) – para uma
análise mais ampla, além da religião –, mas que são iniciados nos primeiros séculos de
exploração da colônia portuguesa nos trópicos, do XVI ao XVIII, como destaca Souza (1993).
Cada sociedade que formava a estrutura colonialista na colônia portuguesa da América
via-se embasada por seu convívio cultural referente ao território de nascimento, origem. O
choque é relativo a esta cultura que cada um cultivava em seus territórios e que, quando
postas frente a frente num sistema que definia com rigor quem era superior e quem era
selvagem, despontavam diferenças, resistências e opressão.
Entre os séculos XVI e XVIII, as culturas presentes no território da colônia portuguesa
na América foram se modificando, aglutinando, e criando formas cada vez mais distintas das
que eram encontradas nos anos iniciais do colonialismo brasileiro, desembocando no século
XIX como uma síntese histórico-social: mais brasileira do que portuguesa ou africana, por
exemplo. Obviamente, estes recortes entre séculos não são precisos o suficiente para
descrever os processos de interação social do colonialismo. Para atender a realidade deste
sistema é necessário assumir que isto é bem mais flexível. Porém, para efeitos de recorte
teórico-metodológico, faz-se necessário este apontamento.
Cada período possuí sua importância para a compressão de como o tráfico negro, a
presença portuguesa, a exploração dos povos autóctones, etc., contribuíram para a criação
desta sociedade. Porém, o século XIX, com a mudança da sede da monarquia para o Brasil,
com a intensificação de revoltas, que se tornaram cada vez mais recorrentes, foi decisivo para
diversos setores desta sociedade, pois carregava uma história de três séculos de experiência
colonial que gerou uma sociedade nova, um Império, que requeria Independência e buscava
desenvolver-se sob as lógicas de industrialização. A junção cada vez mais imbricada de
diversos elementos que, aos poucos, viram-se modificados pelo sentimento nacionalista,
intensificou as contradições sociais e sistemáticas. O século XIX foi um momento de eclosão
(definitiva) cultural, religiosa, política e econômica, gerada pelos longos séculos de sistema
colonial, no qual as relações entre os indivíduos que aqui se encontravam formaram um
cosmos diferente e cada vez mais característico deste espaço específico.
3. A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA EM BATURITÉ E ANTÔNIO DIOGO: O TRABALHO DE CAMPO
E AS ESPECIFICIDADES DE TEMPO E ESPAÇO.
O campo delimitado correspondia ao seguinte modelo:
Tabela 01: Campo de estudo.
Desses/as 13 líderes religiosos/as que haviam sido mapeados/as, 3 concederam
entrevistas (os Pais de Santo da Umbanda de Baturité e da Quimbanda de Antônio Diogo; uma
rezadeira de Antônio Diogo), sendo que somente os 2 primeiros autorizaram a gravação. As
outras 4 umbandistas mapeadas em Antônio Diogo não se interessaram pela pesquisa e
sentiram-se profundamente incomodadas por serem denominadas como umbandistas.
Os 2 pastores pentecostais previstos, das Assembleias de Deus de Baturité e Antônio
Diogo, não concederam entrevistas, porém, autorizaram que se participasse de alguns cultos,
a fim de realizar um trabalho de observação e etnografia. Os 2 pastores neopentecostais, das
IURDs de Baturité e Antônio Diogo, não autorizaram entrevistas e nem a observação dos
cultos. O Padre de Baturité também não colaborou com as análises. No caso de Antônio Diogo,
BATURITÉ ANTÔNIO
DIOGO
UMBANDA 1 5
QUIMBANDA 0 1
CATÓLICA 1 1
PENTECOSTAL 1 1
NEOPENTECOSTAL 1 1
entrevistou-se 2 representantes da paróquia, mas não houve gravação do diálogo, pois os dois
não permitiram.
De forma geral, mesmo que, dos 13 líderes, apenas 4 tenham concedido entrevista5, o
trabalho de campo realizado nas Assembleias de Deus foi considerável e enriquecedor para a
pesquisa, e possibilitou uma abertura maior daquilo que havia sido delimitado
metodologicamente. O contato com as umbandistas de Antônio Diogo também revelou
diversas questões, mesmo que elas não tenham concordado com o diálogo. No entanto, o
lado Católico de Baturité e dos pastores das IURDs não pôde ser alcançado.
