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1 AS REDES POLÍTICAS DE RESISTÊNCIA AO AGRONEGÓCIO: IMPASSES E ALTERNATIVAS Carlos Alberto Franco da Silva Universidade Federal Fluminense - UFF [email protected] Resumo O objetivo deste artigo é analisar as tensões entre as redes políticas territoriais promovidas pelos representantes do agronegócio e pelos movimentos sociais de resistência, em áreas do Cerrado sob o avanço e consolidação do complexo agroindustrial brasileiro. A conclusão a que chegamos revela a rede política do agronegócio como uma trama de estratégias de coordenação de fluxos de comando e de decisões entre diferentes atores, que compartilham a intenção de garantir a reprodução do complexo carne-grãos. Tal arena política configura o exercício de poder e aponta para a constituição de redes políticas de resistência, que defendem novos modelos de vida sustentável ambientalmente e livre dos reclamos da acumulação ampliada de capital. Tal campo de força resulta na requalificação de territórios e paisagens preexistentes do Cerrado. Introdução Em áreas do Cerrado, a recomposição de territórios e paisagens regionais tem sido parte integrante das transformações e impactos do sistema capitalista, em escala internacional, nacional, regional e local. A inserção do Cerrado na divisão internacional do trabalho através do processo de industrialização da agricultura e constituição de complexos territoriais produtivos, capitaneados pelo circuito grãos-carne, respondem, em parte, pelas transformações ali presentes. O papel das políticas territoriais, mudanças estruturais do padrão produtivo capitalista, ideologias geográficas de integração do território brasileiro, e transformações das economias regionais são algumas das razões dos impactos de uma nova racionalidade produtiva e discursiva que se projetou em áreas do Cerrado. De qualquer modo, a expansão do complexo agroindustrial da soja- pecuária ou do chamado agronegócio, no âmbito do processo de abertura e consolidação da fronteira agrícola capitalista no Cerrado, está na ordem do dia da pesquisa científica da Geografia Agrária. As preocupações acadêmicas com a expansão do agronegócio nos biomas da Amazônia e do Cerrado têm se concentrado nos estudos da geografia da violência pública e privada contra populações tradicionais e campesinas, concentração de terras, grilagem, desmatamento, logística, urbanização sem cidadania, relação homem-natureza, modernização da agricultura, dentre outros. Há, por assim dizer, uma geografia do

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AS REDES POLÍTICAS DE RESISTÊNCIA AO AGRONEGÓCIO: IMPASSES E ALTERNATIVAS

Carlos Alberto Franco da Silva Universidade Federal Fluminense - UFF

[email protected]

Resumo O objetivo deste artigo é analisar as tensões entre as redes políticas territoriais promovidas pelos representantes do agronegócio e pelos movimentos sociais de resistência, em áreas do Cerrado sob o avanço e consolidação do complexo agroindustrial brasileiro. A conclusão a que chegamos revela a rede política do agronegócio como uma trama de estratégias de coordenação de fluxos de comando e de decisões entre diferentes atores, que compartilham a intenção de garantir a reprodução do complexo carne-grãos. Tal arena política configura o exercício de poder e aponta para a constituição de redes políticas de resistência, que defendem novos modelos de vida sustentável ambientalmente e livre dos reclamos da acumulação ampliada de capital. Tal campo de força resulta na requalificação de territórios e paisagens preexistentes do Cerrado. Introdução Em áreas do Cerrado, a recomposição de territórios e paisagens regionais tem sido parte

integrante das transformações e impactos do sistema capitalista, em escala internacional,

nacional, regional e local. A inserção do Cerrado na divisão internacional do trabalho

através do processo de industrialização da agricultura e constituição de complexos

territoriais produtivos, capitaneados pelo circuito grãos-carne, respondem, em parte,

pelas transformações ali presentes. O papel das políticas territoriais, mudanças

estruturais do padrão produtivo capitalista, ideologias geográficas de integração do

território brasileiro, e transformações das economias regionais são algumas das razões

dos impactos de uma nova racionalidade produtiva e discursiva que se projetou em

áreas do Cerrado. De qualquer modo, a expansão do complexo agroindustrial da soja-

pecuária ou do chamado agronegócio, no âmbito do processo de abertura e consolidação

da fronteira agrícola capitalista no Cerrado, está na ordem do dia da pesquisa científica

da Geografia Agrária.

As preocupações acadêmicas com a expansão do agronegócio nos biomas da Amazônia

e do Cerrado têm se concentrado nos estudos da geografia da violência pública e

privada contra populações tradicionais e campesinas, concentração de terras, grilagem,

desmatamento, logística, urbanização sem cidadania, relação homem-natureza,

modernização da agricultura, dentre outros. Há, por assim dizer, uma geografia do

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campesinato e outra do agronegócio, que, às vezes, parecem ser rotuladas de “esquerda”

e de “direita”, respectivamente.Um enfoque de destaque é a análise crítica da fronteira

agrícola e do agronegócio sob a ótica do espaço e da técnica, com forte apoio na obra de

Milton Santos.

Outro viés reside na análise do agronegócio sob o prisma da colonialidade-colonialismo

do poder, uma frente de crítica à modernidade imposta pelos capitalistas do “Norte” em

detrimento dos povos do “Sul”. Essa corrente é muito marcada pela crítica à epistême

eurocêntrica. É como se o eurocentrismo se projetasse no mundo como uma força

hegemônica de modo a alterar valores e modos de vida sob o viés do capitalismo.

