as quatro noites da salvação

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Livro de Bruno Forte. Faz uma memória da História da Salvação passando pelas quatro noites fundamentais para a revelação e realização do plano de Deus ao Homem.

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BRUNO FORTE

AS QUATRO NOITES DA SALVAÇÃO

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO __________________________________________________________________ 7 A NOITE DA CRIAÇÃO ___________________________________________________________ 11 A NOITE DE ABRAÃO ____________________________________________________________ 16 A NOITE DO ÊXODO ____________________________________________________________ 23 A NOITE DO MESSIAS ___________________________________________________________ 33 ORAÇÃO A MARIA ______________________________________________________________ 42

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INTRODUÇÃO1

Para a tradição hebraico - cristã, a noite da Páscoa é a grande noite da salvação; nela, torna-se presente o evento fundador do Êxodo, através do qual Deus escolheu para si um povo, libertou-o da escravidão e conduziu-o para a terra da liberdade, demonstrando assim que é o Senhor soberano da História. Ao viver a experiência daquela noite, a fé de Israel sabe que está a preparar o mundo para a vinda do Messias, quando houver a manifestação total da glória de Deus - tudo em todos - e a libertação definitiva do seu povo e da humanidade inteira.

Por sua vez, o cristão celebra a noite de Páscoa, da maneira mais alta e solene, o memorial da morte e ressurreição de Cristo, centro do tempo e coração da história, novo início de cada vida que a Ele se abre. Por isso, a liturgia da Vigília Pascal canta assim: "Esta é a noite, que liberta das trevas do pecado e da corrupção do mundo aqueles que hoje por toda a terra crêem em Cristo, noite que os restitui à graça e os reúne na comunhão dos Santos. Esta é a noite, em que Cristo, quebrando as cadeias da morte, se levanta vitorioso do túmulo. De nada nos serviria ter nascido, se não tivéssemos sido resgatados."

Quando chega a noite de Pessach, os filhos de Israel sentam-se, família por família, como fizeram os seus pais, em torno de uma mesa ornamentada com os sinais da redenção e proclamam as maravilhas que Deus operou através deles; depois, comem as ervas amargas (maror) e o pão da aflição - pão não levedado, porque a urgência da fuga não dera aos filhos de Israel o tempo de fazê-lo levedar ( é o pão ázimo ou matzá) - , e bebem o vinho nas taças da salvação.

Por seu lado os cristãos celebram a Páscoa à volta da mesa do Cordeiro, onde comem o pão da vida e bebem o cálice da salvação, alimentados com o Corpo e o Sangue do Redentor: o pão ázimo usado na celebração e a taça do vinho são sinal claro da continuidade da Eucaristia em relação ao banquete pascal hebraico, embora na novidade devida à presença real do Amado, o Filho eterno, o Senhor Jesus.

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Este pequeno texto nasceu das meditações que orientei numa grande igreja de Chieti, em três serões de Quaresma de 2006, como "exercícios espirituais para todos", e em que tomaram parte

centenas de pessoas, recolhidas em silêncio religioso.

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A celebração da noite de Páscoa é tão decisiva que devemos preparar-nos cuidadosamente para ela: o hebreu fá-lo mediante a obserservância escrupulosa do "Seder pascal", da ordem que regula a purificação de cada levedura, símbolo do fermento de mal que está em nós (chametz) e a celebração do banquete. O cristão prepara-se para a Páscoa através do jejum, da oração e da penitência quaresmal, marcada por obras de caridade e de atenção aos outros, percorrendo assim um caminho que culmina na celebração da Vigília Pascal.

Uma ajuda preciosa para viver esta preparação de maneira intensa e envolvente é fazer memória da história da salvação, segundo a ordem das quatro noites, mencionadas tanto no banquete pascal hebraico, quanto na liturgia cristã da noite de Páscoa. Através de um diálogo entre o pai e os filhos(cf. Ex 13,14), a partir da pergunta feita quando se sentam à volta da mesa da Pessach: “Porque é que esta noite é diferente das outras noites? ", faz-se sobretudo memória da escravidão do Egito. Portanto, dispomo-nos a provar o sabor da liberdade, bebendo nas quatro taças da salvação. São quatro porque, entre as inumeráveis maravilhas de salvação operadas pelo Altíssimo, quatro acabam por ser as fundamentais, das quais derivam todas as outras e todas as quatro se realizam de noite, como que a dizer que na escuridão do tempo e na escuridão do coração a luz veio do alto salvar-nos.

Narrar as quatro noites da salvação faz reviver a experiência de graça que nelas o Senhor deu aos homens e, assim, torna presente no nosso hoje as maravilhas do amor de Deus. Eis como são apresentadas na tradição hebraica, em relação com a benção (ou qiddush) das quatro taças (o documento mais antigo que fala delas é o Targum Onkelos, em Ex 12,42):

"Na realidade, no livro dos memoriais estão escritas quatro noites. A primeira noite foi quando o Senhor se manifestou no mundo para criá-lo: o mundo era deserto e vazio, e a treva estendia-se sobre a superfície do abismo, mas o Verbo do Senhor era a luz e iluminava. E Ele chamou-lhe: noite primeira (qiddush da primeira taça).

A segunda noite foi quando o Senhor se manifestou a Abraão que já tinha cem anos, enquanto Sara sua esposa tinha noventa, para que se cumprisse o que diz a Escritura: A verdade é que Abraão gera com a idade de cem anos e Sara deu à luz com noventa. Isaac tinha trinta e sete anos, quando foi oferecido sobre o altar. Os céus baixaram-se e desceram e Isaac contemplou as suas perfeições. E Ele chamou-lhe: noite segunda (qiddush da segunda taça).

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A terceira noite foi quando o Senhor se manifestou contra os Egípcios durante a noite: a sua mão matava os primogênitos do Egito e a sua direita protegia os primogênitos de Israel para cumprir a palavra da Escritura: Israel é o meu primogênito (Ex 4,22). E Ele chamou-lhe: noite terceira (qiddush da terceira taça).

A quarta noite será quando o mundo chegar ao seu fim para ser redimido. As barras de ferro serão despedaçadas e as gerações dos ímpios serão destruídas. E Moisés subirá do deserto e o Rei, do alto: e o Verbo caminhará no meio deles e eles caminharão juntos. É a noite da Páscoa em nome do Senhor, noite predestinada e preparada para a redenção de todos os filhos de Israel, em cada uma das suas gerações (qiddush da quarta taça)”

Fazer memória destas quatro noites ajuda a entrar intensamente na noite de Páscoa, cume e fonte da nossa salvação e de todas as criaturas que estão no mundo. Como quatro etapas, elas marcam o caminho que tende a fazer cada vez mais de nós, em muitos aspectos filhos da noite, os filhos da luz redimidos pelo Amor. No início desta caminhada, fazemos nossas as palavras do grande poeta da noite das núpcias entre Deus e o coração de quem crê, São João da Cruz, porque nos ajudam a invocar e a desejar a noite do encontro, inundada pela luz do Ressuscitado:

Numa noite escura, ansiando, em amores inflamada, ó ditosa ventura, saí sem ser notada, estando já minha casa sossegada: ... Na noite ditosa, em segredo, que ninguém me via, nem eu já via coisa, sem outra luz e guia mas a que no coração ardia. Esta me guiava mais certo que a luz do meio dia onde me esperava num lugar onde ninguém parecia.

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Ó noite que guiaste! Ò noite mais amável que a alvorada! Ó noite que juntaste Amado com amada, amada no Amado transformada!2

2 De São João da Cruz, Noite Escura, Canções da Alma, Estrofe 1.3-5: “ En una noche oscura, / con ansias en amores inflamada, / !oh, dichosa ventura!, / salí sin ser notada, / estando ya mi casa

sosegada. / ... En la noche dichosa, / en secreto, que nadie me veía / ni yo miraba cosa, / sin otra luz y guía / sino la que en el corazón ardia. / Aquesta me guiaba / más cierto que la luz del

mediodía, / adonde me esperaba / quien yo bien me sabía, / en parte donde nadie parecía. / ! Oh, noche que guiaste! / !Oh, noche amable más que la alborada! / !Oh, noche que juntaste / Amado

con amada, / amada en el Amado transformada!”

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A NOITE DA CRIAÇÃO OU DO AMOR HUMILDE

PRIMEIRA NOITE

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PRIMEIRA NOITE

Na realidade, no livro dos memoriais estão escritas quatro noites. A primeira noite foi quando o Senhor se manifestou no mundo para criá-lo: o mundo era deserto e vazio, e a treva estendia-se sobre a superfície do abismo, mas o Verbo do Senhor era a luz e iluminava. E Ele chamou-lhe: a noite primeira (qiddush da primeira taça).

