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AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E A SOCIOLOGIA DA COMUNICAÇÂO Heitor Costa Uma da Rocha* Introdução Este trabalho aborda a contribuição de estudos contemporâneos, como os desenvolvidos por Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Jean Boudrillard e Jürgen Habermas, sobre as representações sociais - entendidas como expressão da percepção e do pensamento humano sobre a realidade -, para o esclarecimento de questões relativas à Sociologia da Comunicação e a definição de conceitos e categorias analíticas para instrumentalizar a investigação científica nesta área onde o poder simbólico ocupa um espaço central, fundamental e estratégico. Na modernidade, as representações evidenciam o rompimento de seussignos com a semelhança que mantinham em * Mestre em Ciência Política e doutorado em Sociologia (UFPE). Coordenador do Curso de Jornalismo da Uni- versidade Católica de Pernambuco. relação à realidade, deixando de ser identificados com as próprias coisas e passando a ser mais uma tênue ficção daquilo que representam. Esta descon- tinuidade funda, ao mesmo tempo, a institucionalização da dúvida (a pos- sibilidade do erro e da ilusão) e a distinção maior da humanidade entre as demais espécies no reino animal, ao transformar a atenção espontânea em reflexão, o instinto em conhecimento racional. Assim, se constitui a moderna epistemologia colocando em dúvida a própria razão, com a preocupação normativa e metodológica de estabelecer os limites do conhecimento possível. No bojo deste processo, estão contidos,

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AS REPRESENTAÇÕESSOCIAIS E A SOCIOLOGIA

DA COMUNICAÇÂO

Heitor Costa Uma da Rocha*

Introdução

Este trabalho aborda a contribuição deestudos contemporâneos, como osdesenvolvidos por Pierre Bourdieu, MichelFoucault, Jean Boudrillard e JürgenHabermas, sobre as representaçõessociais - entendidas como expressão dapercepção e do pensamento humano sobrea realidade -, para o esclarecimento dequestões relativas à Sociologia daComunicação e a definição de conceitos ecategorias analíticas para instrumentalizara investigação científica nesta área onde opoder simbólico ocupa um espaço central,fundamental e estratégico.

Na modernidade, as representaçõesevidenciam o rompimento de seussignoscom a semelhança que mantinham em

* Mestre em Ciência Política e doutorado em Sociologia

(UFPE). Coordenador do Curso de Jornalismo da Uni-versidade Católica de Pernambuco.

relação à realidade, deixando de seridentificados com as próprias coisas epassando a ser mais uma tênue ficçãodaquilo que representam. Esta descon-tinuidade funda, ao mesmo tempo, ainstitucionalização da dúvida (a pos-sibilidade do erro e da ilusão) e a distinçãomaior da humanidade entre as demaisespécies no reino animal, ao transformar aatenção espontânea em reflexão, o instintoem conhecimento racional. Assim, seconstitui a moderna epistemologiacolocando em dúvida a própria razão, coma preocupação normativa e metodológicade estabelecer os limites do conhecimentopossível.

No bojo deste processo, estão contidos,

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contraditória e paradoxalmente, apromessa da autonomia, da superação dastutelas, máxima do iluminismo, e amaldição da submissão consentida, aquelaque não mais é imposta pela espada, defora, pois tem a sua heteronomiaestabelecida por dentro, a partir dasubjetividade dos indivíduos, os coisificandoatravés de sua própria consciência, de umafalsa consciência. O exercício do poderpassa a não depender unicamente dacorrelação de forças materiais, objetivas,já que o domínio precisa também serinternalizado nas representações que aspessoas mantêm da realidade e que setransformam também em fator deconstrução da realidade ao ensejar asformas possíveis de visão do mundo, o queimplica ainda em formas de divisão edistinção das posições ocupadas nele.

Na modernidade, portanto, o domíniodepende também (e talvez de formaprivilegiada, sobretudo na atualidadequando a repressão não oferece condiçõesestáveis de controle das grandes massas,no âmbito interno, e os confrontos bélicostotais, no âmbito externo, não são maisimagináveis, devido à capacidade dedestruição das armas nucleares) do embateque se dá no universo simbólico e com istopassa a fazer cada vez mais referência aoconhecimento e à comunicação. Dependecada vez mais do poder simbólico, "essepoder invisível o qual só pode ser exercidocom a cumplicidade daqueles que nãoquerem saber que lhe estão sujeitos oumesmo que o exercem" (Bourdieu, 1989,p. 7-8).

1. Representação e poder simbólico

A complexidade da relação de influênciarecíproca entre a estrutura social e aagência humana, na qual as re-presentações são internalizadas nosindivíduos pelo sistema e geralmente, aose externalizarem, o reproduzem, mas

também podem transformá-lo, é refletida naobservação de Bourdieu de que "ossistemas simbólicos, como instrumentos deconhecimento e de comunicação, sópodem exercer um poder estruturanteporque são estruturados". Neste sentido,reconhece que o poder simbólico é umpoder de construção da realidade, emboratendencialmente o faça estabelecendouma

ordem gnoseológicff o sentido imediato domundo (e, em particular, do mundo social)supõe aquilo a que Durkheim chama oconformismo lógico, quer. dizer 'umaconcepção homogênea do tempo, doespaço, do número, da causa, que tornapossível a concordância entre asinteligências (Idem, p. 9).

