as tramas do corpo na arte contemporÂnea … · examinamos as diferenças entre autonomia...

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AS TRAMAS DO CORPO NA ARTE CONTEMPORÂNEA Vinicios Kabral Ribeiro– Mestrando em Cultura Visual (Bolsista Capes) Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO [email protected] “A DANÇA DOS CADÁVERES” “O fedor abominável está no ar O ranço de quarenta mil anos E zumbis grisalhos de todas as tumbas Estão se aproximando para selar seu destino E apesar de você lutar para sobreviver Seu corpo começa a sentir calafrios Pois nenhum mero mortal pode resistir À malevolência do terror” (Tradução livre de um trecho de Triller, Michael Jackson). Em 1982, Michael Jackson devorava pipoca e se divertia em um cinema ao ver um filme de terror. Sua namorada não parecia confortável, tão pouco conseguia fitar continuamente a tela. Não resistindo ao sangue e as disparates da narrativa, a jovem moça retirou-se da sala de exibição; Jacko saiu em seguida. Ao encontrá-la disse que aquilo não era real, algo bobo, distração. Ela replicou: “Não é engraçado”. Foram deambulando pelas ruas e ele com todo seu jogo de cintura reconquistou a sensível moça. Ao cruzarem um cemitério, criaturas absurdas haviam sido transportadas da tela e povoado toda a cidade. Michael não escapou e metamorfoseou-se em um temível lobisomem: olhos esbugalhados, orelhas pontiagudas, afiadas garras tomaram o lugar de suas unhas. Juntou-se a dança de seres aterrorizantes e converteu-se a perseguir aquela que foi alvo de suas paixões. Em março de 2009, o pesquisador alemão Gunther von Hagens, conhecido como “doutor morte”, declarou ao jornal “Bild”de seu país natal, que o astro mundial do pop estaria interessado em seus serviços: técnicas de plastinização que substitui líquidos e gorduras de cadáveres com a finalidade de preservação dos corpos. A ficção narrada encerra-se no videoclipe, mas as experimentações de Hagens bem poderiam ser roteirizadas para um “thriller” estadunidense. O “doutor morte”, desde 1996 percorre diversos países apresentando sua exposição “Os Mundos do Corpo”. O “acervo” itinerante disposto em museus, galerias e centros comerciais é composto por centenas de corpos e fragmentos de seres humanos e outros III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 2899

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AS TRAMAS DO CORPO NA ARTE CONTEMPORÂNEA

Vinicios Kabral Ribeiro– Mestrando em Cultura Visual (Bolsista Capes)

Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO

[email protected]

“A DANÇA DOS CADÁVERES”

“O fedor abominável está no ar O ranço de quarenta mil anos

E zumbis grisalhos de todas as tumbas Estão se aproximando para selar seu destino

E apesar de você lutar para sobreviver Seu corpo começa a sentir calafrios

Pois nenhum mero mortal pode resistir À malevolência do terror” (Tradução livre de um trecho de Triller , Michael Jackson).

Em 1982, Michael Jackson devorava pipoca e se divertia em um cinema ao ver um

filme de terror. Sua namorada não parecia confortável, tão pouco conseguia fitar

continuamente a tela. Não resistindo ao sangue e as disparates da narrativa, a jovem moça

retirou-se da sala de exibição; Jacko saiu em seguida. Ao encontrá-la disse que aquilo não era

real, algo bobo, distração. Ela replicou: “Não é engraçado”. Foram deambulando pelas ruas e

ele com todo seu jogo de cintura reconquistou a sensível moça. Ao cruzarem um cemitério,

criaturas absurdas haviam sido transportadas da tela e povoado toda a cidade. Michael não

escapou e metamorfoseou-se em um temível lobisomem: olhos esbugalhados, orelhas

pontiagudas, afiadas garras tomaram o lugar de suas unhas. Juntou-se a dança de seres

aterrorizantes e converteu-se a perseguir aquela que foi alvo de suas paixões.

Em março de 2009, o pesquisador alemão Gunther von Hagens, conhecido como

“doutor morte”, declarou ao jornal “Bild”de seu país natal, que o astro mundial do pop estaria

interessado em seus serviços: técnicas de plastinização que substitui líquidos e gorduras de

cadáveres com a finalidade de preservação dos corpos. A ficção narrada encerra-se no

videoclipe, mas as experimentações de Hagens bem poderiam ser roteirizadas para um

“thriller” estadunidense.

O “doutor morte”, desde 1996 percorre diversos países apresentando sua exposição

“Os Mundos do Corpo”. O “acervo” itinerante disposto em museus, galerias e centros

comerciais é composto por centenas de corpos e fragmentos de seres humanos e outros

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animais submetidos à sua técnica. Em seu site (www.bodyworlds.com) é explicitado a missão

e os objetivos em trazer ao grande público o que antes era reservado aos especialistas. A

educação em saúde seria uma das forças motrizes para tal empreendimento. O uso de

binarismos como a noção de enfermo e saudável são enfatizados com o intuito de reflexão

sobre as medidas adotadas para os cuidados do corpo; ao abandono de práticas maléficas tais

qual o cigarro, álcool.