É necessário considerar, primeiramente, que existe, sim, intolerância religiosa contra
as religiosidades de matriz africana nos dois locais destacados, Baturité e Antônio Diogo.
Porém, elas diferem não só das notícias que instigaram o desenvolvimento desta pesquisa,
mas são enxergadas, entendidas e combatidas de formas mais diversas, e isto diz respeito a
aspectos muito específicos, tanto da filosofia de cada religião, quanto da formação pessoal
dos/as líderes destes espaços. Para tanto, analisa-se as duas primeiras entrevistas (dos Pais-
de-Santo da Umbanda de Baturité e da Quimbanda de Antônio Diogo) de forma comparativa.
Os dois relatos não são completamente opostos um do outro, mas possibilitaram enxergar
como cada Pai de Santo age quanto à questão, e isto diz respeito a caminhada individual,
familiar, religiosa, política, social, etc., de cada um. Os cenários são múltiplos, logo, os sujeitos
partem de princípios diferentes (GOFFMAN, 2002).
Em Baturité, segundo as entrevistas, é possível perceber uma certa camuflagem de
ocorrências intolerantes no cotidiano. O Pai de Santo até rascunha alguns acontecimentos,
assim como alguns/as filhos/as da Casa, mas justifica-os e, por fim, utiliza a filosofia
umbandista na forma de tratar tais ocorridos. Eles/as declararam que tanto na rua onde
moram, quanto no supermercado, e em diversos outros lugares, é possível sentir um
tratamento diferente na forma de olhar, de falar e de cumprimentar, assim como casos de
discriminação mais direta. Isto é e deve ser normal, pois os trajes da Umbanda, os costumes,
e outros muitos aspectos, não são comuns as pessoas, de modo geral, visto que a religião
5 Atentando para o fato de que, no caso dos católicos de Antônio Diogo, duas pessoas concederam entrevista ao mesmo tempo, mas aparecem apenas como sendo uma só.
precisou se esconder do público por muito tempo, condenada até mesmo pela Constituição
do país.
Mesmo que seja normal (e deva ser), os/as filhos/as da Casa afirmam que isto deve
mudar, e com o passar do tempo, devem sentir-se respeitados/as, pois a Umbanda é uma
religião como qualquer outra, e que deve conquistar seu direito de existir. Esta forma de
encarar e de descrever a discriminação, se considerarmos esta Casa, pode ser entendida, pelo
menos, em dois sentidos: a Umbanda é uma religião que busca integrar um conjunto de
crenças, encontradas na américa portuguesa colonial e no Brasil pós-colonial6, desde o
espiritismo kardecista, os candomblés brasileiros, religiões indígenas, ciganas, cristãs
católicas, etc., e isto promove um sentimento de igualdade e de integração social, não só das
crenças, mas de sujeitos.
O segundo ponto capaz de proporcionar um entendimento destes relatos está
relacionado à participação cidadã do Pai de Santo, referente a suas contribuições na
Prefeitura, tanto em algumas ações da Secretaria de Cultura, quanto em grupos e conselhos
de juventude. Esta Casa de Umbanda está instalada em um Terreiro de excelente estrutura
física, no qual é possível identificar a crença umbandista. Em outros termos: há afirmação
identitária. Portanto, o Pai de Santo e seus/as filhos/as carregam e afirmam o signo social de
umbandistas. Ao participar de suas atividades fora do Terreiro, estes sujeitos viabilizam o
convívio de opressores e oprimidos, e confrontam/transformam a realidade.