Segundo Bourdieu, os símbolospermitem o consenso sobre o sentido domundo social, contribuindo fundamen-talmente para a reprodução da ordemestabelecida e se constituindo eminstrumentos por excelência de integração('a integração 'lógica' é a condição daintegração moral") da sociedade. Nestesentido, observa que este efeito ideológicoé produzido pela cultura dominantedissimulando o caráter de divisão contidonesta função que atribui à comunicação:

a cultura que une (intermediário dacomunicação) é também a cultura quesepara (instrumento de distinção) e quelegitima as distinções compelindo todas asculturas (designadas como subcufturas) adefinirem-se pela sua distância em relaçãoà cultura dominante (lbidem: 10-11).

Numa perspectiva estruturalista,Bourdieu considera equivocada a posiçãodos interacionistas de reduzir as relaçõesde força a relações de comunicação, aoentender sempre as últimas como relaçõesde poder que dependem do capital materialou simbólico acumulado pelos agentes.Esta visão de ação social não se aplicariano caso, pois

é enquanto instrumentos estruturados eestruturantes de comunicação e deconhecimento que os sistemas simbólicoscumprem a sua função política de

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instrumentos de imposição ou delegitimação da dominação, que contribuempara assegurar a dominação de umaclasse sobre a outra (violência simbólica)dando o reforço da sua própria força àsrelações de força que as fundamentam econtribuindo assim, segundo a expressãode Weber, para a 'domesticação dosdominados" (Bourdieu, 1989, p. 11).

Assim, este poder dos sistemassimbólicos é explicado pelo tato de asrelações de força que neles se exprimemprecisarem ser ocultadas, se manifestandode forma irreconhecível, prestigitadas oudeslocadas como relações de sentido.

O poder simbólico como poder de constituiro dado pela enunciação, de fazer ver efazer crer, de confirmar ou de transformara visão do mundo e, deste modo, a açãosobre o mundo, portanto o mundo; poderquase mágico que permite obter oequivalente daquilo que é obtido pela força(física ou econômica), graças ao efeitoespecífico de mobilização, só se exerce sefor reconhecido, quer dizer, ignorado comoarbitrário (Idem, p. 14).

Desta maneira, a divisão do trabalhopolítico em "agentes politicamente ativos"e "agentes politicamente passivos" precisaser explicada como conseqüência dedeterminantes econômicas e sociais, paranão fazer passar como naturais osmecanismos que arbitrariamente preten-dem eternizar as desigualdades sociais.Faz necessário esclarecer as condiçõesque empurram

cidadãos - e de modo tanto mais brutalquanto mais desfavorecidos são econômicae culturalmente - perante a alternativa dademissão pela abstenção ou dodesapossamento pela delegação (Ibidem:163).

Do contrário, seria ignorar a desigualdistribuição dos instrumentos necessáriosà produção de uma representação domundo social explicitamente formulada,incorrendo na ingenuidade idealista deconceber o campo político como o lugarem que os agentes em livre e igualitáriaconcorrência produziriam os podutos

políticos (definição e análise de problemas,programas de ação, acontecimentos, etc)para disputar a preferência dos simplescidadãos reduzidos à condição deconsumidores/espectadores desteprocesso de decisão sobre as questões deinteresse coletivo/público.

A metáfora do livre mercado político,neste caso, labora para garantir omonopólio dos "profissionais" sobre a coisapública, que tem a seu favor ainda o fato da

concentração do capital político nas mãosde um pequeno grupo ser tanto menoscontrariada, e portanto tanto mais provável,quanto mais desapossados de instrumentosmateriais e culturais necessários àparticipação ativa na política estão ossimples aderentes - sobretudo o tempo livree o capita] culturar (Bourdieu, 1989, p. 164).

A pormenorizada análise de Bourdieupossibilita o esclarecimento sobre ascondições de recepção e de compreensãodos produtos políticos, bem como deformulação adequada de uma repre-sentação do mundo social, muitas vezessuperestimadas nas apologias neoliberaisdo "livre" mercado:

Dado que os produtos políticos oferecidospelo campo político são instrumentos depercepção e de expressão do mundo social(ou, se assim quiser, princípios de divisão),a distribuição das opiniões numa populaçãodeterminada depende do estado dosinstrumentos de percepção e de expressãodisponíveis e do acesso que os diferentesgrupos têm a esses instrumentos (Idem, p.165).

Da mesma maneira que as condiçõesde percepção, compreensão e formulaçãodas opiniões são limitadas pela posiçãosocial, as possibilidades de atuação políticaficam, assim, também condicionadas pelocapital cultural dos agentes. Isto quer dizerque -

o campo político exerce de fato um efeitode censura ao limitar o universo do discursopolftico e, por este modo, o universo daquiloque é pensável politicamente, ao espaçofinito dos discursos susceptíveis de seremproduzidos ou reproduzidos nos limites da

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problemática política, como espaço dastomadas de posição efetivamenterealizadas no campo, quer dizer,sociologicamente possíveis dadasas leis que regem a entrada nocampo. A fronteira entre o que époliticamente dizível ou indizível,pensável ou impensável para umaclasse de profanos determina-se narelação entre os interesses queexprimem esta classe e acapacidade de expressão dessesinteresses que a sua posição nasrelações de produção cultural e, poreste modo, política, lhe assegura(Bourdieu, 1989, p. 165).