A primeira noite da salvação é a que precede a primeira manhã do mundo: “ No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas. Deus disse: “ Faça-se a luz.” E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou dia à luz, e às trevas, noite. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia” (Gn 1,1-5). Esta primeira noite é o pressuposto essencial de todas as outras, porque se a obra da criação não tivesse existido, nem sequer estaríamos a celebrar a Páscoa. No entanto, é a partir da experiência da salvação que a fé do povo eleito também escruta o mistério do início [do Universo]: o relato bíblico da criação é uma espécie de “profecia retrospectiva”, uma pré-história da Aliança que, segundo o desígnio de Deus, deverá vir.

Portanto, o Salvador é o Criador: Aquele que salva com as suas maravilhas é aquele que cria com o poder do seu amor irradiante. E, como a razão da salvação operada por Ele na história é o amor, assim também o motivo do primeiro princípio por ele querido não pôde ser senão o amor: o amor humilde do Deus altíssimo. Esta convicção está na base da doutrina do “tzimtzum” ou “contracção” divina, muito querida da mística hebraica: Isaac Luria, o cabalista que, na segunda metade do séc. XVI, pôs no centro do seu ensinamento a imagem da “contracção” divina, na pequena cidade de Safed, na Alta Galileia, concebeu o ato criador como um generoso fazer espaço em si mesmo da parte de Deus para a criatura que, de outro modo, não teria podido existir. Onde poderia morar o universo, senão no seio de Deus que se contraiu para hospedar o mundo de modo análogo a uma mãe que acolhe uma nova vida no seu seio? “Tzimtzum” é o ato em que o Imenso se contrai, se faz pequeno para permitir que a criatura exista diante do Outro na liberdade; por isso, o “tzimtzum” do Eterno é o outro nome do seu amor aos homens, expressão daquela misericórdia que em hebraico, significativamente, equivale à idéia de vísceras maternas” (rachamim) e que também é respeito e humildade do Criador diante da criatura.

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A invocação de São Francisco “Tu és a Humildade” (Louvores ao Deus Altíssimo) é um exemplo de como esta mensagem passa do Judaísmo para o mais profundo da alma cristã, pela qual a confirmação suprema da autolimitação de Deus para dar espaço à fragilidade e à pequenez das medidas humanas está precisamente na quenose do Verbo: “Tu és Santo, Senhor Deus único, que fazes coisas estupendas. Tu és forte. Tu és grande. Tu és o Altíssimo. Tu és o Rei onipotente. Tu és o Pai Santo, Rei do céu e da terra. Tu és trino e uno, Senhor Deus dos deuses. Tu és o bem, todo o bem, o sumo bem, senhor Deus vivo e verdadeiro. Tu és amor, caridade. Tu és sabedoria. Tu és humildade.” (Lodi di Dio Altissimo, in Fonti Franciscane, Pádua-Assis, 1980, n.261).

Este “êxtase” do divino, este “estar fora” do Infinito no finito por força do amor humilde é, ao mesmo tempo, o apelo mais alto que se pode conceber no êxtase do mundo, isto é, aquela “transgressão” em direção ao Mistério, que é a vocação de tudo o que existe: a amor das criaturas é chamado a corresponder à iniciativa divina do amor; e, assim como o primeiro Amor é humilde, assim também este segundo amor deve ser humildade. Uma vez mais, é a tradição hebraica que no-lo explica como um saboroso conto rabínico.

As lendas dos Hebreus falam sobre a humildade da letra “aleph”, a mais etérea e volátil de todas as letras do alfabeto hebraico, tão modesta que nem sequer tem um som próprio, mas, de quando em quando, nela se apoiam as vogais que precisam dela. Portanto, quando o Eterno quis criar o mundo, chamou perante si o alfabeto, para perguntar qual das suas letras quereria ser a primeira dos escritos divinos da criação. Como acontece facilmente entre os humanos, também as letras competiram para levantar a mão, pretendendo cada uma delas ser a primeira e, com isso, ser digna de inaugurar o mundo. O “aleph” foi a única que se absteve, não ousando sequer levantar a mão; por isso, foi escolhido o “beth”, de tal modo que a primeira palavra da Escritura é “bereshit”, “ in principio” [no principio], e a primeira letra é o “beth”, com que começa toda a bênção do Santo (“berakah”).

Agora, esta letra – que corresponde ao nosso “b” – escreve-se à maneira de um quadrado aberto para o lado esquerdo, isto é, na direção em que um hebreu prossegue a escrita: ela parece como que incompleta, uma evocação eterna do cumprimento, um desejo, uma evocação eterna do cumprimento, um desejo, uma sede. Precisamente por isso, segundo os Rabinos, o “beth” da primeira palavra da Escritura demonstra que a obra da criação não é conclusão, mas início; não é cumprimento, mas busca e espera. A lenda continua, narrando como o Eterno, admirado com a humildade do “aleph”, quis recompensá-lo. E foi assim que, na hora de se revelar a si mesmo e de dar ao mundo as Dez Palavras, o Decálogo da sua busca de amor pelos homens, foi ao “aleph” que coube o primeiro lugar: “ Eu sou o Senhor teu Deus” – a palavra do eterno fundamento invisível que vem assomar ao tempo e estabelecer a aliança entre

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o Deus vivo e o seu povo – de fato começa com “eu”, em hebraico “anochí” , cuja inicial é precisamente o “aleph”(cf.I.Ginzberg, Le leggende degli Ebrei – I: Dalla creazione al diluvio, direção de E. Loewenthal, Milão, Adelphi, 1995,pp.27s).

Portanto, a história do homem e do mundo começa com o” aleph” e, por isso, está sempre aberta em direção ao desenvolvimento e aprofundamento: a verdade de Deus, porém, é – nos oferecida plenamente só a partir daquele “aleph”,com que começa a palavra da sua soberana autocomunicação. Então, querendo reconhecer no “beth” a metáfora da noite do mundo é na humildade do “aleph” que se deixa entrever a condição necessária para que a criatura acolha a luz da aurora. À humildade do Deus criador deve corresponder o silêncio humilde do homem, a escuta hospitaleira aberta a receber o dom que vem do alto e que faz da escuridão do nosso coração o espaço da luz. É a humildade que ilumina a noite e a torna início de luz: verdadeiramente, “ não é o conhecimento que ilumina o mistério, é o mistério que ilumina o conhecimento” (Pavel Evdokimov). Todo o conhecimento que liberta e salva, neste mundo, começa no abismo do coração humano que procura, mas só se cumpre verdadeiramente quando se deixa atingir humildemente pela luz do seu Deus.

Portanto, a noite primigénia revela a dupla humildade: a humildade de Deus criador que não hesita em autolimitar-se para dar espaço à criatura, tornando-a livre perante si; e humildade da criatura que é a única resposta menos inadequada ao amor infinito. Ora, humildade não é só não ter pretensões, como o “aleph”, mas é tornar-se espaço aberto, acolhimento do outro, sustento do pobre, noite sequiosa de aurora que se torna invocação e expectativa/espera fidelíssima. Então, a taça da primeira noite deixa-nos a grande interrogação: sou humilde? Ponho-me em silêncio diante do grande mistério do mundo? Aceito estar e perseverar na doce escuta da Palavra da vida que vem das nascentes eternas? Reconheço-me nada para deixar-me amar como sou pelo Humilde que, por amor quis criar-me? Esforço-me por ser livre em relação a mim mesmo, livre em relação às coisas e aos outros, para pertencer unicamente a Deus e para deixar-me conduzir por Ele ao longo dos caminhos da aliança para com Ele edificar o mundo e a vida segundo o seu projeto de amor?

Escutemos o convite à humildade que nos vem de Inácio de Loyola, o grande mestre dos exercícios espirituais vividos como via para pôr ordem na nossa vida sob o olhar de Deus: ao mostrar-nos três graus de humildade, faz-nos compreender que a humildade é uma escada em que devemos subir cada vez mais alto para, todos os dias, participar mais profundamente na obra da criação e da salvação: “O primeiro modo de humildade [...] consiste em obedecer em tudo à lei de Deus, nosso Senhor [...]. O segundo é não querer nem ambicionar ser rico, mas pobre; [não] ser

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honrado, mas desprezado; não desejar uma vida longa, mas breve [...]. A terceira é humildade perfeitíssima que só tenho quando, [...] para imitar e assemelhar-me mais concretamente a Cristo nosso Senhor, eu quiser e preferir a pobreza com Cristo à riqueza, os opróbios com Cristo, que está repleto deles, às honras, e desejar ser considerado estúpido e louco por Cristo que foi o primeiro a ser considerado assim, em vez de sábio e prudente neste mundo” (Exercícios Espirituais, nn.165-167).