O estudo da Quimbanda de Antônio Diogo, através do método comparativo, é um
pouco oposto a algumas situações de Baturité. Com as entrevistas, foi possível perceber uma
afirmação mais concreta de casos de intolerância. Segundo o Pai de Santo entrevistado, só
não se consumam casos de violência direta porque as pessoas têm medo de que ele, como
indivíduo demonizado, possa fazer algo pior. Há restrições de convívio na vizinhança, na rua,
no supermercado, nos transportes coletivos, etc. E, devido à estas restrições, ele tomou a
decisão de viver a vida do Terreiro, por completo, extrapolando este espaço somente em casos
6 Usa-se estes dois períodos no sentido de destacar que os elementos integrantes da Umbanda não aparecem apenas em seu século de surgimento, o século XX, pois eles são resultantes de processos de bricolagem, de transposição de religiosidades de outros territórios que se referem à própria experiência cultural do Colonialismo da américa portuguesa (ROHDE, 2009).
de real necessidade. Outro fator que o Pai de Santo destaca como impedimento para
ocorridos piores está relacionado a sua imediata disposição de denunciar à polícia. Foram
relatadas diversas situações nas quais ele se encontrou em mesa de delegacia e teve que
reivindicar seus direitos com voz altiva (inclusive, com os delegados envolvidos, que também
se posicionaram discriminatoriamente).
Contudo, diferente das filosofias umbandistas, a Quimbanda é, de fato, uma religião
mais fechada. Ela é um tipo de Candomblé, o que requer muito critério em suas atividades
cotidianas. Não são todas as pessoas que podem participar dos rituais ou frequentar o
Terreiro. Há uma lógica rígida de funcionamento que não permite que qualquer pessoa integre
o meio, ou que frequentem e decidam seguir a religião como adepto. Por exemplo, foram
realizadas tanto entrevistas na Umbanda de Baturité, quanto observações de cultos, de festas,
etc. Na Quimbanda de Antônio Diogo, o Pai de Santo concedeu entrevista na parte da frente
de sua casa, pois nem todos os presentes poderiam conhecer outro cômodo da casa, quanto
mais do Terreiro.
Os estudos de campo apontam neste sentido de afirmação identitária. Mesmo que o
Pai de Santo da Quimbanda de Antônio Diogo tenha escolhido viver, estritamente, o cosmos
do Terreiro, isto não significa que ele, como o de Baturité, não assuma sua identidade de
quimbandeiro. Porém, mesmo que a intromissão social dos/as umbandistas de Baturité cause
discriminação e olhares tortos, conquista-se espaço, fortalece-se o direito de participar e de
se opor à discriminação que limita a existência. Por outro lado, não menos complexo e
adequado, o quimbandeiro combate a discriminação reforçando a sua crença e a crença
dos/as seus/as filhos/as, conduzindo-os/as para o cosmos da vida no Terreiro e deixando de
lado o que aqueles/as, que não pertencem ao espaço, pensam sobre suas práticas. Cada um
deles compreende a resistência de sua forma: pelo embate cotidiano ou pelo culto pessoal e
engajado da vida no Terreiro.
A entrevista com a senhora da Umbanda de Antônio Diogo só confirmou o que as
leituras anteciparam: não há um completo acordo sobre o que é, afinal de contas, Umbanda,
e, principalmente, quem é umbandista. Esta senhora, que reside na localidade Susto, assim
como as outras 4 que foram mencionadas, não se identifica como umbandista, mas como
rezadeira/benzedeira/curandeira, etc. No entanto, ela concedeu uma prolongada conversa,
mesmo com todas as dificuldades de comunicação e aproximação, pela sua idade avançada e
surdez aguda.
A sua identificação como não-umbandista foi fundamental para compreender como,
mesmo assim, ela era discriminada, não só pelos arredores da sua casa, mas pelos/as
próprios/as filhos/as, que passam bastante tempo sem visitá-la. Todos/as são evangélicos/as,
residem, em sua maioria, em Fortaleza, mas evitam vê-la, por acreditar que a sua crença é um
culto demoníaco; que sua casa é um templo que desonra a deus.
Ela relatou que nunca teve nenhuma formação espiritual com outra pessoa que
possuísse o mesmo dom, e que teve que aprender sozinha a comandar sua cabeça. Declarou
que teve as primeiras manifestações de mediunidade aos 7 anos de idade, na cidade que
nasceu, Mulungu, e que, apenas muitos anos depois de ter mudado para Antônio Diogo, teve
auxílio de alguém que estava envolvido com algo parecido. Foi à Fortaleza e encontrou uma
Mãe de Santo de Candomblé. Esta Mãe de Santo fez todos os processos rituais de iniciação, e
por alguns dias ficou internada naquele Terreiro. Concluiu explicando que apenas depois desta
iniciação que suas dores de cabeça aliviaram, mas que foi o único contato que teve para
ajudar-lhe sobre seu dom.