Estas observações salientam aimportância da capacidade de expressão,portanto de comunicação, como ato deinstituição da intenção política, con-cretizando, oficializando e letigimando aação, fazendo passar de implícito aexplícito, de subjetivo a objetivo, o interesseque é manifesto. E, no mesmo sentido,evidenciam "a lógica monopolística" querege a oferta de produtos políticos, cujaprodução fica restrita a um pequeno grupode profissionais, condenando os con-sumidores tanto mais

à fidelidade indiscutida às marcasconhecidas e à delegação incondicional nosseus representantes quanto maisdesprovidos estão de competência socialpara a política e de instrumentos própriosde produção de discursos ou atos políticos:o mercado da política é, sem dúvida, umdos menos livres que existem (Idem, p.166).

2. Representação e fragmentação

Neste contexto, os membros das classesdominadas tornam-se reféns do partidocomo organização permanente que tem aobrigação de promover a visibilidade epresença contínua da classe através derepresentações que desfaçam as ameaçasconstantes de desintegração dasreferências que mantêm a sua coesão

diante da sempre presente possibilidade desucumbir na descontinuidade da existênciaatomizada criada pela fragmentação.Assim, a necessidade da organizaçãopartidária permanente é condição darepresentação permanente e• propriamentepolítica de classe e este fato implica odesapossamento dos mais desfavorecidosna delegação global e total concedida aopartido como urra espécie de créditoilimitado que lhes retira a possibilidade dequalquer controle sobre o aparelho (Ibidem,p. 167).

A impotência de expressar-se ade-quadamente na política e, conse-qüentemente, de exercer controle sobre opartido acarreta a autonomização dosrepresentantes que, assim, ficam livres paramonopolizar a produção e imposição dosinteresses políticos instituídos, inclusivecomo expressão dos interesses dosrepresentados. A competência nodesempenho dos saberes específicosexigidos pelos meios de produção dapolítica é condição necessária àqueles quepretendem ingressar no jogo político, bemcomo aos profissionais para obteremsucesso no jogo político.

Além do aprendizado do acervo desaberes específicos, como teorias,problemáticas, conceitos, tradiçõeshistóricas e da retórica política, é exigidauma espécie de iniciação aos novatos quetende, com suas provas e ritos de passagem,

a inculcar o domínio prático da lógicaimanente do campo político e a impor umasubmissão de tato aos valores, àshierarquias e às censuras inerentes a estecampo ou à forma específica de que sereveste os seus constrangimentos e os seuscontroles no seio de cada partido. Istosignifica que, para compreendercompletamente os discursos políticos quesão oferecidos no mercado em dadomomento e cujo conjunto define o universodo que pode ser dito e pensadopoliticamente, por oposição ao que é.relegado para o indizível e o impensável,seda preciso analisar todo o processo deprodução dos profissionais da produçãoideológica (Bourdieu, 1989 1 p. 169-170).

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Entre os "produtores profissionais deesquemas de pensamento e de expressãodo mundo social", Bourdieu cita os homenspolíticos, jornalistas políticos, altosfuncionários, etc., que têm a incumbênciade codificar as regras do funcionamento docampo de produção ideológica e o corpode conhecimento e habilidades de formaque se tornem indispensáveis àacomodação à realidade das grandesburocracias políticas. Desta forma, o debatepolítico, com o público reduzido ao estatutode espectador, é entendido como con-frontação teatralizada e ritualizada entrecampeões, simbolizando o processo deautonomização do jogo propriamentepolítico, mais do que nunca fechado nassuas técnicas, nas suas hierarquias, nassuas regras internas" (Idem, p. 171-172).

A formação dos profissionais da política,por fim, exige um tipo de solidariedade entretodos iniciados que é a adesão fundamentalàs regras do jogo, para garantir o seumonopólio e os lucros provenientes dele, oque implica numa forma de conluio entreos grupos de discrição e segredo. Esteimperativo fundamental faz com quepolíticos e jornalistas reajam com máximaviolência e indignação contra certasmanifestações de cinismo quando se fazemnotar no exterior, mas que entre os iniciadossão perfeitamente admitidas. Mas nãodesconfiam menos daqueles que, "levandodemasiado a sério os valores proclamados,recusam os compromissos e oscomprometimentos os quais são acondição da existência real do grupo"(Ibidem, p. 173).

Com estes condicionamentos exis-tentes na formação e atuação dosprofissionais, a luta simbólica pelaconservação ou pela transformação domundo social, que se dá entre as visões edivisões do mundo contidas nasrepresentações, tende prioritariamente amanter a ordem social estabelecida. O que,para Bourdieu, não implica nasubestimação da autonomia do campo

político e na redução da história política auma espécie de manifestação epife-nomênica das forças económicas e sociais,das quais os atores políticos seriam títeres,como concebia o mecanicismo marxista.