As polêmicas do cientista alemão podem ser entendidas em perspectivas distintas,

como a socialização dos saberes dos estudos anatômicos por uns e deturpação ética por

outros, ou ainda como uma afronta às crenças religiosas em volta da corporeidade e fé. Mas o

inegável é que

Hagens recupera o espírito da ciência-espetáculo, tão em voga nas cortes européias nos séculos XVI a XVIII. É sabido que, nessa época, a ciência e os cientistas são um espetáculo à parte, entretendo a nobreza e a sua entourage com as "maravilhas científicas" recém descobertas, a pesquisa anatômica entre elas (REBOLLO, 2003, p.106).

Ao dedilhar livros de História da Arte ou pesquisar em bancos de imagens digitais,

podemos encontrar uma imagem que relembraria a cena acima citada. Alguns séculos as

separariam, mas a curiosidade, o fascínio e o medo as unem. O olhar que busca tudo

apreender, decifrar. O que nos diz “A Lição de Anatomia do Dr. Tulp”, que Rembrandt

contornou em 1632? Que corpo era aquele? A quem pertencia?

Se na renascença acentua-se o interesse pelo corpo e o seu interior, e se tais

curiosidades são promovidas através de estudos da anatomia humana, em observações

minuciosas por cortes e dissecações. Nos olhares atentos para desvendar os mistérios da vida;

é possível dizer que imagem, ciência e conhecimento quase sempre estiveram entrelaçados? E

de que maneira cabia aos artistas representar e registrar visualmente as efervescências

científicas? Aos olhos de Jean-Jacques Courtine,

A participação dos artistas no estabelecimento da iconografia anatômica foi feita à base da convicção de que a ilustração cumpria um papel essencial no dispositivo de conhecimento organizado em torno da percepção visual. Pintores e anatomistas partilham os mesmos valores a propósito da experiência sensorial, os livros científicos exploram a cultura visual da época, e esta os invade trazendo-lhes uma sensibilidade específica. Os artistas colocaram a serviço do saber anatômico uma dimensão estética, mas também um olhar que vai além do objeto morto deposto na mesa de dissecação: a dramaturgia dos esqueletos e dos manequins anatômicos não pertence ao escalpelo, mas ao pincel. É o artista que faz a dança dos cadáveres (2008, p. 425).

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O período histórico convencionado Renascimento em alguns países europeus é tomado

didaticamente como uma revisão dos valores e expectativas da antiguidade clássica. A aliança

entre artistas e anatomistas e as resistências da igreja católica marcaram as idas e vindas sobre

o conhecimento do corpo, naquele momento. Mais que um local de investigação e

interpretação, o corpo inseria-se em um universo de fantasias e excitação. Todavia, o corpo do

artista não era algo presente. A corporeidade até poderia ser o tema, mas dificilmente molde

que promovia a execução da arte.

Se “a dança dos cadáveres” era feita por pincéis de artistas, as transformações

tecnológicas e culturais das sociedades ofertaram outras possibilidades estéticas e conceituais

para a exibição do corpo. Muitos dos artistas da modernidade defrontaram-se com a

dualidade do suporte corporal. Ao mesmo tempo em que o corpo encarnava as metáforas de

deus (e sua materialização no “corpo de cristo”), era visto como síntese do mundo vivido e

experimentado. A idéia de encarnação aludia ao efêmero, ao perecível e transitório. A

ressurreição era um antídoto à brevidade da carne. “Talvez tenha sido este peso da tradição,

esta sobrecarga simbólica e a ansiedade que ela podia provocar, o que causou a originalidade

da visão do corpo entre os artistas do século XIX” (ZERNER, 2008, p. 104).

Aflorava nos campos das representações uma exacerbação de corpos, em especial o

feminino. O “nu” tornou-se estética predominante na escolha de artistas como Delacroix,

Courbet, Renoir e Matisse. Os limites tensionados entre o profano e o divino, o erótico e

celestial somavam-se em uma investida ao desnudamento, aos mistérios dos corpos ocultados

pelas vestes. Entretanto, as estéticas realista, romântica e simbolista foram atravessadas por

uma nova possibilidade de registro visual. As descobertas fotográficas empreendidas no

século XIX impactaram as representações que se tinham até então. O dispositivo fotográfico

reverberou nas formas do “ver” e do “visualizar”, assim como no campo de produção,

reinvenção e circulação de imagens. A fotografia “por sua intensidade, sua evidência

espetacular, ela confere uma presença supervisível ao corpo desnudado, exposto em toda sua

verdade. Ela submete o espectador-voyeur do século XIX a uma nova fascinação” (CORBIN,

2008, p.215).

