leitura da imagem cÊnica na fotografia de david …aninter.com.br/anais coninter 3/gt 19/07....

15
LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE SEIXAS, Jordana. Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105 88 LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE SEIXAS, Jordana Estudante de Mestrado do programa de Pós - Graduação da Unirio [email protected] RESUMO Vivemos em uma sociedade composta por múltiplas imagens que povoam o estético cotidiano; o processo da leitura de imagem é uma aventura ao mundo imagético presente no mundo e nas artes, uma proposição de relação do leitor, acompanhado de suas percepções e subjetividades, com as imagens que falam, entretanto não como um receptor de visualidades mortas que se anunciam mas não dialogam, não se relacionam com a bagagem cognitiva do espectador. O estudo se propõe a realizar a leitura da imagem cênica na fotografia de David LaChappelle, considerando o fotógrafo um diretor teatral que compõe cenas em imagens, percebendo a relação que se estabelece nas suas composições e reconhecendo o que estas imagens refletem e querem dizer sobre o indivíduo na modernidade. Palavra - Chave: Teatro-Imagem. Leitura de Imagem. David LaChapelle. ABSTRACT We live in a society composed of multiple images that populate the everyday aesthetic; the reading process image is an adventure to the imagery present in the world in the arts world and a proposition regarding the reader, accompanied by their perceptions and subjectivities, with images that speak, though not as a receiver dead visualities that advertise but they do not talk, do not correlate with cognitive baggage the viewer. The study aims to perform the reading of the image, scenic photography of David LaChappelle considering the photographer a theatrical director who composes scenes in images, realizing the relationship established in their compositions and recognizing that these images reflect and want to say about the individual in modernity. Word - Key: Theatre-image. Reading image. David LaChapelle. INTRODUÇÃO A presença da imagem tem se apresentado como uma potente ferramenta de comunicação que se impõe na sociedade, vivemos em mundo de imagens que povoam o estético cotidiano por toda parte, estampam as das ruas das cidades, a mídia e a publicidade apropriaram-se dela como ferramenta prioritária para alcançar o cliente e o espectador, uma cultura das visualidades tem se apoderado da identidade dos sujeitos de forma crescente,

Upload: lamdan

Post on 09-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

88

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA

NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE

SEIXAS, Jordana

Estudante de Mestrado do programa de Pós - Graduação da Unirio

[email protected]

RESUMO

Vivemos em uma sociedade composta por múltiplas imagens que povoam o estético cotidiano;

o processo da leitura de imagem é uma aventura ao mundo imagético presente no mundo e nas artes,

uma proposição de relação do leitor, acompanhado de suas percepções e subjetividades, com as imagens

que falam, entretanto não como um receptor de visualidades mortas que se anunciam mas não dialogam,

não se relacionam com a bagagem cognitiva do espectador. O estudo se propõe a realizar a leitura da

imagem cênica na fotografia de David LaChappelle, considerando o fotógrafo um diretor teatral que

compõe cenas em imagens, percebendo a relação que se estabelece nas suas composições e

reconhecendo o que estas imagens refletem e querem dizer sobre o indivíduo na modernidade.

Palavra - Chave: Teatro-Imagem. Leitura de Imagem. David LaChapelle.

ABSTRACT

We live in a society composed of multiple images that populate the everyday aesthetic; the

reading process image is an adventure to the imagery present in the world in the arts world and a

proposition regarding the reader, accompanied by their perceptions and subjectivities, with images that

speak, though not as a receiver dead visualities that advertise but they do not talk, do not correlate with

cognitive baggage the viewer. The study aims to perform the reading of the image, scenic photography

of David LaChappelle considering the photographer a theatrical director who composes scenes in

images, realizing the relationship established in their compositions and recognizing that these images

reflect and want to say about the individual in modernity.

Word - Key: Theatre-image. Reading image. David LaChapelle.