Oremos para pedir o dom desta humildade – dom do Deus altíssimo – com as palavras do mesmo Santo Inácio de Loyola: “Eterno Senhor de todas as coisas, faço a minha oferta com o vosso favor e ajuda, na presença da vossa bondade infinita e diante da vossa Mãe gloriosa e de todos os santos e santas da corte celeste, que eu quero e desejo e é minha firme decisão, para que seja para maior serviço vosso e maior louvor, imitar-vos em sofrer todas as ofensas e todo o vitupério e toda a pobreza, tanto material como espiritual, se a vossa Majestade quiser eleger-me e receber-me nessa vida e estado. Amem! (Ibidem, n. 98)

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A NOITE DE ABRAÃO OU DA FÉ

SEGUNDA NOITE

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SEGUNDA NOITE

A segunda noite foi quando o Senhor se manifestou a Abraão que já tinha cem anos, enquanto Sara sua esposa tinha noventa, para que se cumprisse o que diz a Escritura: A verdade é que Abraão gera com a idade de cem anos e Sara deu à luz com noventa. Isaac tinha trinta e sete anos, quando foi oferecido sobre o altar. Os céus baixaram-se e desceram e Isaac contemplou as suas perfeições e seus olhos ficaram deslumbrados com as suas perfeições. E Ele chamou-lhe: noite segunda (qiddush da segunda taça).

Se a primeira das quatro noites da salvação é a da humildade de Deus e do homem que lhe corresponde no amor, a segunda é a da fé, inseparavelmente ligada àquele que é o pai dos crentes: Abraão. Quem é Abraão? Qual foi a sua história, qual o seu caminho de fé? Os textos onde podemos buscar a resposta para estas perguntas são sobretudo dois: os capítulos 12 e 22 do livro do Gênesis, a vocação de Abraão e a “´aqedah” (ou atamento”) de Isaac, isto é, a cena do sacrifício no monte Moriá. Abordemo-los, interrogando-nos previamente: qual é a noite em que Abraão se encontra quando é chamado por Deus?

Abraão não é um super-homem; pelo contrário, é um homem com as suas contradições, as suas ambiguidades, as suas máscaras, como quando no Egito apresenta a sua belíssima Sara, sua esposa, como sua irmã para não ser objeto de possíveis golpes de quem pretendesse tomá-la. Sobretudo, Abraão tem um medo interior que é, ao mesmo tempo, uma grande dor: a ideia de morrer sem descendência ! Nos tempos de Abraão não existia a fé na imortalidade pessoal: segundo o juízo comum, a vida era a que se vive neste mundo, encerrada entre o grito do nascimento e o grito da morte. Portanto, tudo o que um homem podia dar ou receber, devia dá-lo ou recebê-lo nos anos de sua vida mortal, Abraão foi, com toda a certeza, influenciado pela mentalidade de seu tempo: para ele, ter um filho era uma questão de vida ou de morte.

Em suma, o pai dos crentes, alguém absolutamente semelhante a nós, com as fragilidades próprias da condição humana, com as incertezas, as dúvidas e as interrogações que todos temos. O que aconteceu a este homem para mudar-lhe tanto a vida para sempre? Deus chama-o: na verdade, são duas as chamadas, relatadas respectivamente em Gênesis 12 e em Gênesis 22. No primeiro texto, o Senhor pede a Abraão que deixe a sua terra, as suas certezas; deixar as suas seguranças custa sempre e custa ainda mais quando já se tem muitos anos e hábitos enraizados, quando se está muito ligado às certezas pessoais, como o cão ao seu pequeno osso. Na verdade, todos nós amamos muito a nossa noite!

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No entanto, Deus promete-lhe algo de muito bom: a plenitude da benção, a descendência numerosa como as estrelas do céu e como a areia que há nas praias do mar. A quem não tinha filhos, tal promessa parece um sonho: para Abraão, Isaac, o filho que lhe será dado, será verdadeiramente “o sorriso de Deus”, como significa o seu nome! A chamada é demasiado bela para não ser aceita. Por isso, Abraão decide obedecer à palavra de Deus e parte, deixando a sua terra, em direção à terra prometida, em direção ao Isaac do seu coração. Deste modo, porém, Abraão, não desceu ao fundo da noite para aproximar-se da aurora: na realidade, ele respondeu a um Deus que lhe dava exatamente o que ele queria. A chamada de Gênesis 12 é a projeção do desejo do coração, em cuja perspectiva até as maiores renúncias se tornam aceitáveis, porque, então, valem o sacrifício.

Se tudo parasse aqui, Abraão não seria o pai dos crentes nem a sua noite seria a segunda das quatro noites da salvação: para que se tenha fé, é necessário que se mude profundamente o coração, que seja marcado para sempre, com algo que nos subverta a vida e nos leve, somente perante Deus, a viver a noite mais escura, a oferta mais difícil, o maior dom e o amor mais profundo. É isto que acontece em Gênesis 22, 1-18, o segundo chamamento de Abraão, aquele que, na tradição hebraica, é chamado “´aqedáh” ou “atamento” de Isaac. Antes de tudo é a ordem de Deus: “ Pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto, num dos montes que Eu te indicar” (v. 2).

Agora, Abraão entra na noite mais escura: já não consegue dizer mais nada. Cala-se. O Deus que o chamou, prometendo-lhe tudo o que ele desejava no mais profundo do seu coração e lhe deu a alegria do seu Isaac, este mesmo Deus pede-lhe que se prive de Isaac. É de enlouquecer! Como é possível que Deus negue as promessas de Deus? Como é possível que o mesmo Deus que o levou a deixar tudo para lhe dar tudo segundo o seu desejo, lhe exija agora que sacrifique tudo, mais, que sacrifique a única coisa que para ele verdadeiramente conta na vida, o filho, o amado do seu coração? É esta a noite de fé de Abraão: é a derrota de Deus, é o oferecimento inquietante de um Deus que parece negar-se a si mesmo, que nos tira o que nos tinha dado: como é possível?

Soren Kierkegaard , ao comentar este episódio bíblico, no belíssimo livro intitulado Temor e Tremor, imagina que, quando Isaac pergunta “onde está a vítima para o holocausto?” e o pai lhe responde “Deus proverá quanto à vítima para o holocausto, meu filho”, pela mente de Abraão perpassa uma oração silenciosa: “Senhor do céu, é melhor que ele me julgue um monstro, a que perca a fé em ti.” Abraão compreende que se dissesse a Isaac que Deus quer sacrificá-lo, o rapaz nunca mais poderia crer em Deus. Então, prefere que o filho pense que o pai é um monstro, em

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vez de perder a fé no Altíssimo. Abraão ama Deus de tal maneira que não somente está pronto a sacrificar-lhe o amado do seu coração, mas também a ser julgado um monstro pelo filho, a fim de que este não perca a fé.

Kierkegaard acrescenta aqui uma reflexão fulgurante: ”Uma pessoa é tão grande quanto as suas expectativas; uma torna-se grande esperando o possível, outra esperando o eterno; mas quem espera o impossível torna-se maior que todos.” Abraão aposta na possibilidade impossível de Deus sobre o acontecimento, isto é, aposta em que o mesmo Deus, que deu e que tirou, é o Deus em quem tem de confiar. Deus tem sempre uma alternativa impossível.

Por isso, Abraão confia em Deus, mesmo no tempo do silêncio de Deus. Esta é a sua grandeza: confiar no Senhor não só quando tudo corre bem, mas sempre, mesmo na noite escura, quando Ele parece querer tirar-lhe o Isaac do seu coração. Abraão deixa de raciocinar em termos de cálculo humano: “do ut des”, dou isto e receberei aquilo. Abraão crê e abandona-se perdidamente, confia e confia-se... É ainda Kierkegaard quem anota: “Deus é aquele que exige amor absoluto,” Não se ama a Deus quando se ama as consolações de Deus; ama-se a Deus, quando o amamos, queira Ele o que quiser para nós.

Para o amor, nenhum sacrifício é demasiado grande; de fato, só se pode sacrificar o que se ama. Sacrificar o que não se ama é até demasiado fácil: o difícil é oferecer a Deus o amor verdadeiro da nossa vida! Diz Kierkegaard: “Abraão ama Isaac com toda a alma e quando Deus lho pede, ama-o, se possível, ainda mais; só assim pode fazer dele um sacrifício.” Abraão só pode sacrificar Isaac porque o ama infinitamente. A Deus não se oferece o refugo do coração, pois só se pode oferecer-lhe o amor maior.

A verdade é que só entramos na noite luminosa da fé quando se oferece a Deus o amado do nosso coração: cada um de nós tem um Isaac do seu coração. Fé é reconhecer este Isaac e estar pronto a colocá-lo sobre o altar do sacrifício, no dia em que Deus quiser. Crer é oferecer o Isaac do seu coração, o único, o amado, oferecê-lo a Deus, porque só Ele é digno desta oferta e deve ser amado assim. Morrer para nascer. Perder-se para encontrar-se.

Abraão morre para os seus sonhos, para os seus desejos, porque está pronto a dar a Deus o seu Isaac, a amar a Deus mais do que a todas as consolações de Deus, a confiar-se perdidamente a Ele. Agora Deus pode dizer-lhe: “Sei agora que, na verdade, temes a Deus” (Gn 22,12), porque Abraão ofereceu o Isaac do seu coração: “Sei agora que, na verdade, temes a Deus, visto não me teres recusado o teu único filho” (Ibidem).