Acredito que esse processo é inquestionável. Minha crítica a essa linha de pensamento

está no fato de que penso o eurocentrismo como um processo de mão dupla. Isto porque

a Europa também foi influenciada pelas diversas realidades dos lugares em que aquela

racionalidade se projetava. Um novo olhar interpretativo do mundo pela Europa se

afirmava a partir da “ocupação ou invasão” de novos lugares. Hábitos, costumes e

valores também foram repensados por intelectuais europeus, bem como por empresas e

população em geral. O processo é, portanto, de mão dupla. Hoje em dia, acredito numa

força menor do eurocentrismo. As migrações de africanos e latinos, a crie econômica, o

enfraquecimento do Estado de bem-estar e o fortalecimento das “chamadas economias

emergentes” sugerem um novo posicionamento da Europa e dos Estados Unidos diante

do mundo.

Há outra linha de investigação da Geografia Agrária que se apoia em clássicos do

marxismo, afirmando a importância política do campesinato na leitura do avanço do

capitalismo no mundo rural.

Diante dessas possibilidades interpretativas, vale lembrar que, não se busca neste texto

o confronto entre a “verdade territorial capitalista” com a “verdade territorial

campesina”. Há “verdades”nas duas propostas de racionalidade e modo de vida. Até

porque há mais contradições do que propriamente antagonismos entre ambas as

verdades. Há um conflito entre elas, e não propriamente um confronto. A verdade

capitalista se apropria de relação de produção não-capitalistas, valores, costumes e

símbolos do campesinato, mesmo que seja para ressingnificá-los sob novas bases de

valor. Por outro lado, a verdade territorial campesina busca romper com o capitalismo,

mas utiliza de suas bases reprodutivas para práticas de permanência na terra como meio

de produção, recurso natural e abrigo. Uma situação de confronto seria o fim da

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propriedade privada, seja camponesa, seja burguesa. O conflito assinala permanências

das relações sociais, mesmo que elas estejam sempre em tensão. No conflito há

possibilidade de algum consenso; mas no confronto um grupo social quer sempre

eliminar o outro, pois não tolera sua existência.

Assim sendo, a opção analítica sinaliza para os conflitos acerca das redes políticas de

resistências dos movimentos sociais em contraposição aos esquemas de acumulação do

agronegócio. Para tanto, é preciso definir aqui o entendo como rede política territorial.

Rede Política Territorial é uma arena de atores-redes que promove troca de

recursos de poder através de vínculos e alianças entre si, cujos efeitos de suas ações se

verificam no território, requalificando-o a partir de estratégias, interesses, conflitos e

resistências entre os atores. A resistência é parte integrante do sentido da rede politica,

pois sinaliza para o poder e contraposição a outras redes políticas. Na rede todos trocam

recursos de poder e projetam corporeidades espaciais e são afetados por territorialidades

distintas. Assim definida a rede política territorial, o atual arranjo capitalista do espaço

anuncia tensões entre valores éticos, ideológicos, simbólicos e culturais entre os

diferentes atores, que buscam se afirmar na diferença diante de processos hegemônicos

de reprodução de capital (SILVA, NASCIMENTO E SANTOS, 2011:25).

A operacionalização deste conceito sinaliza para os princípios, a saber:

1-A rede política é contingencial e temporária, pois a sua duração depende dos

interesses em jogo.

2-Na rede política nem sempre há uma nítida hierarquia de poder entre os atores. Mas

isso não implica a inexistência de um centro de decisões. A rede política do Movimento

dos Sem-Terra (MST) é reconhecida pelos seus membros e apresenta uma hierarquia

das decisões e controle. Há uma coordenação nacional das ações e as sedes regionais

com seus representantes. Todavia, a rede política que o MST constitui a partir das

parcerias e alianças com universidades, ONGs, Comissão Pastoral da Terra, sindicatos,

federações, partidos políticos não apresenta uma nítida hierarquia de poder entre os

atores. Cada um compartilha recursos de poder, a fim de atingir objetivos comuns. Mas,

se os interesses convergem para a luta pela terra, a centralidade da rede está no MST.

3-A rede política territorial é dialógica, pois a rede política define o território e é

definida por ele (LIMA, 2005).

4- Na rede política há uma assimetria de poderes, por conta dos diferentes recursos de

poder de que atores dispõem.

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5-A rede política pode ser territorial. Se for territorial, ela se reconfigura em função dos

interesses e estratégias, resistências e conflitos de territorialidade que dela decorrem;

6-Há ausência de visibilidade ou uma visibilidade parcial para os de fora da rede

política. A natureza da rede política não se revela para todos. Essa é uma estratégia de

defesa dos interesses e das ações pretendidas. A rede política é visível naquilo que se

quer fazer ver.

7-A rede política legitima um discurso de poder de caráter ético, simbólico, ideológico,

político,cultural e econômico. O discurso da rede pode revelar uma dizibilidade que

afirma aquilo que se quer fazer ver diferente do que se diz.

8-A rede política é rizomática, já que: 1) qualquer ator da rede pode ser conectado a

outros fora dela, 2) a rede se alimenta de determinações que mudam a sua natureza; 3) a

unidade da rede está na dimensão movediça da tomada de poder; 4) há um princípio de

ruptura em que a rede pode ser rompida e retornar segundo outros interesses em jogo,

abrindo novos recortes territoriais; 5) é um sistema aberto não hierárquico de múltiplas

entradas e saídas e linhas de fuga, e unida por um arranjo de interesses e estratégias.

9- Princípio da diferença. A rede está sempre no devir; está sempre se diferindo. Logo, a

diferença não é reconhecível. Somente, seus efeitos territoriais anunciam a diversidade

dos arranjos espaciais.

10-Por fim, todos os atores da rede política possuem recursos de poder. A troca de

recursos entre os atores é estratégica, para fins de atingir os objetivos pretendidos. Os

recursos de poder podem ser constitucionais, financeiros, tecnológicos, organizacionais,

jurídicos e simbólicos (PAULILLO, 2000).