Ela apresentou seu Terreiro, que é apenas um quartinho com altar, localizado no fundo
de um quintal com algumas galinhas, plantas medicinais, árvores frutíferas, etc., e reiterou
que não era umbandista. As pessoas que a procuravam estavam sempre em busca de algum
tipo de alívio. Ela não os ajudava, mas os espíritos, guias, orixás e caboclos. Ela apenas recebia
a pessoa que a procurava, sentava em uma cadeira dentro do quartinho e todo o resto era
feito pelo espírito que vinha naquele momento. Quando a sessão terminava e ela voltava a si,
perguntava a pessoa que estava lá se ela havia sido ajudada. Despedia-se e voltava a fazer o
que estava fazendo antes de ser abordada.
Esta senhora, por mais que não se identifique como umbandista, pode ser reconhecida
(pela terminologia científica) dentro das características que compõem a Umbanda. Talvez não
necessariamente pelo exercício ritual, mas pela variedade de espíritos, guias, caboclos, orixás,
etc., que aparecem em seu Terreiro para atender quem procura ajuda. A Umbanda é
composta por esta variedade de entidades espirituais que são invocadas para rotinas de cura
e caridade. No entanto, é importante enfatizar a sua auto identificação.
É a ênfase na identidade que o sujeito atribui para si que importa neste estudo de
intolerância. Principalmente neste caso, no qual a senhora é identificada como umbandista,
mas afirma que é uma simples rezadeira. A discriminação religiosa (e intolerância dos/as
filhos/as) está vinculada a uma generalização externa, de alguém que não exerce práticas
cristãs, e que é classificada junto a uma alteridade demonizada da religião de matriz africana.
A pesquisa de campo nas Assembleias de Deus destacou um fator que se tornou
essencial para unir e concretizar as reflexões acerca de todas estas questões: afirmar
identidade é resistir e empenhar-se em classificar e combater o outro (igual ou diferente).
Durante os cultos, é muito comum, de vez em quando, tanto os pastores, quanto os fieis em
suas orações, fazerem referência a um outro que é mundo (o espaço que excede o sagrado da
Igreja) e que é indivíduo. Neste discurso, não são apenas as religiões de matriz africana que
são colocadas como algo a se evitar, a se libertar, mas tudo aquilo que excede ao ambiente
doutrinário da Igreja. As religiões de matriz africana são citadas, inúmeras vezes, como
promotoras de maldades contra fieis, contra os verdadeiros filhos de Deus, e como um símbolo
de culto ao opositor do bem: o diabo. Porém, é reforçado que várias outras coisas devem ser
evitadas e constantemente discernidas como demoníacas, tais como o dinheiro, a fofoca, o
sexo fora de uma relação conjugal, etc.
Isto pode ser importante para compreender o ataque a senhora de Antônio Diogo.
Mesmo que ela destaque que é apenas rezadeira, ela foge daquilo que se prega na Igreja
cristã. Ela é esse outro que excede o espaço do sagrado, ensinado e cultuado pela doutrina. A
sua reza, não sendo uma reza reconhecida por este conjunto de crenças da doutrina, é uma
crença do outro lado, do lado profano. Portanto, como possível conclusão a estas
observações, é necessário compreender que a alteridade afeta e incomoda a igreja cristã,
neste caso, a protestante pentecostal.