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A fé consiste em: crer na possibilidade impossível de Deus, confiar em Deus, apesar do silêncio de Deus, não obstante a noite escura das suas exigências impossíveis! O homem de fé sabe que Deus é Deus e que é preciso confiar em Deus sem condições. Na verdade, também Deus vive a sua noite por amor aos homens, Também Ele como Abraão oferecerá por nós o Isaac de seu coração.

Afirma Orígenes: “Deus compete magnificamente em generosidade com os homens: Abraão ofereceu a Deus um filho mortal sem que ele morresse; Deus entregou à morte o Filho imortal pelos homens” (Homilia in Genesim, 8). Portanto, o sacrifício de Isaac acaba por ser realizado plenamente por Jesus e Abraão – assumido como figura do Pai celeste que o sacrifica – pode ser, de direito, considerado o nosso pai na fé, ele que soube crer contra toda a evidência e esperar contra toda a esperança.

Abraão torna-se o Pai na fé para muitos povos, porque amou mais a Deus do que as promessas de Deus: pobre de si, rico de Deus, será rico de uma multidão de filhos, que serão todos aqueles que, ao longo história, haverão de crer na fidelidade de Deus, mesmo no tempo da aparente derrota de Deus ou no tempo do seu silêncio. Precisamente por isso, Abraão interpela-nos, a nós que somos seus filhos na fé: creio em Deus porque realiza os desejos do meu coração ou creio em Deus porque Deus é Deus? Amo-o pelas suas consolações ou amo-o porque é Deus, o meu Deus? E ainda: estou pronto a oferecer-lhe o Isaac do meu coração, a colocá-lo sobre o altar do sacrifício, amando a Deus mais do que à recompensa e à consolação de Deus? A Deus não podemos oferecer apenas alguma coisa de nós próprios; a Deus, devemos oferecer-nos a nós mesmos. Então, poderemos dizer que já o amamos e continuamos a amá-lo; então, poderemos viver da fé. Como Abraão, o nosso pai na fé.

E é com a voz de um dos filhos de Abraão que gostaria de concluir esta meditação sobre a segunda noite, a noite da fé. Trata-se de uma página conhecida como a Carta do Judeu do Gueto de Varsóvia. Embora já se tenha demonstrado que foi escrita noutro lugar, ela mostra bem o que é a fé dos filhos de Abraão e como ela arde na noite do sacrifício. O texto apresenta o ambiente de 1943: o gueto de

Varsóvia está cercado e em chamas. Um após outro, caem todos os seus defensores. Numa das últimas casas em que ainda se resiste está presente um filho de Israel. E mete numa garrafa vazia um escrito com as suas últimas palavras:

“Algo de muito surpreendente acontece hoje no mundo. Este é o tempo em que o Onipotente afasta o seu rosto daqueles que lhe suplicam. Deus escondeu ao mundo a sua face; por isso, os homens estão abandonados às suas piores paixões selvagens.

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Num tempo em que esta paixões dominam o mundo, é natural que as primeiras vítimas sejam precisamente aqueles que conservaram vivo o sentido do divino e do puro. Isto pode não ser consolador, mas o destino do nosso povo é estabelecido não por leis terrenas, mas por leis ultraterrenas. Aquele que empenha a sua fé nestes acontecimentos deve ver neles uma parte da grandiosa realização dos planos divinos, perante os quais as tragédias humanas não têm nenhum significado. Não tentarei salvar-me nem tentarei fugir daqui. Meterei esta carta na garrafa vazia e escondê-la-ei entre as pedras desta janela entaipada até meio. Se, mais tarde, alguém a encontrar, talvez possa compreender os sentimentos de um judeu, de um destes milhões de judeus que foram mortos, um judeu abandonado por Deus em quem acreditava muito intensamente.

Creio no Deus de Israel, embora ele tenha feito de tudo para arrasar a minha fé nele. As minhas relações com Ele já não são as de um servo diante do seu senhor, mas as de um discípulo perante o seu mestre. Creio nas suas leis, amo-o. E, embora me tenha enganado em relação a ela, continuarei a adorar a sua Lei. Dizes que pecamos: certamente que pecamos e também admito que sejamos punidos por isso. Contudo, gostaria que me dissesses se há algum pecado na terra que merece tal castigo. Digo-te isto, ó meu Deus, porque creio em ti mais do que nunca, porque sei que és o meu Deus e não Deus daqueles, cujos atos são o fruto horrível da sua impiedade militante.

Não posso louvar-te pelos atos que toleras, mas bendigo-te e louvo-te pela tua Majestade que inspira temor. A tua Majestade deve ser verdadeiramente imensa para que tudo o que acontece neste tempo não te impressione. Agora, a morte já não pode esperar mais. Tenho de deixar de escrever. Minuto a minuto, o tiro das espingardas, nos andares de cima, torna-se cada vez mais fraco. Neste momento, caem os últimos defensores do nosso refúgio e, com eles, cai a grande, a bela Varsóvia judaica que teme a Deus. O Sol põe-se e eu te agradeço, ó Deus, porque nunca mais o verei surgir. Raios vermelhos chovem da janela: o pedacinho de céu, que posso ver, é flamejante e fluído como um fluxo de sangue. Dentro de uma hora, no máximo, estarei junto da minha mulher, dos meus filhos e dos melhores filhos do meu povo num mundo melhor, em que as dúvidas já não dominarão e Deus será o único soberano.

Morro sereno, mas não satisfeito; como um homem abatido, mas não desesperado; crente, mas não suplicante; amando a Deus,mas sem dizer cegamente: Amém. Segui a Deus, mesmo quando Ele me repeliu. Cumpri o seu mandamento mesmo quando, para premiar a minha observância, Ele me castigava. Amei-o, amava-o e amo-o ainda, embora me tenha abaixado até ao chão, me tenha torturado até à morte, me tenha reduzido à vergonha e ao escárnio. Podes torturar-me até a morte, acreditarei sempre em ti; amar-te-ei sempre, mesmo que não queiras. E estas são as minhas últimas palavras, meu Deus de cólera: Não conseguirás fazer com que te renegue.

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Tentaste de tudo para fazer-me cair na dúvida, mas eu morro como vivi: numa fé inabalável em ti. Louvado seja o Deus dos mortos, o Deus da vingança, o Deus da verdade e da fé que imediatamente mostrará os fundamentos com a sua voz onipotente. Shemá Israel, Adonai Elohenu, Adonai echad! Escuta, Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um!”

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A NOITE DO ÊXODO OU DA ESPERANÇA LIBERTADORA

TERCEIRA NOITE

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TERCEIRA NOITE

A terceira noite foi quando o Senhor se manifestou contra os egípcios durante a noite: a sua mão matava os primogênitos do Egito e a sua direita protegia os primogênitos de Israel para cumprir a palavra da Escritura: Israel é o meu primogênito (Ex 4,22). E Ele chamou-lhe noite terceira (qiddush da terceira taça).

A terceira noite, de que a Páscoa faz memória, é a noite de saída dos Hebreus do Egito e da passagem de Mar Vermelho em direção à terra da promessa de Deus, a terra da esperança e da liberdade: o grande protagonista desta noite é Moisés, incindivelmente ligado ao povo de quem o Senhor o torna chefe e libertador. O seu nome quer dizer “salvo das águas” e evoca não só o início providencial da sua vida entre as águas do Nilo e os braços acolhedores e maternos da filha do Faraó, mas também o caminho da libertação do seu povo da escravatura do país do Egito em direção à Terra da promessa de Deus, passando através das águas do Mar Vermelho, prodigiosamente abertas diante dos filhos de Israel.

Segundo o testemunho bíblico, Moisés tem uma relação única e privilegiada com o Senhor: enquanto a todos os outros homens só é concedido contemplar o Senhor pelas costas, ele é o amigo de Deus, aquele com quem o Eterno fala “face a face” (Ex 33,11; Dt 34,10; Nm 12,8). Para dizer quanta ternura e atenção Deus lhe dedica, um delicioso conto rabínico fala da “portinha de Moisés”, uma pequena porta colocada sob o trono do Altíssimo: quando os anjos – embora muito bons – tiveram um inesperado ataque de ciúmes por causa da predileção que o Eterno tinha por Moisés e, de bom grado, queriam espancá-lo, o Senhor abriu com o pé uma portinha e mandou que Moisés entrasse por ela para lá encontrar refúgio e proteção (Êxodo rabbad XLII,5).

Este lugar especial de Moisés no coração do Eterno tem paralelo na veneração que toda a tradição hebraica tem por ele: o esperado Messias será como um novo Moisés, assegura-nos o livro do Deuteronômio (18,15: “O Senhor, teu Deus, suscitará no meio de vós, dentre os teus irmãos, um profeta como eu; a ele deves escutar”); nas sinagogas, há sempre a “cátedra de Moisés”, símbolo do uso permanente do ensino em Israel. Também no Novo Testamento ele tem um lugar de grande relevo, sendo citado menos de oitenta vezes! Em particular, Paulo diz (em 1 Cor 10,1ss) que os nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem, atravessaram o mar e foram batizados em Moisés ("eis“tón Mousén”), vendo claramente nele um símbolo do Cristo que virá, em quem, por sua vez, seremos batizados.