Há, portanto, essa proposta teórica das redes políticas territoriais, devidamente

consciente dos erros e omissões. Não há obsessão pela verdade, apesar de afirmá-la

quase sempre, pois é um requisito do saber científico a busca por fundamentos gerais.

Logo, não assumo aqui compromisso como o niilismo. Apenas lembro que, o debate

científico depende mais do engano do que da verdade. Não apreendemos a realidade

social como ela é em si, mas como se apresenta com base em perspectivas

interpretativas, que, por sua, dependem do valor dos valores da interpretação subjetiva,

como nos adverte Nietzsche.

Desse modo, a opção analítica do estudo em tela assume um caráter de perspectiva, que

se liga às possibilidades de interpretação, conforme recomenda Nietzsche. A

interpretação proposta não desconhece as possibilidades das outras leituras (pelo

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contrário), apesar de sempre haver conflitos de interpretações. Isso porque qualquer

interpretação não é livre, pois se situa num de campo de valores específicos.

Assim posto, o viés analítico que aqui se coloca é o estudo do agronegócio e das

resistências a ele sob a perspectiva das redes políticas. Isso porque tal rede sinaliza para

uma arena formada por atores com estratégias definidas, que se confronta com valores e

interesses de grupos diversos, que também definem suas redes políticas de resistências e

afirmação de identidades territoriais. Logo, a existência das redes políticas aponta para

conflitos de territorialidades na Amazônia e no Cerrado. Uma das personagens desses

conflitos são as corporações do agronegócio. Grupos como CARGILL, BUNGE,

DREYFUS, AMAGGI e ADM são os principais agentes de des(re)territorialização de

grupos sociais e reorganização espacial, dada a dimensão multifuncional e a

multilocalização de seu sistema de objetos e de ações em escalas geográficas diversas.

Mas há as resistências a essas linhas de forças hegemônicas. É esse o ponto de partida

deste artigo: chamar a atenção para o enfoque das redes políticas de resistências ao

agronegócio. Vale lembrar que este artigo é parte integrante do projeto de pesquisa

financiado pelo Programa Bolsa Produtividade em Pesquisa do CNPq-2009-2012,

intitulado “As redes políticas das corporações do agronegócio da soja em áreas da

Amazônia”.

O campo de forças das redes políticas de resistência ao agronegócio Os pequenos produtores e as chamadas populações tradicionais dispersas em áreas da

Floresta Equatorial e do Cerrado são os atores-rede que resistem às práticas

socioespaciais das corporações, através de vários movimentos sociais (Movimentos dos

Sem-Terra, MST, Movimentos dos Trabalhadores Acampados e assentados, MTA,

Movimentos dos Atingidos por Barragens, MAB, dentre outros). Tais movimentos se

organizam em verdadeiras redes políticas em que o interesse comum de lutar contra o

capital pode unir grupos dissidentes ou não, quando se estabelecem os embates contra o

agronegócio. As parcerias entre esses movimentos sociais, CPT (Comissão Pastoral da

Terra), FETAG (Federação dos Trabalhadores na Agricultura), professores e estudantes

universitários, ONG’s, sindicatos e partidos políticos constituem o recurso de poder que

anuncia redes políticas de resistências ao agronegócio, sobretudo contra a grilagem,

trabalho escravo, despejo, desapropriações e assassinatos, em áreas de expansão da soja,

pecuária, cana, algodão e eucalipto.

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O que se percebe é que, apesar de os interesses serem diversos e particulares, a ação

coletiva ratifica, legitima e viabiliza a realização de objetivos específicos. A CPT visa a

defender a reforma agrária e expandir a fé católica. Alguns professores e universitários

veem na defesa do campesinato um canal de expressão da ideologia socialista em

contraposição ao capitalismo. Os partidos políticos de esquerda parecem defender a

reforma agrária e os ideais socialistas, apesar de haver contradições entre ideias e ação

politica, quando o partido assume algum grau de hegemonia no cenário nacional.

Exemplo expressivo é o Partido dos Trabalhadores. Apesar da defesa da reforma

agrária, o Governo do Presidente Lula avançou muito pouco no apoio à distribuição de

terras e à pequena produção familiar. As ONG’s possuem interesses contraditórios que

escapam ao escopo deste trabalho. Ás vezes, elas estão do lado dos capitalistas e, em

outras situações, do lado das populações tradicionais. De qualquer modo, são as

parcerias entre esses atores que se constituem recursos de poder na luta contra a

expansão da fronteira capitalista da soja. Tais alianças lutam por direito à existência de

populações tradicionais. Como direito é poder, a luta se constitui em estratégias de

afirmação de poder, na forma de visibilidade de identidades territoriais e representações

simbólico-culturais dos grupos sociais envolvidos no conflito com os atores

representativos do grande capital.

A rede política assim constituída revela estratégia de coordenação das decisões

políticas, visto que as ações se inserem em escalas geográficas diversas. O Movimento

dos Sem-Terra é um bom exemplo, visto que suas alianças com professores, alunos,

sindicatos, ONG’s, federações, CPT, partidos políticos, agricultores e intelectuais

atingem o território brasileiro. A rede política do MST veicula instruções, disciplina

politico-ideológica, regras, preceitos e valores que são compartilhados pelas pessoas que

fazem parte dela. De fato, a natureza da rede do MST é política e capturada por diversos

atores quando animada pelas ações que o movimento realiza, de modo a ativar pontos

no território nacional onde há disputa pela terra. Enfim, as redes de resistência permitem

o intercâmbio e a negociação dos interesses em jogo, de modo a distribuir custos e

benefícios para que cada participante cumpra os compromissos contraídos, mesmo que

haja diferenças de linhas de ação política entre os participantes da rede.

