as quatro estações: mimeses -...

136
e Públio Athayde Universidade Federal de Ouro Preto Instituto de Filosofia, Artes e Cultura 2007 As Quatro Estações: Mimeses

Upload: dinhtruc

Post on 05-Aug-2018

263 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • ePblioAthayde

    UniversidadeFederaldeOuroPreto

    InstitutodeFilosofia,ArteseCultura

    2007

    AsQuatroEstaes:Mimeses

  • Pblio Athayde

    As Quatro Estaes: Mimeses.

    Monografia apresentada como trabalho de concluso do XV Curso de Ps-Graduao Lato Sensu em Cultura e Arte Barroca, Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto; redigida sob orientao do Professor Doutor Joo Adolfo Hansen.

    UFOP/IFAC Ouro Preto

    2007

  • 1

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Capa:Primavera; POUSSIN, Nicolas. c1630.

  • 2

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    La Peinture nest point faitepour tre vu de prs, non plusquelaposie.RogerdePilesLhomme, tout menteur quilest, ne hait rien tant que lemensonge, et lemoyen le pluspuissant pour attirer saconfiance,cestlasincrit.RogerdePiles

  • 3

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Dedico esta monografia e oPrograma Iconogrfico AsQuatro Estaes minhame,dona Laura Vianna Athayde,como expresso mxima doamor filial e tributo pelocontnuo estmulo aocrescimentopessoal, intelectualeartstico.

  • 4

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Meusmuitopenhoradosagradecimentosaossenhoresprofessores:Dr.JooAdolfoHansen,orientador,Dr.RomeroAlvesFreitaseJosArnaldoColhodeAguiarLima,pelosprstimoseemprstimosdeseussaberes.AgradecimentoespecialssimoaWillOliveirapelaparcerianapinturaenasquatroestaes.

  • 5

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Sumrio ndices ........................................................................................................................................ 7

    Resumo ....................................................................................................................................... 9

    Abstract ..................................................................................................................................... 10

    1 Descrio ......................................................................................................................... 11

    2 Demonstrao .................................................................................................................. 152.1 Significao ............................................................................................................................... 28

    2.2 Universalidade .......................................................................................................................... 30

    3 Mimese ............................................................................................................................. 333.1 Imitao: Antnio Vivaldi ......................................................................................................... 38

    3.1.1 Os sonetos de Vivaldi ..................................................................................................................... 413.1.2 Os Concertos As Quatro Estaes Opus 8 ................................................................................... 473.1.3 Exposio ........................................................................................................................................ 50

    3.2 Emulao: poesia contempornea ............................................................................................. 56

    4 Retrica ............................................................................................................................ 704.1 Inveno .................................................................................................................................... 75

    4.1.1 Campos ureos ................................................................................................................................ 784.1.2 Temas locais ................................................................................................................................... 814.1.3 Roteiro adaptado ............................................................................................................................. 81

    4.2 Disposio ................................................................................................................................. 834.2.1 Suportes .......................................................................................................................................... 834.2.2 Palheta ............................................................................................................................................ 864.2.3 Estratificao .................................................................................................................................. 91

    4.3 Elocuo .................................................................................................................................... 934.3.1 Programao visual ......................................................................................................................... 934.3.2 Fundos das telas .............................................................................................................................. 98

    4.4 Memria .................................................................................................................................. 1004.4.1 Produo ....................................................................................................................................... 1014.4.2 Produto.......................................................................................................................................... 106

    4.5 Ao ........................................................................................................................................ 1074.5.1 Arte ............................................................................................................................................... 1084.5.2 Potica .......................................................................................................................................... 1104.5.3 Prolepse ........................................................................................................................................ 113

    5 Cronogramas ................................................................................................................. 117

    6 Bibliografia .................................................................................................................... 1186.1 Livros, teses, dissertaes e artigos ......................................................................................... 118

    6.2 Stios e arquivos de Internet .................................................................................................... 122

    6.3 Dicionrios .............................................................................................................................. 124

    7 Anexos ........................................................................................................................... 1267.1 Poemas de Vivaldi em verses brasileiras .............................................................................. 126

  • 6

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    7.2 As Quatro Estaes em verses portuguesas........................................................................... 1277.2.1 A Primavera .................................................................................................................................. 1277.2.2 O Vero ......................................................................................................................................... 1277.2.3 O Outono ...................................................................................................................................... 1277.2.4 O Inverno ...................................................................................................................................... 127

    7.3 Ascoltando Vivaldi .................................................................................................................. 128

    7.4 Primeiros estudos da composio ........................................................................................... 1297.4.1 Primavera ...................................................................................................................................... 1297.4.2 Vero ............................................................................................................................................ 1297.4.3 Outono .......................................................................................................................................... 1297.4.4 Inverno .......................................................................................................................................... 129

    7.5 Os personagens ....................................................................................................................... 1307.5.1 Sinh Olmpia ............................................................................................................................... 1307.5.2 Ben da Flauta .............................................................................................................................. 1317.5.3 Tiradentes ..................................................................................................................................... 1327.5.4 Aleijadinho ................................................................................................................................... 133

  • 7

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    ndices

    Quadro Sintico 1-1 Descrio ............................................................................................................... 14Quadro Sintico 2-1- Interdisciplinaridade ............................................................................................... 20Quadro Sintico 2-2 Mimese & Metfora .............................................................................................. 22Quadro Sintico 2-3 Transdisciplinaridade ............................................................................................ 26Quadro Sintico 3-1- Relao em Plato................................................................................................... 33Quadro Sintico 3-2 Perodo das estaes. ............................................................................................. 41Quadro Sintico 3-3 Quatro Estaes: movimentos e mtrica. .............................................................. 56 Quadro 1 Roteiros literrios e musical ................................................................................................... 74Quadro 2 Alegorias Primavera e Vero ............................................................................................... 76Quadro 3 Alegorias Outono e Inverno ................................................................................................. 77Quadro 4 Temas Locais .......................................................................................................................... 81Quadro 5 Roteiro adaptado ..................................................................................................................... 82Quadro 6 In coloris ................................................................................................................................. 90Quadro 7 Suporte, estratificao e palheta. ............................................................................................ 92 Foto 1- Detalhe de tela em algodo cru. .................................................................................................... 84Foto 2- Detalhe de tela em linhagem. ........................................................................................................ 84Foto 3- Detalhe de tela em juta. ................................................................................................................. 84Foto 4- Detalhe de tela em TNT. ............................................................................................................... 84Foto 5 Sinh Olmpia............................................................................................................................ 130Foto 6 Olmpia Cota ............................................................................................................................. 131Foto 7 Ben da Flauta ........................................................................................................................... 131 Ilustrao 1 As Quatro Estaes coroando Cronos. ALTOMONTE, Bartolomeo. ..................................... 30Ilustrao 2 Capa da publicao de Vivaldi. .......................................................................................... 38Ilustrao 3 Primavera: VAN DE VELDE, Jan. 1617. ................................................................................ 40Ilustrao 4 Vero: VAN DE VELDE, 1617. ............................................................................................. 40Ilustrao 5 Outono: VAN DE VELDE, 1617. ........................................................................................... 40Ilustrao 6 Inverno: VAN DE VELDE, 1617. ........................................................................................... 40Ilustrao 7 Alegoria das Quatro Estaes. MANFREDI, Bartolomeo c.1610 leo sobre tela, 134 x 91,5

    cm. Dayton Art Institute, Dayton ..................................................................................................... 42Ilustrao 8 Primavera, ou O Encontro: van de Venne, Adriaen Pietersz. ................................................ 43Ilustrao 9 Vero, ou A Saudao: van de Venne, Adriaen Pietersz. ................................................... 44Ilustrao 10 Outono, ou A Conversa: van de Venne, Adriaen Pietersz. ............................................... 45Ilustrao 11 Inverno: VAN DE VENNE, Adriaen Pietersz. ...................................................................... 46Ilustrao 12 Primavera: MUCHA, Alphonse. 1890. ............................................................................... 47Ilustrao 13 Outono: MUCHA, Alphonse. 1890. .................................................................................... 48Ilustrao 14 Vero: MUCHA, Alphonse. 1890. ...................................................................................... 48Ilustrao 15 Inverno: MUCHA, Alphonse. 1890. ................................................................................... 49Ilustrao 16 Chafariz da Barra. ATHAYDE, P. Primavera, 1, Allegro. Detalhe da produo. ................ 57Ilustrao 17 Chafariz do Raimundo Nonato Athayde. ATHAYDE, P. Primavera, 1, Allegro. Detalhe da

    produo. ......................................................................................................................................... 57Ilustrao 18 Chafariz da Coluna. ATHAYDE, P. Primavera, 2, Largo. Detalhe da produo. ................ 58Ilustrao 19 Chafariz do Bom Jesus. ATHAYDE, P. Primavera, 2, Largo. Detalhe da produo. .......... 58Ilustrao 20 Chafariz do Pilar. ATHAYDE, P. Primavera, 3, Allegro. Detalhe da produo. ................. 59Ilustrao 21 Chafariz da Glria. ATHAYDE, P. Primavera, 3, Allegro. Detalhe da produo. .............. 59Ilustrao 22 Ponte de Antnio Dias. ATHAYDE, P. Vero, 2, Adagio. Detalhe da produo. ............... 61

  • 8

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Ilustrao 23 Helio e Feton e as Quatro Estaes Poussin, Nicolas. leo sobre tela, c1629-1630. Gemaldegalerie, Berlin. ................................................................................................................... 88

    Ilustrao 24 Palheta de Will Oliveira ao pintar O Vero (2007). .......................................................... 89Ilustrao 25 Emblema CVIII In coloris. ALCIATO, A. ...................................................................... 90Ilustrao 26 AscoltandoVivaldi. FURN, 2005. ................................................................................... 128Ilustrao 27 Tiradentes. TURIN, Joo. ................................................................................................. 132Ilustrao 28 Aleijadinho. VENTURA, Euclsio Pena. ........................................................................... 133

  • 9

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Resumo Este trabalho apresenta as mimeses transversais entre duas leituras

    contemporneas de duas obras do sculo XVIII e discute a inveno baseada em

    emulaes sobre As Quatro Estaes, de Antonio Vivaldi. O engenho focado um

    conjunto pictrico capaz de representar simultaneamente as Quatro Estaes como

    ciclo temporal e metfora das fases da vida. A composio pictrica integra elementos

    formais da iconografia antiga a elementos da linguagem plstica contempornea tendo

    como referenciais: a iconografia de Cesare Ripa e o trabalho de Amlcar de Castro.