É válido ressaltar que a inserção da imagem fotográfica no cotidiano causou

acaloradas discussões sobre sua linguagem, sua potencialidade de “reproduzir” o real e

principalmente as dificuldades em reconhecê-la como algo além de um ato mecânico.

Se a fotografia e o modernismo têm um leito cronologicamente comum, dividem igualmente um outro aspecto que é importante guardar na memória, quando

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examinamos as diferenças entre autonomia possível da fotografia e suas diferenças em relação a outras formas de expressão. O que compartilham entre si talvez seja uma maldição, talvez uma ameaça, talvez, no fim das contas, uma fonte de potência estética. Trata-se do problema da impostura (KRAUSS, 2002, p.133).

A “impostura” partilhada entre fotografia e arte moderna ocidental pode ser gestada e

compreendida como algo deslocado das tradições. Tal qual o dispositivo fotográfico assustou

com a sua capacidade de “congelar” o tempo e o espaço em um universo bidimensional, as

pesquisas plásticas modernas, em especial as abstratas, foram questionadas por romper com as

verdades visuais estabelecidas pelos regimes de arte vigentes até então. Da mesma maneira

que a sucessão do tempo garantiu o status de objeto de arte à produção moderna; a imagem

fotográfica libertou-se das amarras do mimetismo e tornou-se um índice, um vestígio de uma

dada realidade.

E quando deslizamos nossa percepção ao “agora”, ao tempo que corre sobre nossos

olhos? Se a arte moderna e a fotografia partilharam, em seus primórdios, um deslocamento

para as margens e suas “imposturas” foram aos poucos reconhecidas como outras formas de

linguagens; quais os locais da arte contemporânea? E a questão perturbadora dessa pesquisa:

que corpo é esse na contemporaneidade, encenado (encarnado) pelos artistas? Mais afundo:

“Que pode o corpo?” retomando a indagação de Deleuze aos olhos de Jeudy (2002). Não

tenho a pretensão de esgotar uma questão tão complexa como esta. O que intento é mapear e

discutir algumas relações possíveis entre o corpo e as manifestações artísticas

contemporâneas.

Partilho dos argumentos de Cauquelin (2005) ao tomar a arte contemporânea como um

regime de comunicação, ao contrário da “moderna”, incrustada em um regime de consumo.

Arte moderna, espelho das sociedades industriais que reorganizaram as sociabilidades e os

fluxos da vida cotidiana. As “redes” comunicacionais ampliaram as noções da arte

contemporânea e, principalmente, as indagações e perspectivas artísticas na odisséia em

ofertar uma, entre muitas, forma de conhecimento sobre o mundo experimentado.

“E O CORPO AINDA É POUCO”

A idéia de vanguarda foi exaustivamente utilizada como uma clausura onde artistas,

linguagens e orientações estéticas conformavam períodos históricos. O esgotamento das

possibilidades estéticas abriria o precedente para uma nova era. Seguiam, assim, manifestos,

correntes e um abandono das experiências anteriores. Cauquelin (IBIDEM) prefere pensar em

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“embreantes”, que menos sobrepõem o regime estético vigente do que acena para rupturas e

fazeres. Marcel Duchamp (1887- 1968) e Andy Warhol (1928-1987) seriam os deflagradores

de uma outra postura frente à arte e principalmente: o questionamento dos cânones artísticos.

A eles, respectivamente, temos a herança dos “ready-mades”; a aliança da comunicação

massiva e a arte e sua institucionalização comercial. São eles precedentes da arte conceitual,

land art, minimalismo, figuração livre, body art e os diálogos com as tecnologias.

Internacionalmente, os anos 1960-70 são marcados pela intensificação do uso do

corpo, pelos artistas estadunidenses, em happenings (combinação entre artes visuais e

teatralidade, marcado pela improvisação, participação do público e pautado no momento). Um

exemplo é o grupo Fluxus e os artistas Robert Rauschenberg e Alan Kaprow. Nesse momento,

o corpo era a própria revolta contra o formalismo da representação e os espaços de inserção

das obras de arte. A performance “Degradação de Vênus” (1963), onde Otto Muhl jogava

lama no corpo de uma modelo nua e depois a enrolava em um lençol com sujeiras diversas,

pode ser entendido dessa maneira, afinal, “Vênus” é um dos temas recorrentes em muitos

trabalhos artísticos tradicionais, tanto na escultura quanto na pintura.

E no Brasil? A quanto estávamos? O que estava “acontecendo”?

Happening? Em outubro de 63, São Paulo não sabia o que era isso. Mas queria saber. O João lotou. Era tanta gente que polícia e bombeiros apareceram para dar mais cor ao evento. Um filme do Otto mostrava uma amiga vestida com um estilo retrô andando pelas ruas de São Paulo e terminava com Lydia Chamis, namorada do artista e depois esposa, atravessando uma tela de papel, com a mesma roupa usada pela outra no filme, fazendo um strip-tease às avessas. Enquanto isso, no meio da escuridão, Wesley iluminava as Ligas com lanternas, e a luz nunca ficava suficientemente parada em um quadro para que as pessoas vissem a obra direito (CORRÊA, 2008, p.2).