No caso do MST, as redes políticas sinalizam estratégias em torno da Reforma Agrária,

enquanto parte de um projeto de transformação da sociedade em direção a um modo de

produção socialista. As ocupações realizadas pelo MST, para fins de implantação de

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assentamentos rurais, são o principal fato político que anuncia a permanência da questão

agrária no Brasil. Todavia, vale lembrar que, as contradições sociais também se

apresentam no âmbito dos assentamentos rurais, em áreas de avanço do agronegócio no

Cerrado. Há assentamentos onde a terra é arrendada para o agronegócio. Há também

assentados sem o sentido coletivo do uso da terra. Uso dos lotes rurais para fins de

residência de fim de semana e para a venda ilegal da terra também ocorre. Todavia, a

grande maioria dos assentados busca cumprir a função social da terra. Mas há diversas

dificuldades, após a fase de ocupação de terras.

A localização do assentamento, a qualidade dos solos e da água, o licenciamento

ambiental, a falta de apoio técnico e financeiro e de tradição com a terra podem ser

obstáculos à manutenção dos pequenos produtores. Mas os avanços dos assentamentos

na constituição de áreas de desenvolvimento local já são uma realidade. Há indicadores

demográficos dos dois últimos Censos do IBGE que mostram aumento da população

rural em alguns municípios onde a luta pela terra resultou em assentamentos rurais. O

fim do campesinato parece não se afirmar, apesar das teorias fatalistas que se destacam,

desde o século XIX.

A luta por um modelo de produção agroecológica para os pequenos produtores é uma

das estratégias que se coloca como alternativa ao agronegócio. Em alguns casos, a

urbanização da população rural também se revela como uma via de manutenção da

pequena agricultura familiar promovida pelas populações tradicionais. As articulações

em redes urbanas alteram valores e hábitos, mas podem desvelar estratégias-rede de

resistências ao agronegócio.

De qualquer modo, um dos maiores desafios dos movimentos sociais é a ideologia

geográfica a partir do discurso da sustentabilidade em disputa pelas corporações. Para

elas, sustentabilidade é a metáfora para legitimar o “progresso” com “responsabilidade

social”. No Cerrado, maior área potencial para o agronegócio do Brasil, os capitalistas

se apropriam do discurso de preservação da natureza, a fim de afirmar um

pertencimento aos reclamos ambientais impostos por movimentos ambientalistas e a

sociedade civil, em geral.

Os capitalistas do agronegócio da soja forjam um discurso ambiental através da defesa

da Pegada Ecológica, como indicador de sustentabilidade ambiental para medir e

gerenciar o uso de recursos naturais (terra e água) e estilo de vida, produtos e serviços

através da economia. A proposta de uma Economia Verde também se apresenta como

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mecanismo de mercantilização da natureza sob o discurso de responsabilidade

socioambiental. A proposta de substituição de tecnologias “sujas” por tecnologias ditas

“limpas” não é acompanhada por mudanças socioeconômicas do modo de produção

capitalista.

O discurso da “necessidade de aumentar a produção de alimentos para o mundo”

escamoteia a problemática da redução de áreas de produção da pequena agricultura

familiar de alimentos e da desigual distribuição da produção agropecuária, cujo

resultado se manifesta na fome a que estão submetidos milhões de indivíduos no

mundo.

Uma das questões que se coloca para o agronegócio é unir os reclamos da sociedade por

sustentabilidade socioambiental, a acumulação ampliada dos lucros e as políticas

públicas. A ação dos movimentos ambientalistas e de populações tradicionais interfere

nos interesses das corporações e grandes produtores do Cerrado. Apesar de o Estado ser

capitalista, as resistências se fazem presentes nas políticas públicas. As restrições

impostas pela Área de Reserva Legal dos biomas, o Zoneamento Ecológico-Econômico

e a criação de Territórios Indígenas, Reservas Extrativistas e Unidades de Conservação

e controle de poluentes direcionam as empresas para um processo chamado de “green

wash”, de modo a internalizar vantagens competitivas no âmbito de uma

mercantilização da sustentabilidade socioambiental. Assim sendo, alguns setores

industriais defendem a manutenção da biodiversidade com políticas em prol das

florestas, para fins de uso do potencial dos recursos naturais no consumo urbano. Na

indústria canavieira, há pesquisas para a redução do vinhoto transportado e jogado em

rios. Mas o Cerrado ainda é um dos principais biomas fornecedores de carvão usado

para produzir ferro e aço no Brasil. A relação entre trabalho escravo e siderurgia

avançou no Cerrado e na Caatinga, nos últimos dez anos, segundo dados da ONG

Repórter Brasil.

No que diz respeito ao trabalho escravo, informações da CPT, para o período de 2000 e

2010, revelam denúncias de trabalho escravo nas lavouras de soja do Cerrado. Foram

2.883 casos para um total de 26.800. Isto é, a produção de soja representa 10,7% das

denúncias de trabalho escravo. Mato Grosso, Maranhão e Tocantins são locais de maior

registro de casos (Dados obtidos do projeto PIBIC-CNPq do bolsista Vitor de Moura

Lima). De acordo com Cosandey (2011, p.146), o trabalho escravo na lavoura de soja se

situa na limpeza de antigos pastos quanto na derrubada da mata.