    A proposta inclui aspectos transdisciplinares entre poesia, a msica e a pintura.

    Uma das leituras, a literria, feita nos ltimos anos do sculo passado, e outra o

    Programa Iconogrfico, mais recente ainda, dos primeiros anos do XXI. Essa

    sobreposio de mimeses, alm da emulao entre artes distintas, compreende a

    transversalidade da leitura interpretativa.

    O objetivo do Programa Iconogrfico em questo no foi fazer doutrina da

    percepo sensorial, esttica ou intersemiolgica. A pretenso foi a da produo

    artstica. Ao cabo do processo, essa monografia discute a investigao que resultou na

    pintura e os resultados dela.

  • 10

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Abstract

    This work presents the transversal mimeses between two contemporaries

    readings of two works of the XVIII century and argues the invention based on

    emulations on the Antonio Vivaldis Four Seasons. The focus is on the pictorial set that

    represents simultaneously the Four Seasons as both secular cycle and metaphor of the

    phases of the life. The pictorial composition integrates formal elements of the antiques

    iconography to the plastic contemporary language; references: Cesare Ripas

    iconographies and the work of Amlcar de Castro. The proposal includes

    transdisciplinary aspects among poetry, music and painting. One of the readings is the

    literary ones, which was presented in the last years of the XX century. Another one was

    the Iconographic Program, which one is presented in the first years of the XXI century.

    This mimeses overlapping, besides this emulation among distinct arts, understands the

    transversality of the reading. The objective of the Iconographic Program was not to

    make doctrine of the sensorial perception, aesthetic or semiotic, it was the artistic

    production. To the handle of the process, this monograph argues the inquiry that

    resulted in the painting and its results.

  • 11

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    1 Descrio1

    Esta monografia versa mimeses transversais 2 entre diferentes manifestaes

    artsticas do sculo XVIII e atuais, discute a inveno baseada em emulaes sobre um

    tema restrito: As Quatro Estaes.

    O engenho focado, analisado e discutido o de um conjunto pictrico cuja arte,

    retrica e potica, teria sido capaz de representar simultaneamente um Programa

    Iconogrfico das Quatro Estaes como ciclo temporal e metfora das fases da vida

    alm de juntar aos elementos universais do mote a viso contempornea sob o ponto de

    vista do autor.

    Essa pintura , a um s tempo, produto da mimese 3 de obras literrias e

    musicais e expresso de anlise visual das metforas naquelas obras. Procurou-se, na

    composio, a integrao dos elementos formais da iconografia a elementos da

    1 Os ttulos dos captulos deste trabalho se inspiram na antiga retrica, mas foram tomados em sentido

    lato. Descrio, aqui emulado apenas o sentido de descriptio, sem a amplitude de -, cujo sentido completo se expressa pelo termo exposio. Demonstrao ser empregado adiante no sentido de demonstrato, sem necessria referncia a ou . Mimese ser empregado como referncia s fontes que emularei. Retrica, elocuo e disposio sero termos empregados no sentido retrico prprio.

    2 Vide transversalidade p. 35. 3 Mimese em retrica: figura em que o orador, usando discurso direto, imita outrem, na voz, no estilo ou

    nos gestos; literatura: recriao, na obra literria, da realidade, a partir dos preceitos platnicos, segundo os quais o artista, ao dar forma matria, imita o mundo das Idias [ em ARISTTELES, na Potica (XXI-128), que se encontra a primeira teorizao acerca desse procedimento da arte; no entanto, para este filsofo, a mimese seria a imitao da vida interior dos homens, suas paixes, seu carter, seu comportamento (idem, II e III)]; literatura: a partir do Classicismo (s. XV), princpio que orientou os artistas quinhentistas e seiscentistas que acreditavam ter a arte greco-latina qualidades superiores, devendo por isso ser imitada. HOUAISS.

  • 12

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    linguagem plstica contempornea, tendo-se como referenciais bsicos daqueles a obra

    de Cesare RIPA4 e destes o trabalho de Amlcar de Castro.

    A amplitude da proposta reside em ela incluir, na construo do Programa

    Iconogrfico, aspectos transdisciplinares5 entre poesia, msica e pintura. A retrica do

    Programa pautada pelos concertos grossos As Quatro Estaes, de Antnio

    VIVALDI6, como eixo, subsidiado pelos quatro sonetos atribudos a esse mesmo autor e

    que teriam precedido e inspirado a composio musical, cada um como referncia para

    uma das Estaes.

    Subsidiariamente ainda, mas vistos como roteiro do subtexto, foram focados os

    12 sonetos da mesma autoria que o Programa Iconogrfico em pauta, tambm

    intitulados As Quatro Estaes, compostos h pouco mais de uma dcada7, inspirados

    nos concertos de Vivaldi, porm sem conhecimento prvio de seus poemas. No caso

    desta poesia, cada soneto se remete a um dos movimentos daqueles concertos.

    No puderam deixar de ser consideradas, tangencialmente ou ilustrativamente,

    inmeras outras obras de arte sobre o tema das quatro estaes, dada a extrema

    recorrncia do mote e constante intercomunicao entre os diferentes produtos.

    Portanto, este trabalho constar da apresentao e discusso focadas em duas

    leituras contemporneas de duas obras do sculo XVIII. Uma das leituras, a literria,

    4 RIPA, 1593. 5 Vide Transdisciplinaridade p. 19. 6 VIVALDI, 1725. 7 In ATHAYDE, 2001.

  • 13

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    feita nos ltimos anos do sculo passado, e outra o Programa Iconogrfico, mais

    recente ainda, dos primeiro anos do XXI.

    Como a prpria proposta de VIVALDI8, a do Programa Iconogrfico teve o

    propsito de fazer Il Cimento dellArmonia e dellInvenzione, mas desta vez com

    diferente carga interpretativa e expressiva, o que no descartou o fato de que, de resto,

    em qualquer desempenho contemporneo da msica ou de qualquer outra manifestao

    esttica ocorre o mesmo apenas que a interpretao se deu pela expresso plstica

    estendida em todo um Programa Iconogrfico to complexo ou to simples quanto

    os programas musical e literrios precedentes. Programa dotado de discurso prprio,

    mas completamente conectado s obras emuladas.

    O interesse pelo tema surgiu quando, em Vitria (ES), meados da dcada de 90

    recm passada, uma audio de As Quatro Estaes (Vivaldi) interpretada pela

    sinfnica local de recursos muito modestos sob a batuta do maestro Sergio Magnani,

    apresentou tanto brilho, tanto vigor, tanto frescor, dinamismo e eloqncia que causou

    muito vvida impresso.

    O fato que se tratava de uma pea absolutamente conhecida, um popular do

    erudito, e de uma orquestra com srias limitaes, em todos os aspectos. Mas o maestro

    Magnani teve o condo (mais que a batuta) de dirigir os msicos em interpretao

    singularmente boa.

    8 VIVALDI, 1725.

  • domn

    explor

    desemp

    Maestr

    ATHAYDE

    A questo

    io da tcni

    ada, to d

    penho de a

    ro.

    AsQua

    Osquatroconcertosde

    Vivaldi

    OsquatrosonetosdeVivaldi

    E, Pblio. As Q

    que inquie

    ica e dos re

    difundida e

    absoluto br

    atroEsta

    Outr

    Os12sodeAtha

    OsquadrBlasenbe

    AinterpredeMag

    Quatro Esta

    etou, desde

    ecursos dis

    e de ela ap

    rilhantismo

    Quadro Sin

    aes

    rasobra

    netosayde

    rosdeerghe

    etaognani

    O

    Pri

    es: Mimeses.

    aquela poc

    sponveis pa

    presentar t

    sob a dire

    tico 1-1 D

    Vivaldi

    asrelac

    Progra

    imavera V

    Ouro Preto: U

    ca, foi a cap

    ara recriar

    tanta qualid

    eo de um

    escrio

    cionada

    maIcon

    ero Out

    UFOP/IFAC,

    pacidade in

    uma obra

    dade simpl

    m artista do

    s

    nogrfic

    tono Inve

    2007.

    nterpretativa

    de arte j

    lesmente p

    o jaez daqu

    co

    rno

    14

    a, o

    to

    pelo

    uele

  • 15

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    2 Demonstrao

    A proposta deste trabalho inclui discutir diversos graus de mimese9 sobrepostos,

    como de resto caracterstico se estabelecer uma cadeia contnua de referncias entre

    signos nas artes discretas, estabelecendo o vnculo de auctoritas, virtualmente

    imprescindvel ao decoro setecentista e assimilado no engenho esttico moderno aqui

    analisado. Essa sobreposio de mimeses, alm da emulao entre artes distintas,

    compreende a transversalidade10 da leitura interpretativa.

    A emulao entre as artes, preconizada desde a antiguidade, era composta por

    procedimentos mimticos que, inclusive, ordenavam os efeitos de uma arte em outra,

    visando o amplo alcance das funes retricas: ensinar, agradar e convencer.

    Dentre as emulaes da proposta, a mais importante foi a que, partindo dos

    quatro concertos de Vivaldi, As Quatro Estaes, resultaram no programa iconogrfico

    As Quatro Estaes, analisado mais frente. Partiu-se da msica por ser a arte imaterial

    e mais representativa da abstrao de temas.