INTRODUÇÃO

A presença da imagem tem se apresentado como uma potente ferramenta de

comunicação que se impõe na sociedade, vivemos em mundo de imagens que povoam o

estético cotidiano por toda parte, estampam as das ruas das cidades, a mídia e a publicidade

apropriaram-se dela como ferramenta prioritária para alcançar o cliente e o espectador, uma

cultura das visualidades tem se apoderado da identidade dos sujeitos de forma crescente,

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

89

compondo a arquitetura dos países, o design do dia a dia, a imagem que vendemos de nós e a

imagens de outros passeando entre outdoors e muros pichados.

Imagem espontânea, imagem manipulada, imagem comercial, imagem cinematográfica,

imagem produzida, encontrada, capturada, somos rodeados por inúmeras imagens que estão

abertas ao olhar sensível do leitor, que podem ser lidas pelo auxílio de técnicas e ferramentas

oferecidas pela semiótica plástica, mas não podemos ignorar a singularidade que existe no ato

da leitura, a percepção, a memória, o conhecimento, a composição do universo cognitivo do

leitor.

Analisar as imagens fotográficas de Davi LaChapelle é sentar nas poltronas do teatro e

assistir ao um espetáculo teatral, um espetáculo que dispensa o uso das palavras, do diálogo e

do movimento corporal, trata somente da cena capturada, do momento sublime, o gesto

expressivo dos atores que no auge do gozo dramático são imobilizados em suas ações

expressivas; cenário, figurino e atores congelam em cena, para compor o espetáculo-imagem,

a espera de serem traduzidos como expressão e reflexo do homem e do consumo da sua

imagem na sociedade moderna.

Imagem 1: The House at the End of the World

Fonte: http://www.davidlachapelle.com/series/the-house-at-the-end-of-the-world/

Uma fotografia, escreve o romancista e crítico de arte inglês John Berger, “ao

mesmo tempo registra o que foi visto, sempre e por sua própria natureza

refere-se aquilo que não é visto. (...). Conhecemos os limites de um

documento fotográfico, sabemos que ele mostra apenas aquilo que o fotografo

quis enquadrar e aquilo que determinada luz e sombra lhe permitem relevar, e

no entanto o espelhar factual que Plínio considerava uma virtude ultrapassa

essas restrições e hesitações. Ao contrário: a fidelidade que a fotografia

reivindica permitiu ( e ainda permite) que ela seja manipulada sem protestos,

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

90

uma manipulação que as técnicas eletrônicas agora tornaram ainda mais

imperceptível. (MANGUEL, ALBERTO, 2001, p.92)

Manguel aponta a progressiva manipulação autoral como parte integrante do seu

processo, uma direta interferência daquilo que o fotógrafo desejou enquadrar, cortar ou dar

ênfase, desde a seleção de personagens nas cenas de guerra de um documentário, as montagens

artificiais das modelos perfeitas refém do milagroso photoshop, as cenas excluídas ou

evidenciadas. O foco é determinado não pela lente da câmera, mas pelo olhar conceitual e

subjetivo do autor.

As fotografias de David LaChapelle raramente retratam a espontaneidade do cotidiano,

não se trata de recortes da sociedade capturados pelo seu olhar, existe um trabalho de

composição da imagem, cenários são construídos e personagens são caracterizados por

figurinos, maquiagem, expressões faciais e corporais que buscam uma encenação através de

poses que substituem possíveis densos diálogos. Esses textos poderiam ser teatralizados e

expressos em uma extensa literatura dramatúrgica, mas são substituídos pela imagem cênica

congelada na fotografia. Ao contrário do fotografo americano Edward Weston, que se recusava

a cortar as fotos originais, acreditando que a fotografia deveria ser o retrato fiel da realidade,

sem alterações e interferências, autêntica e idêntica se opondo a composição montada e

manipulada pós moderna de David LaChapelle.