Os interesses dos representantes erepresentados podem coincidir em algunsmomentos e em alguns aspectos, masnunca de forma completa, pois

a relação que os vendedores profissionaisdos serviços políticos (homens políticos,jornalistas políticos, altos funcionáriosadministrativos, etc.) mantêm com os seusclientes é sempre mediatizada, edeterminada de modo mais ou menoscompleto, peta relação que eles mantêmcom os seus concorrentes. Eles servem osinteresses dos seus clientes na medida emque (e só nessa medida) se servemtambém ao servi-los (Bourdieu, 1989, p.177).

A concorrência no campo político, destamaneira, é a disputa pelo poder de falar eagir em nome de uma parte ou da totalidadedos profanos, através da força demobilização de suas representações, o quefaz do capital político uma forma de capitalsimbólico,

crédito firmado na crença e noreconhecimento ou, mais precisamente, nasinúmeras operações de crédito pelas quaisos agentes conferem a uma pessoa — ou aum objeto — os próprios poderes que eleslhes reconhecem", que só existem "numarepresentação e pela representação, naconfiança e pela confiança, na crença epela crença, na obediência e pelaobediência ( ... ) E um poder que existeporque aquele que lhe está sujeito crê queele existe ( ... ) Ele (o homem político) retirao seu poder propriamente mágico sobre ogrupo da fé na representação que ele dáao grupo e que é uma representação dopróprio grupo e da sua relação com osoutros grupos ( ... ) seu capital específico éum puro valor fiduciário que depende darepresentação (Idem, p . 1 87-188).

Como este capital político tem acaracterística de ser eminentementesimbólico e, por conseguinte, flúido, lábil,exige um trabalho constante de con-

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servação para acumular crédito e, aomesmo tempo, evitar descrédito. Por isso,perante o tribunal da opinião, a atuação dospolíticos é marcada pela prudência, ossilêncios e dissimulações, com o intuitoespecial de produzir a representação desua sinceridade ou do seu desinteresse,"como garantia última da representação domundo social, a qual eles se esforçam porimpor, dos ideais e das idéias, que eles têma missão de fazer aceitar". Da mesmamaneira, se explica a relação decomprometimento, e às vezes até depromiscuidade, entre e político e ojornalista, 'detentor de um poder sobre osinstrumentos de grande difusão que lhe dáum poder sobre toda a espécie de capitalsimbólico (o poder de fazer ou desfazerreputações)" (Ibidem, p. 189).

O político, assim, tem a sua autoridadeproveniente da força de mobilizaçãopessoal ou delegada pela organizaçãocomo crédito político acumulado nas lutaspassadas. A título pessoal, o capital políticodecorre do carisma entendido como

produto de uma ação inaugural, realizadaem situação de crise, no vazio e no silênciodeixados pela instituições e os aparelhos:ação profética de doação de sentido, quese fundamenta e se legitima ela própria,retrospectivamente, pela confirmaçãoconferida pelo seu próprio sucesso àlinguagem de crise e à cumulação inicialde força de mobilização que ele realizou(Bourdieu, 1989, p. 191).

A despeito da profundidade da análiseprocedida por Bourdieu, desvendando osmecanismos profundos de poder, seumodelo não esclarece suficientemente aspossibilidades da ação social direcionadapara a transformação da realidade e, assim,incorre em certo pessimismo político esocial característico dos autores francesesmodernos (Ortiz. 1983, p. 29).

3. O poder e o inconsciente

Nesta linha, se pode identificar MichelFoucault, a quem deve ser atribuído o mérito

da revelação dos dispositivos de segurançacolocados em funcionamento peloscírculos concêntricos de poderes queinvadiram o inconsciente com o discursopsicológico, ajustando o indivíduo àscircunstâncias altamente complexas demanutenção de controle e domínio exigidaspela modernidade na sociedade industrialde massas. Neste contexto, uma das tesesda genealogia é a de que "o poder é produtorda individualidade. O indivíduo é umaprodução do poder e do saber' (Machado,1984).

O avanço dos poderes é denunciadonas suas relações com o sexo e o prazer,que se ramificam e se multiplicam atravésdo isolamento e da intensificação dassexualidades periféricas, penetrando nascondutas. Houve uma concentraçãoanalítica do prazer e a majoração do poderque o controla, pois

prazer e poder não se anulam; não sevoltam um contra o outro; seguem-se,entrelaçam-se e se relançam. Encadeiam-se através de mecanismos complexos epositivos, de excitação e incitação(Foucault, 1985, p. 48).

Portanto, a invasão dos mecanismos decontrole até sobre o inconsciente dosindivíduos nas sociedades industriaismodernas não deve ser entendida comorecrudescimento da repressão específicacontra o sexo, antes o contrário:

nunca tantos contatos e vínculos circulares,nunca tantos focos onde estimular aintensidade dos prazeres e a obstinaçãodos poderes para se disseminarem maisalém" (Idem, p. 40). Com isso, "a própriarepresentação se modifica ao nível maisprofundo de seu regime arqueológico(Foucault, 1999, p. 320).

