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970 AS REPRESENTAÇÕES MARIANAS NA CAPELA ARENA: ESTUDO SOBRE A DEVOÇÃO A MARIA NO MEDIEVO (O CASAMENTO DA VIRGEM NO TEMPLO E AS BODAS DE CANÁ) Jacqueline Rodrigues Antonio Prof. Angelita Marques Visalli (Orientadora) RESUMO O objetivo deste trabalho é fazer um estudo sobre as representações marianas da baixa Idade Média, em especial dos séculos XIII e XIV, em que vários artistas do período em questão propuseram fazer. Para uma melhor compreensão sobre o assunto, foi dada a preferência para as obras de Giotto di Bondone (1267-1337), particularmente as que estão na Capela da Sagrada Virgem Maria da Caridade, mais conhecida como Capela Arena ou Capela Scrovegni. O motivo da escolha por Giotto é por ser um artista de transição, tendo traços do medievo e do moderno, no âmbito da mentalidade, cultura, política, e também é este pintor que propôs outra visão sobre a arte medieval nos fins do dito período, sendo a inspiração dos artistas renascentistas. A escolha pela Capela Arena foi por suas representações serem pioneiras no campo imagético a retratar aspectos da vida da mãe de Jesus, como também todas as cenas retratadas são vistas numa ordem cronológica, que nos aparecem numa espécie de protótipo das telenovelas dos dias atuais. Palavras-chave: Maria. Iconografia Medieval. Giotto

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AS REPRESENTAÇÕES MARIANAS NA CAPELA ARENA: ESTUDO SOBRE A DEVOÇÃO A MARIA NO MEDIEVO (O CASAMENTO DA

VIRGEM NO TEMPLO E AS BODAS DE CANÁ)

Jacqueline Rodrigues Antonio Prof. Angelita Marques Visalli (Orientadora)

RESUMO

O objetivo deste trabalho é fazer um estudo sobre as representações

marianas da baixa Idade Média, em especial dos séculos XIII e XIV, em que vários artistas do período em questão propuseram fazer. Para uma

melhor compreensão sobre o assunto, foi dada a preferência para as obras de Giotto di Bondone (1267-1337), particularmente as que estão na

Capela da Sagrada Virgem Maria da Caridade, mais conhecida como Capela Arena ou Capela Scrovegni. O motivo da escolha por Giotto é por

ser um artista de transição, tendo traços do medievo e do moderno, no âmbito da mentalidade, cultura, política, e também é este pintor que

propôs outra visão sobre a arte medieval nos fins do dito período, sendo a inspiração dos artistas renascentistas. A escolha pela Capela Arena foi por

suas representações serem pioneiras no campo imagético a retratar

aspectos da vida da mãe de Jesus, como também todas as cenas retratadas são vistas numa ordem cronológica, que nos aparecem numa

espécie de protótipo das telenovelas dos dias atuais.

Palavras-chave: Maria. Iconografia Medieval. Giotto

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INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo estudar a devoção mariana

medieval por meio das representações de Maria contidas na Capela da

Sagrada Virgem Maria da Caridade, mais conhecida como Capela Arena,

situada na cidade de Pádua, na Itália. Para melhor compreensão do

assunto, foram selecionados dois afrescos com o tema correspondente,

sendo um que representa a literatura apócrifa sobre Maria, e o outro

retirado da leitura canônica sobre o mesmo. A primeira pintura a ser

analisada é O casamento da Virgem no Templo, no qual em textos

apócrifos foi dada maior ênfase, e a segunda é As bodas de Caná, que na

leitura canônica foi considerado o primeiro milagre de Jesus, com a

interferência de Maria. Estes afrescos foram produzidos entre os anos de

1302 e 1306.

Maria, retratada por diversos artistas desde as comunidades

primitivas cristãs. No século III temos uma representação mariana na

catacumba de Santa Priscilla, em Roma, 2 juntamente com os Magos, que

vemos citados no evangelho Mateus, e Jesus. Assim como essa foram

inumeráveis as representações feitas de Maria no decorrer dos séculos. Na

Capela da Sagrada Virgem Maria da Caridade, dedicada a Maria,

encontramos um diferencial a essas representações, as vemos em

diversas pinturas para serem vistas numa certa seqüência posta, contando

uma história, revelando aos espectadores parte a parte da vida de Maria

atrelada com a de Jesus.

O estudo de imagens na história exige mais que uma simples

leitura do que é visto, sendo necessária a análise da produção, nas quais

são estudadas as condições sociais, políticas e econômicas da sociedade

em que esta floresceu. Com esta perspectiva, nos utilizaremos para nos

aprofundar sobre a arte medieval, acerca do motivo das obras de Giotto

serem consideradas tão inovadoras.