Imagem 2: Edward Weston (Tina Modotti)

Fonte: http://www.theguardian.com/artanddesign/picture/2013/aug/17/photography-tina-modotti

A fotografia é a escrita visual, e nada que contém nela é vazio de intenção, tudo existe

para servir a ideia do autor, nem o quadro velho jogado no chão encostado na parede, nem a

boneca na mão da mulher, nem o pedaço de telhado despedaçado no chão, nada, nenhum

adereço em cena é desprovido de discurso, ou objetiva alcançar a beleza padronizada e a

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

91

contemplação do espectador, cada mínimo detalhe compõe a narrativa da imagem e quer dizer

alguma coisa. Segundo Alberto Manguel, toda imagem tem uma historia pra contar, são

narrativas embrionárias, traduzindo-se em palavras, e estas são historias que permanecem a

espera de um narrador. Na fotografia de David LaChapelle o fotógrafo trata-se na verdade de

um grande diretor teatral, que idealiza um texto e o constrói através da imagem. Todas as

linguagens artísticas segundo o autor Alberto Manguel, suprimem informações, seja da obra ou

do autor, entretanto, todas estão abertas a subjetividade e a ficção imaginária do público.

A fotografia, porém, embora admitindo a subjetividade da câmera, repousa na

convicção de que aquilo que nós espectadores, vemos existiu de fato, que

aquilo que ocorreu em determinado e exato momento e que, como realidade,

foi aprendido pelo olho do observador. Qualquer fotografo, conscientemente

censurado ou inconsciente manipulado, manifestamente artificial ( como na

obra de Man Ray) ou esmeradamente fraudulento ( como nos falsos

instantâneos de Cindy Sherman), e mesmo que se apresente como “fixo,

rígido, incapaz de qualquer intervenção”, depende integralmente desse

embuste necessário... Toda fotografia ( ampliada, cortada, tirada de

determinado ângulo, iluminada de certa forma) cita a realidade deturpada.

(MANGUEL, ALBERTO, 2001, p.92 e 93)

A serviço dessa narrativa da imagem, juntamente com a composição do cenário e

direção cênica dos modelos-atores, o artista utiliza-se da manipulação digital para interferir

visualmente na estética da cena, com o intuito de dar ênfase ao seu teatro-imagem, através do

exagero e da fantasia surreal, da saturação e contraste exacerbado das cores, e da grande

intensidade de luz provocada. O artista busca compor uma expressão da sua subjetividade, do

seu olhar crítico sobre o mundo pop, sobre a cultura de massa e a cultura do consumo,

compondo uma imagem sobre outras imagens, apropriando-se da vida como suporte para

exprimir cenicamente suas ideias sobre ela.

Na fotografia acima, da série The House at the End of the world, a peça-imagem situa

um ambiente cenográfico de caos e destruição, como o próprio nome já diz, o onde, é definido

por uma casa que se encontra no fim de mundo, como se um terremoto ou tsunami tivesse

passado e deixado rastros da sua decadência. Pela perspectiva da imagem nota-se que a

destruição passou por ali e continua ao longo do caminho nas paisagens que não se vê, a

fotografia exibe a casa destruída pelo fim do mundo que chegou, mas insinua milhares de outras

paisagens e casas que também se extingue com mesmo fim do mundo.

No primeiro plano, no canto esquerdo da peça-imagem posa uma mulher com um bebê

no colo, e no segundo plano, a direita e no centro da fotografia, concentrando a maior parte da

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

92

imagem, situa o cenário com as casas destruídas. Existe entre esses dois planos um contraste

inusitado, assim como em quase todas as fotografias de David LaChapelle, pois os dois planos

não dialogam na mesma estética visual, a mulher parece estar em um contexto totalmente

avesso ao contexto da paisagem, desta forma, embora exista uma assimetria desproporcional de

enquadramento que evidencie o cenário, ambos se protagonizam pelas diferenças de intenções,

chocando, contrastando e dando assim ênfase a cada plano por igual, da mesma forma como as

cores complementares que estão opostas no círculo cromático, quando são unidas na mesma

composição, provoca um choque pelas diferenças de matizes, acentuando o contraste e assim

colocando em evidencia ambas as cores.