A Wesley Duke Lee, na narrativa acima, é creditada a inserção do happening em

terras brasileiras. Sua exposição, baseada em traços e fixações em “cinta-liga”, um acessório

íntimo tido como “feminino”, foi considerada obscena. O breve feixe de luz, lançado pela

lanterna de Lee, poderia ser entendido como uma metáfora à censura destinada aos corpos, em

especial ao desnudamento. Mais ainda, ele acena para todo um movimento, espalhado em

diversos lugares, para a tomada do corpo enquanto um elemento “puro”, que deveria ser

liberado da “alienação” e exploração do capital. Em conjunto com Geraldo de Barros, Nelson

Leiner, e aos seus ex-alunos Carlos Fajardo, José Resende e Frederico Nasser, Lee criou a Rex

Gallery. Uma das principais razões para a fundação desse espaço era a necessidade de ter

“espaço”, pois esses artistas eram preteridos da crítica especializada e dos locais formais de

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exposição. Outro ponto importante é a visão que Lee concebia da necessidade do público

“desmistificar” a arte.

Ao mesmo tempo em que Duke Lee inseria o público em seus trabalhos artísticos, a

fronteira entre quem produzia arte e quem consumia era claramente identificada. Lygia Clark

e Hélio Oiticica são impactantes e significativos ao proporem uma nova participação do

público: o toque, a manipulação e outra experiência de fruição . Os dois foram metáforas de

psicoterapeutas para a arte brasileira. Em suas obras o espaço foi expandido e questionado em

suas facetas estéticas, perceptivas e teórico-conceituais. Suas experimentações e rupturas

contaminaram sensivelmente as gerações que os sucederam. Suas poéticas ofertaram

liberdade e ousadia, corpo, presença, reflexão. Essa “nova objetividade” é uma resposta ao

frívolo caráter construtivista do movimento concretista no Brasil.

Ao observarmos atentamente os trabalhos de Clark como “A casa é o corpo” (1968),

“Túnel” e “Baba antropofágica” (1973), “Rede de elásticos” e “Relaxação” (1974), “Cabeça

coletiva” (1975) e “Corpo coletivo” (1986), reforçam a característica de Lygia em ser uma

propositora. O lugar do sensível e da fluidez era incentivado em seus espaços sensoriais,

coletivos, densos e subjetivos. A obra existia enquanto coexistissem seus aliados, seu público

participante. Ela mobilizou centenas de pessoas no Brasil, Alemanha, França. Para a artista,

suas proposições construtivistas auxiliavam no cruzamento do intransponível, mesmo que em

apenas um minuto (FABBRINI, 1994).

Os acontecimentos políticos brasileiro no final da década de 1960 e nos anos seguintes

influenciaram diretamente muitas das produções de arte nesse momento, em especial o uso do

corpo como protesto. O país, com o ato institucional cinco (AI-5) do militar Costa e Silva,

encontrava-se em um momento de supressão das liberdades individuais e coletivas. E

também, restrições impostas aos intelectuais, artistas e outros agitadores culturais. O medo, o

terror e as coações vivenciadas pelos artistas exigiram uma nova forma de extravasar em suas

poéticas. Naquele momento é perceptível a inserção do corpo como discurso de resistência,

uma denúncia à opressão vivida. Desenha-se a idéia do artista ligado à micropolítica e o seu

antônimo, o militante, à macropolítica. A superação dessas fronteiras é o que pode ser

percebido na produção de artistas desse período. O engajamento político dos artistas é uma

das possibilidades de encontro com a militância, em um movimento transversal, questionador

do poder no espaço real de vivências. Revolver, ativar e revulsionar as articulações entre o

micro e o macro no contexto político-social são estratégias de combate contra a estagnação da

produção artística e a inércia fomentada pelos grandes centros de poder, além de uma atenção

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aos processos cotidianos da vida, das experiências do corpo, das marcas do conflito

(ROLNIK, 2008).

Artur Barrio,em 1970 na exposição “Do corpo à terra”, margeia um rio em Belo

Horizonte com trouxas contendo fezes, lixos variados e carne podre. Cildo Meireles, no

mesmo ano e na mesma cidade, queima galinhas vivas em seu trabalho “Tiradentes - Totem-

monumento ao Preso Político”. Letícia Parente, em 1974, borda com linha e agulha em seu

pé a frase “Made in Brasil”. Referências à tortura, ao exílio. Uma forma de romper o silêncio.