    9 Vide Mimese p. 33. 10 Vide transversalidade p. 35.

  • 16

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    O objetivo da representao visual de obras musicais e poesia o de recriar-lhes

    interpretaes, ampliar-lhes a acessibilidade por um cdigo mais universal que a lngua

    escrita e que interaja complementarmente ou subsidiariamente msica. Amplifica-se a

    acessibilidade pela extenso sensorial, difundindo

    aquelas obras de arte pela pluralidade de mdias,

    permitindo aperfeioar a fruio alm do

    hedonismo.

    A pintura permite, assim como qualquer

    texto, diversos graus de acessibilidade, de acordo

    com a ilustrao e cultura do receptor. A

    universalidade do cdigo no significar unicidade

    interpretativa nem uniformidade afetiva.

    O objetivo do Programa Iconogrfico em

    questo no foi fazer doutrina da percepo

    sensorial, esttica ou intersemiolgica. O propsito

    foi o de esquecer a classificao e ir prtica.

    Abandonar os modelos e aderir a eles. Abandonar

    como simplificao e aderir como referncia. Por

    isso mesmo, uma srie de painis a leo, no uma tese.

    A msica sempre procurou

    mimetizar (no sentido

    aristotlico) aspectos da natureza

    compatveis com sua prpria

    natureza. Uma vez que o som

    imaterial, sua perspectiva de

    mimese mais proeminente

    sempre foi a representao de

    sentimentos, estados de esprito,

    climas e sensaes, que

    compartilham deste estado de

    imaterialidade. Assim foi toda a

    msica aristocrtica da

    renascena e barroco, assim a

    msica religiosa, a msica para

    fins festivos, militares, para

    dana, sem falar no romantismo,

    a prpria cano popular, etc.

    Toda a msica assim constituda,

    cuja mimese era imaterial e se

    voltava para a prpria msica, foi

    chamada msica absoluta.

    (SALLES, 2002.)

  • 17

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    A pretenso foi a da produo artstica. No era fazer cincia, no seria esta a

    proposta, ainda que houvesse uma investigao metdica da qual resultou a base

    cognitiva para a produo material, conhecimento como meio e no fim.

    Ao cabo do processo, essa monografia discute a investigao e os resultados

    dela, apresentados materialmente como Programa Iconogrfico das Quatro Estaes,

    uma inveno polissmica, subsuno a meta-referncias retricas sublimando-as na

    autofagia do modelo alheio categorizao aristotlica, mas fiel a sua estrutura. Aceita-

    lhe os fundamentos, mas nega-lhe as conseqncias.11

    A compreenso ampla da textualidade, a ser alcanada pelo recurso das

    multimdias, no , absolutamente, novidade. Assim como as emulaes na produo

    artstica no o so. A homologia parte necessria da retrica e o que se esteve

    buscando. O exerccio consistiu em aplicar essas tcnicas com eficcia. Algum tipo de

    sinestesia, no no sentido prprio fenmeno perceptivo bastante estudado, que

    consiste na confuso de sentidos mas como a percepo simultnea de dois ou mais

    sentidos, com resultante nica, uma impresso final convergente,12 foi propiciada pela

    abordagem aqui proposta. Trata-se de um fusionismo.

    A semitica ferramenta que permite a compreenso de sons, palavras, imagens

    em todas as dimenses. Ela fundamenta as linguagens todas, baseadas em esquemas

    perceptivos. Os processos de percepo so objetos dos estudos semiticos. Sendo a

    11 MONGELLI: 2006. 12 SALLES, 2002.

  • 18

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    semitica, tambm, o estudo dos processos de comunicao no h mensagem sem

    signos nem comunicao sem mensagem 13 aplicao desses conceitos, que so

    emocionais, sensoriais e racionais na elaborao metafrica e simblica, nos processos

    de criao do texto visual e da informao inexorvel para o sucesso na obteno de

    um signo qualquer: um logotipo, uma marca, a identidade visual de uma instituio, o

    conceito para uma campanha publicitria, ou produo de um Programa Iconogrfico

    baseado na retrica e emulando msica e poesia.

    As imagens feitas para significar uma coisa diversa daquela que se v com o

    olho no tm outra regra mais certa, nem mais universal que a imitao (...).14 A

    produo da arte deve ento ser feita em perspectiva semntica, interrogando as formas

    de significao e os tipos de significado presentes em determinada obra de arte

    precedente. Nesse sentido, a tarefa primordial da emulao foi investigar as obras

    antecedentes, isol-las analiticamente, estudar as relaes existentes entre as partes e as

    relaes entre o todo e as partes.

    A interrelao entre diversas formas de arte e o estudo dessa

    transdisciplinaridade no so novidades; a comparao de Horcio entre a poesia e a

    pintura se apresenta quase atemporal. Desde a antiguidade at as poticas mais recentes,

    13 SANTAELLA, 2004. 14 RIPA, 1593 Promio.

  • 19

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    passando pelo ataque platnico15, a formulao horaciana reiterada inclusive pela

    utilizao que dele fez o Renascimento16.

    Transdisciplinaridade, do latim trans, que indica o movimento entre partes.

    aquilo que est ao mesmo tempo entre as disciplinas, atravs das diferentes disciplinas

    e alm de qualquer disciplina. Seu objetivo a compreenso do mundo presente, para o

    qual um dos imperativos a unidade do conhecimento.17 A transdisciplinaridade

    engloba e transcende o que passa por todas as disciplinas, reconhecendo o

    desconhecido e o inesgotvel que esto presentes em todas elas, buscando encontrar

    seus pontos de interseo18. Piaget, Jantsch, Michaud estabelecem uma taxonomia da

    interdisciplinaridade, situando a transdisciplinaridade como patamar superior dessa

    escala. A transdisciplinaridade concepo de pesquisa baseada em novo marco de

    compreenso.19 O marco de compreenso compartilhado por vrias disciplinas e vem

    acompanhado por interpretaes epistemolgicas recprocas. 20 Assim, cria-se a

    transdisciplinaridade pela construo de novo modelo de aproximao entre realidade e

    objeto significativo.

    15 Vide p. 33. 16 MORA, 2004. 17 NICOLESCU, 1999:46. 18 CETRANS, 1998-2001 apud FERREIRA, 2001. 19 FERREIRA, 2001. 20 HERNNDEZ, 1998:46.

  • s ser

    pressup

    fundam

    anlise

    cotidia

    linguag

    comun

    reflexi

    da i

    projeto

    que an

    impuls

    mais

    diferen

    e sincr

    Horci

    herdeir

    tempo.

    21 FAZEN22 FAZEN

    FAZEN

    ATHAYDE

    A interdisc

    percebido

    postos. O p

    mentais a c

    e conceitua

    ano; nece

    gem em

    nicao, u

    iva e corpor

    interdiscipli

    o compos

    ntecede) e

    siona para fr

    O cotejo

    artes foi

    ntes ticas e

    rtica para e

    io, no verso

    ro de um co

    . Para comp

    NDA, 2001. NDA, Ivani. InNDA, 2001.

    E, Pblio. As Q

    ciplinaridad

    em sua na

    projeto inte

    ontextualiza

    al que f

    ssrio comp

    sua e

    uma lingu

    ral. Nas qu

    inaridade,

    sto por um

    um jecto

    frente).22

    entre dua

    realizado

    e parece ind

    exprimir a c

    o 361 da sua

    ostume po

    preender o

    nterdisciplina

    Quatro Esta

    de existe na

    atureza amb

    erdisciplinar

    ao que

    facilita a c

    preender-se

    expresso

    uagem

    uestes

    todo

    pr (o

    o (que

    as ou

    o sob

    dubitvel qu

    complexidad

    a Ars poetic

    tico solidam

    sentido da

    aridade His

    es: Mimeses.

    a ao em m

    bgua, tendo

    r nasce de

    exige a re

    compreens

    e a

    e

    ue no se ten

    de que a an

    ca, escreve o

    mente cons

    compara

    stria, Teoria

    MMO

    Qu

    Ouro Preto: U

    movimento21

    o a metamo

    locus bem

    ecuperao

    o de elem

    nha encontr

    nalogia e a i

    o famoso ut

    olidado, ma

    o, temos q

    e Pesquisa. C

    METAORFOSE

    A

    uadro Sintico

    UFOP/IFAC,

    1, e esse mo

    orfose, a in

    delimitado

    ampla da m

    mentos inter

    rado maneir

    intertextuali

    t pictura po

    as tambm

    que consider

    Campinas: Pap

    AMBIGID

    O

    o 2-1- Interdi

    2007.

    ovimento po

    ncerteza com

    , portanto s

    memria

    rpretativos

    ra mais prec

    idade. Quan

    oesis, ele j

    m filho de s

    rar o conte

    pirus, 1994; ap

    DADE

    isciplinaridad

    20

    ode

    mo

    so

    e a

    do

    cisa

    ndo

    era

    seu

    xto

    pud

    de

  • 21

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    em que so escritas as palavras do poeta latino e, antes de perguntar por suas

    implicaes, especular sobre o que no implicam.

    No Renascimento, a pintura tinha forte componente da retrica e era mesmo

    equiparada a ela. Admitindo que a doutrina pictrica renascentista estivesse imbuda

    claramente de retrica; isso no significa que o vnculo entre pintura e arte oratria

    tivesse sido estabelecido margem da potica23. Como acontece com as artes em geral

    e pela potica em particular, a doutrina pictrica fica impregnada da estruturao e da

    terminologia retricas, mas nesse fato no se deve ver aproximao entre duas

    atividades que se afastam nos objetivos e nas metodologias. Assim, segundo esse

    pensamento, o tpico horaciano ut pictura poesis no pode ser estendido em sentido

    completamente lato.