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Os traços de Giotto são marcantes e levam ao espectador sentir-

se como sujeito ativo da cena em que observa. Isso acontece, não só por

sua arte ser um protótipo da novela que temos atualmente, por cada

quadro revelar uma nova cena, mas por esta representar o imaginário

daqueles que já tinham conhecimento sobre as histórias retratadas, seja

elas em livros canônicos ou advindos da tradição e dos livros apócrifos. No

caso da vida de Maria, mãe de Jesus, representada nas paredes da Capela

Arena, leva o espectador a se inteirar acerca dos eventos anteriores ao

nascimento de Jesus, no qual afirma à santidade da origem de Cristo, e

posteriormente igualando com sua vida, tal qual é posto nas fontes

escritas cristãs.

O ESTUDO DOS AFRESCOS

Como já dito anteriormente, este trabalho se dedica a análise das

obras de Giotto sobre Maria, a mãe de Jesus, em função do estudo sobre

a devoção mariana no medievo. Os afrescos em questão, O casamento da

Virgem no Templo e As bodas de Caná, que se localiza na Capela Arena,

em Pádua, na Itália, tem cada um 200cm X 185cm em seu tamanho, e é

emoldurada com faixas decorativas, e nestas faixas estão contidas

também pequenas cenas do Antigo Testamento. Na parte inferior das

paredes, desta mesma capela, também há alegorias 442 das virtudes e dos

vícios 443, além do imenso painel do Juízo Final. No teto são visualizados

os rostos dos quatro evangelistas e ao centro o de Jesus.

Sobre os afrescos que contêm as representações de Maria na

capela em questão, há as pinturas que se dedicam por narrar sua vida,

442

Segundo Humberto Eco em Arte e beleza na estética medieval, alegoria e simbolismo, na Idade Média, eram

considerados sinônimos. A definição de alegoria seria a personificação de sentimentos, como acontece nesta

capela, em que a ira, um dos vícios, ou a temperança, uma das virtudes, são simbolizadas por pessoas. 443

Giotto os colocou assim: Virtudes – Prudência, Coragem, Temperança, Justiça, Fé, Caridade e Esperança. E

os contrapondo, nesta mesma ordem, os Vícios – Loucura, Inconstância, Ira, Injustiça, Idolatria, Inveja,

Desespero.

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sendo 5 afrescos com a figura de Maria presente 444, e 2 que se refere a

ela, mas sem sua presença 445. Há também algumas inseridas na vida de

Cristo, sendo aqui elencadas 7 com a presença de Maria 446. Ao olharmos

para o conjunto que se dedica a paixão de Jesus, são 3 afrescos com a

presença de Maria 447.

Este presente trabalho foi fundamentado em métodos contidos

em Peter Burke, Jean-Claude Schmitt e Michael Baxandall, com as

análises de imagem proposta por Erwin Panofski. Os dois primeiros tratam

do estudo de imagem pela história, as suas implicações, métodos e

objetivos ao fazer esse tipo de estudo. Baxandall trata dos padrões de

intenção dos quadros e Panofski fornece os métodos de iconografia, que é

os estudos dos sentidos e significados das imagens. Também foram de

igual importância os estudos de Jaroslav Pelikan, para a compreensão da

figura de Maria para os devotos.

MARIA, A THEOTOKOS

O personagem em destaque neste trabalho, que é Maria, a

Theotokos 448, tem na iconografia uma evidência gradual através dos

séculos. Um exemplo está na catacumba de Santa Priscilla, em Roma. A

imagem em questão mostra Maria com o menino Jesus no colo, num

momento de intimidade entre mãe e filho.

444

Nascimento da Virgem; Apresentação da Virgem no Templo; Casamento da Virgem; Procissão dos noivos;

Anunciação a Virgem. 445

Pretendentes da Virgem; Escolha do marido da Virgem. 446

Visitação a Isabel; Nascimento de Jesus; Adoração dos Magos; Apresentação de Jesus no Templo; Fuga para

o Egito; Jesus no Templo ensinando os doutores da lei; Bodas de Caná. 447

Crucificação; Lamentação; Ascensão. 448

Palavra grega Θεοτόκος significa, segundo Jaroslav Pelikan em seu livro Maria através dos séculos, aquela

que deu a luz a Deus. (τόκος – parto; Θεος – Deus)

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Figura 1: Maria e o menino Jesus, Catacumba de S. Priscilla, Roma, século III.

