as seitas protestantes e o espírito do capitalismo. ensaios de sociologia. weber, max. (livro,...

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WEBER, Max. As seitas protestantes e o espírito do capitalismo. In: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982. Há pouco menos de uma geração, quando os homens de negócios se estavam estabelecendo e fazendo novos contatos sociais, encontraram a pergunta: “A que Igreja pertence?”, formulada com naturalidade. Esta pergunta era feita discretamente e de maneira que parecia adequada. Evidentemente, porém, jamais tal pergunta era feita por acaso. Até mesmo em Brooklyn, a cidade gêmea de Nova York, essa velha tradição era conservada em grau acentuado, e isso corria ainda mais nas comunidades menos expostas à influencia da imigração (WEBER, 1982, p. 348). Se examinarmos mais atentamente a questão nos Estados Unidos, veremos facilmente que a questão da filiação religiosa era quase sempre formulada na vida social e na vida comercial que dependiam de relações permanentes de crédito (WEBER, 1982, p. 348). [...] Na verdade, uma Igreja é uma corporação que organiza a graça e administra os dons religiosos da graça, como uma fundação. A filiação a uma Igreja é, em princípio, obrigatória e portanto nada prova quanto às qualidades dos membros. A seita é, porém, uma associação voluntária apenas daqueles que, segundo o princípio, são religiosa e moralmente qualificados. Quem encontra a recepção voluntária da sua participação, em virtude da aprovação religiosa, ingressa na seita voluntariamente (WEBER, 1982, p. 351). [...] Nas ocasiões em que ouvi sermões para as classes médias, era pregada a moral burguesa típica, respeitável e sólida, na verdade, e do gênero mais doméstico e sóbrio. Mas os sermões eram pronunciados com evidente convicção íntima; o pregador comovia-se frequentemente (WEBER, 1982, p. 352). Essas associações eram, especialmente, os veículos típicos de ascensão social para o círculo da classe média empresarial. Serviam para difundir e manter o ethos econômico burguês e capitalista entre as amplas camadas das classes médias (inclusive os agricultores) (WEBER, 1982, p. 354). Como bem se sabe, não poucos [...] dos “promotores”, “capitães da indústria” americanos, dos multimilionários e dos magnatas dos trustes pertenciam formalmente a seitas, especialmente a dos batistas. Mas, segundo o caso, essas pessoas frequentemente eram filiadas apenas por motivos convencionais [...], e apenas a fim de se legitimarem na vida pessoal e social – não para se legitimarem como homens de negócios; na era dos puritanos, esse “super-homens econômicos” não precisavam de tal muleta, a sua religiosidade era, certamente, com frequência de uma sinceridade mais do que dúbia. As classes médias, acima de tudo as camadas em ascensão com as classes médias e as que dela se estão afastando, foram os portadores dessa orientação religiosa específica que devemos, na realidade, acautelar-nos para não considerar apenas como oportunistas. (WEBER, 1982, p. 354). [...] Não obstante, jamais devemos esquecer que sem a difusão universal dessas qualidades e princípios de um modo de vida metódico, qualidades que foram mantidas através dessas

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As Seitas Protestantes e o Espírito Do Capitalismo. Ensaios de Sociologia. WEBER, Max. (Livro, Capítulo).

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  • WEBER, Max. As seitas protestantes e o esprito do capitalismo. In: Ensaiosde Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982.

    H pouco menos de uma gerao, quando os homens de negcios seestavam estabelecendo e fazendo novos contatos sociais, encontraram apergunta: A que Igreja pertence?, formulada com naturalidade. Estapergunta era feita discretamente e de maneira que parecia adequada.Evidentemente, porm, jamais tal pergunta era feita por acaso. At mesmoem Brooklyn, a cidade gmea de Nova York, essa velha tradio eraconservada em grau acentuado, e isso corria ainda mais nas comunidadesmenos expostas influencia da imigrao (WEBER, 1982, p. 348).

    Se examinarmos mais atentamente a questo nos Estados Unidos, veremosfacilmente que a questo da filiao religiosa era quase sempre formuladana vida social e na vida comercial que dependiam de relaes permanentesde crdito (WEBER, 1982, p. 348).

    [...] Na verdade, uma Igreja uma corporao que organiza a graa eadministra os dons religiosos da graa, como uma fundao. A filiao auma Igreja , em princpio, obrigatria e portanto nada prova quanto squalidades dos membros. A seita , porm, uma associao voluntriaapenas daqueles que, segundo o princpio, so religiosa e moralmentequalificados. Quem encontra a recepo voluntria da sua participao, emvirtude da aprovao religiosa, ingressa na seita voluntariamente (WEBER,1982, p. 351).