A representação do poder não pode sermais codificada pelo jurídico, em face aosnovos procedimentos de poder quefuncionam,

não pelo direito, mas pela técnica, não pelalei mas pela normalização, não pelo castigomas pelo controle, e que se exercem emníveis e formas que extravasam do Estadoe de seus aparelhos (Foucault, 1986, p. 86).

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Assim, poder não é o conjunto deinstituições, aparelhos e regras quegarantem sujeição ao Estado, pois deve sercompreendido na seguinte ordem:

primeiro, como a multiplicidade decorrelações de força imanentes ao domínioonde se exercem e constitutivas de suaorganização; o jogo que, através de lutase afrontamentos incessantes as transforma,reforça, inverte; os apoios que taiscorrelações de força encontram umas nasoutras, formando cadeias ou sistemas ou,ao contrário, as defasagens e contradiçõesque as isolam entre si; enfim, as estratégiasem que se originam e cujo esboço geral ou

- cristalização institucional toma corpo nosaparelhos estatais, na formulação da lei,nas hegemonias sociais.

Por fim, com convicção nominalista,Foucault assegura que

o poder não é urna instituição e nem umaestrutura, não é uma certa potência de quealguns selam dotados: é o nome dado auma situação estratégica complexa numasociedade determinada (Idem, p. 88-89).

A dicotomia dominantes/dominadostambém é questionada por Foucault, queapresenta a proposição de que "o podervem de baixo", supondo que

as correlações de forças múltiplas que seformam e atuam nos aparelhos deprodução, nas famílias, nos grupos restritose instituições, servem de suporte a amplosefeitos de clivagem que atravessam oconjunto do corpo social. Estes formam,então, uma linha de força geral queatravessa os afrontamentos locais e os ligaentre si; evidentemente, em troca,procedem as redistribuições, alinhamentos,homogeneizações, arranjos de série,convergências desses afrontamentos locais(Ibidem, p. 90).

Ao entender a verdade como "conjuntode procedimentos regulados para aprodução, a lei, a repartição, a circulação eo funcionamento dos enunciados",Foucault assume uma postura contrária aoracionalismo, ou mesmo irracionalista,negando categoricamente qualquerpossibilidade de uma verdade universal.Desta maneira, considera a verdade

circularmente ligada a sistemas de poder eaté um produto destes. Portanto,

não se trata de libertar a verdade de todosistema de poder - o que seria quiméricona medida em que a própria verdade époder - mas de desvincular o poder daverdade das formas de hegemonia (sociais,econômicas, culturais) no interior das quaisela funciona no momento. Em suma, aquestão política não é o erro, a ilusão, aconsciência alienada ou a ideologia; é aprópria verdade (Foucault, 1984: 14).

A verdade, produzida por múltiplascoerções, é deste mundo e nele produzefeitos regulamentados de poder. Assim, adesvinculação do poder da verdade dashegemonias estabelecidas significa ainvestidura de novos sistemas de domínio,com o que pretende refutar de formaabsoluta o ideal iluminista de superação dastutelas para a conquista da autonomia(Idem, p. 12).

É a partir desta intransponívelpermanência do poder, da negaçãoabsoluta da possibilidade de sua superaçãoou transcendência, implicando a sub-missão total da verdade à coerção do poder,que Jean Boudrillard vai basear suaobservação de que "o discurso de Foucauité um espelho dos poderes que eledescreve" (Boudrillard, 1984: p. 13).

4. Ofim do poder

A dissecação de toda a trama do poderprocessada por Foucault capitula, noentendimento de Boudrillard, ao princípiode realidade do poder:

voltado ainda para um princípio derealidade, e um princípio de verdade muitoforte, para uma coerência possível entre opolítico e o discurso (o poder não pertencemais à ordem despótica do proibido e dalei, mas ainda à ordem objetiva do real),que Foucault pode nos descrever asespirais sucessivas desse processo, dasquais a última o faz detectar as mais ínfimasterminações, sem que o poder deixe jamaisde ser o termo, sem que possa emergir aquestão de sua exterminação (idem, p. 17).

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Através desta perspectiva, é questionadoo conceito de que o poder funciona comocampo de forças ilimitado que em nadaesbarra, pois, se ele "fosse esta infiltraçãomagnética infinita do campo social, hámuito tempo não encontraria maisnenhuma resistência" (Ibidem, p. 65).

Ao posicionamento extremo deFoucault, Boudrillard contrapõe a visãotambém radical de que o poder é umengodo, a verdade é um engodo"(Boudrillard, 1984: p. 99). Para ele, asilusões finais e causais quanto ao poder sãodesmascaradas pelo autor de Vigiar e Punir,

que, no entanto, não diz nada quanto aosimulacro do próprio poder, não concebe asua reversibilidade, a sua anulação, tendo-o como "a última palavra, a irredutível trama,a última fábula que se conta, o que estruturaa equação indeterminada do mundo"(Idem, p. 62).