Essa ascensão que percebemos na Idade Média da devoção

mariana, é fruto de uma crescente identificação dos fiéis entre esta figura

marcante na história do cristianismo. As representações marianas estão

acompanhadas, com o menino Jesus, e/ou com outros personagens, a

exemplo da Antiguidade, com os Magos descritos no livro canônico de

Mateus, que se localiza nesta mesma catacumba.

Com relação à história de Maria, nota-se que pouco consta nos

livros canônicos, mas que nos apócrifos há um campo fértil, tendo pelo

menos três dedicados a ela: O Protoevangelho de Santiago, que conta a

história desde Joaquim e Ana, passando pelo nascimento de Cristo,

chegando até a morte de Zacarias. O Livro sobre a Natividade de Maria,

que narra desde a vida de seus pais, Joaquim e Ana, ansiosos para ter um

filho, até o nascimento de seu filho Jesus, e o Livro de são João

Evangelista, que se dedica à assunção de Maria. Com base, maior nos

apócrifos e menor nos textos canônicos, os artistas medievais, em

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especial na baixa Idade Média, percebem a emergência de tornar aparente

a natividade e a vida de Maria até o nascimento de Jesus e também

depois da ascensão de seu filho, surgindo a tradição da Dormição de

Maria, que o artista em análise, Giotto, retrata. Já o dogma da Assunção,

que surgiu no século IV, pelo apócrifo do Livro de são João Evangelista, só

foi oficializado pela Igreja em 1950, sendo este o último dogma mariano.

Na Arte Bizantina tradicionalmente há imagens dedicadas à

Maria, principalmente a retrata segurando o menino Jesus. As Theotokos,

que representa o amor maternal, foram ganhando espaço na iconografia,

seja para devoção particular, em pequenos quadros, seja para a devoção

pública em igrejas e capelas. Maria como Theotokos foi o primeiro dogma

mariano da Igreja, e o foi confirmado no Concílio de Éfeso em 431,

posteriormente este título também representou a proximidade dos fiéis

para com Maria. Tendo Maria como aquela que deu a luz a Deus, este

dogma, a da Theotokos, foi mais do que ter dos fiéis uma fé mais

consistente a Maria, é a consolidação de que Jesus é Deus. Neste contexto

foi campo fértil para a iconografia bizantina, aonde encontramos muitas

imagens de Theotokos. Abaixo temos dois exemplos de Theotokos, uma

com Maria entronizada segurando o menino Jesus, tendo dois anjos ao

seu redor, e a outra é um mosaico, na mesma posição que a primeira,

também com os dois anjos a redeando, mas em meio a santos e estando

abaixo de Jesus como Soberano do Universo.

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Figura 2: Nossa Senhora entronizada

com o Menino,Galeria Nacional de Arte de Washington

Figura 3: Cristo como Soberano do Universo, a

Virgem e Menino, e santos, Catedral de Mon-Reale, Sicília.

Na Igreja do Ocidente houve também essa expansão da iconografia com

representações de Maria. Em vitrais e afrescos nas igrejas, e também em

quadros para devoção particular. Neste contexto aparece Giotto e a

Capela Arena, sendo esta dedicada a Maria, havendo uma representação

do encomendador, Enrico Scrovegni, oferecendo uma miniatura da Capela

à mãe de Jesus. A Capela Arena, sendo dedicado a Virgem, é um exemplo

da emergência em conhecer mais sobre Maria, encontrando retratada a

sua vida e origem, esta última representada na figura de seus pais,

Joaquim e Ana. A dedicação de Scrovegni da capela à Maria está situada

no grande afresco, hoje denominada Juízo Final, tendo Scrovegni no lado

dos justos que buscam a remissão de seus pecados junto a Jesus. Sendo

Scrovegni um usurário 449, assim como seu pai, Reginaldo Scrovegni, algo

449

Usurário é quem pratica usura, que é “[…] um conjunto de práticas financeiras proibidas. […] é a cobrança de

juros por alguém em operações nas quais não deveria haver juros. […] a usura existe quando não há produção ou

transformação material de bens concreto. […]” (LE GOFF, 2007, 22) Isto era condenável pela Igreja Cristã.

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citado na Divina Comédia de Dante Alighieri, como estando no purgatório

com a bolsa, um símbolo do usurário, e nela um porco azul, o que

representa a família Scrovegni. Segue na figura abaixo a representação do

Juízo Final na Capela Arena.

Figura 4 – Juízo Final e o detalhe de Enrico Scrovegni, Giotto, Capela Arena.