Os artistas, que desenvolveram seus trabalhos nas décadas seguintes, situavam-se em

outros cenários histórico-politicos. A retomada da democracia afrouxou laços que eram

reforçados no combate à ditadura. O olhar incisivo dilui-se em outras questões do cotidiano,

conduzindo a outros caminhos para as poéticas do corpo. Ao longo dos anos 80 e 90 muitos

artistas problematizaram questões delicadas em suas produções. A sexualidade, a religião, a

obsessão pela “beleza” e as questões de gênero tomaram forma em performances e

instalações. Márcia X, sobre suas expressões múltiplas no início da década de 1990, relata que

“Fabrica Fallus” é o nome da série de trabalhos em que utilizo pênis de plástico comprados em sex shops acoplados a toda sorte de enfeites femininos, apetrechos infantis e religiosos. Muitas destas peças são dotadas de movimento e som, interagindo com o público. “Os Kaminhas Sutrinhas” é uma instalação composta de 28 caminhas de bonecas dispostas no chão da galeria. Sobre cada uma delas, uma dupla ou trinca de pequenos bonecos se movimenta. Os bonecos foram originalmente projetados para engatinhar; unidos por finíssimos cabos de aço, eles se encaixam uns nos outros e através da movimentação de braços e pernas criam um repertório de ações sexualizadas. As roupas e cabeças foram retiradas, o que os torna anônimos e indistintos quanto ao gênero, masculino/feminino. Este trabalho teve origem numa performance, “Lovely Babies”, em que os mesmos bonecos são usados em ações que simulam a presença de pênis e seios no meu corpo, e sugerem a realização de um parto onde a cabeça do boneco é arrancada e em seguida atirada ao público.

A mescla entre linguagens pode ser percebida em outros artistas, assim como o

intercruzamento de idéias e assuntos podem ser vistos nas obras de Leonilson (1957-1993),

Walmor Corrêa (1961-), Efrain Almeida (1964-), Henrique Oliveira (1973-), Juliana Notari

(1975-) e Vitor Mizael (1982-). Pinturas, instalações, esculturas, fotografias... Múltiplas

possibilidades. Outra característica “presente” nos anos seguintes é a fragmentação do corpo.

Para Matesco,

O corpo retorna em imagens de fotografia ou de novas mídias. Apesar de sua exposição obsessiva na última década, este se apresenta de maneira ambígua, pois as imagens reforçam uma ausência. Fragmentado, o corpo aparece para provar sua

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presença física através de vídeos, fotografias e outros meios tecnológicos. A proliferação de imagens de fragmentos corporais parece refletir sua desmaterialização (2006, p. 537).

Nicholas Mirzoeff (2001), ao escrever sobre as formas de representação do corpo por

artistas desde o período colonial, enfatiza a potencialidade da arte em reiterar ou rechaçar

preconceitos enraizados na sociedade. O autor ressalta alguns artistas contemporâneos que

denunciam os resquícios do colonialismo e da escravidão a partir do corpo. Seria um processo

de reavaliação da história. Quais os efeitos da retomada dessas temáticas? Mirzoeff não se

propõe a responder, ele prefere arriscar que o corpo continuará sendo, por um bom tempo, um

dos temas mais explorados na arte.

Uma das razões para tanta predileção do corpo nas produções artísticas

contemporâneas talvez seja pela onipresença e saturação de suas imagens no cotidiano; seja

nas múltiplas mídias, sejam na academia, clubes, praias e outros locais de sua exibição. Se

antes, o grande dilema vivido eram as prisões das vestimentas, da ética puritana e a regulação

das sexualidades e dos prazeres, hoje o drama repousa na exposição demasiada ao corpo.

Quase tudo é corpo: a medicina, a arte, a sexualidade, a organização social, as tecnologias,

etc. O corpo tornou-se moeda de troca nas tramas sociais. As marcas do tempo, o sobrepeso,

as imperfeições convertem-se em fracassos individuais. Como percebido por Goldenberg, o

slogan do mercado do corpo é: “Não existem indivíduos gordos e feios, apenas indivíduos

preguiçosos” (2002, p.09).

Ao corpo foi dado uma expansão aos seus significados. Mais que um conjunto de

órgãos que asseguram a vitalidade, transfigurou-se em um texto escrito socialmente, um

arquivo orgânico (PRECIADO, 2002). Um dos locais onde são travadas disputas, disciplinas

e discursos. Corpos marcados pelo micropoder e a biopolítica. Esmiuçados, medicalizados,

normatizados (Foucault, 2003). Há uma compulsoriedade pelo bem-estar, equilíbrio e

sanidade. Não há condescendência, nestas redes de poder difusas e invisíveis, para corpos que

desafiam o “normal”, que incomodam sejam pelo “excesso” lipídico, pelas marcas da doença

ou que inclinam ao “diagnosticado” patológico.