Acerca da entrevista com os representantes católicos de Antônio Diogo, as reflexões
são semelhantes. No entanto, como destacou a rezadeira de Antônio Diogo, há uma
relativização do preconceito por meio da necessidade real de ajuda. Os dois entrevistados
destacaram que é comum saber de alguém que precisou de muita oração para se libertar de
alguma maldade trabalhada num Terreiro de Macumba. Mas que isto depende da fé de cada
um. Quem está em dias com deus não teme o diabo, destacaram os dois. A flexibilização do
preconceito diz respeito a necessidade de procurar até mesmo o terreiro de macumba para
desfazer um suposto mal que foi trabalhado em outro Terreiro. Da reza com ervas, dos banhos
das rezadeiras, e de tantas outras formas de religiosidade que são procuradas as escondidas,
por serem discriminadas publicamente.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Todo o reforço bibliográfico aponta no sentido de que as discriminações religiosas
contra as religiosidades de matriz africana eram (e são, como síntese histórica) provocadas
pela lógica do racismo, que condenava a cultura do negro e tudo mais que derivava da
existência deste. No entanto, com o trabalho de campo e a coleta de dados, por meio das
entrevistas individuais semiestruturadas, pode-se flexibilizar esta interpretação, no sentido de
que a teoria contempla uma realidade que não é necessariamente reconhecida por quem
segue estas religiões.
No plano do estudo das formações históricas da sociedade brasileira, a teoria consegue
alcançar o sentido de racismo religioso que se busca. Mas o trabalho empírico revela muitos
outros elementos substanciais. A discriminação, denunciada pelas religiões de matriz africana,
é, num curso histórico da sociedade, uma consequência da exploração racista do
Colonialismo, pois este registrou um estigma negativo na crença e na cultura dos povos da
diáspora, assim como seus descendentes. Porém, é necessário entender as filosofias de cada
seguimento religioso, e categorizar como cada um deles entende as questões raciais dentro
de sua crença.
Desta forma, é possível ir além da noção de discriminação religiosa como síntese social
de ideologias racistas oriundas do período colonial. Pode-se pensar como resultado de
disputas por seguidores religiosos que integram as mesmas classes sociais, e que buscam nos
Templos cristãos ou nos Terreiros de religiosidade de matriz afro formas de aliviar os
problemas da vida cotidiana. Outra linha possível de pensar estas questões, numa lógica mais
contemporânea, tem relação com o crescimento considerável do número de protestantes no
cenário político do país, possibilitando que as ideias referentes aos dogmas religiosos
penetrem o cosmos das ideias políticas (SILVA, 2007; ORO, 2008).
A Umbanda, como religião tipicamente brasileira, formada pelo contato de diversos
elementos religiosos encontrados no Brasil durante o fim do século XIX e início do XX,
certamente não encarará as questões de raça e etnia como a Quimbanda, um tipo de
Candomblé, e como tal, muito mais pautado numa matriz africana. É importante tentar
desvelar estes discursos e pontuar apenas aquilo que o campo revela (ou esconde).
A Umbanda de Baturité não compreende estas lógicas culturais e étnicas de brancos e
negros, muito menos se postas numa crítica de exploração colonial pautada no racismo que
legitimou a exploração de povos. Mas isto diz respeito a formação social da religião e,
consequentemente, as suas filosofias internas de bricolagem social, cultural e religiosa. A
Quimbanda, cultuando Exu, abrange muito melhor os traços de uma matriz africana, e afirma
as possibilidades de um racismo religioso (BASTIDE, 2001; CARNEIRO, 2008; MUNANGA, 2004
e 2009B; ROHDE, 2009). A percepção de que hoje todos os tipos de pessoas, basicamente,
sem unidade de etnia, classe, gênero, etc., frequentam os Terreiros e aderem as práticas
rituais de religiões de matriz africana, supera a noção cotidiana do racismo que se inscreve no
curso da história.
Contudo, no caso da rezadeira de Antônio Diogo, ela nem reconhece que os elementos
rituais e espirituais que circulam no seu Terreiro são típicos de Umbanda (consequentemente,
não se identifica como umbandista), quanto mais que há uma estrutura histórica e social que
sintetizou um profundo preconceito a tudo que excedia a religião cristã no colonialismo, com
ênfase na cultura africana da diáspora e descendentes. Para o conceito terminológico, sim,
ela é umbandista, e para o olhar social de quem a conhece, também, mas no campo das
identidades, ela é apenas uma rezadeira.