A ANÁLISE DOS AFRESCOS

Os séculos que compõe a baixa Idade Média, XII-XIV, são

significativos no relativo a grandes transformações sociais. Este período é

caracterizado como o tempo das catedrais, termo cunhado por Duby, uma

vez que a arte das catedrais na Europa é referente ao renascimento das

cidades, citados nos referidos séculos (XII-XIV), como também do

comércio e a transferência das residências dos senhores do campo para a

cidade, que leva consigo os seus produtos.

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Este período também é assinalado pelo surgimento do

Humanismo, a exemplo Giovanni Boccaccio, com sua obra Decamerão 450

e Dante Alighieri com a Divina Comédia. Neste período começa a apreciar

os valores humanos, como a busca por retratar fielmente a figura humana

nas pinturas, que pouco a pouco invade os valores sacramentados do

divino. Isso domina também o campo da arte, uma vez que sentimentos

tipicamente humanos, como a aflição, a confiança, a alegria, ganham

lugar nos sentimentos de sobriedade e placidez, ditos como tipicamente

divinos.

Na Capela Arena, em que se localizam as obras que abaixo são

analisadas, é um bom exemplo dessas transformações. Lembremos que

Giotto, por essas mudanças, é considerado por Giorgio Vasari, um pintor,

arquiteto e historiador da arte no século XVI, como o Pai do

Renascimento, no campo das imagens. Opinião esta sustentada até os

dias de hoje. Nos afrescos vemos retratadas cenas do cotidiano na vida de

personagens sagradas para o cristianismo, aproximando do cotidiano de

seus expectadores.

Os afrescos da Capela Arena seguem a cronologia da vida de

Jesus, e reserva um destaque para a vida de Maria anterior ao nascimento

de Jesus, algo que nos livros canônicos não são citados. As cenas

ilustradas na capela, que não constam nos livros canônicos, remetem aos

descritos em apócrifos e as tradições populares. Há alguns apócrifos que

descrevem a maioria das cenas pré-canônicas reproduzidas por Giotto,

como é o caso do Protoevangelho de Santiago e do Livro sobre a

Natividade de Maria.

Sobre o afresco Casamento da Virgem, a luz do Apócrifo do

Protoevangelho de Santiago, nos relatando que, após ser revelado que

José é o marido ideal para Maria, este recebeu Maria em sua casa, e assim

450

Giotto, nesta obra de Boccaccio foi muitíssimo elogiado pelos seus dons artísticos.

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deu-se o casamento dos futuros pais de Jesus. Já no apócrifo Livro sobre

a Natividade de Maria, sobre o fato expõe que “celebraram-se, pois os

esponsais como de costume […]” (CARTER, 2003: 62). A partir de tais

declarações, foi terreno fértil para Giotto desenvolver uma cena sobre tal,

e para nós isto se torna importante para conhecer um pouco mais sobre o

cotidiano medieval, no caso, como era o costume do casamento. A pintura

mostra um casal, Maria e José, diante de um ancião, que reconhecemos

que seja um sacerdote do templo, e várias pessoas em torno assistindo tal

evento, tendo ao fundo uma estrutura representando o templo.

Figura 5: Casamento da Virgem, Giotto, Capela Arena.

No livro canônico de Mateus 1, 18 também relata isto da seguinte

maneira: “[…] Maria, sua mãe, comprometida em casamento com José,

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antes que coabitassem, achou-se grávida pelo Espírito Santo. […]”

(BIBLÍA, 2003: 1704). Diante do que é posto pelos apócrifos, em

comparação com o evangelho canônico, vemos uma clara predileção pelo

apócrifo, uma vez que no canônico, deixa explicita a não consumação do

casamento.

Como é evidenciado nos apócrifos, José é sempre um idoso que

promete não tocar em Maria em respeito do voto de castidade que esta

fez a Deus. Outro elemento ressaltado é por José ser um homem viúvo e

com filhos, sendo esta uma explicação para Jesus ter irmãos. 8

Também para mostrar que Jesus é mesmo o filho de Deus,

sempre o coloca indo viajar a trabalho no período que Maria engravida.

Outro detalhe sobre a pintura é de somente o casal central

possuírem halo, sendo este um símbolo de santidade, portanto o artista

somente considera estes como santos nesta cena. Em comparação a outro

casamento retratado, as Bodas de Caná, o segundo evidencia a refeição, e

não mais o ato do casamento como no primeiro, pois foi neste momento

que o milagre aconteceu, na transformação da água em vinho, como cita

o livro canônico.