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Em suma, apesar das dificuldades, são as lutas em defesa de novos modelos de vida que

empurram as empresas para um discurso ambiental em termos de efetiva mudança de

padrão produtivo ou apenas enquanto discurso. A defesa do desenvolvimento

sustentável tem sido acompanhada por práticas pouco sustentáveis e não sustentáveis

pelas corporações, que se articulam em redes políticas para assumir o controle dos

recursos naturais. De qualquer modo é preciso reconhecer avanços no padrão produtivo

industrial em direção à redução de impactos ambientais. Se tal postura implica redução

de custos de produção, a sustentabilidade é bem-vinda. O que está no centro é sempre a

reprodução ampliada dos lucros. De qualquer forma, não dá para afirmar que nada tem

sido feito pelas corporações. As corporações precisam dar uma resposta à sociedade

civil, mesmo que seja parcial.

Nesse ponto, vale destacar que, a questão da segurança alimentar parece não fazer parte

dos interesses das corporações, preocupadas em expandir um modo global e

padronizado de se alimentar. A criação de um banco de sementes, que estão

desaparecendo por conta da monocultura de commodities, é uma boa estratégia de

resistência que vem sendo aplicada na Índia pela ativista ambiental Vandana Shiva.

Mas a luta pela afirmação do poder discursivo do agronegócio está em diversas frentes,

tais como no fomento aos “dias de campo”, evento em que são apresentadas as

inovações no modo de produzir e estratégias de defesa dos interesses de produtores e

corporações diante dos limites ambientais da legislação e a ação dos ambientalistas e

movimentos sociais.

Ao contrário do que pensam alguns intelectuais da Geografia Agrária, os capitalistas do

agronegócio não criam apenas um lugar-mercadoria, uma terra de negócio. As

estratégias discursivas e as ações sociais junto às localidades, através de políticas

assistencialistas, apoio à cultura e ao lazer, fazem parte da constituição de um lugar-

habitat do capital, para fins de afirmação de uma imagem de pertencimento territorial

com os lugares. Logo, é preciso repensar algumas afirmações, tais como o fato de o

capitalista ver os lugares apenas como base material, espaço vazio. O cotidiano, o

espaço vivido, as políticas públicas e os conflitos que se manifestam nos lugares são

percebidos pelos empresários, quando da decisão de investimentos locais. O discurso

dos movimentos sociais, que afirma a despreocupação dos capitalistas com os lugares

alvos de seus interesses, não me parece correto. Há sempre uma leitura prévia dos

lugares, mesmo que seja para destruir territórios preexistentes. No caso dos Cerrados, as

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comunidades locais são incorporadas no discurso e estratégias das corporações, mesmo

que isso se mostre de modo excludente ou via inserção precária nos mecanismos de

acumulação de capital.

Além disso, a história do lugar pode ser acionada, para fins de afirmação do ideário de

modernidade veiculado pelo agronegócio e de estratégias de pertencimento com os

lugares. Um bom exemplo é Blairo Maggi, paranaense, ex-governador de Mato Grosso

e ex-presidente do Grupo AMAGGI. Em um dos seus discursos, Blairo declara ser um

“bandeirante mato-grossense”.

No plano da paisagem geográfica, as áreas de Cerrado alteradas pelo agronegócio, o que

significa desmatamento e destruição da fauna e flora, revelam um espaço projetado,

construído e vivido por diversas comunidades distribuídas em áreas de campo e cidades.

A sensação de um contínuo espacial demonstra o grau de integração entre campo e

cidade. As cidades do agronegócio da soja tem seu espaço urbano organizado para

atender a demanda da produção agropecuária e, por sua vez, é afetada pelos ritmos de

produção de commodities e preços internacionais da cadeia grãos-carne.

Ao olhar as cidades e o uso intensivo das áreas agrícolas cria-se a sensação de uma

unidade produtiva acompanhada do discurso desenvolvimentista e do progresso. Nas

cidades do agronegócio da soja no Cerrado, a história é percebida pelos habitantes entre

antes e depois das transformações do agronegócio. A criação de empregos nas cidades,

o discurso da “melhoria dos indicadores sociais”, a implantação de empreendimentos

industriais, centros de pesquisa, armazéns e melhorias da logística de transporte

contribuem para legitimar junto à população a importância do agronegócio. Quem se

coloca contra é visto como inimigo do “progresso” e “estrangeiro”, já que não vivia em

tais cidades antes do “agronegócio moderno” chegar. Assim sendo, a própria população

urbana se coloca como parte da rede política de resistência criada pelos atores

hegemônicos para legitimar o agronegócio. Apesar da existência de áreas da cidade do

agronegócio, onde se distribuem casas precárias, invasões dos sem-teto, desempregados

e ausência de serviços básicos, de um modo geral, as populações urbanas do Cerrado

fazem política de afirmação do agronegócio. Nesse grupo participam professores

universitários, empresários, trabalhadores, donas de casa etc. Consolida-se uma

identidade e uma força cultural de resistência aos ambientalistas e movimentos sociais.

O desafio para os movimentos sociais é imenso: qual é a alternativa para essas cidades

que dependem do agronegócio? Agricultura familiar agroecológica? Expropriação dos

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meios de produção de grandes produtores e industriais? O que significa uma gestão

democrática e planificada dos recursos naturais pelos trabalhadores em geral? Qual é o

modelo de sustentabilidade ambiental urbana com justiça social e garantia das

diferenças entre os indivíduos? O que significa um modelo de equidade e justiça para

economias urbanas locais? Nós estamos pensando em modelo ou modelos alternativos

ao capitalismo? Os modelos propostos são tirânicos ou democráticos? Se for

democrático, qual são o sentido e valor da democracia que defendem os movimentos

sociais? A democracia conservadora pode ser tão tirânica quanto à ditadura. A

constituição de partidos revolucionários da classe dos trabalhadores também pode ser

autoritária. As populações urbanas serão chamadas para decidir sobre seu futuro? O que

os movimentos sociais acreditam ser o melhor para as populações urbanas e rurais é o

que elas querem como modo de vida? Devemos impor um novo contrato social que

equacione a relação entre vontade geral e vontade particular? Que valores isso significa,

de fato, para os movimentos sociais?