Embora impregnada de influências da arte pop, utilizando da publicidade, da moda e da

mídia para fazer uma crítica a sociedade de consumo e ao mundo superficial da aparência, esse

contraste existente entre os planos executado na fotografia, resulta em um explícito afastamento

da realidade e a situa como uma peça-imagem-surrealista, encenando uma desconexão com a

lógica pela falta de sentido e coerência que exprime, teatralizando uma imagem irracional fruto

do subconsciente do autor. É o fim do mundo expresso pela árvore caída nos estilhaços da casa,

mas em oposição a esse fim derradeiro, o céu brilha de um azul límpido e degrade, o sol cintila

os destroços despedaçados no chão e a mulher de meia calca rendada branca, combina seu

batom vermelho com a calcinha, o sapato e o edredom, é o espetáculo do fim dos tempos.

Estamos todos refletidos de algum modo nas numerosas e distintas imagens

que nos rodeiam, uma vez que elas já são parte daquilo que somos: imagens

que criamos e imagens que emolduramos; imagens que compomos

fisicamente, á mão, e imagens que se formam espontaneamente na

imaginação; imagens de rostos, árvores, prédios, nuvens, paisagens,

instrumentos, água, fogo, e imagens daquelas imagens- pintadas, esculpidas,

encenadas, fotografadas, impressas, filmadas. Quer descubramos nessas

imagens circundantes lembranças desbotadas de uma beleza que, em outros

tempos, foi nossa ( como sugeriu Platão), quer elas exijam de nós uma

interpretação nova e original, por meio de todas as possibilidades que nossa

linguagem tenha a oferecer ( como Salomão intuiu ), somos essencialmente

criaturas de imagens, de figuras. (MANGUEL, ALBERTO, 2001, p.21)

A personagem carrega um bebê no colo, como uma propaganda, da mulher na sociedade

moderna que precisa se virar para trabalhar, cuidar da casa e dos afazeres domésticos, cuidar

dos filhos e marido e ainda corresponder as expectativas impostas pelos cânones da mídia e da

sociedade, através dos bens, do consumo, e do status que se vende com o consumo, a promessa

eterna de felicidade. Ela está vestida por um tecido que parece um edredom, como se estivesse

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

93

acabado de sair da cama, porém mesmo o edredom, da forma como foi posicionado e projetado,

com seu vermelho exuberante, da um ar de soberania e elegância a mulher, como se estivesse

com um luxuoso vestido de grife, pronta para entrar na passarela, é o sangue disfarçado de

vermelho-moda-luxo, um choro contido que pulsa na cor da dor.

Na sua cabeça encontra um travesseiro, dialogando com o edredom, como se ela

realmente estivesse acabado de sair da cama, ou ainda permanecesse nela. Embora o travesseiro

permaneça na cabeça da mulher, pela forma como foi disposto o seu cabelo, como se ela

estivesse em uma vitrine com o vento batendo no seu rosto e estática na posição de bela, não

concilia com a imagem real de uma mulher dormindo, com os cabelos desalinhados na cama.

Está mulher não dorme... ela é fruto da sociedade pós moderna, onde a renovação e a beleza

devem ser constante, conforme descreve o filosofo francês Gilles Lipovetsky, a pós

modernidade é a sociedade do hiperconsumo, a civilização que vive a felicidade paradoxal em

um lugar onde o objeto a ser consumido é a construção da própria imagem para estar a altura

dos status de padrões estéticos ditados pela sociedade e pela mídia . A real sociedade é

maquiada e encena a sociedade feliz e perfeita, mas existe uma real sociedade que vive no

submundo, nas entranhas da modernidade, sofrendo as consequências do hiperconsumo e da

constante insatisfação.