Assim, deixam de ser concebidos nãosó o poder e a verdade, mas também aprópria realidade e a sua representaçãoimaginária como poder dialético, mediaçãovisível e inteligível do real fundada naconvicção de que o signo possa remeter àprofundidade do sentido. É a liquidação detodos os referenciais, da possibilidade deracionalidade e ciência.

É toda a metafísica que desaparece. Jánão existe o espelho do ser e dasaparências, do real e do seu conceito. Jánão existe coextensividade imaginária: é aminiatuhzação genética que é a dimensãoda simulação. O real é produzido a partirde células miniatwizadas, de matrizes e dememórias, de modelos de comando - epode ser reproduzido um número indefinidode vezes a partir daí. Já não tem de serracional, pois já não se compara comnenhuma instância, ideal ou negativa. Eapenas operacional. Na verdade, já não éo real, pois já não está envolto em nenhumimaginário. E um hiper-real, produto desíntese irradiando modelos combinatóriosnum hiperespaço sem atmosfera(Boudrillard, 1991, p. 8).

Enquanto a representação parte doprincipio da equivalência do signo e do real,

tentando absorver a simulação como falsarepresentação, Boudrillard afirma que asimulação parte da negação radical dosigno como valor, envolvendo todo o próprioedifício da representação como simulacro.Neste contexto, assinala cinco fasessucessivas da imagem: 1. reflexo de umarealidade profunda (a representação é dodomínio do sacramento); 2. máscara edeformação de uma realidade profunda (máaparência, do domínio do malefício); 3.máscara da ausência de realidade profunda(a representação finge ser uma aparênciae é do domínio do sortilégio); 4. já não temqualquer realidade: é o seu própriosimulacro puro, "já não é de todo dodomínio da aparência, mas da simulação"(idem, p. 13).

Na seqüência deste raciocínio, aoanalisar o caso Watergate aplicando o seumodelo a partir de uma citação de Bourdieu,chega a considerar a denúncia doescândalo como sendo sempre umahomenagem que se rende à lei:

o capital, imoral e sem escrúpulos, só podeexercer-se por detrás de umasuperestrutura moral, e quem querque sejaque regenere esta moralidade pública(pela indignação, pela denúncia, etc.)trabalha espontaneamente para a ordemdo capital (lbidem, p23).

Neste caso é irresistível a comparaçãocom a linha política maximalista apre-sentada no Congresso de Ekfurt, em 1892,quando toda a perspectiva de reforma, detransformação parcial da realidade, eraapreendida como reacionária, poisatrasaria a derrocada final do capitalismo,determinada historicamente.

Sem deixar espaço para nenhuma açãohumana transformadora da realidadesocial, a possibilidade de mudança ficarestrita ao resultado das própriascontradições da hiper-realidade e dasimulação produzidas pelo sistema,quando a ameaça lhe vinha do real, com afunção de desestruturaçâo de todo oreferencial de distinção ideal entre overdadeiro e o falso, de dissuasão de todo o

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princípio e de todo o fim. Pois, agora,quando se sente ameaçado pela hiper-realidade e pela simulação

(a de se volatizar no jogo dos signos), opoder brinca ao real, brinca à crise, brincaa refabricar questões artificiais, sociais,econômicas, políticas, É para ele umaquestão de vida ou de morte. Mas é tardedemais. Daí a histeria característica donosso tempo: histeria da produção e dareprodução do real (Boudhllard, 1991: p. 33).

Na política moderna, Bouddllard vê osimulacro democrático, isto é, a substituiçãoda instância de Deus pela instância do povocomo fonte do poder e do poder comoemanação pelo poder corno representação( ... ) É com esta magnífica reciclagem quecomeça a instalar-se, desde o cenário dosufrágio de massas até aos fantasmasatuais das sondagens, o simulacrouniversal da manipulação (Boudrillard,1991, p. 44).

Sobre a mídia, aponta o fim do espaçoperspectivo e panóptico e a abolição doespetacular, pois

A não estamos na sociedade do espetacularde que falavam os situacionistas, nem dotipo de alienação e de repressão específicasque ela implicava. O próprio mediam jánão é apreensível enquanto tal, e aconfusão do mediam e da mensagem (MacLuhan) é a primeira grande fórmula destanova era. Já não existe mediam no sentidoliteral: ela doravante inapreensível, difusoe difratado no real ejá nem sequer se podedizer que este tenha sido, por isso, alterado(Idem, p. 434-44).

Segundo Boudrillard, os media devemser vistos

como se fossem, na órbita externa, umaespécie de código genético que comandaa mutação de real em hiper-real, assimcomo o outro código, o micromolecular,comanda a passagem de uma esfera,representativa, do sentido para a esferagenética, dosinal programado (ibi&m, p. 45).