    Ao valorizar a viso em detrimento da audio e propor que a poesia, arte da

    imitao como a pintura, imagem, assim como o pincel imita os topoi narrativos das

    cfrases (-) de autoridades24, Horcio implica que tambm a pena deve imitar

    o pincel, produzindo metforas visualizantes de efeitos maravilhosos, adequados

    simultaneamente utilidade e ao prazer. O que justificar a pretenso de reflexividade

    no lugar-comum horaciano.

    Mas resta mais um ponto segundo o qual perfeitamente possvel a

    aproximao entre pintura e poesia, alm da msica como foi de interesse especifico

    23 MORA, 2004. 24 HANSEN, 1995.

  • nesse c

    potica

    conhec

    prosse

    outro q

    Progra

    mais

    caso,

    propos

    narrati

    contorn

    propc

    elas m

    As Qu

    conduz

    manife

    pintura

    tempor

    ao pas

    ATHAYDE

    caso: trata-s

    a, gene com

    cido.

    Assim, ide

    guir entre e

    Existem tr

    que pinta

    ama Iconog

    bvia seria

    por t

    sitadamente

    iva complet

    nos meld

    ias associ

    mesmas prop

    uatro Esta

    ziram ao

    estaes de

    a situa-se n

    ral em abert

    sso que a m

    E, Pblio. As Q

    se da mimes

    mum na b

    entificada a

    elas usando

    rs tipos de

    um quadro

    grfico prop

    a de uma o

    terem se

    e para desc

    ta e estare

    dicos e est

    iao imag

    pem. o

    es. Essas

    Programa

    duas forma

    num eixo d

    to e em con

    msica segu

    Quatro Esta

    se e de sua e

    base do con

    a geratriz co

    como ponte

    e msica, q

    o e ainda a m

    posto, a esc

    obra do prim

    erem esc

    rever uma

    em imbuda

    truturas for

    tica natura

    caso, claro,

    s foram alg

    Iconogrf

    as de arte o

    e concep

    nstruo a c

    ue o inverso

    es: Mimeses.

    elaborao

    nstruto, per

    omum s tr

    e o mesmo e

    quanto na

    msica abso

    colha

    meiro

    critas

    ao

    as de

    rmais

    al que

    , de

    gumas das

    fico discut

    opostas incl

    o espacial,

    ada vez que

    o disso, o e

    Qua

    Ouro Preto: U

    metafrica.

    rfeitamente

    rs manifes

    elemento de

    arrativa: um

    oluta, aquela

    caracterst

    tido aqui.

    lusive pelo

    bidimensio

    e a obra vi

    espectador c

    Pintura

    adro Sintico

    UFOP/IFAC,

    . Trata-se de

    identificv

    staes arts

    e conexo.

    m que conta

    a auto-suste

    ticas dos c

    Foram e

    suporte tem

    onal, deixan

    isitada por u

    constri o e

    Mimese&

    Metfora

    Msica

    o 2-2 Mimes

    2007.

    e aproxima

    vel e basta

    sticas, pode

    uma histr

    entvel. Par

    concertos q

    emuladas t

    mpo/espao

    ndo o aspe

    um espectad

    espao, poi

    Poesia

    se & Metfor

    22

    o

    ante

    e-se

    ria,

    ra o

    que

    trs

    o: a

    ecto

    dor,

    is a

    ra

  • 23

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    msica situa-se sobre o tempo25; j a poesia escrita atemporal e virtualmente no

    depende tambm do espao; tratando de poesia declamada, algumas das caractersticas

    de temporalidade apontadas msica so semelhantes mas a emulao nesse caso se

    ateve poesia impressa.

    Assim, pintar referncias msica e poesia prende-se mais maneira de

    interpretar a obra musical, em oposio msica que conta uma histria, que

    propriamente a um confronto de suportes26, ou de dimenses fsicas (tempo e espao).

    A pintura no possui necessariamente eixo narrativo linear, e, assim, possvel adotar a

    narratividade envolvendo msica e poesia em sentido muito mais aberto a livres

    interpretaes. No caso do Programa Iconogrfico das Quatro Estaes, a linearidade

    dos textos musical e potico substituda pela circularidade, pois qualquer ponto de

    partida faz sentido na alegoria de fenmenos cclicos.

    O gramtico John WALLIS27, na busca da iconicidade na linguagem e, portanto,

    nos sons, resumiu assim a frmula: Soni rerum indices.28 Para ele, a ordem das

    palavras reflete a ordem do mundo, doutrina que, j no passado da semitica, parece

    simptica para a abordagem desta monografia.

    25 SALLES, 2002. 26 SALLES, 2002. 27 WALLIS, John. Grammatica Lingu Anglic, 1653. 28 Apud LIMA, 2004: os sons so os ndices das coisas.

  • 24

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    No Ocidente, o som sempre teve um qu de misterioso. Onipresente e, ao

    mesmo tempo, evanescente, o som no se rende ou se submete facilmente ao raciocnio

    acostumado a coisas, locais e configuraes estveis. Som mutao.29

    Som mutao e msica som no tempo. Quando esse tempo histrico,

    quando falamos de msica do passado, a relativizao exponencial, pois estamos

    lidando com um objeto artstico produzido e

    consumido naquele tempo, algo que se esgotou

    em sua fruio. Os registros que permanecem do

    objeto, as partituras, so imperfeitos em mais de

    um sentido, longe de serem capazes de propiciar a

    reproduo dos sons daquela poca. As

    performances atuais de msicas do sculo XVIII

    sero sempre reinterpretativas.

    E se os sons so representaes das coisas,

    observemos que so representaes sincrnicas,

    representam as coisas que lhes so contemporneas

    em sua evanescncia. Os sons e as coisas do passado se contaminam reciprocamente

    pela natureza v de sua essencialidade, por pertencerem concomitantemente ao tempo

    do perfectum. Um tempo de outra mentalidade, de outras pessoas, diferentes

    motivaes e tudo o mais que costumamos costurar sob o rtulo de ideologia.

    29 PINTO, 2001.

    Na terminologia da teoria da

    recepo, o leitor concretiza a

    obra [musical, literria ou

    pictrica], que em si mesma no

    passa de uma cadeia de marcas

    negras organizadas numa pgina.

    () A obra cheia de

    indeterminaes, elementos

    que, para terem efeito, dependem

    da interpretao (...), e que

    podem ser interpretados de vrias

    maneiras, provavelmente

    conflitantes entre si.

    (EAGLETON, 1983:82.)

  • 25

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Sobretudo, trata-se do tempo kairolgico muito mais que cronolgico ainda que esta

    discusso aqui apontada seja excedente, ela merece ser apontada.30

    A obra musical teria se concretizado em sua audincia, aquele momento para o

    qual foi concebida, dela restando a possibilidade reinterpretativa.

    Os conceitos estticos e ontolgicos se

    abrem ideologicamente, desdobrando-se sobre as

    determinaes estruturais das possibilidades dos

    sentidos dos signos 31 , remetendo-se

    desconstruo crtica das oposies hierrquicas

    que estruturam o pensamento ocidental:

    dentro/fora, corpo/mente, literal/metafrico,

    fala/escrita, espao/tempo, presena/ausncia,

    natureza/cultura, forma/sentido, letra/msica,

    arte/cincia. O sujeito e o objeto constituem

    sistema complexo com contradies, oposies,

    contrastes, que vivem e se auto-influenciam e, com

    isso, ampliam o jogo lingstico.

    A relatividade exposta acima, em Histria ou em Esttica elemento absoluto,

    qualquer deslize nos leva diacronia, ao mais terrvel equvoco no ramo. Quando se

    30 Vide FAZENDA, 2001. 31 EAGLETON, 1983.

    A linguagem muito menos

    estvel do que os estruturalistas

    clssicos achavam. Em lugar de

    ser uma estrutura bem definida,

    claramente demarcada,

    encerrando unidades simtricas

    de significantes e significados,

    ela passa a assemelhar-se muito

    mais a uma teia que se estende

    sem limites, onde h um

    intercmbio e circulao

    constante de elementos, onde

    nenhum dos elementos

    definvel de maneira absoluta e

    onde tudo est relacionando com

    tudo.

    EAGLETON, 1983:144.

  • trata d

    estamo

    todos o

    que os

    ambien

    msica

    som, a

    forma,

    um pen

    ness

    Mas n

    com ou

    de algu

    de hoje

    se tive

    instnc

    trama

    emulad

    ATHAYDE

    de represen

    os imbricad

    os demais fa

    s sentidos t

    ntais, os ma

    Refletir a

    a espelhar,

    assim como

    , a essncia

    nsamento?

    sa hiptese

    no se pode

    uvidos mod

    uns sculos

    e, nem do p

    essem sido

    cia mais flu

    Foi na elab

    de sinais, q

    das e que

    E, Pblio. As Q

    ntaes iden

    dos em ml

    fatores, inclu

    tambm sof

    ais diversos,

    a ordem, a

    , como estr

    o a linguag

    de uma so

    Sou levado

    que calo

    e ouvir a m

    dernos, sup

    s a ouviu co

    ponto de vis

    escritos ho

    uida.

    borao do

    que foi estab

    se pde o

    Quatro Esta

    ntificadas c

    ltiplos aspe

    usive os ide

    frem modif

    , quanto pel

    percepo

    rutura orgn

    gem de a

    ciedade, um

    o a crer que

    meu argum

    msica setec

    ondo que o

    om o mesmo

    sta fsico. N

    oje pois, e

    mais alto g

    belecida a co

    obter um p

    es: Mimeses.

    como manif

    ectos sensor

    eolgicos.

    ficao ao l

    la forma com

    e a retrica

    nica de

    alguma

    ma era,

    e sim e

    mento.

    centista

    o homem

    o ouvido

    Nem podemo

    em sede de

    grau metaf

    ompreenso

    produto ma

    Ouro Preto: U

    festaes e

    riais, no m

    necessrio

    longo dos s

    mo eles so

    a dos sons

    os ler verso

    e mutao,

    rico, empre

    o dos proce

    ais prximo

    Tran

    M

    QuaTra

    UFOP/IFAC,

    stticas, ne

    nimo de

    o ter-se a no

    sculos, tan

    o educados.

    a natureza

    os de duzent

    o sentido d

    eendendo a

    ssos semit

    o realida

    nsdisciplinarid

    Poesia

    sicaPintur

    adro Sinticonsdisciplinar

    2007.

    ecessariame

    esconsiderad

    oo precisa

    nto por fato

    das coisas.

    tos anos co

    da palavra

    mimese ne

    ticos das ob

    ade e de s

    dade

    ra

    o 2-3 ridade

    26

    ente

    dos

    a de

    ores

    . A

    mo

    a

    essa

    bras

    sua

  • 27

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    compreenso figurativa tanto do ponto de vista visual direto quanto simblico

    discreto.