A noiva será tão bonita quanto esta fotografia em grande plano mostra? A

imensa maioria das pessoas diz-se feliz, e todavia a tristeza e o stress, as

depressões e a ansiedade formam um rio que ganha caudal de forma

preocupante. (...). O PIB duplicou desde 1975, mas o número de

desempregados quadruplicou. As nossas sociedades são cada vez mais ricas:

no entanto, um número cada vez maior de pessoas vive em condições

precárias e tem de economizar em todos os pontos do seu orçamento, com o

dinheiro a tornar-se uma preocupação cada vez mais obsessiva. Temos acesso

a cuidados de saúde cada vez melhores, mas isso não impede que muitos de

nós se tornem hipocondríacos crónicos. Os corpos são livres, e a impotência

sexual é um problema comum. As solicitações hedonistas são omnipresentes:

a inquietação, a decepção, a insegurança social e pessoal aumentam. Estes são

alguns dos aspectos que fazem da sociedade de hiperconsumo a civilização da

felicidade paradoxal. (LIPOVETSKY, GILLES, 1944, p.12)

A narrativa das imagens da fotografia de LaChapelle contém signos visuais que narram

o mundo pós-moderno, globalizado, expressando em imagens cênicas, os personagens como

objetos de consumo, como consumidores e produtos consumados. Gilles Lipovetsky descreve

em seu livro a era do vazio, a sociedade pós-moderna como um deserto, o lugar da indiferença

provocada pelo excesso, pela saturação, pela informação e pelo isolamento, provocando no

indivíduo uma consequente desestabilização e anemia emocional . Na imagem-peça, a distância

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

94

e desconexão surrealista que existe, contrasta personagem e cenário, correspondendo a imagem

do deserto da indiferença de Lipovetsky, um lugar que segundo o autor, a oposição entre

sentido e ausência de sentido já não é dilacerante e perdeu o seu radicalismo diante da

frivolidade e da futilidade da moda, dos lazeres e da publicidade. É o fim do mundo, a casa

desabou e o tempo parou, mas a mulher inabalável continua bela e inatingível, nada lhe chega,

nada lhe alcança, é indiferente, sua beleza fria e estática representa a era do vazio, o vazio dos

sentimentos em oposição ao desejo do consumo que transborda, sacia, e mantêm a bela e

poderosa mulher no pedestal da sociedade. De acordo com o autor, o deserto não seria mais a

revolta, o grito ou o desafio da comunicação, e sim a indiferença pelos sentidos, uma ausência

inelutável, uma estética fria da exterioridade e da distância, mas não de distanciamento.

<<Quem fala de felicidade tem muitas vezes os olhos tristes>>, escrevia

Aragon. Deveremos, então, dar razão ao poeta e, actualmente, ás leituras

paranóicas, do consumo que prevêem o abismo por detrás do espetáculo

radioso da abundância e da comunicação? (LIPOVETSKY, GILLES, 1944,

p.12)

Imagem 3: What was Paradise is now Hell

Fonte: http://www.davidlachapelle.com/series/the-house-at-the-end-of-the-world/

A imagem – O que era o paraíso é agora o inferno – também compõe a série The House

at the End of the world, as modelos posam em cima de uma maca como doentes que foram

atingidas pela catástrofe, prontas para serem conduzidas a um pronto socorro, na tentativa de

sobreviverem ao fim do mundo que a tudo dissipou. A fumaça sobre o avião corrompido ainda

paira no ar, como vestígio da recente presença do fim que chegou, mas as mulheres inabaláveis

não sangram, não expressam feições horrendas de dor e pavor, as mulheres inabaláveis são

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

95

incapazes até mesmo de morrer, elas não dormem e não morrem, elas posam na maca a beleza

dos seus potentes cílios e da prata cintilada sobre suas pestanas. A mulher a direita, segura no

cotovelo da mulher a esquerda, suas mãos também não repousam, suas mãos tencionam e

performam o gesto ideal.