De minha parte, não saberia dizer qual é o melhor caminho. Não defendo qualquer

ideologia dominante, seja capitalista, seja socialista, seja anarquista. Penso apenas em

alguns princípios que devem nortear a vida em sociedade, a saber:

1) O fim da pobreza não do ponto de vista capitalista, mas do acesso às

necessidades básicas para a vida entre os homens;

2) Fim do modo de vida baseado no crescimento ampliado do consumo individual

através da dívida pessoal. Tal modelo cria desigualdades sociais e insustentabilidade

ambiental;

3) O fim do crescimento ampliado do PIB-Produto Interno Bruto- como indicador

de qualidade de vida e riqueza de um país. Tal situação é insustentável do ponto de vista

socioambiental, pois gera impactos ambientais e desigualdades entre lugares e

indivíduos. Se tal princípio significa fim do capitalismo, que esse fim seja bem-vindo.

4) Fim do capitalismo, pois tal sistema não tem compromisso com a vida. O

objetivo dos capitalistas é sempre a reprodução ampliada do capital sob os auspícios da

propriedade privada dos meios de produção.

5) Observar que, as ideologias de confronto com o capitalismo podem ter conteúdo

e práticas imperialistas autoritários e de desrespeito aos direitos humanos. A experiência

imperialista socialista soviética é um exemplo.

6) Direito à vida na sua diversidade de pensamento e modo de ser. Sei que isso é

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difícil, pois alguns modos de ser e viver são nocivos à vida para indivíduos que deles

não façam parte. Temos dificuldade de lidar com aqueles que defendem valores morais

e práticas que nos parecem nocivas à vida. A luta por justiça social pode caminhar junto

com a intolerância. Enfim, quaisquer que sejam as dificuldades, os problemas sociais

impostos pela ordem capitalista demandam reações e resistências de grupos diversos.

Durante a Conferência das Nações Unidas, chamada Rio+20, as tensões entre uma

defesa capitalista da Economia Verde e as alternativas ambientais sustentáveis

apresentadas por movimentos sociais foram marcas visíveis dos desafios em curso. Os

conflitos entre a racionalidade territorial do agronegócio e a racionalidade territorial

campesina foi um dos destaques da Conferência.

Do meu ponto de vista, defendo a transição do agronegócio para formas de ocupação e

manejo dos solos fundamentais à valorização da biodiversidade dos lugares e manejos

agroecológicos. Isso porque já está provado que um agroecossistema organizado em

bases agroecológicas possibilita articulações funcionais com os ecossistemas naturais

nos quais estão inseridos. Nesse caso, a força dos lugares se coloca por meio das

dinâmicas sociais, em termos de saberes e inovação, que atendam a requisitos locais. A

agroecologia implica manutenção de agroecossistemas complexos, o que significa

diversificação de culturas, rotação e sucessão de espécies. Quando se pensa em

sustentabilidade ambiental, a agroecologia possibilita redução do uso de energia fóssil e

de água. O manejo da agricultura sugere ainda conservar a fertilidade dos solos sem uso

de insumos externos e resistência à erosão dos solos. Assim sendo, o maior desafio à

sustentabilidade socioambiental não é técnico-cultural, mas político. O impacto do

agronegócio sinaliza para perda da cultura camponesa e introdução de soluções

universais para a agricultura baseadas em pacotes da Revolução Verde. O verde aqui

funciona como elemento simbólico de legitimação e pertencimento à afirmação de novo

modo de produzir no espaço agrícola. Logo, não poderia ser chamada de Revolução

Vermelha. De qualquer modo, a questão central está posta: quais são as condições para

superação do agronegócio pela Agroecologia, quando se pensa a organização da

sociedade capitalista globalizada por forte domínio da população urbana vis-à-vis a

população camponesa? Ainda não sei qual seria a melhor resposta.

No plano teórico, há a proposta de um metabolismo agrário, ou seja, a aplicação do

metabolismo socioecológico a agroecossistemas, para fins de sustentabilidade agrícola.

De acordo com o professor Manuel Gonzalez de Molina, pesquisador da Universidade

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Autônoma do México, e autor do livro “Metabolismo, naturaleza e historia: hacia uma

teoria de las transformaciones socioecológicas”, a abordagem metabólica na agricultura

permite uma alternativa produtiva que leva em conta a crise ambiental, as escalas

geográficas (do cultivo, da propriedade rural até aos mercados globais). De fato, a

proposta metabólica se afirma como ferramenta política à Agroecologia, de modo a

apontar para os movimentos sociais algumas linhas de ação e pontos críticos do sistema

agroalimentar. Isso porque a metodologia metabólica busca descrever os aspectos que

envolvem desde a lavoura até a mesa do consumidor. Nessa trajetória, verificam-se

problemas de insustentabilidade agroalimentar, os atores hegemônicos que se

beneficiam do modelo, e sinalizam-se para políticas públicas agroecológicas.

Diante de tantas questões, avanços, recuos e impasses para os movimentos sociais, os

capitalistas do agronegócio se antecipam e redirecionam suas estratégias-rede. As

corporações já estão mobilizadas a dar uma resposta à sociedade, em geral, e às redes

políticas de resistência aos seus interesses, em particular, mesmo que seja pela força.