    Urdir esta complexa trama de conexes mltiplas implicar o enfrentamento

    com a diversidade discursiva pretensamente intimidativa, legitimada pelos saberes

    cristalizados. modo de devorar o objeto a ponto de desfigur-lo, realizar a

    carnavalizao da retrica nesse ritual canibalstico e fazer do banquete dionisaco

    fonte produtiva de texturas hbridas, polifnicas, bablicas32, eis alguns dos propsitos

    da obra em anlise.

    O discurso transdisciplinar, a retrica iconogrfica na linguagem contempornea,

    tem por um lado amplificada sua eficcia, mas se torna mais neutra medida que sua

    linguagem mais complexa, metafrica, metonmica, universalista. Prosseguindo na

    linha desta aparitmese33, o discurso deixa de ser dominante, para ser dialgico; deixa de

    ser didtico para ser didasclico, deixa de ser literal para ser literrio; o discurso desta

    retrica no jornalstico, mas cotidiano e atual; no discurso persuasivo, mas no

    deixa de ser sugestivo34. discurso apofntico35, ldico, polmico, aberto.

    32 TREFZGER, 2007, adaptado. 33 Aparitmese: na retrica, ato ou efeito de enumerar, especificao, designao de coisas uma por uma.

    HOUAISS. 34 Para taxonomias de discurso, vide CITELLI, 1986. 35 Apofntico: enunciado verbal passvel de ser considerado verdadeiro ou falso, em funo de descrever

    corretamente ou no o mundo real Aristteles considerou-o o nico objeto a ser estudado pela lgica, em contraste com as manifestaes lingsticas afetivas, desejantes, interrogativas etc., que pertenceriam antes retrica ou potica. HOUAISS.

  • 28

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    2.1 Significao

    Para representar as metforas emuladas foram levantados os signos mais

    representativos. As estaes, por exemplo. Uma cena ou paisagem situadas em estao

    do ano bem determinada geralmente correspondem ao estado de alma do sonhador. As

    cenas alegres acontecem quase sempre na primavera ou vero, os sonhos de

    renascimento na primavera. No obstante, com maior freqncia se tem conscincia do

    elemento caracterstico da estao (por exemplo: sol muito forte, brotos nas rvores ou

    neve que cai) antes da estao em conjunto. Na interpretao, h que se ter em conta

    tanto o elemento subjetivo dominante quanto a estao em si mesma. Tanto os signos

    quanto os significados se codificaram em representaes metafricas e repletas de

    emulaes transversais.

    Sendo o texto montagem de signos codificados, ele construdo (e interpretado)

    em referncia s convenes associadas ao gnero polmnico, utilizando meio

    especfico de comunicao. Embora existam discrepncias em relao possibilidade

    de se dizer a mesma coisa em dois ou mais sistemas semiticos que utilizem unidades

    semnticas diferentes, e sendo consciente das limitaes que tal diferena estabelece

    em relao aos possveis cdigos utilizados36, a proposta foi aproveitar favoravelmente

    tal fato. Se os diversos sistemas semiticos fossem sinnimos, ento a proposta

    iconogrfica no faria sentido nenhum.

    36 BLANCO, 2007.

  • 29

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    As teorias que lidam com a construo dos sentidos na relao entre leitores

    incluem opes entre: Objetivistas, para quais o significado est inteiramente

    incorporado ao texto (sendo ento o significado simplesmente transmitido ao leitor);

    Construtivistas, para quais o significado construdo na interao entre texto e leitor;

    terminando nos Subjetivistas, para quais o significado recriado segundo interpretao

    do leitor. Isso pode ser resumido em duas tendncias gerais: as formais e as dialogais.

    No processo de estabelecer o texto iconogrfico, definiram-se os elementos pictricos

    (e entre eles os no-verbais) e semnticos a ser aproveitados em funo das suas

    possibilidades narrativas (com as suas potencialidades conotativas, designativas,

    simblicas, indicativas ou icnicas), com o objetivo de entabular comunicao direta

    com o leitor. Estabeleceram-se os cdigos e subcdigos que organizam o sistema de

    signos textuais, procurando conscientemente refletir valores, atitudes, crenas,

    paradigmas e prticas, a fim de que as relaes entre eles gerassem o sentido desejado

    nos leitores, mesmos os de diversas culturas e diferentes graus de erudio. Nesse

    sentido, observou-se a necessidade de ultrapassar os elementos comumente aceitos e

    gerais no percurso inventivo. Procurou-se incorporar algum elemento conectado s

    vises autorais de mundo. O desafio foi grande. da a idia de lidar com algumas das

    questes humanas mais culturalmente inquietantes, entre que se contam sexo, morte,

    origem da vida, existncia de Deus (ou de algum tipo de ser superior), o Alm (da

    morte, da terra, a vida extraterrestre). Em termos mais gerais e usando terminologia

  • 30

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    mtica e psicanaltica: a resultante da relao entre Eros e Tanatos, entre a inveno e a

    destruio.37

    2.2 Universalidade

    A universalidade do tema das Quatro Estaes outro aspecto que sempre

    impressionou. Nesse sentido, as metforas e metonmias inerentes ao tema alcanam

    uma gama enorme de culturas, sendo os tpicos emulados com freqncia enorme e

    reinterpretados sob as mais diferentes verses e em diferentes linguagens e

    manifestaes estticas.

    O tema das Estaes do Ano excelente ainda para demonstrar como a Cincia

    e a Arte sempre tiveram

    presena transversal na

    cultura humana, assim como

    se interpenetram de modo

    incruento.38 Nele, a Fsica se

    junta Astronomia para

    explicar o fenmeno,

    enquanto a Msica, a Pintura

    e a Poesia possibilitam viagens

    imaginao, permitindo ver

    37 BLANCO, 2007, adaptado. 38 PEDROSA, 2006.

    Ilustrao 1 As Quatro Estaes coroando Cronos. ALTOMONTE, Bartolomeo.

    leo sobre tela, 74,5 x 94,5 cm.

  • 31

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    como esse mote tem estado presente h alguns sculos em vrias culturas.39

    Partindo de diferentes objetos e eventos de arte, tais que se harmonizem com a

    vivncia cultural ocidental em especial, podem-se recuperar fragmentos das ontologias

    climtica e astronmica, por um lado e esttica, por outro, tanto presentes nas obras

    de Vivaldi, quanto no Programa Iconogrfico das Quatro Estaes, e assim motivar a

    construo de modelo mental que tenha suas bases na Fsica, na Matemtica e na

    Msica, Poesia e Pintura como representaes estticas daquele modelo.

    A construo desse modelo feita a partir de parmetros multidimensionais e da

    rememorao de fatos do cotidiano, como observao de sombras ao longo de um dia

    ou do ano, relacionando-as altura em que o Sol visto no cu e s diferentes posies

    da Terra em seu movimento de translao. Tal construo se d no entrelaamento

    entre a observao climtica (astronmica) e a sensibilidade esttica, possibilitando a

    expresso retrica dos diferentes climas e afetos pelo fato de o planeta estar em

    diferentes posies ao longo de seu caminho em torno do Sol. Essa situao ftica se

    traduz, por exemplo, em cromatismos distintos a cada Estao, variaes de

    temperatura e a uma srie enorme de eventos de grande influncia no cotidiano e com

    correspondncias nas diversas regies do Planeta.

    Ao gerar representaes mais amplas para explicar qualquer fenmeno

    cotidiano, nosso conhecimento intuitivo assume, de forma implcita, princpios sobre a

    natureza da realidade e atua conforme eles. No caso das estaes do ano, o que se 39 QUEIROZ, LIMA, e VASCONCELLOS, 2004.

  • 32

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    mostra sensorialmente perceptvel para todos o aquecimento maior ou menor de

    acordo com a distncia entre o Sol e a Terra o que ocorre em todas as reas habitadas

    do planeta, ainda que em intensidades variadas. O modelo fsico da distribuio da

    radiao pela superfcie de acordo com o ngulo de incidncia foi elaborado pela

    cincia para dar sentido a uma realidade que no facilmente percebida pelo senso

    comum imerso em figuraes estticas culturais. 40 Mas o modelo esttico do

    Programa Iconogrfico se props representar simultaneamente a realidade fsica do

    clima e a universalidade dos afetos que lhes correspondem bem como as

    correspondentes metforas. uma proposta universalizante.

    O tema das quatro estaes um lugar-comum. Mas to comum e to sem lugar

    que universal. A idia original seria fazer um levantamento panormico das

    emulaes de quatro estaes em manifestaes estticas ou retricas, mas a amplitude

    das ocorrncias faz a tarefa ficar muito alm da possibilidade momentnea e da

    necessidade nesta discusso. Depois foi constatado que, na idia inicial, no havia nada

    de original nenhuma novidade, ento a nica abordagem para o universal passou a ser

    a proposta aristotlica41 de contrap-lo ao particular deixando esta para o exerccio do

    historiador e aquele para o poeta. O Programa Iconogrfico proposta de poesia visual.

    Abordagem universalizante de tema universal.