No cintilante purpurinado da meia calça branca, das sandálias de ponta fina, das tiaras

prateadas e do vestido reluzente, existe um brilho superficial e mentiroso, assim como é

possível indagar a mesma veracidade das casas-cenários de fundo, que não se assemelham a

moradias reais para habitar pessoas reais, são semelhantes a cenários montados apenas na parte

frontal, como espécies de cavaletes, feitos para dramatizar novelas, longas-metragens e

histórias fictícias.

É o efêmero e a banalidade da moda nas roupas que vestem , nas casas que abrigam, na

beleza desmedida e questionável, cenários feitos não para serem confundidos ou retratarem o

real com fidelidade e perfeição, mas confeccionados para serem vistos de fato como como

cenários, e personagens como atores, que encenam, são manipulados e comandados, sendo

possível equiparar assim ao similar conceito de distanciamento ou estranhamento Brechtiniano,

criado pelo dramaturgo Bertolt Brecht, técnica que desnuda os atores em cena, separando-os e

distinguindo-os de seus personagens, tornando perceptível e consciente para o público no ato de

encenação quem é um e quem é o outro, que ambos se tratam de pessoas distintas, assim,

provoca a desilusão no espectador, e no caso da imagem, a desmistificação ao leitor de que a

representação teatral, ou a imagem, é uma ilusão.

No cenário, o contraste permanece entre a destruição provocada pelo avião que desabou

e o cenário de fundo bucólico e esperançoso, um verde ensolarado e suspeito que escapou da

tragédia que chegou mas não o alcançou, como uma oposição entre a simbologia rotineira da

imagem, e o que de fato a imagem o é, ou haveria de ser. Ilustro essa afirmação de oposição

entre a simbologia da imagem e a sua expressão de conteúdo com o filme pássaros de Alfred

Hitchcock, que retrata uma cidade pacata a beira de um rio chamada bodega Bay, em que Tippi

Hedren com sua singela beleza carrega na gaiola dois inofensivos e líricos pássaros,

tradicionalmente rotulado como a pureza, a liberdade e a natureza, porém, na película, a suposta

simbologia não anuncia a posterior trama de suspense e horror que vai ser desencadeada pelos

temíveis e diabólicos pássaros, acentuando no discurso da leitura uma longa distância entre

aquilo que a imagem convencionalmente induz, pelo que somos habituados a ler, e aquilo que

imagem quer dizer, com interferência do autor e do contexto que ele a usa.

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

96

A imagem de uma obra de arte existe em algum local entre percepções: entre

aquela que o pintor imaginou e aquela que o pintor pôs na tela: entre aquela

que podemos nomear e aquela que os contemporâneos do pintor podiam

nomear; entre aquilo que lembramos e aquilo que aprendemos; entre o

vocabulário comum, adquirido, de um mundo social, e um vocabulário mais

profundo, de símbolos ancestrais e secretos. Quando tentamos ler uma

pintura, ela pode nos parecer perdida em um abismo de incompreensão ou, se

preferirmos, em um vasto abismo que é uma terra de ninguém, feito de

interpretações múltiplas. O critico pode resgatar uma obra de arte até o ponto

da reencarnacão; o artista pode repudiar uma obra de arte até o ponto da

destruição. (MANGUEL, ALBERTO, 2001, p.29)

Imagem 4: Pássaros de Alfred Hitchcock

Fonte: http://minhavidaemfilmes.com/tag/alfred-hitchcock/

Imagem 5: Pássaro Aldemir Martins

Fonte: http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca-pt/default.aspx?mn=545&c=acervo&letra=A&cd=2602