Neste momento da pesquisa se faz necessário resgatar a conceituação de figuração

livre, pois em suas tentativas de definição insiro alguns trabalhos da produção de duas artistas

brasileiras que agora analisarei: Nazareth Pacheco e Fernanda Magalhães. Cauquelin (2005)

desloca o conceito de figuração livre e instalações para mais que mera estratégia ou opção

estética. É o emergir de idiossincrasias e aonde vêm à baila as inimagináveis possibilidades de

itens cotidianos assumirem-se como criação artística. A figuração livre é costumeiramente

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acompanhada da descrição “técnica mista”, os produtos da cultura midiática muitas das vezes

ofertam elementos para a ressignificação e inserção nas poéticas visuais. Já a instalação tem

algo de teatral, um local de encenação e disposição de objetos de arte. Dentro dessas

possibilidades encontram-se duas mulheres que, em suas singularidades, desvelam corpos

ignorados pelo tecido social. Mulheres que rompem fronteiras e silêncios.

INVASIVOS... QUASE INTOCÁVEIS

No campo das artes visuais o corpo, mais que um refúgio e abrigo para o espírito

artístico, conquista a possibilidade de ser o meio da arte e “passa da condição de objeto da

arte para a de sujeito ativo e de suporte da atividade artística” (MICHAUD, 2009, p. 558). A

obra de Nazareth Pacheco engendra-se nessas novas possibilidades criativas. As imagens de

seu corpo e suas experiências físicas e subjetivas são indissociáveis em sua produção. Suas

exposições atestam a todo tempo a presença da artista, as formas que empresta aos vestidos,

colares. Aos objetos que a assusta e a persegue.

Marcada pelo adoecimento congênito e constantes medicalizações em seu corpo,

Nazareth Pacheco reflete em suas criações a dor, a revolta e a atração com os instrumentos e

objetos de controle. As peças desafiam a sensibilidade e o tato, aflorando o desejo de tocá-las.

Materializam feridas, expõem as diversas técnicas de tortura, aprisionamentos e

domesticações dos corpos. Nas rotinas de clínicas e centros cirúrgicos, Nazareth incrementa

suas obras. O saca-mioma e o espéculo (1995), fora de seus contextos clínicos, interagem em

um espaço de contemplação e medo. Dispositivos intra-uterinos (1995), em um prato,

desvelam o controle da natalidade e cristaliza a conquista definitiva do interior corpóreo.

Nas (des)-construções de seu corpo, temos então, a experimentação da dor como

possibilidade de transcendê-la, expurgá-la, denunciá-la. O processo criativo é, entre outras

referências, autobiográfico. Como relata no início de sua dissertação: “Pinos e mais pinos

para cortar, furar e aparafusar. Descubro o prazer do fazer. A mão precisa estar ocupada,

acabou um, começa outro. Isto me lembra a época em que minha avó ensinava crochê e tricô

aos seus netos. Todos na fazenda com agulhas e lãs na mão” (PACHECO, 2002, p.10). Ela

ainda sente a necessidade de manter as mãos ocupadas, seja perfurando, cortando, moldando,

costurando. O sofrimento está no seu corpo, revelado e evidenciado em certas trajetórias de

sua produção. Talvez, encontra-se aí o desejo de afrontar a impossibilidade e os discursos

hegemônicos.

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Sobre as primeiras peças em borracha de Pacheco, Tadeu Chiarelli (2002) as definiu

como “objetos dependentes”, pois poderiam assumir diversas formas à medida que o público

interagia com a obra nas exposições. Ele as considerou pós-minimalista, inscritas para além

de uma existência em si, divergindo da autonomia gozada e assegurada à produção artística

convencional.

Posteriormente, outras significações debruçaram-se aos olhos de Chiarelli, em especial

ao analisar as peças em borracha, que acrescidas a pinos, aludiam a objetos torturantes. E com

a exposição, em 1993, no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, destravava-se para o crítico de

arte distanciamentos das primeiras criações, “a artista exibia pequenas caixas, repletas de

objetos os mais variados, que narravam sua trajetória, ou a trajetória da reconstrução ideal de

seu corpo, desde a infância até a fase adulta” (p. 292).

É nesse período da produção de Nazareth Pacheco que deterei o olhar. A introdução

dos ready-made na exposição “O corpo como destino” carrega uma densa simbologia. Os

objetos apresentados são deslocados desde o universo da medicina, aos repositórios afetivos e

experienciais da artista. Em uma obra dessa série, temos a reunião de uma imagem de uma

chapa de raio-x das mãos de Pacheco enquanto criança, o seu relatório de diagnóstico e o

fundo de chumbo. Este último, um metal, é utilizado nas rotinas de centros de radiologia

como forma de isolamento da radiação ao corpo humano, emitida pelos aparelhos que geram

as imagens do “interior corpóreo”. Em outras obras da exposição há o uso desse metal. Talvez

por sua alta densidade e capacidade de “bloqueio”, ele tenha sido eleito como uma metáfora

daqueles “objetos aprisionados”, que dolorosamente se mostravam.

Figura 1. Sem Título, 1992/1993 foto, Figura 2. Sem título. Foto, relatório e chumbo, texto. 27x33,5. chumbo. 44x 56 x 8 cm. Reprodução do Reprodução do encarte da artista. encarte da artista.

A obra, sem título, não é apenas a aglomeração desses materiais em vitrines-arquivos.