    40 QUEIROZ, LIMA, e VASCONCELLOS, 2004:51. 41 ARISTTELES. Potica, IX-50.

  • 3 M

    poesia

    assenta

    gnosio

    imita

    em rel

    aparn

    compr

    campo

    transve

    comple

    em sua

    gnosio

    42 MORA

    ATHAYDE

    Mimese

    Plato apo

    no dcimo

    ar os ponto

    olgico e o

    o (mimesis

    ao fabri

    ncia e aos ef

    A relao

    eendida com

    Chama-se

    os de expres

    ersal, postu

    exa e abran

    a amplitude

    Na expre

    olgico, ma

    A, 2004.

    E, Pblio. As Q

    onta os fun

    livro da Re

    os de cont

    psicolgic

    s), reapropri

    icao e ao

    feitos produ

    o entre es

    mo circular

    reapr

    sso esttic

    ulando que s

    ngente, capa

    retrica.

    esso plat

    as permite

    Quatro Esta

    ndamentos q

    epblica. O

    tacto existe

    co, isto ,

    iao dos co

    uso do que

    uzidos no es

    ses aspecto

    e contnua.

    ropriao

    a distintos

    seja a emula

    az de forne

    nica, essa

    melhor ap

    es: Mimeses.

    que permiti

    filsofo est

    entes entre

    o mbito d

    onheciment

    e est a repr

    spectador.42

    os foi

    entre

    mimese

    ao

    cer element

    a mimese

    proximao

    Q

    Ouro Preto: U

    psicolee

    ontolgicoimitao(mimesis)

    iam a contr

    tabelece tr

    pintura e

    da essncia

    tos, dos lug

    resentar, ma

    tos express

    transversa

    o do ser p

    uadro Sintic

    UFOP/IFAC,

    gnosioapropriconhec

    gico:aparnceefeitosnoespectador

    o:

    raposio e

    s aspectos e

    poesia: o

    a prpria da

    ares comun

    as apenas no

    ivos mais c

    al processa

    pelo aprofu

    co 3-1- Rela

    2007.

    olgico:aodocimento

    ia

    entre pintur

    em que pod

    ontolgico

    a atividade

    ns, inexisten

    o que toca s

    compreensiv

    a no cam

    undamento

    o em Plato

    33

    a e

    dem

    , o

    e: a

    ntes

    sua

    vos

    mpo

    da

    o

  • 34

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    emulao mimtica e, conseqentemente, produzir efeitos psicolgicos mais

    abrangentes.

    No territrio do design grfico modernamente e na arte discreta43 desde

    sempre que se encontra o maior potencial para

    a criao de imagens ligadas palavra escrita,

    quando elegemos diferentes corpos e famlias

    tipogrficas (fontes em editorao eletrnica),

    cores e disposies, formando novos universos de

    relaes e significados com os objetos do mundo.44

    Ao se fazerem abordagens poticas

    comparativas, inclusive literrias, musicais e

    certamente pictricas, fazem-se com a aceitao

    implcita de se transcenderem estudos

    comparativos estrito senso. Arte comparativa

    campo expandido que continua se abrindo para

    outras reas, outras disciplinas e para temas mais

    amplos que a esttica, que cruzam as fronteiras

    presumidas entre as cincias e as artes. Esse

    43 O uso da expresso arte discreta tem o sentido retrico de oposio nescidade; mutatis mutandis a

    oposio entre hight art and low ou grand art et lart trivial arte erudita ou popular. 44 LIMA, 2004.

    A transversalidade, a

    interdisciplinaridade e a

    transdisciplinaridade situam-se

    na lgica terico-metodolgica

    do novo paradigma de

    conhecimento, que entende o

    conhecimento dialogando com o

    prprio conhecimento em busca

    de compreenso da realidade

    enquanto objeto mltiplo. Numa

    viso pragmtica, as concepes

    TIT so instrumentos intelectuais

    para iluminar a passagem da ao

    elaborativa do pensamento

    simplificador para o

    pensamento complexo. No

    estamos falando do conhecimento

    do objeto, somente reduzido

    pura abstrao, mas

    conhecimento do objeto em sua

    multirreferncia.

    FERREIRA, 2001:48.

  • 35

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    dilogo interdisciplinar compreendido como conjunto de mimeses transversais, nas

    quais os topoi so na verdade transdisciplinares.

    A proposta de abordagem comparativa, transversal e interdisciplinar de mimese

    parte da atitude hermenutica e heurstica para com os diversos saberes visando

    instaurar dilogo entre eles,45 construindo conhecimentos vlidos para a estrutura e

    mtodos da prtica pictrica no contexto atual. Trata-se de atitude de reinterpretao

    dos conhecimentos tericos, sistematizados para a descoberta de conceitos e referncias

    iconogrficos.

    A transversalidade proposta refere-se ao colateral, ao que passa ou atravessa os

    objetos significativos. Transversalidade aqui remete idia de fenda, abertura,

    alinhamento em outra direo. A transversalidade abertura, possibilidade

    metodolgica para expresso esttica, ao alinhar os contedos tpicos em outra direo,

    estabelecendo novas relaes entre os pontos de vista: os que so teoricamente

    sistematizados e emulados das artes eruditas e os que esto na vivncia, no cotidiano

    autoral. A transversalidade estratgia de resgate da percepo ampla da realidade

    mediante emprego de determinados elementos de grande potencial significativo,

    denominados, nesse caso, de eixos/temas transversais (musical, literrio, pictrico)46.

    O limite da transversalidade seria o que os sofistas definiram como programa de

    (paidia cclica ou enciclopdia, conjunto de todas as cincias).

    45 FERREIRA, 2001. 46 FERREIRA, 2001, adaptado.

  • 36

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Preocupando-se com a compreenso generalista no limite possvel da completude. O

    programa da foi retomado e elaborado pelos retricos romanos, que

    transmitiram o esquema das orbis doctrin (doctrinarum orbem) aos mestres do ensino

    medieval.47 A idia foi retomada por Diderot e DAlembert.

    Essa viso globalizante se ope disciplinaridade disjuntiva48, segmentao de

    significaes e de referenciais estticos. O conhecimento disjuntivo, estanque,

    propugna a objetividade assptica e tem a subjetividade eliminada, o sujeito excludo

    do processo. NICOLESCU49 diz que a objetividade instalada como critrio supremo de

    verdade teve uma conseqncia inevitvel: a transformao do sujeito em objeto.

    O fracionamento do saber e do ver implica a especializao das cincias

    tambm e resulta na fragmentao das conscincias, na interpretao isolada dos

    eventos e dos signos. A realidade vista apenas em fragmentos seccionados, forjando-se

    a iluso e incorrendo em erro de paralaxe. Essa viso destorcida do mundo o que vem

    ocasionando a poluio, a destruio do equilbrio na natureza, na medida em que as

    vises separatistas desvinculam a cincia da conscincia, a sensibilidade da

    racionalidade, a materialidade da espiritualidade, o sonoro do cromtico, o potico do

    cientfico.50

    47 FERREIRA, 2001:54. 48 ARAJO, 2000. 49 NICOLESCU 1999:18. 50 ARAJO, 2000, adaptado.

  • 37

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Esse modelo disciplinar ou esttico separatista desvincula o conhecimento da

    sinuosidade, complexidade e multiplicidade do cotidiano, constituindo-se de teorias

    abstratas, lineares e cinzentas em termos pictricos, montonas ou monortmicas

    em termos musicais. O pensamento separado da carnalidade do vivido. 51 Os

    contedos fracionados e reduzidos a frmulas analticas quantitativas desfiguram o

    dinamismo qualitativo do ser, das coisas, das interligaes existentes entre parte e todo.

    A segmentao analtico-funcional e esttica

    denegou o ontolgico, a compreenso expressiva

    do ser em sua unitas multiplex, a inteireza e

    complexidade das coisas, dos seres, dos signos.

    A carnalidade do vivido, quer posta em

    termos estticos ou cientficos, h que ser

    devidamente torcida, para que dela se extraia o

    sumo que o verbo, o compasso ou o arco-ris da

    palheta representam.

    Mesmo a dicotomia arte-cincia empobrecedora, veda o universo sensorial,

    obsta a imaginao (principalmente dos leigos). a cincia positiva, matematizada, fria

    e tecnicizada (obsoleta!), isolando filosoficamente o homem social. 52 Descartar a

    cincia no processo inventivo abandonar o elemento gnosiolgico do contato entre a

    51 ARAJO, 2000. 52 PEDROSA, 2006.

    ANTES, O VERBO Torcer o verbo, Antes que ele se torne carne. Rasgar a carne, Antes que ela se torne pecado. Gozar o pecado, Antes que ele se torne proibido. Esquecer o proibido, Antes que ele se torne verbo. Torcido e rasgado, Gozado e esquecido, O verbo e a carne, O pecado e o proibido.

    Que tudo se torne. Antes. Araguana, 2 de dezembro de 1994

    ATHAYDE. P. 2001:72.

  • 38

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    poesia e a pintura no discurso platnico. Descartar a arte no conhecimento cientfico

    relegar ou negar o papel do sujeito na construo do saber.

    3.1 Imitao: Antnio Vivaldi

    As Quatro Estaes foram publicadas em Amsterd, em 1725, com mais oito

    concertos em volume denominado Opera Ottava (Opus 8). As datas exatas da

    composio dos concertos no so conhecidas. Esse conjunto concertstico foi

    denominado Il Cimento dellArmonia e dellInvenzione;

    um testamento artstico, tal o teor de tcnica intelectual e

    fantasia inventiva de Vivaldi. As Quatro Estaes so,

    acima de tudo, a celebrao da rica impresso individual

    das mudanas de estaes, inspirando a evocao do

    universo inteiro de emoes associadas a elas. Vivaldi

    esforou-se para completar a experincia de seu pblico

    exibindo pinturas e sonetos para os msicos e para a platia.53

    Na Idade Mdia, e mesmo muito depois dela, at o sculo XVIII inclusive,

    comumente msicos eram empregados de nobres, governantes ou eclesisticos, sendo

    sua funo compor para grande nmero de acontecimentos. Nascido um prncipe,

    componha-se uma Missa em Ao de Graas pelo fato. Para uma grande recepo, o

    compositor particular crie novas peas e ensaie-as com a orquestra disposio at a

    53 Portal Itlia Brasil.

    Ilustrao 2 Capa da publicao de Vivaldi.