Recorrendo ao conceito da semiótica plástica, que define dois planos na imagem, o

plano de expressão já citado anteriormente, e o plano de conteúdo, é possível perceber que nem

sempre o plano de expressão, que diz respeito a características externas da imagem, tais como a

luz, volume, profundidade, cor, equilíbrio, espaço e forma, esta dialogando de maneira obvia

dentro da simbologia dos signos das imagens com o plano de conteúdo, aonde se expressa o

tema do objeto retratado, a narrativa do ponto de vista do sujeito retratado e a interpretação e

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

97

interlocução do autor, como é possível perceber nas duas imagens acima. Podemos constatar a

mesma imagem, o pássaro, sendo usado para trazer atmosferas totalmente avessas, Aldemir

Martins pintou pássaros, utilizando cores vivas e complementares, a partir da experiência de

observação das paisagens brasileiras e da vivência íntima com o meio natural, já Hitchcock

explorou a oposição da simbologia que carrega a imagem do pássaro, explorando a crueldade e

a morte provocada não pelo grotesco e assustador, mas pelo sublime, pelo mesmo lírico e

poético animal que voa e enfeita as paisagens de Aldemir Martins. Ambos autores comunicam a

ficção através da mesma imagem para expressar a poética que atribuíram a elas, seja pela

fantasia, ou pela experiência real de vida, mas todas capazes de suscitar leituras múltiplas, que

por serem vivas, estão abertas a um possível diferente entendimento daquele que se idealizou

provocar enquanto ainda era um projeto mental de uma imagem.

Leituras críticas acompanham imagens desde o início dos tempos, mas nunca

efetivamente copiam, substituem ou assimilam as imagens. “Não explicamos

as imagens, comentou com sagacidade o historiador da arte Michael

Baxandall, “explicamos comentários a respeito de imagens. Se o mundo

revelado em uma obra de arte permanece sempre fora do âmbito dessa obra, a

obra de arte permanece sempre fora do âmbito da sua apreciação crítica. “A

forma”, escreve Balzac, “em suas representações, é aquilo que ela é em nós:

apenas um artifício para comunicar ideias, sensações, uma vasta poesia.

(MANGUEL, ALBERTO, 2001, p.29)

Imagem 6: World is Gone

Fonte: http://www.davidlachapelle.com/series/the-house-at-the-end-of-the-world/

Imagem 7: Can You Help Us?

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

98

Fonte: http://www.davidlachapelle.com/series/the-house-at-the-end-of-the-world/

Imagem 8: When the World is Through

Fonte: http://www.davidlachapelle.com/series/the-house-at-the-end-of-the-world/

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

99

Imagem 9

Fonte: http://www.davidlachapelle.com/series/the-house-at-the-end-of-the-world/

Imagem 10: Are You Out There?

Fonte: http://www.davidlachapelle.com/series/the-house-at-the-end-of-the-world/

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

100

Imagem 11: From Handbags to Sandbags

Fonte: http://www.davidlachapelle.com/series/the-house-at-the-end-of-the-world/

A sequencia anterior de seis fotos também corresponde a série The House at the End of

the world, cenas que teatralizam a permanência do supérfluo no fim do mundo, o capitalismo

mantendo homens mortos-vivos, refém do consumo da imagem, maquiados de soberanos e

regidos pela efemeridade e superficialidade do mundo das aparências. Desta forma, imbuída de

conhecimentos sobre David LaChapelle, o surrealismo e arte pop que estão impregnados na

sua arte, interpelo suas imagens traduzindo através da percepção e de um discurso sobre o

consumo, suas fotografias como espetáculos-imagens, que estão a espera de serem lidas e

traduzidas a luz da sociedade moderna e de suas seduções e alienações.