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Moisés é a grande figura da esperança messiânica: ninguém como ele antecipa o destino do Messias, libertador do seu povo e seu guia para a terra prometida por Deus, como ele destinado a morrer só, num monte. Ninguém, como ele destinado a morrer só, num monte. Ninguém, como ele, representa as estações da vida que também são as diferentes estações da esperança e do caminho mda liberdade em direção ao cumprimento do reino de Deus. Nin guém como ele representa o povo inteiro diante do eterno e, em certo sentido, a humanidade inteira aos olhos de Deus. Por isso, conhecer Moisés quer dizer conhecer a verdade da existência humana neste mundo perante Deus, como também a verdade de Deus que se destinou ao homem e, depois, a vida de Cristo, o Moisés do novo e definitivo cumprimento.

Também a meditação cristã lê, na vida de Moisés salvo das águas, a figura da vida de todos quantos na água do Batismo foram libertos do pecado e começaram a fazer parte do novo povo de Deus. Por isso, São Gregório de Nissa escreve uma estupenda Vida de Moisés, na qual ele é apresentado como um modelo de virtudes, um exemplo excelente da caminhada que todos deveríamos percorrer para agradar a Deus, vivendo a nossa existência de batizados – como Moisés, salvos das águas! – como um caminho pascal, uma espécie de êxodo contínuo da escravidão do nosso Egito para a liberdade da terra prometida por Deus, na comunhão do seu povo, a Igreja.

Segundo Gregório, Moisés é aquele que conheceu no monte santo a “treva luminosa” da experiência mística do divino (II, 163) e foi “o ardente apaixonado pela beleza”(II,231), que nunca deixou de avançar em direção à visão de Deus: Moisés é o grande profeta da esperança porque é ardente o seu desejo de ver o rosto do Senhor. Este desejo da visão beatífica nunca se extinguiu nele, mesmo nas horas escuras do desencanto e da rendição: “Ver Deus significa nunca se saciar de desejá-lo... nem o progresso do desejo do bem é impedido por alguma saciedade” (II,239). Foi precisamente neste contínuo crescimento do desejo que Moisés foi uma testemunha da beleza de Deus, que nos pede que esperemos contra toda a esperança e faz de nós, como fez dele, “a marca da beleza que nos foi mostrada” (II,319).

Na esteira da tradição hebraica, o capítulo sétimo dos Atos dos Apóstolos (7,20-43) apresenta a vida de Moisés, dividindo-a em três etapas, de quarenta anos cada uma: no v. 23 diz-se que, “quando completou os quarenta anos, veio-lhe ao espírito a ideia de visitar seus irmãos, os filhos de Israel”; no v.30 afirma-se que, “ao fim de quarenta anos, apareceu-lhe um Anjo no deserto do monte Sinai, na chama de uma sarça ardente”. Aliás, no livro do Deuteronômio, o mesmo Moisés diz ao morrer: “ Tenho cento e vinte anos” (31,2: cf. 34,7). Portanto, segundo a tradição bíblica, a vida de Moisés compreende três estações de quarenta anos cada uma, nas quais poderíamos reconhecer as estações da esperança nas várias formas em que ela se apresenta na vida dos homens: em suma, as três etapas de quarenta anos cada uma tem um significado próprio de valor universal.

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A primeira etapa, os primeiros quarenta anos, são o tempo da utopia, ou seja, o tempo da esperança ilusória e vã, da doce inconsciência, em que Moisés, salvo das águas, graças à filha do Faraó e instruído na casa real de modo requintado (cf, Ex 2 e At 7), vive num mundo acolchoado, protegido. É a idade dos sonhos e das grandes esperanças: é a idade de uma consciência filtrada, predominantemente ilusória, da vida e dos homens. É a estação em que a esperança não é mais do que a projeção dos desejos, a paixão por aquilo que parece possível, embora talvez nunca o seja. É um tempo da vida em que tudo parece fácil, uma idade em que a fronteira entre a realidade e o sonho é quase tão imperceptível, que, por vezes, a realidade parece unicamente um apêndice do sonho. Foi assim que Moisés começou a esperar mudar o mundo. Ele sabe, porque a sua ama – que, depois, descobre que é sua verdadeira mãe – lho tinha dito, que é um filho de Israel e, como jovem brilhante, rico e feliz que é, concebe no seu coração o sonho de ser o libertador da sua gente.

Na “doce inconsciência” desta fase, ele procura mais a sua glória do que verdadeiramente a liberdade daquele seu povo que, na realidade, não conhece nada. Deste modo, Moisés sai de casa do Faraó para ir para o meio dos filhos de Israel, a quem sabe que pertence. Mas, mal acaba de sair, sucede algo de inesperado e o nosso herói assiste a uma cena intolerável: um egípcio bate num hebreu, num irmão seu. Moisés indigna-se e é levado pela tentação – para ele, até então, desconhecida – da violência. Nem sequer sabendo exatamente o que faz, mata o egípcio, mas logo se arrepende, esconde o cadáver como querendo apagar o ato realizado.

No dia seguinte, Moisés vê um hebreu bater num seu irmão de raça e intervém para recordar-lhes a fraternidade que os une: é então que surge a frase inesperada, cortante: “Acaso pensas matar-me como mataste o egípcio?” Os seus próprios irmãos começaram a rejeitá-lo, porque se tornara terrivelmente incomodo. Moisés, que pensava ingenuamente que podia mudar o mundo e caíra rapidamente na típica armadilha dos atalhos ideológicos, isto é, na violência, começa a compreender que a realidade é muito dura e difícil. E experimenta a grande dor da derrota: o sonhador iludido, o jovem que conheceu a doce inconsciência, conhece todo o peso da realidade e torna-se de repente o homem desiludido, consciente da sua precariedade, Começa o tempo do desencanto, o tempo da penúria de esperança, o tempo da nostalgia e dos sonhos perdidos.

É a segunda etapa da vida de Moisés, a estação do fracasso: a ilusão dá lugar à desilusão. Moisés conhece a experiência dolorosíssima de tornar-se estrangeiro para todos: para o Faraó, porque doravante é um rebelde; para os seus, porque a sua audácia mete-lhes medo, pois temem que ele comprometa o equilíbrio precário da escravidão em que se encontram; para si mesmo, porque se vê obrigado a fugir, sem conhecer uma meta. Ele, o corajoso que tinha

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renunciado aos privilégios, conhece o medo e foge para a terra de Madian. Nesta terra de exílio vai-se progressivamente acomodando: como pensa que já fez o suficiente, abandona os sonhos da juventude e considera que já tem direito a uma vida tranquila, sem surpresas ou perigos.

É o tempo da resignação, em que Moisés parece já ter-se tornado incapaz de sonhar; quando já não somos capazes de sonhar, devemos preocupar-nos porque pode acontecer que, naquele momento, a nossa alma esteja morta, embora o nosso corpo continue a viver. O fracasso torna-se renúncia e o exílio em relação ao exterior transforma-se em exílio interior: Moisés rende-se à realidade e, fingindo que tudo vai bem, aturde-se, seguindo o dinheiro, a tranquilidade, as pequenas alegrias de um quotidiano sem surpresas. E, contudo, os quarenta anos de Madian também são um tempo de amadurecimento, de solidão com Deus no deserto. A esperança continua viva debaixo das cinzas dos sonhos. Deste modo, no desencanto, prepara-se misteriosamente a missão dos anos da maturidade...

É a terceira etapa, o tempo da esperança da fé, o tempo que começa com uma viragem radical, marcada pela irrupção de Deus na sua vida: “Ao fim de quarenta anos, apareceu-lhe um Anjo no deserto do monte Sinai, na chama de uma sarça ardente” (At 7,30). Aparentemente de improviso, mas na realidade como fruto de um amadurecimento profundo e lento, que até o próprio desconhecia. Moisés descobre a iniciativa de Deus e compreende que – embora não quisesse interessar-se por Deus – Deus interessou-se por ele. Colocam-se aqui os grandes acontecimentos que farão de Moisés a antecipação do Messias, o libertador do povo escravo.

O primeiro evento é a experiência da “sarça ardente” (At 7, 30-31; Ex 3, 1-15; cf. Ex 6,2-13 e 6,28-7,7), onde se sucedem o maravilhamento, o chamamento de Deus e a resposta da fé. Em primeiro lugar, o maravilhamento: Moisés apascenta o seu rebanho na área do monte Sinai quando, inesperadamente, vê um arbusto arder sem se consumir. “Aproximando-se para observar melhor...”: esta anotação é importante porque diz-nos que Moisés, embora já tenha visto muitas coisas, continua capaz de maravilhar-se. Aos oitenta anos, ainda é capaz de espantar-se, de se abrir ao que é novo! É o homem radical, na sua raiz, o buscador do Mistério: onde houver maravilhamento, haverá abertura à novidade de Deus, à impossível possibilidade do seu amor, à esperança! Moisés não deixou de ser um peregrino do desejo, um buscador do Amado escondido; não obstante se tenha adaptado ao exílio, o seu coração continua a arder sequioso por uma beleza que ainda não encontrou.