Isso porque além do poder discursivo-ideológico da sustentabilidade e responsabilidade

social, há o exercício coercitivo do poder através da violência no campo. Informações

da Comissão Pastoral da Terra alertam para os casos de assassinatos, expulsão e

escravidão de produtores rurais e populações tradicionais, em geral.

Se situarmos tal debate no plano teórico, diríamos que a resistência promovida pelos

movimentos sociais é resultado de relações de poder engendradas pelo agronegócio. É

uma possibilidade de criar espaços de luta e de transformação social. Sendo também

poder, a resistência deve ser inventiva, móvel e produtiva, vir “de baixo” e se distribuir

estrategicamente, conforme assinala Foucault (2004: 240-42), no livro “ Microfísica do

Poder”.

Assim sendo, os movimentos sociais têm uma natureza coextensiva e contemporânea às

relações de poder no âmbito do capitalismo. Isso porque é sempre possível modificar a

dominação em determinadas condições a que ficam submetidos grupos sociais diversos.

De certa maneira, a resistência ao agronegócio desvela identidades (Povos do Cerrado,

Povos da Floresta), ideologias, discursos, geopolítica singular, normatização, estratégias

e rebatimentos territoriais, que se afirmam na constituição de reservas extrativistas, luta

por território quilombolas, demarcação de terras indígenas e assentamentos agrários,

criação de Unidades de Conservação, dentre outras conquistas de direitos e/ou poder.

A valorização das identidades comunitárias e a formação de redes comunitárias, para

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fins de distribuição e comercialização de produtos, são acompanhadas pela defesa de

saberes tradicionais destinados à agroecologia. A resistência também se verifica nas

festas, ritos e práticas educacionais que anunciam a existência de um rural transmissor

de valores geracionais. Daí os esforços na manutenção das raízes, memória e heranças

culturais das populações tradicionais como estratégia de resistência e valorização de

identidades territoriais, cuja racionalidade e valor da natureza estão contrários à

racionalidade imposta pelo agronegócio. A luta pela terra é o acesso à justiça e ao

reconhecimento de viver na diferença cultural através de modos de vida alternativos ao

capitalismo.

Dentre as redes políticas de resistência que defendem a biodiversidade do Cerrado e o

uso sustentável do bioma, destaca-se a Rede Cerrado. Criada em 1992, ela integra mais

de 300 entidades políticas envolvidas com a defesa socioambiental do Cerrado, tais

como indígenas, trabalhadores rurais, quilombolas, geraizeiros, quebradeira de cocos,

pescadores, ONG,s nacionais e internacionais, associação de trabalhadores rurais,

cáritas diocesana, Centro de Desenvolvimento Agroecológico do Cerrado (CEDAC),

Centro de Cooperativa Agroextrativista do Maranhão, Fundação Pró-Cerrado, Centro de

Movimentos Populares do Vale do Jequitinhonha, Centro de Estudos e Exploração

Sustentável do Cerrado etc. Há uma coordenação administrativa formada pelo Centro de

Agricultura Alternativa do Norte de Minas Gerais, em Montes Claros, e o Grupo de

Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado. A maior preocupação da rede é enfrentar

as estratégias do agronegócio em áreas de expansão da fronteira agrícola e/ou áreas de

fronteira consolidada.

Outra rede política importante é a da Via Campesina,que é uma organização

internacional de pequenos e médios agricultores, criada em 1992, na Nicaraguá, no

contexto do Congresso da União Nacional de Agricultores e Pecuaristas (Unión

Nacional de Agricultores y Granaderos-UNAG. As ações políticas destacam estratégias

de defesa da soberania alimentar, biodiversidade, reforma agrária, ocupações de terras,

crédito e dívida externa, tecnologia, participação das mulheres, entre outros. A rede

política é formada, no Brasil, pelo MST, MPA-Movimento dos Pequenos Agricultores,

MAB- Movimento dos Atingidos por Barragens, MMC-Movimento de Mulheres

Camponesas, FEAB-Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil, CPT, PJR-

Pastoral da Juventude Rural, ABEEF- Associação Brasileira dos Estudantes de

Engenharia Florestal, CIMI- Conselho Indigenista Missionário, pescadores artesanais. A

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Via Campesina busca articulação e fortalecimento dessas parcerias constituídas, de

modo a promover linhas de ações, através de protestos contra empresas do agronegócio,

transgenia e capital financeiro global, e defesa de sistema alimentar local e modos

agroecológicos de produção agroalimentar.

Todavia, a luta por direitos, às vezes, se faz através de coalizões políticas entre sindicato

de trabalhadores rurais, ONG’s e corporações, como é o caso da Moratória da Soja.A

moratória da soja é mais um momento em que uma rede política se estabelece a partir

das resistências e pressões sociais. Em abril de 2006, o documento do Greenpeace,

“Comendo a Amazônia", alertava para o fato de a indústria internacional do setor

agroalimentar estar articulada ao desmatamento, à grilagem, ao trabalho escravo e à

violência no campo. Em julho do mesmo ano, as corporações se unem em torno de uma

estratégia para os impactos das denúncias junto à opinião pública. Através da ABIOVE-

Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais- e da ANEC- Associação

Nacional dos Exportadores de Cereais- as corporações se comprometeram em implantar

um programa de governança, que objetivasse não comercializar a soja da safra oriunda

de áreas que fossem desflorestadas dentro do Bioma Amazônico, após outubro de 2006.

Assinaram o acordo as empresas associadas, tais como AMAGGI, CARGILL, BUNGE,

ADM, DREYFUS, ABC INCO e IMCOPA. A iniciativa tinha a duração de 2anos e

inaugurou o chamado “ambientalismo empresarial”, através de normas de conduta,

protocolos e acordos e regulações. Os acordos apontaram alguns impactos

subsequentes: 1) acordo entre agroindústria e ambientalistas; 2) constituição de uma

rede formada por corporações, movimentos sociais e ONG’s (Greenpeace, IPAM, TNC

e WWW Brasil, Amigos da Terra, IMAZON, IMAFLORA) e Sindicato dos

Trabalhadores Rurais.