A natureza dupla da imagem estética: a imagem como cifra de história e a

imagem como interrupção. Trata-se, por um lado, de transformar as produções

finalizadas, inteligentes, da imageria em imagens opacas, estúpidas, que

interrompem o fluxo midiático. Por outro lado, de despertar os objetos úteis

adormecidos ou as imagens indiferentes da circulação midiática para suscitar

o poder dos vestígios de história comum que eles comportam. (RANCIÉRE,

JACQUES, 2012, P.35)

A leitura propõe uma relação entre aquilo que foi produzido, textual ou visual,

composto por uma carga de emoções e intenções do autor sobre o que ou quem ele produziu, e

se mistura nas emoções daquele que lê. A leitura desta forma seria a relação do olhar do leitor

com o texto visual, não um olhar desmistificador e crítico que antecede a relação de leitura, mas

um olhar flexível, aberto, ainda que recorra a repetidas ferramentas e técnicas de leitura da

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

101

semiótica, encontra sempre resultados e leituras múltiplas sobre lugares, paisagens e seres

singulares, sejam ele leitores, ou produtores de imagem.

Diante da prática de leitura perceptiva das imagens, as pesquisas mergulham a prática

em um campo de transformações, que possibilitam o diálogo constante com o mundo

globalizado que tem se apresentado em imagens, bombardeando o cotidiano nos caminhos que

percorremos, nos panfletos e outdoors que visualizamos, no ônibus que nos conduzem

estampados por propagandas. Embora exista esse acúmulo de imagens, passamos por elas sem

que ocorra uma relação, existe apenas a imposição dessas imagens, absorvemos exatamente a

verdade que a mídia e a publicidade deseja que acredite sobre elas.

A experiência de pensar sobre as imagens e ler essas imagens, coloca o espectador na

posição de estranhar e indagar essas verdades impostas, de se colocar como leitor de uma

sociedade camuflada em signos visuais. A criação de um processo educativo que permita um

olhar investigativo, nos situa como pensadores autónomos, que entende e interpreta o sentido

da sociedade através do mundo imagético.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS;

LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo.

Lisboa/Portugal: Edições 70, 2010.

ROSSI, Maria Helena Wagner. Imagens que falam: leitura de arte na escola/ Maria Helena

Wagner Rossi. – Porto Alegre: Mediação, 2009. ( 4. ed. Rev. e atual.) 144p.–(coleção Educação

e Arte; v.2)

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio/Alberto Manguel; tradução

de Rubens Figueiredo, Rosaura Eichemberg, Cláudia Strauch. – São Paulo: Companhia das

letras, 2001.

Parâmetros curriculares nacionais: arte/ Secretaria de Educação Fundamental. –2. Ed. – Rio de

Janeiro: DP&A, 2000.

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino de arte. São Paulo: Editora perspectiva, 1994.

GOMBRICH, E. H. ( Ernest Hans), 1909-2001. A história da Arte/ E. H. Gombrich; tradução

Álvaro Cabral. – Rio de Janeiro: LTC, 2008.

RANCIÉRE, Jacques, 1940- O destino das imagens/ Jacques Ranciére; tradução Mônica Costa

Netto; organização Tadeu Capistrano. – Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2012.

PIETROFORTE, Antonio Vicente. Análise do texto visual: a construção da imagem/ Antonio

Vicente Pietroforte.– 2. Ed., 1ª reimpressão; São Paulo : Contexto, 2013.

FONTANILLE, Jacques. Significação e visualidade - Exercícios práticos. Porto Alegre:

LEITURA DA IMAGEM CÊNICA NA FOTOGRAFIA DE DAVID LACHAPPELLE – SEIXAS, Jordana.

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 91-105

102

Editora Sulina.

OLIVEIRA, Ana Claúdia de (org.). Semiótica Plástica. São Paulo: Hacker, 2004, p. 115-158.

PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica Visual os percursos do olhar. São Paulo,

Contexto

FERNANDES, Sílvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010.

GUINSBURG, J e Fernandes, Sílvia. (org.). O Pós – Dramático. São Paulo: Perspectiva, 2010.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós – dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

TELFORD, Charles W, SAWREY, James M. Psicologia: Uma introdução aos princípios

fundamentais do comportamento, 5.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1968.

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht na pós- modernidade. São Paulo: Editora perspectiva,

2001.