É neste ponto que chega o chamamento de Deus: “Moisés! Moisés!”. Deus chama-o pelo nome. Ninguém é anônimo diante de Deus: cada um de nós é um “tu” absolutamente único, singular, objeto de um amor infinito. Moisés

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sente-se amado pessoalmente por Deus. Não é a experiência de uma vontade de capturar Deus para si: pelo contrário, a advertência é clara: “Não te aproximes daqui, tira as tuas sandálias dos pés...” (Ex 3,4-6). É necessário deixarmo-nos agarrar por Deus, porque Deus só pode transformar o deserto em terra santa e a noite em terreno de aurora! Deus encontra-te onde estás e muda-te o coração e a vida, mudando o mundo à tua volta, para que o vejas com olhos completamente novos, liberto da tua cegueira.

Em suma, o Deus que te chama, o Deus da esperança, não é algo de que te podes apoderar: deves permanecer diante dele no espanto da escuta e da expectativa; deves deixar que Ele seja Outro [ diferente ] de ti, deves deixar que seja Ele a fazer. Deves abrir-te à sua impossível possibilidade, não à possibilidade calculada que gostarias de lhe impor. O Deus que chama não é uma projeção de ti, do teu desejo ou dos teus medos, mas é o Deus do adveniente e do novo, o Deus transcendente que se dá à conhecer como aquele que é para ti: ”Eu é que envio.” O protagonista já não é ele, Moisés; não é ele quem decide e pretende mudar o mundo: É Deus quem o envia. “Vai ter com o Faraó.” Como se nada tivesse acontecido, como se nunca tivesse conhecido o fracasso, Moisés aceita o novo início: é o homem da esperança que puxa para o presente o dever de Deus, porque acolhe no hoje o dom do amanhã prometido.

É, então, que o Senhor se revela até no seu nome e misterioso como o Deus da esperança. O seu Nome é uma promessa: “Eu sou aquele que sou”, “Eu estarei contigo”, o Deus fiel (Ex 3,14). Moisés não pediu a definição da essência divina; pediu que Deus se empenhasse por ele e pelo seu povo. O Nome santo e bendito quer ser uma garantia, fundada na verdade do Deus fiel, sobre cuja base Moisés pode iniciar a sua aventura. E, assim, ele parte na esperança da fé, porque se deixou subverter por Deus: enquanto não acontecer esta subversão, esta viragem, que de protagonista te transformará em servo obediente do Altíssimo, não terás conhecido Deus. Deus é o Deus que subverte, que exige tudo e a quem se deve dar tudo.

É neste momento que Moisés experimenta a provação da fé, a hora da esperança que nos liberta e faz de nós libertadores de homens: a passagem do Mar Vermelho (Ex 14,5-15,20; cf. 1 Cor 10,1-2; Heb 11,29). De um lado, está o mar com as suas ondas, do outro, o Faraó com os seus cavalos e os seus carros. A lógica humana imporia um cálculo, uma escolha orientada para o compromisso: a alternativa parece ser unicamente entre a morte no mar e a rendição ao Faraó ( cf. Ex 14,10-14). Impõe-se uma opção: confiar em Deus ou calcular segundo as possibilidade mundanas, Moisés tem medo. E, no entanto, não hesita em dirigir-se ao povo encorajando-o: “ Não tenhais medo. Permanecei firmes e vede a salvação que o Senhor fará para vós hoje”(v.13). Esta é a noite de Moisés: noite marcada

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pelo medo produzido pela evidência das forças em jogo; todavia, noite luminosa, em que a treva é iluminada pela luz da esperança, da chama da fé.

Moisés fica sozinho diante de Deus: na solidão, grita-lhe de tal modo que Ele pergunta-lhe: “Porque clamas por mim?” (v.14). A solidão com Deus, porém, revela-se como a casa da fé, a noite luminosa, a morada preciosa da esperança nascente. Por isso, embora provado, Moisés continua a testemunhar ao povo a confiança na fidelidade do Eterno: “O Senhor combaterá por vós” (v.14). Doravante, Moisés será um verdadeiro chefe, porque sabe que o que pode ousar no contato direto com Deus, deve ser seu mediador junto dos seus; nunca mais precisará de descarregar as suas cruzes nas costas de quem é mais fraco! Daqui em diante, Moisés é o homem da esperança, da esperança de Deus.

Deste modo, abre-se à outra possibilidade: crer em Deus onipotente, apesar da aparente e possível derrota de Deus. É assim que Moisés chega ao ato mais importante da sua vida: confia em Deus, crê contra toda a esperança. Vivendo a escuridão do salto da fé, obedece ao Senhor que lhe diz: “ Fala aos filhos de Israel e manda-os partir. E tu, levanta a tua vara e estende a mão sobre o mar e divide-o, e que os filhos de Israel entrem pelo meio do mar, por terra seca” (vv.15s). Uma divertida tradição rabínica informa-nos o porquê de Moisés bater no mar: tendo-se dirigido a ele para transmitir-lhe a ordem divina, o mar respondeu-lhe que não tinha a mínima intenção de lhe obedecer porque era jovem, pois só fora criado no último dos seis dias. Então, Moisés correu ao Eterno a acusar aquele mar desobediente; o Altíssimo explicou-lhe que o servo que não obedecesse devia ser castigado. Apoiado pela força divina, Moisés voltou a bater no mar que, por fim se abriu...

Foi neste ponto que o povo passou incólume entre as águas, enquanto os Egípcios que o seguiam foram engolidos. O simbolismo é trágico e duríssimo: as águas da vida para uns são as águas da morte para os outros. Moisés, o guia da esperança que passa através do mar, é o salvo das águas juntamente com o seu povo. Foi, então, que conheceu o triunfo da fé: na noite, confiando cegamente, sem ver, abriu-se-lhes uma passagem real e explodiu do seu coração o cântico de gratidão, o cântico de gratidão, o cântico dos libertos (cf. Ex 15).

Desde então, Moisés será para sempre aquele que foi naquela noite no Mar Vermelho: o homem da intercessão e da responsabilidade (cf. Ex 17), o homem da Palavra (cf. Ex 19,17), aquele que sofre por amor ao seu povo e por amor a Deus, num contínuo êxodo vivido na esperança em direção à terra da promessa de Deus.

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Aos cento e vinte anos, concluiu-se a vida de Moisés: segundo o relato do Deuteronômio, ele morreu sozinho, em obediência a Deus, sem entrar na terra da promessa. O Senhor disse a Moisés: “Sobe ao monte Abarim, isto é, ao monte Nebo, situado na terra de Moab, em frente de Jericó, e contempla a terra de Canaã, que Eu hei-de dar aos filhos de Israel em propriedade. Morrerás no monte ao qual vais subir” (Dt 32,49s). É comovente esta sua caminhada solitária para a morte, obedecendo a Deus, numa antecipação de Jesus, o novo Moisés que morrerá sobre o monte: “E Moisés, o servo de Deus, morreu ali, na terra de Moab, por determinação do Senhor” (Dt 34,5). Na solidão, no frio do monte, um Outro acolhê-lo-á e aquecê-lo-á. E, enquanto só o deixa contemplar de longe a Terra Prometida, dá-lhe a verdadeira terra, de que aquela que apenas vislumbra é símbolo...

A morte de Moisés – como a do cristão, salvo das águas e, por isso, guardião da esperança do Ressuscitado – não é simplesmente ocaso, mais sim aurora de vida: “dies natalis” , dia do nascimento e não dia do fim, limiar de onde o Outro divino chama para o último êxodo e acolhe na Páscoa eterna. É assim que Moisés – a testemunha da esperança em Deus até ao fim, além do fim – interpela a nossa vida de salvos nas águas do Batismo, redimidos pela Páscoa de Jesus: onde estamos na caminhada da esperança da fé? Em que etapa, julgamos encontrar-nos? Já superamos o tempo da utopia que, para a humanidade de que somos parte, foi o tempo das ideologias e dos sonhos da modernidade emancipada? Já atravessamos o desencanto ou ainda estamos nele, companheiros de estrada das inquietações das mulheres e dos homens da nossa época pós moderna? Já entramos na noite luminosa da esperança e da fé? Já atravessamos com Jesus, o novo Moisés, o nosso Mar Vermelho? Já nos encaminhamos decididamente com Ele na noite em direção à terra da promessa de Deus? Estamos a conduzir para lá, com fidelidade e esperança, aqueles que nos foram confiados?

Com humildade e confiança, peçamos ao Senhor – que libertou o seu povo e sempre de novo o guia para a liberdade – que nos liberte também a nós cada vez mais profundamente, mergulhando-nos sem descanso no oceano do seu amor infinito; que a sua graça ajude cada um de nós a compreender que a diferença entre a utopia e a esperança da fé é a mesma que existe entre o homem sozinho diante do seu amanhã e o homem que creu no advento de Deus e espera o seu retorno, indo ao seu encontro com sinais inequívocos de preparação e de expectativa / espera. Esta esperança não é algo que se possa possuir, mas Alguém que vem ao nosso encontro e nos possui: é Jesus, o novo Moisés. Deste modo, a terceira noite, a noite do Êxodo – embora tão longe no tempo -, atualizada na memória da fé, abre-nos à esperança de que este novo e velho mundo do início do terceiro milênio precisa mais do que nunca para viver e para renascer.