Acerca dos afrescos que se dedicam a narrar à história de Maria

posterior a anunciação e nascimento de Jesus, vemos claramente que são

retirados dos evangelhos canônicos de Mateus, Lucas e João, pois o de

Marcos pouco cita sobre Maria. Também no inicio de Atos dos Apóstolos,

livro escrito pelo evangelista Lucas, fala a respeito de Maria. Sobre as

Bodas de Caná, o evangelho canônico de João 2, 1-11 relata o seguinte:

1No terceiro dia, houve um casamento em

Caná da Galiléia e a mãe de Jesus estava lá.

2Jesus foi convidado para o casamento e os seus discípulos também. 3Ora, não havia

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vinho, pois o vinho do casamento havia acabado. Então a mãe de Jesus lhe disse:

“Eles não têm mais vinho”. 4Respondeu-lhe Jesus: “Que queres de mim, mulher? Minha

hora ainda não chegou”. 5Sua mãe disse aos serventes: “Fazei tudo o que ele vos disser.”

6Havia ali seis talhas de pedra para a purificação dos judeus, cada uma contendo de

duas a três medidas. 7Jesus lhes disse:

“Enchei a talhas de água”. Eles a encheram até à borda. 8Então lhe disse: “Tirai agora e

levai ao mestre-sala”. Eles levaram. 9Quando o mestre-sala provou a água transformada em

vinho – ele não sabia de onde vinha, mas o sabiam os serventes que haviam retirado a

água – chamou o noivo 10e lhe disse: “Todo homem serve primeiro o vinho bom e, quando

os convidados já estão embriagados serve o inferior. Tu guardaste o vinho bom até agora!”

11Esse principio dos Sinai, Jesus o fez em Caná da Galiléia e manifestou a sua glória e os

seus discípulos creram nele. (BIBLÍA, 2003: 1846)

Este texto é uma perícope, ou seja, um texto que tem em si um

sentido completo. É também um texto exclusivo em João, pois tal

passagem não aparece nos demais livros canônicos. Como o texto

evangélico nos mostra, a figura central nesta passagem é a Maria

intermediadora, aquela que vendo a necessidade das pessoas, pede ao

seu filho, Jesus, para que intervenha e assim suprindo aquela

necessidade. No caso descrito é a falta do vinho num casamento, algo

considerado humilhante, analisando que a festa durava vários dias. Algo

como este a ser ressaltado numa capela, lugar de culto público, é

enfatizar e valorizar a prática dos pedidos a Maria, para que esta interceda

a Jesus, e assim tenha o seu desejo realizado. Verificamos que isto ocorre

com freqüência, em especial ao recordarmos que esta capela é fruto de

um pedido de intercessão, para que Maria seja mediadora na absolvição

dos pecados de usura de Enrico Scrovegni e seu pai.

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O afresco Bodas de Caná é ambientado numa residência,

contendo os personagens descritos no fragmento canônico, Maria, Jesus,

os noivos, os serventes, o mestre-sala e a figura de barba branca com

halo, sendo este um dos discípulos. São evidenciadas as seis talhas, o

momento em que os serventes depositam a água nas talhas, e a ocasião

que o mestre-sala ingere o conteúdo das mesmas, tendo todo o processo

observado por Maria. Com essa cena também percebemos que Giotto

conseguia registrar numa cena, uma passagem completa.

Figura 6: Bodas de Caná, Giotto, Capela Arena.

983

CONCLUSÃO

Analisar os afrescos da Capela Arena, em Pádua, nos ajudou a

compreender melhor a devoção medieval mariana. Juntamente às

imagens, os textos literários que concebeu as cenas, e o seu contexto

histórico, nos auxiliou a perceber as transformações sociais, na qual

influenciou sobre tal devoção e também a arte no período.

Portanto, este trabalho proporcionou uma maior abrangência a

respeito do imaginário medieval acerca de Maria, mãe de Jesus, baseando

no relato da literatura, seja ela da antiguidade, como é o caso da Bíblia e

alguns apócrifos, ou medieval, como outros apócrifos e a tradição popular.

Para tanto utilizou de fontes imagéticas, os afrescos da Capela Arena, do

qual Giotto faz uma narração sobre a origem humana de Jesus atrelada à

divina, por espelhar na mãe de Jesus o ideal de santidade. A partir do

momento que essas representações, como do casamento de Maria e as

bodas de Caná, tornam-se comuns serem retratadas em lugares de

devoção pública, a exemplo a Capela Arena, os adeptos do cristianismo

medieval ficam mais familiarizados com tais fatos, que a Igreja Cristã

buscava torná-la como as únicas verdadeiras sobre os personagens que

cercam Jesus.

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