Na esteira do esgotamento da esferapolítica, evidencia o fato de que, ao aumentodo volume de informação, corresponde a

diminuição do sentido, cuja explicação oautor de Simulacros e Simulação identificana acusação de que

a informação é diretamente destruidora ouneutralizadora do sentido e do significado.A perda do sentido está diretamente ligadaà ação dissolvente, dissuasiva, dainformação, dos media e dos mass media

Esta é a hipótese mais interessante masvai contra as acepções recebidas. Em todaa parte a socialização mede-se pelaexposição às mensagens midiáticas. Estádessocializado, ou é virtualmente associa],aquele que está subexposto aos media

(Boudrillard, 1991, p. 103-104).A contradição da afirmação parece

encontrar-se na confusão entre informaçãoe desinformação (como se pode encontrarno conceito de disfunção narcotizante deMerton e Larszafeld), que Boudrillard tentaresolver com a distinção entre comunicaçãoe encenação da comunicação, entreprodução de sentido e esgotamento naencenação do sentido. O que fica claro naafirmação de que,

por detrás desta encenação exacerbadada comunicação, os massa media, ainformação em forcing, prosseguem umadesestruturação do real. Assim, ainformação (ou desinformação) dissolve osocial numa espécie de nebulosa votada,não de todo a um aumento de inovaçãomas, muito pelo contrário, à entropia total.Assim, os media são produtores não dasocialização mas do seu contrário, da im-plosão do social nas massas (Idem, p. 106).

Por fim, Boudrillard coloca na origemde toda a sua tese do fim do princípio derealidade da representação a forma deatuação da mídia, que nega de formaabsoluta a função indicada pela palavra:

já não há media no sentido literal do termo(refiro-me sobretudo aos media eletrônicosde massas) - isto é, instância mediadorade uma realidade para uma outra, de umestado do real para outro. Nem nosconteúdos nem na forma. E esse o

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significado rigoroso da implosão. Absorção

dos pólos um no outro, curto-circuito entreos pólos de todo o sistema diferencial desentido, esmagamento dos termos e das

oposições distintas, entre as quais a do

mediume do real - impossibilidade, portantode toda a mediação, de toda a intervençãodialética entre os dois ou de um para ooutro. Circularidade de todos os efeitosmedia (Ibidem, p. 108).

S. A crise da modernidade e a sociedade da

comunicação

A idéia de que a crise da modernidadeindica uma transformação da modernaconsciência do tempo, fazendo com queas expectativas utópicas percam seucaráter secular para readquirir uma formareligiosa, num processo de reen-cantamento que caracterizaria o advento dapós-modernidade, é considerada infundadapor Jürgen Habermas. Para o autor daTeoria da Ação Comunicativa, o que chegouao fim foi uma determinada utopia que secristalizou em torno do potencial de umasociedade do trabalho, pois não semodificaram nem o modo de debater asfuturas possibilidades de vida e nem aestrutura do espírito da época, já que asenergias utópicas continuam fazendo parteda consciência da história.

Moldada de acordo com o trabalhoabstrato, a estrutura da sociedade burguesateve todos os seus domínios penetrados poressa força regida pelo mercado, permitindoque as expectativas utópicas também sedirigissem para a esfera da produção, coma esperança da emancipação do trabalhoda determinação externa para implantaçãodo autogoverno dos trabalhadoreslivremente associados. Contudo, ao perderseu ponto de referência na realidade, aforça estruturadora e socializadora dotrabalho abstrato, a utopia da sociedade dotrabalho também perde seu poder depersuasão e, conqüentemente, de mo-bilização.

A tese de Habermas é a de quea nova ininteligibilidade é própria de umasituação na qual um programa de Estadosocial, que se nutre reiteradamente dautopia de uma sociedade do trabalho,perdeu a capacidade de abrirpossibilidades futuras de uma vidacoletivamente melhor e menos ameaçada(Habermas, 1987, p. 106).

Confiantes na ciência, na técnica e noplanejamento para o controle da naturezae da sociedade, as utopias que tomaramcorpo no final do século XIX parecem ter seesgotado diante de problemas como operigo nuclear e a tecnologia de arma-mentos, os desequilíbrios ambientais, apesquisa genética, a elaboração deinformações, o processamento de dados eos novos meios de comunicação, queconstituem técnicas de conseqüênciasambivalentes, pois quanto mais complexosos sistemas necessitados de controlequanto maiores as probabilidades de efeitosdisfuncionais. As forças produtivasassumem características destrutivas,enquanto o planejamento reveste-se de umpotencial desagregador.

Diante destes desafios, Habermasadverte que a perplexidade alimenta teoriasque pretendem atribuir os problemas damodernidade tardia às promessas nãoconcretizadas pelas energias utópicas,fazendo com que tenham se transformadoos ideais modernos de autonomia (emdependência), de emancipação (emopressão), de racionalidade (em irra-cionalidade).

Em lugar de querer dominar no mundo ascontingências tomadas superficialmente,deveríamos antes dedicar-nos àscontingências cifradas do desvendar domundo", exorta o tilósofo. E combatendo acapitulação diante das adversidades,lembra que, "quando secam os oásisutópicos, estende-se um deserto debanalidade e perplexidade (Idem, p. 114).

No desenvolvimento da tarefa derevelação da realidade, Habermascorrobora a crítica à razão instrumental de

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da comunicação

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Horkheimer e Adorno, radicalizada porFoucault na sua teoria do "eterno retornodo poder, dos sempre mesmos ciclos depoder das sempre novas formaçõesdiscursivas". E no mesmo sentido, expressasua concordância com a denúncia contraa "práxis de singularização dos fatos,normatização e vigilância, cuja brutalidadereificante e subjetivante Fpucault perqueriunos capilares mais tênues da comunicaçãocotidiana" (lbidem, p. 105-109).