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Àquele que é a esperança em pessoa, peregrinos como somos na noite do tempo e na noite da cruz, suspensos entre as seduções do Egito e a liberdade provocante da Terra Prometida, dirijamos – fazendo-as nossas – as palavras de um peregrino da esperança, John Henry Newman que, nas brumas da sua busca inquieta da Verdade, soube abrir-se à invocação e acolher em resposta o dom da libertação, o penhor da esperança dada por Deus à sua Igreja, a esperança que não desilude nem nunca desiludirá:

Guia-me, Luz amável, na escuridão que me acolhe, guia-me Tu! A noite está escura, e a casa, distante: guia-me Tu! Guarda os meus passos! Não te peço para ver o horizonte longínquo: basta-me um passo de cada vez!3

Um grande contemplativo do amor, São João da Cruz, perito da luz divina, mas também da noite da alma, ajuda-nos a entrar na noite luminosa, onde o olhar do coração apaixonado, da fé viva, a esperança ardente, embora seja noite, não se afasta da fonte da luz, reconhece os seus esplendores e deixa-se cada vez mais inundar por ela para caminhar, livre e confiadamente, em direção à terra da liberdade que é a morada de Deus:

Bem conheço a fonte que mana e corre: embora seja de noite. Aquela eterna fonte está escondida,

3 Lead, kindly Light,/ amid the encircling gloom,/ Lead thou me on! / The night is dark,/ and I am far from home,/ Lead thou me on! / Keep thou my feet! / I do not ask to see / the distant scene; / one step enough for me.”

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mas eu bem sei onde tem sua morada: embora seja de noite. ... Sua claridade nunca obscurecida, e sei que toda a luz de ela nos é vinda: embora seja de noite. ... A corrente que nasce desta fonte; bem sei que é tão rica e onipotente: embora seja de noite. A corrente que destas duas procede sei que nenhuma delas a precede, embora seja de noite. ... Esta eterna fonte está escondida neste pão vivo para nos dar vida, embora seja de noite. Aqui está chamando as criaturas e desta água se saciam, embora às escuras, porque é de noite. Esta fonte viva que desejo neste pão da vida eu a vejo embora seja de noite.4

4 São João da Cruz: Que bien sé yo la fonte: “Que bien sé yo la fonte que mana y corre, / aunque es de noche./ Aquella eterna fonte está escondida, / que bien sé yo dó tiene su manida,/ aunque es de noche./... Su claridade nunca es oscurecida/ y sé que toda luz de ella es venida, / aunque es de noche./.../ El corriente que nace de esta fuente / bien sé que es tan capaz y onipotente,/ aunque es de noche./ El corriente que de estas dos procede / sé que ninguna de ellas le precede,/ aunque es de noche./ .../ Aquesta eterna fonte está escondida/ en este vivo pan por darnos vida,/ aunque es de noche./ Aquí se está llamando a las criaturas,/ y de esta agua se hartan, aunque a oscuras, / porque es de noche./ Aquesta viva fuente que deseo,/ em este pan de vida yo la veo,/ aunque es de noche.”

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A NOITE DO MESSIAS OU DO AMOR CRUCIFICADO

QUARTA NOITE

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QUARTA NOITE

A quarta noite será quando o mundo chegar ao seu fim para ser redimido. As barras de ferro serão despedaçadas e as gerações dos ímpios serão destruídas. E Moisés subirá do deserto e o Rei, do alto: e o Verbo caminhará no meio deles e eles caminharão juntos. É a noite de Páscoa em nome do Senhor, noite predestinada e preparada para a redenção de todos os filhos de Israel em cada uma das suas gerações (qiddush da quarta taça).

A quarta noite da salvação é a noite do Messias: Ele virá como luz na noite, Palavra no silêncio, Vida vitoriosa da morte. Esta noite é cantada assim pela liturgia da Vigília de Páscoa: “Esta é a noite, em que Cristo, quebrando as cadeias da morte, se levanta vitorioso do túmulo. Oh, admirável condescendência da vossa graça! Oh, incomparável predileção do vosso amor! Para resgatar o escravo, entregaste o Filho! Oh, necessário pecado de Adão, que foi destruído pela morte de Cristo! Oh, ditosa culpa, que nos mereceu tão grande Redentor!... Oh, noite bendita, única a ter conhecimento do tempo e da hora em que Cristo ressuscitou do sepulcro! Esta é a noite, da qual está escrito: ”a noite brilha como o dia e a escuridão é clara como a luz.” Esta noite santa afugenta os crimes, lava as culpas; restitui a inocência aos pecadores, dá alegria aos tristes... Oh, noite ditosa, em que o Céu se une à terra, em que o homem se encontra com Deus!”

Nesta noite, a Palavra ecoa no silêncio como luz nas trevas do coração e da história: “Quando um silêncio profundo envolvia todas as coisas e a noite ia a meio do seu curso, então, a tua palavra onipotente desceu do Céu e do trono real e, como um implacável guerreiro, lançou-se para o meio da terra condenada à ruína, trazendo, como espada afiada, o teu irrevogável decreto” (Sb 18,14s). Nesta noite, celebram-se as núpcias do Verbo e da Esposa, seladas pelo amor forte como a morte: “Aquele Logos, em quem tudo no céu e na terra está reunido e possui a sua verdade, cai ele próprio na escuridão, na angústia... A interrogação permaneceu como o único modo de falar. O fim da pergunta é o forte grito. E a palavra já não é palavra... A Palavra de Deus no mundo tornou-se muda, na noite ela já não chama por Deus; jaz sepultada na terra. A noite que a cobre não é uma noite de estrelas, mas noite de desolação profunda e de alienação mortal. Não é um silêncio repleto de mil segredos de amor que brotam da presença conhecida do amado; mas silêncio de ausência, de distância, de abandono vazio, que chega depois de todos os rasgões do adeus”(H.U. von Balthasar, Il tutto nel frammento, Milão 1972, pp. 223,226).

É a noite da paixão de Jesus, noite das três vezes, que também são os tempos do adeus: noite da traição, noite da entrega, noite do abandono. No início existe o drama da infidelidade, que culmina na decisão do Traidor de

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embrenhar-se na noite: é a noite do amor não amado, do pecado como rejeição do amor, da traição. “Tendo dito isto, Jesus perturbou-se interiormente e declarou: “Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me há de entregar!” Os discípulos olhavam uns para os outros, sem saberem a quem se referia. Um dos discípulos, aquele que Jesus amava, estava à mesa reclinado no seu peito. Simão Pedro fez-lhe sinal para que lhe perguntasse a quem se referia. Então ele, apoiando-se naturalmente sobre o peito de Jesus, perguntou:” Senhor, quem é?” Jesus respondeu: “ É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado.” E molhando o bocado de pão, deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes. E, logo após o bocado, entrou nele Satanás. Jesus disse-lhe, então: “O que tens a fazer fá-lo depressa. “Nenhum dos que estavam com Ele à mesa entendeu, porém, com que fim lho dissera... Tendo tomado o bocado de pão, saiu logo. Já era de noite” (Jo 13,21-30).

Nesta narração da noite do amor traído, comove a menção de tantos sinais de amor oferecidos por Jesus: assim, a menção do discípulo amado (v.23), a figura de cada discípulo do amor; o facto de estar encostado ao peito de Jesus (v. 23; cf. Jo 1,18: amado, isto é, como um bebê no seio da mãe): a oferta do bocado a Judas (v.26), gesto de ternura e de predileção. É neste contexto de amor intensíssimo que entra em cena o Adversário, aquele que divide, o Diabo. A separação em que Satanás assoma é, antes de tudo, a que existe entre a verdade e a aparência: ela não escapa a Jesus que convida Judas a depor a máscara ( “ O que tens a fazer, fá-lo depressa!”) como que a dizer-lhe: “Sai para a luz, faz perecer o que és!” Mas esta distinção escapa aos discípulos (v.28), porque estão prisioneiros da máscara.

Tudo o que irá acontecer será o triunfo da noite (v.30): é a noite do Evangelho de João, a treva da rejeição, a alternativa à luz vinda ao mundo (Jo 1,4.9). O pecado é rejeitar a luz: a traição é não amar o amor, não se confiar ao seio, fazendo assim do bocado de vida o bocado de morte. E, no entanto, Judas, ao sair para a noite, leva o bocado consigo para fora, como que a dizer que o amor nunca abandonará o amado infiel nem mesmo quando este preferir o amor das trevas... O fugitivo do amor leva consigo o penhor do amor; por isso, não espanta que os Padres da Igreja tenham visto naquele bocado o pão da Eucaristia, penhor de um amor fiel até à morte, mais forte do que a morte...