    [...] Nas ocasies em que ouvi sermes para as classes mdias, era pregadaa moral burguesa tpica, respeitvel e slida, na verdade, e do gnero maisdomstico e sbrio. Mas os sermes eram pronunciados com evidenteconvico ntima; o pregador comovia-se frequentemente (WEBER, 1982, p.352).

    Essas associaes eram, especialmente, os veculos tpicos de ascensosocial para o crculo da classe mdia empresarial. Serviam para difundir emanter o ethos econmico burgus e capitalista entre as amplas camadasdas classes mdias (inclusive os agricultores) (WEBER, 1982, p. 354).

    Como bem se sabe, no poucos [...] dos promotores, capites daindstria americanos, dos multimilionrios e dos magnatas dos trustespertenciam formalmente a seitas, especialmente a dos batistas. Mas,segundo o caso, essas pessoas frequentemente eram filiadas apenas pormotivos convencionais [...], e apenas a fim de se legitimarem na vidapessoal e social no para se legitimarem como homens de negcios; naera dos puritanos, esse super-homens econmicos no precisavam de talmuleta, a sua religiosidade era, certamente, com frequncia de umasinceridade mais do que dbia. As classes mdias, acima de tudo ascamadas em ascenso com as classes mdias e as que dela se estoafastando, foram os portadores dessa orientao religiosa especfica quedevemos, na realidade, acautelar-nos para no considerar apenas comooportunistas. (WEBER, 1982, p. 354).

    [...] No obstante, jamais devemos esquecer que sem a difusouniversal dessas qualidades e princpios de um modo de vidametdico, qualidades que foram mantidas atravs dessas

  • comunidades religiosas, o capitalismo de hoje, mesmo na Amrica,no seria o que (WEBER, 1982, p. 355).

    Ao focalizar o pano-de-fundo religioso dessas seitas protestantes,encontramos em seus documentos literrios, especialmente entre osquacres e batistas, at o sculo XVII inclusive, repetidas manifestaes dejbilo pelo falo de que os pecadores filhos do mundo desconfiavam unsdos outros nos negcios, mas tinha confiana na probidade determinadareligiosamente dos crentes.Por isso, s concediam crdito e depositavam seu dinheiro com oscrentes, e faziam compras em seus armazns porque ali, e apenasali, tinham preos honestos e fixos. Como se sabe, os batistas semprealegaram ter sido os primeiros a transformar essa poltica de preos emprincpio (WEBER, 1982, p. 359).

    A opinio de que os deuses concedem riquezas ao homem que osagrada, atravs do sacrifcio ou pelo seu comportamento,difundiu-se realmente por todo o mundo. As seitas protestantes,porm, estabeleceram conscientemente uma ligao entre essaideia e esse tipo de comportamento religioso, segundo o princpiodo capitalismo inicial: A honestidade a melhor poltica. Essaligao se encontra, embora no exclusivamente, entre essas seitasprotestantes, embora somente entre elas se observemcontinuidade e coerncia caractersticas em tal ligao (WEBER,1982, p. 359). *

    Repetimos: no a doutrina tica de uma religio, mas a forma deconduta tica a que so atribudas recompensas que importa. Essasrecompensas funcionam na forma e na condio dos respectivosbens de salvao. E essa conduta constitui o ethos especfico decada pessoa, no sentido sociolgico da palavra. Para o puritanismo,tal conduta era um certo modo de vida, metdico, racional que dentro de determinadas condies preparou o caminho para oesprito do capitalismo moderno. As recompensas eramatribudas a quem se provava perante Deus, no sentido dealcanar a salvao que se encontra em todas as seitas puritanas e provar-se frente aos homens no sentido de manter a posiosocial dentro das seitas puritanas. Ambos os aspectos forammutuamente suplementares e funcionaram no mesmo sentido:ajudaram ao nascimento do esprito do capitalismo moderno, seuethos especfico: o ethos das classes mdias burguesas modernas(WEBER, 1982, p. 368-369).

    [...] o sucesso capitalista de um irmo de seita, se conseguido legalmente,era prova de seu valor e de seu estado de graa, e aumentava o prestgio eas possibilidades de propaganda da seita (WEBER, 1982, p. 369).

    [...] S o modo de vida metdico das seitas ascticas poderia legitimar ecolocar um halo em torno dos impulsos econmicos individuais do ethoscapitalista moderno (WEBER, 1982, p. 370).