A rede política em questão reflete um esforço entre produtores, processadoras,

fornecedores de soja e sindicato, de modo a atender os interesses dos atores que

participam da coalizão. Os interesses se resumem à manutenção de nichos de mercados

internacionais, em face das barreiras ambientais, e aos objetivos de criar limites à

expansão da soja e aos problemas sociais dela decorrentes. Todavia, as questões ligadas

à propriedade privada não foram abordadas e acordadas. As iniciativas resultaram ainda

na criação da Associação Internacional de Soja Responsável (RTRS), sob a orientação

da legislação suíça. A diretoria da RTRS é formada pelo GRUPO AMAGGI,

WWF.Brasil, ABN AMRO, Fundapaz e Solidaridad. Apesar de qualquer crítica que se

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possa fazer a tais coalizões políticas, vale lembrar que essas redes políticas

institucionalizadas não estão deslocadas do conjunto dos conflitos e das pressões sociais

decorrentes dos impactos socioambientais do agronegócio.

Em direção as últimas considerações Em linhas gerais, a rede política dos movimentos sociais de resistência ao agronegócio

da soja é territorial e dialógica, pois se afirma a partir das forças dos lugares e das

territorialidades ali constituídas e é por elas afetada. É também rizomática, já que o agir

político demanda linhas de ação em que atores-redes são acionados nos mais dispersos

lugares, de acordo com os interesses e estratégias em jogo. A configuração da rede

territorial expressará o sentido das entradas e saídas de atores na rede em face dos

conflitos de territorialidades, temporalidades e racionalidades distintas. Neste ponto, tal

rede política está sempre no devir, se afirmando na diferença diante dos interesses e

impactos provocados pelo agronegócio. A rede política das resistências também

configura um quadro de assimetria de poderes, visto que as parcerias são feitas de

acordo com os recursos de poder disponíveis por cada um dos atores que da rede

participam. Exemplo claro é a organização em rede política do MST.

Na rede política, observa-se que o poder é menos uma propriedade de algum indivíduo

ou grupo social do que uma estratégia e seus efeitos são atribuídos às disposições, às

manobras, às táticas e aos funcionamentos, conforme assegura Deleuze (2005:41). A

forma como o poder é exercido pelas corporações do agronegócio e pelos movimentos

sociais de resistência é bem sinalizador para o campo de forças que se estabelece.

No entanto, apesar dos conflitos e tensões entre os movimentos sociais e o agronegócio,

a rede política do agronegócio tem se afirmado e também promove estratégias

individuais e coletivas mais inclinadas à busca de recursos de poder, pois são eles que

permitem a dominação no encadeamento e coordenação de um ou mais atores. A

organização estratégica contra os movimentos sociais é parte integrante das alianças

entre latifundiários, corporações, prefeitos, sindicatos patronais, etc. De fato, sempre

ocorre uma distribuição dos recursos de poder entre esses atores e intermediação dos

objetivos em jogo.

A rede política se revela, portanto, pela interação entre recursos de poder e

representação de interesses, conforme assinala Lechner (1996, p.54). Para ele, as redes

políticas são instâncias e procedimentos de coordenação horizontal e descentralizada.

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Configura-se, portanto, um arranjo, isto é, uma trama traçada por ordens e decisões, na

qual um grupo social compartilha recursos de poder e articula interesses coletivos e

particulares. O resultado é a recomposição dos lugares em novas bases territoriais e

temporais.

Assim sendo, a força dos lugares parece impactada pela ideologia do

desenvolvimentismo atribuído ao agronegócio e pelas alternativas colocadas pelos

movimentos sociais. A mobilização dos Povos da Floresta e dos Povos do Cerrado

constitui uma resposta política para a permanência de modos de vida alternativos e

tradicionais. Nesse campo de forças entre grandes produtores, corporações e

campesinato, o agronegócio da cadeia soja-grãos na Amazônia e no Cerrado tem

avanços e recuos, em face das territorialidades que resistem à corporatização dos

territórios. Porém, o processo está em curso. Daí a importância do debate acadêmico e

social sobre as formas de apropriação e produção capitalista de territórios em “áreas

frágeis, do ponto de vista socioambiental”, mas ricas de alternativas ao ordenamento

territorial das corporações e favoráveis às diversas possibilidades de vida.

Referências COSANDEY, José Victor Juliboni. A Cartografia da Violência no Campo em Mato Grosso. In: SILVA, Carlos Alberto Franco (org). Redes Políticas Territoriais: estratégia, conflitos e violência. Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2011, pg.113-150. DELEUZE, Gilles. Foucault. Lisboa: Edições 70, 2005 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro:Graal, 1981/2004. LECHNER, N. Reforma do Estado e condução política. Revista Lua Nova, n.37. São Paulo: CEDEC, 1996. LIMA, Ivaldo. Redes Políticas Territoriais e Recomposição do Território. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Geografia. Niterói: UFF, 2005. PAULILLO. Luiz Fernando. Redes de Poder & Territórios Produtivos. São Carlos: RIMA/UFSCAR, 2000. SILVA, Carlos Alberto Franco da; SANTOS, Arthur Pereira; NASCIMENTO, Luciano Bomfim. Ensaio sobre o conceito de rede política territorial. In; SILVA, Carlos Alberto Franco da (org). Redes Políticas Territoriais: estratégias, conflitos e violência. Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2011, pg. 15-34.