  • 39

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    data aprazada. Se morrer uma rainha, um rquiem j dever estar preparado para a

    ocasio.

    Cito os sonetos que acompanham esta obra como exemplo do que havia de

    emulao dos topoi na proposta de Vivaldi: transversalidade. Em relao

    popularidade dos concertos, poucas pessoas os conhecem, apesar de sua enorme funo

    operstica quando considerados em conjunto. Parece que Vivaldi, ao contrrio do que

    seria de se esperar, a seu tempo e segundo os cnones da Histria da Msica, j

    compunha para auto-satisfao ou com vistas remunerao pela audincia, j que no

    teria havido encomenda ou funo ritualstico-representativa para a obra.

    O tema das Quatro Estaes simples, popular, dado que se refere nossa Terra

    e a todos os habitantes, mas ao mesmo tempo, amplia-se simbolicamente de maneira

    rica e complexa, pois que est ligado a tudo que se refere ao nmero 4, s quimeras, s

    vises bblicas, aos elementos, aos evangelhos, s fases da lua, ao Tar.54 O significado

    elementar desse smbolo : refere-se s quatro fases de qualquer ciclo. E o ciclo das

    estaes exemplo cheio de sentidos.A popularidade destes concertos grossos de

    Vivaldi fizeram deles uma das obras de msica erudita mais gravadas: 475 registros,

    contra 275 da Quinta Sinfonia de Beethoven55, por exemplo.56

    54 Toda simbologia que se segue traduo e adaptao de KULTURICA, 2007. 55 LEBRECHT, 2007. 56 Desde a inveno do gramofone, 95 violinistas j gravaram As Quatro Estaes, de Vivaldi. A pea

    tornou-se assim campe absoluta na lista de obras mais gravadas para violino e orquestra, cabendo a medalha de prata ao concerto de Tchaikovsky, com 72 interpretaes diferentes. Em terceiro e quarto lugar, aparecem os concertos de Beethoven e Mendelssohn, com 69 e 64 verses, respectivamente. COHEN, 1998.

  • 40

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    A primavera a chegada, o incio, a infncia, o

    nascer do sol, o princpio de uma atividade, a virgindade,

    otimismo, dinmica, sentimentos voluntariosos. o basto

    do Tar e o entusiasmo de Mercrio.

    O vero representa a juventude, o sol que chega a

    seu znite: as foras so reunidas, preparadas, o momento

    de agir. tambm plenitude em conexo com a realidade.

    por sua vez o corte generoso do Tar e a combatividade de

    Marte.

    O outono o tempo das colheitas, mas tambm o das

    lamentaes. O sol comea a inclinar-se sobre o horizonte.

    O tempo de colher os frutos e de gozar, o tempo de lamentar

    a beleza passada. a poca da opulncia. o dinheiro do

    Tar, a potncia de Zeus.

    Por ltimo, o inverno o descanso que segue o

    perodo de atividade, aquilo pode ser a morte, mas a morte

    realmente um fim? a velhice de Cronos, a terra que se

    prepara para uma nova primavera, ento, o que seria o fim

    o que precede o recomeo.

    Ilustrao 3 Primavera: VAN DE VELDE, Jan. 1617.

    Ilustrao 4 Vero: VAN DE VELDE, 1617.

    Ilustrao 5 Outono: VAN DE VELDE, 1617.

    Ilustrao 6 Inverno: VAN DE VELDE, 1617.

  • efeitos

    astron

    transi

    de cad

    univer

    envolv

    esfora

    msico

    ATHAYDE

    Em divers

    s prticos l

    mico, h

    o entre as

    3.1.1 O

    As Quatro

    da indivduo

    so inteiro d

    vidas. Num

    ado para co

    os e para a p

    Primavera

    Vero

    Outono

    Inverno

    E, Pblio. As Q

    os pases, e

    locais, data

    alguma var

    estaes. T

    Quad

    Os sonetos

    o Estaes s

    o ou coletiv

    de emoes

    desses exem

    ompletar a e

    platia. A p

    No(22eq

    a

    Nodedejun

    Nomanodede

    Noeqso

    Quatro Esta

    existem data

    as que no

    riao (irre

    Todavia, so

    dro Sintico 3

    s de Vival

    so, acima

    vas das mu

    associadas

    mplos pione

    experincia

    artitura foi

    ohemisfrios2)aosolstciouinciodema

    ohemisfriosedezembro(2emaro(20);nnho(21)efind

    ohemisfriosuaro(21)efindhemisfrionosetembro(22zembro(20).

    ohemisfriosuinciodeselstciodedeze

    es: Mimeses.

    as oficiais p

    so coinc

    elevante no

    o geralmente

    3-2 Perodo

    ldi

    de tudo, a c

    udanas de

    s a elas e s

    eiros de pr

    do pblico

    marcada co

    sul,estendesededezembroaro(21)aos

    sul,iniciaseq21)eterminaqnohemisfriodanoequinc

    ul,iniciasequadaquandoeleorte,principia)efinalizaqua

    sul,estendesetembro(21);embro(22)ao

    Ouro Preto: U

    para incio d

    identes; me

    cotidiano)

    e aceitas as

    o das estaes

    celebrao

    estaes, in

    s transies

    rograma de

    o exibindo p

    om letras do

    edoequincio(20);nohemolstciodejun

    uandooSolaquandoeleatonorte,iniciaciodesetemb

    andooSolatinatingeosolstquandooSolaandoelealcan

    edosolstcionohemisfriooequinciode

    UFOP/IFAC,

    das estaes

    esmo do p

    quanto ao

    referncias

    s.

    das mltipl

    nspirando a

    s climticas

    msica, V

    pinturas e so

    o alfabeto co

    odesetembrmisfrionorte,nho(20)..

    atingeosolstctingeoequinsenosolstciobro(21).

    ngeoequinciciodejunho(2atingeoequinaosolstciod

    dejunho(21)onorte,doemaro(21).

    2007.

    s com diver

    ponto de vi

    o momento

    s seguintes:

    las impress

    a evocao

    e ontolgi

    Vivaldi teria

    onetos para

    orresponden

    o,do

    ciocioode

    ode20);ciode

    )ao

    41

    sos

    ista

    de

    es

    do

    cas

    a se

    a os

    ndo

  • 42

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    s mesmas nos sonetos, apontando assim para o instrumentista que frases musicais se

    referem a que linhas na respectiva descrio nos poemas.

    A autoria destes sonetos no confirmada 57 , embora se acredite que eles

    descrevem a msica to bem que Vivaldi seja perfeito candidato a t-los escrito. Mas

    para o efeito do Programa Iconogrfico, de fato, essa atribuio no de todo

    importante, j que o prprio Vivaldi reconhece e admite a conexo dos sonetos sua

    msica.

    Adite-se que no foi encontrada nenhuma contestao de autoria, portanto a

    subsuno dos sonetos no universo

    vivaldiano parece perfeitamente

    legtima.

    Vejam-se os sonetos de Vivaldi

    em verso portuguesa nos anexos.58

    57 SONETOS.COM.BR. 58 Vide p. 127.

    Ilustrao 7 Alegoria das Quatro Estaes.MANFREDI, Bartolomeo c.1610leo sobre tela, 134 x 91,5 cm.

  • 43

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Giunt la Primavera e festosetti La Salutan glAugei con lieto canto, E i fonti allo Spirar deZeffiretti Con dolce mormorio Scorrono intanto: Vengon coprendo laer di nero amanto E Lampi, e tuoni ad annuntiarla eletti; Indi tacendo questi, glAugelletti Tornan di nuovo al lor canoro incanto: E quindi Sul fiorito ameno prato Al caro mormorio di fronde e piante Dormel Caprar col fido can lato. Di pastoral Zampogna al Suon festante Danzan Ninfe e Pastor nel tetto amato Di primavera allapparir brillante.

    3.1.1.1 La Primavera

    Ilustrao 8 Primavera, ou O Encontro: van de Venne, Adriaen Pietersz. leo sobre XXX, 37,5 x 15 cm, 1625.

  • 44

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Sotto dura Staggion dal Sole accesa Langue Lhuom, langue l gregge, ed arde il Pino; Scioglie il Cucco la Voce, e tosto intesa Canta la Tortorella el gardelino. Zeffiro dolce Spira, m contesa Muove Borea improviso al Suo vicino; E piange il Pastorel, perche Sospesa Teme fiera borasca, el Suo destino; Toglie alle membra lasse il Suo riposo Il timore deLampi, e tuoni fieri E de mosche, e mossoni il Stuol furioso! Ah che pur troppo I Suoi timor Son veri Tuona e fulmina il ciel e grandinoso Tronca il capo alle Spiche e agrani alteri.

    3.1.1.2 LEstate

    Ilustrao 9 Vero, ou A Saudao: van de Venne, Adriaen Pietersz. leo sobre XXX, 37,5 x 15 cm, 1625.

  • 45

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Celebra il Vilanel con balli e Canti Del felice raccolto il bel piacere E del liquor di Bacco accesi tanti Finiscono col Sonno il lor godere. F chognuno tralasci e balli canti Laria che temperata d piacere, E la Staggion chinvita tanti e tanti D un dolcissimo Sonno al bel godere. I cacciator alla novalba caccia Con corni, Schioppi, e canni escono fuore Fugge la belua, e Seguono la traccia; Gi Sbigottita, e lassa al gran rumore DeSchioppi e canni, ferita minaccia Languida di fuggir, m oppressa muore.