Ela constitui-se como uma veemente crítica às relações de poder travadas na sociedade, onde

a designação entre o “normal” e o “patológico” é dada pela mediação do olhar de indivíduos

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devidamente autorizados a interpretarem essas imagens. Com a tecnociência, a todo vapor em

nossa sociedade, e seu uso em contextos médicos, logo, o corpo é transformado em imagem e

interpretado a partir da sua conversão em códigos explicitados em uma tela de computador,

sendo a tela computadorizada a forma predominante que as autoridades médicas elegeram

como central no diagnóstico e enquadramento do corpo humano (MONTEIRO, 2009).

No universo representado por Pacheco, em 1993, densas questões são levantadas,

especialmente a obsessão crescente por intervenções estéticas, com a finalidade de

transformar o corpo e aproximá-lo aos ideais estéticos vigentes. Ao mesmo tempo, seus

trabalhos bradam sobre a manipulação do corpo feminino e a doutrina da “boa forma”

disseminada pela medicina, pela indústria midiática, pelo cotidiano. Nazareth é ciente de sua

corporeidade e as reconstruções que foi submetida. Contudo, seu trabalho não deve ser

simplificado como uma catarse ou desabafo, como ela mesma pontua em sua dissertação de

mestrado:

Em 1994, na exposição “O corpo como destino”, no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, apresentei esta série de trabalhos relacionados ao meu corpo. A partir do momento em que estes trabalhos foram expostos em uma galeria, dei-me conta de que minha vida íntima acabaria por se tornar pública. Eu não tinha a menor intenção de ilustrar a minha vida por meio da minha obra. Arte não é reflexo de vida e nem terapia. Concordo com que questões ligadas à vida podem ser perceptíveis na interpretação da obra, mas é necessário separar arte e vida. Eu não sou a obra. A obra é a somatória de questões formais e estéticas adicionadas a questões internas (2002, pp.27-28).

A primeira vista é fácil “julgar” o trabalho de Pacheco como uma válvula de escape

para sua história de vida. Entretanto, um olhar mais demorado, detido e atento é capaz de

revelar sutilezas que podem passam despercebidas. Nazareth não é a obra, fato. Poder-se-ia

dizer que sua imagem é sua obra, mas reside aí o equívoco. Suas instalações atingem a todas e

todos. Na decisão em não nomear seus trabalhos, ela nos deixa um tanto mais saltos e livres

para estabelecermos relações com o nosso cotidiano, lembranças, dores. A medicalização da

existência, o enquadramento clínico e a dor da beleza são experiências que ora ou outra

experimentamos. A documentação e os materiais são autobiográficos, mas as redes de sentido

que podemos estabelecer são nossas. Quase infinitas.

ENGORDURANDO O MUNDO

“Eu sou gorda? Claro, com certeza, com orgulho. Sou gorda, sempre serei uma pessoa gorda, uma pessoa redonda, né? Eu adoro, é a minha constituição, essa sou eu” (Fernanda Magalhães).

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A frase acima, em um tom de descontração, foi dita em um pequeno documentário

sobre a vida e obra de Fernanda Magalhães. Na sociedade da confissão, da vontade de saber a

verdade do outro, devemos verbalizar, criar realidades pela linguagem. Foucault (2003)

descreveu muito bem como somos incitados a falar, confessar. Antes ao padre e seu

confessionário, depois ao juiz e ao seu tribunal, agora ao médico e seu consultório. E no caso

citado: para as câmeras.

Por que retomo esse detalhe do vídeo ou da obra da artista? Talvez porque se

“assumir” gorda e feliz em uma sociedade lipofóbica seja uma ofensa à própria frágil moral

dessa sociedade. Talvez não seja o corpo em si que incomode, mas a consciência e a leveza de

se sentir bem com o seu corpo, com o corpo negado, via de regra, por todas e por todos.

Em tempos onde a expressão bulling virou a vedete dos noticiários e programas de

variedades, outra forma de violência percorre o cotidiano e é ainda justificada em uma

perspectiva de saúde pública. A obesidade é apresentada como uma impossibilidade de vida,

uma ausência de disposição física. O obeso, nessa óptica, seria uma bomba-relógio, pronta

para explodir com hipertensão, arritmias cardíacas, problemas nas articulações,

coledocolitíase, diabetes mellitu e hipercolesterolemia.

Os anúncios publicitários e os seus anunciantes: indústrias de fármaco e cosméticos;

prometem um corpo livre desse pesadelo. Um corpo pronto para se encaixar em um mundo

que delimita suas medidas para abrigar sujeitos. Um corpo que se aperte em cintas, ingira

pílulas, recorra à cirurgia bariátrica. Tudo, menos um corpo que se sinta bem sendo “gordo”.