Na resistência à colonização pelosistema, reconhece o combate dosdissidentes da sociedade industrial contrao produtivismo, na defesa do mundo da vida,nos seus fundamentos vitais e na suatessitura comunicativa, ameaçado namesma medida pela mercantilização (odinheiro) e pela burocratização (o poder).Abandonados estes dois meios de quedispõem as sociedades modernas parasatisfazer as suas necessidades de governo,resta para 1-labermas a solidariedade, pois

os domínios da vida especializados emtransmitir valores tradicionais econhecimentos culturais, em integrargrupos e em socializar crescimentos,sempre dependeram da solidariedade".Contudo, pondera que a eficácia desta fontedepende da formação política da vontadecapaz de exercer influência sobre ademarcação de fronteiras e o intercâmbioexistente entre essas áreas da vidacomunicativamente estruturadas, de umlado, e o Estado e a economia, de outro.Aliás, isto não está muito longe dasrepresentações normativas de nossosmanuais de ciências sociais, segundo osquais a sociedade atua sobre si mesma esobre seu desenvolvimento através dopoder democraticamente legitimado(Habermas, 1987, p. 112).

A concepção da política como mercadoe da sociedade como consumidoratambém é refutada com a acusação de queela cria um "público bifronte, que seapresenta na porta da frente do Estadocomo público de cidadãos e na porta dosfundos como público de clientes". Emcontrapartida, aponta os movimentos

sociais, como os regionais, de ecologistas,de feministas, etc., que não lutam pordinheiro ou poder, mas por definições,tratando da integridade e da autonomia deestilos de vida, e que têm lugar nosmicrodomínios da comunicação cotidiana.

Em tais teatros podem constituir-se esferaspúblicas autônomas, que também se põemem comunicação umas com as outras tãologo o potencial é aproveitado para a auto-organização e para o emprego auto-organizado dos meios de comunicação".Dentro desta perspectiva, observa que "osacentos utópicos deslocam-se do conceitodo trabalho para o conceito decomunicação (Idem, p. 113).

Com este novo paradigma da so-ciedade da comunicação, se estabeleceuma nova forma de ligação com a tradiçãoutópica em que é preservada a inserçãodesta energia que aspira tornar realidadeuma situação ainda não existente, comodefine Karl Mannheim, nos âmbitos daconsciência da história e da disputapolítica.

Vale salientar que na definição do autorde Ideologia e Utopia, o termo nãocorresponde a algo impossível de serrealizado. Isto para esclarecer a explicaçãotantas vezes mal compreendida de1-labermas, na justificativa da razãocomunicativa, de que "a situação lingüísticaideal" sugere uma forma concreta de vidabalizada por um conceito normativo (quenão descreve simplesmente o que existena realidade, mas também aquilo quedeveria existir) que aponta as

condições necessárias, embora gerais,para uma práxis comunicativa cotidiana epara um processo de formação discursivada vontade, as quais poderiam criar ascondições para os próprios participantesrealizarem - segundo necessidades eidéias próprias, e por iniciativa própria -possibilidades concretas de uma vidamelhore menos ameaçada (Ibidem, p. 114).

Na fundamentação da Teoria da AçãoComunicativa, com a qual estabelece osparâmetros essenciais para viabilização deuma vida melhor, feito semelhante ao

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realizado por Kant no âmbito doconhecimento possível, Habermasempreende uma revisão da análiseweberiana do processo de desen-cantamento das imagens religiosas domundo através das orientações comrespeito a fins, para mostrar que estaconcepção restringe a racionalização auma intenção isolada da subjetividadeindividual, limitando-se ao âmbito da razãoinstrumental, quando as orientações comrespeito a valores são necessárias aofundamento do entendimento nas relaçõessociais que determinam a realidade objetiva(Habermas, 1988, p. 351-378).

Portanto, como reconhece Habermas,o conteúdo utópico da sociedade dacomunicação fica reduzido aos "aspectosformais de uma intersubjetividade intacta",o que implica a reversão dos processos defragmentação e coisificação, na pers-pectiva de elevação do nível de consciência

e, evidentemente, de sua correspondênciacom a realidade social, especialmente nosmovimentos sociais constituídos comoesferas públicas autônomas comu-nicativamente estru-turadas com formaçãopolítica de vontade capaz de influir sobre oEstado e a economia. Ou seja, sinaliza naperspectiva da transformação e/ouevolução social através do fortalecimentodo significado racional das representações,aproximando-as de uma situação utópica,que ainda não existe, logicamente, masque poderá ir sendo construída através dasreferências radicalmente democráticascontidas na "situação lingüística ideal"(construção de consenso sem coações dospoderes político e econômico, com aprevalência da lógica do melhor argumento)almejada pela ética comunicativa, paraconsecução completa do processo deracionalização pública sobre o exercício dopoder político e social.

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