    3.1.1.3 LAutunno

    Ilustrao 10 Outono, ou A Conversa: van de Venne, Adriaen Pietersz. leo sobre XXX, 37,5 x 15 cm, 1625.

  • 46

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Aggiacciato tremar tr nevi algenti Al Severo Spirar dorrido Vento, Correr battendo i piedi ogni momento; E pel Soverchio gel batter i denti; Passar al foco i di quieti e contenti Mentre la pioggio fuor bagna ben cento; Caminar Sopral giaccio, e passo lento Per timor di cader gersene intenti; Gir forte Sdruzziolar, cader terra, Di nuovo ir Sopra l giaccio e correr forte Sin chil giaccio Si rompe, e Si disserra; Sentir uscir dalle ferrate porte Sirocco, Borea, e tutti i Venti in guerra Quest l verno, m tal, che gioja apporte.

    3.1.1.4 Inverno

    Ilustrao 11 Inverno: VAN DE VENNE, Adriaen Pietersz. leo sobre XXX, 37,5 x 15 cm, 1625.

  • 47

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    3.1.2 Os Concertos As Quatro Estaes Opus 8

    O objetivo aqui ser apenas o de apontar algumas relaes entre os poemas

    acima e a conhecidssima obra musical.59

    3.1.2.1 A Primavera Concerto N 1 em Mi Maior

    O primeiro movimento relaciona-se primeira e

    segunda estrofes; o segundo terceira e o terceiro quarta.

    Vivaldi descreve a chegada da primavera com toda sua

    singularidade, representada por uma melodia doce, remetendo

    aos cantos dos pssaros. Mas tambm h a tempestade, raios e

    troves cobrem o ar em manto negro. Apesar disso, sem se

    importar, ficam os passarinhos, retornando a seu encanto canoro.

    Uma festiva reunio onde danam as ninfas e os pastores ao som

    alegre das gaitas camponesas e sob o ansiado e brilhante cu de

    primavera. O solo de violino representa o pastor atormentado e os

    demais violinos representam o ambiente revolto.

    59 Os textos descrevendo os Concertos que foram aproveitados nesse tpico so to difundidos que se

    torna impossvel lhes determinar autoria ou fonte original.

    Ilustrao 12 Primavera: MUCHA,

    Alphonse. 1890.

  • 48

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    3.1.2.2 O Vero Concerto N 2 em Sol Menor

    Pode ser considerado o concerto com mais eficcia

    descritiva. De novo o primeiro movimento relaciona-se s duas

    primeiras estrofes; o segundo terceira e o terceiro quarta. O

    grande protagonista a tempestade. As coisas aqui comeam

    serenas, mas no doces. O sol a pino derruba tanto homem como

    a natureza. E aps o anncio do rouxinol, chega a tempestade. O

    pastor teme a tempestade. quase uma destruio.

    3.1.2.3 O Outono Concerto N 3 em F Maior

    O primeiro movimento refere-se primeira estrofe, o

    segundo segunda e o terceiro s duas

    ltimas. O protagonista agora Baco.

    Pode-se sentir novamente um ambiente alegre, onde o campons

    celebra com festas e cantos a feliz colheita, com intenso prazer.

    O campnio est to aceso pelos vinhos de Baco que sua alegria

    se transforma em sono. A msica representa a embriaguez, A

    Bacanal prossegue at que a orgia adormece todos os

    participantes, no segundo movimento. No dia seguinte, terceiro

    movimento, o caador sai caa com trompas, espingardas e

    ces ferozes. Podemos sentir a fuga da presa com os caadores

    seguindo suas pegadas. J esgotada e temerosa com o grande

    Ilustrao 14 Vero: MUCHA,

    Alphonse. 1890.

    Ilustrao 13 Outono: MUCHA, Alphonse. 1890.

  • 49

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    alvoroo de rifles e ces, a presa ferida, tenta fugir, mas atingida e morre.

    3.1.2.4 O Inverno Concerto N 4 em F Menor

    O primeiro movimento corresponde primeira estrofe. O

    segundo, bem curto, prende-se apenas aos dois primeiros versos

    da segunda quadra. Os demais versos esto vinculados ao terceiro,

    desenvolvendo-se em crescendo cuja interpretao aceita algum

    otimismo. Esse concerto foi concebido para ser interpretado na

    igreja, portanto toda a orquestra toca em surdina a maior parte do

    tempo, como a no querer perturbar os fiis.60 Em O Inverno,

    podemos sentir a imagem de algum tremendo sem parar sobre a

    neve, castigado pelo severo soprar do vento cortante, a sensao

    de correr batendo os ps a todo o instante e o bater dos dentes em

    um frio intenso. Em seguida, o aconchego de ficar ao fogo, quieto

    e satisfeito, enquanto a chuva do lado de fora a tudo banha, pode ser perfeitamente

    sentido pelo doce e expressivo solo de violino do segundo movimento, e tambm pelo

    pizziccatto da orquestra imitando a chuva. O terceiro movimento sugere o caminhar

    sobre o gelo, a passos lentos, com medo de cair, o caminhar com mais deciso e cair

    sobre a terra, novamente, ir sobre o gelo e correr forte, sem que o gelo se rompa. Ao

    final podemos sentir, apesar do frio, dos ventos e da neve, uma alegria talvez fatal.

    60 KULTURICA, 2007.

    Ilustrao 15 Inverno: MUCHA, Alphonse. 1890.

  • 50

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    3.1.3 Exposio61

    Os quadros que foram expostos na primeira audio pblica dos concertos As

    Quatro Estaes eram de autoria de Jean von Blasenberghe62. Deles restam apenas trs

    e j puderam ser vistos: os quadros correspondentes Primavera e ao Vero pertencem

    atualmente ao Muse Marmottan, em Paris, tendo sido adquiridos pela famlia

    Marmottan bem antes de legarem a casa e a coleo que deram incio ao museu, fins do

    sculo XIX. Os dois quadros esto em sala especial, no quarto andar do museu, em

    ambiente sempre sonorizado com os dois concertos respectivos. O quadro

    correspondente ao Outono pertence ao acervo do MASP, tendo sido adquirido por

    Chateaubriand com doaes de fundos de penses. Foi visto tambm, mas se encontra

    hoje recolhido reserva, por ter sido danificado em ato de vandalismo na dcada de

    1960, at ento no houve interesse ou recursos para restaurar to importante obra. Por

    ltimo, o Inverno, consta ter desaparecido em Milo nos anos de 1930, em incndio

    mal explicado, no qual no se tem certeza se o quadro queimou completamente ou se

    foi roubado em circunstncias ligadas a uma herana conflituosa.

    Infelizmente no foi possvel obter imagens fotogrficas daqueles quadros, o

    Marmottan no as fornece e o MASP as esconde.

    Recorrendo memria para os descrever, ressaltam-se os aspectos de

    intertextualidade e as emulaes de Vivaldi, principalmente as tratadsticas que muito

    chamaram ateno. 61 No sentido retrico de cfrase (-), sem ecgonina (). 62 MATTOS, 2003.

  • 51

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    Baseado na descrio feita e em reprodues de qualidade bem inferior 63 ,

    impossveis mesmo de serem impressas aqui, as telas de von Blasenberghe foram

    recriadas por Will Oliveira, a pedido e em estreita colaborao, especialmente para

    ilustrarem este trabalho e acompanharem as emulaes deste estudo como referncia

    iconogrfica suplementar.

    Resultou desse pedido que o Programa Iconogrfico das Quatro Estaes,

    preconizado para emular uma srie de referncias anteriores, foi construdo em dilogo

    com ainda mais uma obra de arte, produzida em paralelo, simultaneamente e no mesmo

    ambiente. Quero apontar esse fato e a conscincia das benficas e amplas contribuies

    recprocas na produo para deixar essa questo de lado, abandonar a discusso dessa

    recproca contaminao em todos seus aspectos por opo metodolgica.

    3.1.3.1 Primavera

    Von Blasenberghe representou uma primavera ldica e canora, uma ciranda

    entre dois casais de adolescentes voltados para o exterior do crculo, de costas uns para

    os outros, leve e coloridamente trajados. Personagens angelicais ilustram a

    musicalidade da cena. A remisso puerilidade do relacionamento, mas j em

    presena de certo idlio, platnico ainda, juvenil, mas em processamento.

    63 As ilustraes foram obtidas de um negociante de postais e fotos, margem do Sena. So duas laudas

    amarelecidas, sem notas tipogrficas, reproduzindo as gravuras de duas Estaes em cada. Papel e impresso sugerem que o material date do primeiro quartel do sXX, mas as gravuras originais teriam sido bem anteriores. No h referncia a autoria ou quaisquer textos impressos, exceto o nome de cada estao. Apenas pela memria das imagens de Von Blasenberghe as ilustraes puderam ser identificadas e fornecer pistas para a recriao do Inverno.

  • 52

    ATHAYDE, Pblio. As Quatro Estaes: Mimeses. Ouro Preto: UFOP/IFAC, 2007.

    A cena campestre, h diversas floradas vista e os jovens esto cobertos de

    ornamentos florais: guirlandas, colares e coroas.

    O horizonte, em fundo infinito, luminoso e percorre todo o fundo da tela,

    permitindo ser relacionado a amplas opes de vida e futuro promissor.

    esquerda, as faces de Jano sobre pedestal remetem ao inverno recm

    terminado e ao ano que est em seus primrdios.

    A presena constante de quatro personagens centrais nas Estaes de

    Blasenberghe permite supor metarreferncia quaternidade das estaes, como ciclos e

    como fazes. Alm do qu, na iconografia renascentista (Ripa e sucedneos), metade dos

    elementos representativos das estaes homem (inverno e vero) metade mulher

    (inverno e primavera).

    Existe outra Primavera em cuja representao a ciranda se faz presente, a de

    Nic