Sobre a dor de experimentar a diferença e a coercitividade ao seu corpo , Fernanda diz:

Este corpo que constrói o trabalho também foi o que me levou a sofrimentos sucessivos, devido ao preconceito em relação à sua forma, pois, afinal, sou uma mulher gorda. Estas dores da exclusão levaram-me a desistir das expressões pela dança ou pelo teatro, as quais também integraram minha formação. Expor através do corpo ficou represado. Um corpo fora do padrão deve ser contido, assim, a certa altura da vida, parei de encenar e de dançar. Esta contenção extravasou-se pelo trabalho fotográfico, através do corpo, em suas performances. O auto-retrato e as autobiografias vieram à tona (MAGALHÃES, 2008, p.84).

O projeto “A representação da mulher gorda nua na fotografia” é uma trajetória de

mais de quinze anos. O corpo nu de Fernanda, em um primeiro olhar, centraliza a atenção;

principalmente pelo corpo gordo não figurar no cardápio erótico do cotidiano e na indústria

midiática. As imagens de mulheres gordas nuas, em geral, são usadas como forma de

escárnio, piadas e chacotas. Na série, poetizada por Magalhães, tem-se um convite para

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deslizar em outras possibilidades de contemplação e reflexão. A primeira imagem, 1995,

talvez esteja alinhada com a contenção imposta em seu corpo, como narra em sua tese. Seu

corpo central, desfocado, baila rumo à liberdade. Transgredindo as barreiras que a impedem e

a repelem do tecido social. Na parte superior, seu corpo é exposto da maneira “clássica” dos

registros médicos de patologias. Contudo, Fernanda encarna um sorriso, parece se divertir e

contestar o olhar clínico que não a vê como “sujeito” e sim como um índice de massa corporal

elevado.

A segunda imagem, 1997, desvela a condição do humano na contemporaneidade: sua

fragmentação, desterritorialização e transitoriedade. O rosto da artista é substituído pela

cabeça da estátua da “Vênus de Willendorf”; situa-se ao centro, em posição de destaque. Ao

seu lado esquerdo e direito, a imagem de uma mesma mulher nua. A linha que contorna o

corpo gordo provoca: “a cabeça da Vênus de Willendorf da fertilidade e deusa do colo”. A

obesidade, hoje patológica, foi em outros momentos históricos símbolo de beleza e

fertilidade. E aos pés desse mesmo corpo há uma espécie de pedido: “ser vista como um ser

humano sexual”.

Figura 3 e 4. A representação da mulher gorda nua na fotografia (1995) e (1997). Reprodução da tese da artista.

O que Fernanda Magalhães provoca, questiona e subverte são as condições

claustrofóbicas que nossos corpos vivenciam rotineiramente. Suas imagens circulam por um

mundo onde corpos são reificados e a obsolescência e perecibilidade desses corpos são

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constantes. Seus trabalhos contestam e denunciam, mas acima de tudo colaboram para

“alargar” o lugar do corpo na sociedade, possibilidades de se “engordurar o mundo”.

BREVE DESPEDIDA

A proposta desse artigo surgiu em minha pesquisa de mestrado onde investigo as

imagens do corpo gordo na arte contemporânea. Para um aprofundamento nas questões entre

artes visuais e obesidade torna-se necessário expandir o olhar e perceber como o corpo foi

inserido nas produções artísticas ao longo dos séculos. Tarefa difícil e árdua. E nesse ponto

tenho mais questões a ser formuladas do que respostas. E é isso que proponho em minha

investigação: um leque de perguntas, questionamento das verdades e talvez uma única

certeza, a de que nada é conclusivo ou definitivo.

A abordagem da Cultura Visual, campo em que me insiro, parte da desconstrução das

“verdades do olhar”. A quem interessa que pensemos dessa maneira? Quais os regimes de

poder entrecruzados no campo das visualidades? De que maneira pensar em outro mundo um

pouco mais equânime, prazeroso, onde se aceite mais que se exclui? Nesse sentido, o que os

artistas contemporâneos envoltos nas questões do corpo fazem é flexibilizar as possibilidades

do corpo. Ao mesmo tempo, contribuem para outras pedagogias do olhar. Olhares

polissêmicos e multipolares, onde as imagens do corpo sejam um tanto mais livres e plurais.

Em mundo onde lutamos para nos livrar da solidão, fragmentação e o demasiado

individualismo. Um mundo onde desfacele essa existência parcial e rarefeita, descrita por

Fernanda Magalhães:

O ser contemporâneo - eu, você, nós - aqui e agora, fragmentados, dilacerados, solitários, sem amor, envolvidos em nossas lutas individuais. Seres que devem ser perfeitos, rigidamente constituídos, sem possibilidades de falhas, doenças, envelhecimento, sofrimentos ou dor. Os corpos devem ser leves, ágeis, rápidos e felizes. Havemos de ser corpos inodoros, adestrados, rastreados, sem sabor, sem suor e nem tato. Nenhum esforço, nenhuma sujeira, tudo absolutamente limpo, higiênico. Toques digitais [...] (2008, pp 98-99).

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