A discriminação nestes dois lugares não é tão evidente quanto as que foram noticiadas
no país ultimamente. Elas se manifestam de várias formas diferentes, de violências muito
simbólicas, mas nenhum relato de agressão física (mesmo pela pressão da discriminação
simbólica) ou material. Cada um dos casos, tanto da Umbanda de Baturité, da Quimbanda de
Antônio Diogo, da rezadeira de Antônio Diogo, das 4 rezadeiras que não concederam
entrevista, reclamam um tipo de discriminação. Seja por meio do embate direto de quem
demoniza as escolhas religiosas, seja pela pressão do não ser, de quem exerce um tipo de
religiosidade que, mesmo sem estar ligada a matrizes africanas, é demonizada. E assim como
são diversas as formas de discriminação são as formas de reação, de combate ou de
isolamento de realidades.
A diferenciação entre esta variedade de outros gera, quase que instantaneamente,
uma força de afirmação identitária, de resistência a afirmação de ser, ou de concessão a
pressão social do que não pode ser (como nos casos em que há a negação de que se pratica a
religião, ou de que não há interesse em conceder entrevista, de dialogar, abrir a realidade
para alguém de fora). Quando um protestante pentecostal afirma que é necessário libertar-
se das tentações do diabo presente na Umbanda, o umbandista de Baturité responde como
alguém que compreende o espaço político e que tem direito de participar. Por meio deste
destaque, há uma troca de experiências, nem sempre voluntárias, na qual os filhos de
Umbanda têm a oportunidade de demonstrar que em sua crença nem mesmo existe a figura
do diabo. Há outro tipo de representação da maldade, que é atribuída, enfaticamente, ao
próprio homem.
A discriminação no caso da Quimbanda empurra o/a seguidor/a para dentro do
Terreiro, em um movimento que não é tão voluntário quanto o Pai de Santo relata, mas que
o/a fortalece na crença que é vivida diariamente, e que se reafirma sem necessariamente
estar sob a pressão externa de quem demoniza a religião.
A expressão entre, referente ao título original do projeto: A demonização e a
discriminação entre cristãos e seguidores de religiões afrodescendentes, expressa uma
hipótese que foi confirmada durante a pesquisa: a discriminação possui dois gumes, numa
rota de ação e reação, que tem como produto o reforço da identificação. Este reforço não é
referente somente a afirmação de ser, mas de deixar de ser, romper, contradizer-se, e afastar-
se da crença. Mas acontece de ambos os lados analisados. Há relatos de protestantes que
aderiram a Umbanda por encontrar na religião muito mais emprego da caridade do que o que
se buscava na igreja cristã. Há outros relatos de umbandistas que encontraram na Quimbanda
uma maior manipulação das energias mágicas e, desta forma, maior potencial e formas de
amparo a outras pessoas.
O racismo é estrutural, sintetizado por meio de uma história de longa exploração
colonial, mas não é reconhecido nas relações do cotidiano. O que se destaca nessas relações
de discriminação entre as religiões cristãs e de matriz africana é a necessidade de encontrar
em cada uma delas a saciedade do que se procura consumir. Nesta busca individual, os
sujeitos se deparam com crenças que envolvem coletivos, e que podem criar, fortalecer e
romper com identidades.
Neste sentido, referencia-se a obra de Bauman (2001), sobre a liquidez das
identidades, que se tornam, cada vez mais, flexíveis e disponíveis, como mercadorias que
podem ser adquiridas em prateleiras do supermercado. Estas máscaras, aliando a teoria de
Goffman (2002), podem ser vestidas de acordo com os cenários que são encontrados nas
relações sociais. Ao mesmo tempo em que os indivíduos exprimem a posição de que são livres
para escolher suas identificações, existem pressões de coletivos que possuem um poder de
convencimento e legitimação conquistado ao longo dos séculos.
As outras formas de identificação que vão surgindo com a modernidade (e mesmo
aquelas que não são tão contemporâneas assim) são encaradas como desvios, e há um
embate acerca do que deve prevalecer e do que deve ser evitado. Este conflito pode
enfraquecer o reconhecimento das consciências individuais e/ou coletivas, no entanto, o caso
analisado, mesmo que com diferentes formas de resistência, o conflito gerado pela
intolerância e discriminação tem fortalecido os desejos de ser e de afirmar ser.
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