O segundo momento da noite do Messias é a hora do Getsémani, em que se cumpre a entrega que Jesus faz de si ao Pai e à morte, e a entrega que o Traidor faz dele aos senhores da Lei: ” Depois de cantarem os salmos, saíram para o Monte das Oliveiras. Jesus disse-lhes, então “Nesta mesma noite, todos ficareis perturbados por minha causa”... Entretanto, Jesus com os seus discípulos chegou a um lugar chamado Getsémani e disse-lhes: “Sentai-vos aqui, enquanto Eu vou além orar.” E, levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e angustiar-se. Disse-lhes, então: “A minha alma está numa tristeza de morte; ficai aqui e vigiai comigo.” E,

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adiantando-se um pouco mais, caiu com a face por terra, orando e dizendo: “Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice. No entanto, não seja como Eu quero, mas como Tu queres. ”Voltando para junto dos discípulos, encontrou-os a dormir e disse a Pedro: “Nem sequer pudeste vigiar uma hora comigo! Vigiai e orai, para não cairdes em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é débil.””

Entorpecidos pelo sono da noite, os discípulos dormem: Jesus está só, só na noite do amor supremo, só na entrega de si ao Pai por nós.

“Afastou-se, pela segunda vez, e foi orar, dizendo: “Meu Pai, se este cálice não pode passar sem que Eu o beba, faça-se a tua vontade!” Depois voltou e encontrou-os novamente a dormir, pois os seus olhos estavam pesados. Deixou-os e foi orar de novo, pela terceira vez, repetindo as mesmas palavras. Reunindo-se finalmente aos discípulos, disse-lhes: “Continuai a dormir e a descansar! Já se aproxima a hora, e o Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos pecadores. Levantai-vos, vamos! Já se aproxima aquele que me vai entregar.” Ainda Ele falava, quando apareceu Judas, um dos Doze, e com ele muita gente, com espadas e varapaus, enviada pelos sumos sacerdotes e pelos anciãos do povo. O traidor tinha-lhes dado este sinal: “Aquele que eu beijar, é esse mesmo: prendei-o.” Aproximou-se imediatamente de Jesus e disse: “Salve, Mestre!” E beijou-o. Jesus respondeu-lhe: “Amigo, a que vieste?” Então, avançaram, deitaram as mãos a Jesus e prenderam-no... Então, todos os discípulos o abandonaram e fugiram” (Mt 26,30-56).

É noite: Jesus está em Getsémani, no fim da sua caminhada terrena, na hora em que diante dele se põe a extrema consequência da sua escolha de amor. Ele sente, até ao suor de sangue (cf. Lc 22,44), a tentação da outra margem. Os evangelistas falam da sua angústia (cf. Mc 14,33 e Mt 26,37), da sua tristeza (cf. Mc 14,34 e Mt 26,38), do seu medo (Mc 14.33). ele sente uma imensa necessidade de proximidade amiga: “Ficai aqui e vigiai comigo” (Mt 26,38). Mas é deixado só, tremendamente só, diante do seu futuro, como acontece nas opções fundamentais de todos os homens: “Nem sequer pudestes vigiar uma hora comigo!” (Mt 26,40). Uma vez mais, põe-se diante dele,do modo mais violento, a alternativa radical: salvar a sua vida ou perdê-la, escolher entre a sua vontade e a vontade do Pai: “Abbá, Pai! Tudo te é possível. Afasta de mim este cálice!” (Mc 14,36 e par.). Na noite da entrega, que também é a da sua solidão diante do Pai, treva luminosa em que confirma o sim da sua liberdade radical, o Filho na carne agarra-se inteiramente àquele que chama com o nome da confiança e da ternura: “Abbá!... Não se faça o que Eu quero e sim o que Tu queres!” (ibidem). Não é por acaso que esta é a única vez nos Evangelhos em que se conserva a forma aramaica da invocação ao Pai: Abbá!

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O sim de Jesus nasce do amor sem reservas: a sua entrega é a da liberdade do amor! Na hora suprema, Ele ainda escolhe o dom de si, põe-se nas mãos do seu Pai com uma confiança infinita e vive a sua entrega como liberdade de si pelo Pai e pelos outros. É a liberdade de quem encontra a sua vida, perdendo-a (cf. Mc 8,35), a capacidade de arriscar tudo por amor, a audácia de quem dá tudo. Neste mistério da entrega, transparece a opção fundamental de Jesus, a escolha sobre a qual ele aposta tudo, a vocação da sua vida: a que o autor da carta aos Hebreus interpretou fielmente com as palavras do Salmo 40,9: “Eis que venho para fazer a tua vontade” (Heb 10,9). “O meu alimento – diz o Cristo joanino – é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua obra” (Jo 4,34; cf. 8,29; 15,10). Jesus manifesta-se como o homem totalo mente livre por amor, totalmente orientado para o Pai e para os outros. Ele testemunha que ninguém é tão livre quanto quem é livre da sua própria liberdade, por causa de um grande amor. Livre de si, Ele existe para o Pai e para os outros: é esta a sua entrega, a sua opção que faz dele verdadeiramente “o homem livre”.

Abandonado pelos seus, considerado um blasfemador pelos senhores da Lei e um subversivo pelo representante do poder de César, Jesus vai ao encontro de um processo iníquo e do seu fim: tudo parece resolver-se no destino cruel de uma das muitas mortes injustas da história, onde um inocente agoniza no seu fracasso perante a injustiça do mundo. Mas o anúncio da fé nascente – iluminado pela experiência pascal – sabe que não é assim; por isso, precisamente a partir da noite escura da entrega de Jesus aos seus carrascos, faz-nos intuir três misteriosas entregas divinas, em que acabam por se inscrever a história do seu abandono e a revelação do amor infinito, o amor trinitário de Deus. Nesta tripla entrega, vai-se tecendo a noite do Messias, a noite do abandono do Amado por amor dos seus.

A primeira entrega é precisamente aquela que o Filho faz de si mesmo: “A vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2,20). Ouve-se nestas palavras o eco do testemunho evangélico: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!” (Lc 23,46, citação do Salmo 31,6). O Filho entrega-se ao seu Deus e seu Pai por nosso amor e em nossa vez; a entrega tem toda a densidade da oferta dolorosa. Através deste entrega, o Crucificado toma sobre si a carga da dor e do pecado passado, presente e futuro do mundo, mergulha até ao fundo no exílio de Deus, para assumir este exílio dos pecadores na oferta e na reconciliação pascal: “Cristo resgatou-nos da maldição da Lei, ao fazer-se maldição por nós, pois está escrito: Maldito seja todo aquele que é suspenso no madeiro. Isto, para que a benção de Abraão chegasse até os gentios, em Cristo Jesus, para recebermos a promessa do Espírito, por meio da fé.” (Gl 3,13s). O grito de Jesus moribundo não é o sinal do abismo de dor e de exílio que o Filho quis assumir para entrar no mais profundo do sofrimento do mundo e levá-lo à reconciliação com o Pai? “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (Mc 15,34; cf Mt 27,46).

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À entrega que o Filho faz de si corresponde a entrega do Pai que está indicada pelas fórmulas do chamado “passivo divino”: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens que o hão-de-matar” (Mc 9,31 e lugares paralelos). Não serão os homens, em cujas mãos será entregue, quem o entregará, nem será somente Ele próprio que se entregará, porque o verbo está na passiva. Será Deus seu Pai quem o entregará: “Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigênito, a fim de que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). “Ele, que nem sequer poupou o seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8,32). É nesta entrega que o Pai faz do seu Filho por nós, que se revela a profundidade do seu amor pelos homens: ”É nisto que está o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele mesmo que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados” (1Jo 4,10). Também o Pai faz história na hora da cruz: sacrificando o seu Filho, Ele julga a gravidade do pecado do mundo, mas também mostra a grandeza do seu amor misericordioso por nós. A oferta da cruz indica, no Pai que sofre, a fonte do dom maior, no tempo e na eternidade: a cruz revela que “Deus (o Pai) é amor” (1 Jo 4,8-26)!

O sofrimento do Pai – que corresponde ao sofrimento do Filho crucificado como dom e oferta sacrificial dele, e que é evocado pela de Abraão na oferta de Isaac, o amado filho do seu coração (cf. Gn 22,12, cujos termos são retomados em Rm 8,32) – é tão-só o outro nome do seu amor infinito: “O Pai, Deus do Universo, paciente e misericordioso – afirma Orígenes – sente, Ele próprio, de certo modo, a dor... O Pai não é sem dor! Quando alguém lhe implora, Ele é tomado de piedade e compaixão; sofre através do amor; tem sentimentos que, segundo a sua natureza sublime, não poderia ter. Em relação a nós, ele sente a dor humana” (Orígenes, Hom. In Ezech. 6,6). A dolorosa entrega é, no Filho, como no Pai, o sinal do amor supremo que muda a história: “Ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15,13). Portanto, ao sofrimento do Filho corresponde um sofrimento do Pai: Deus sofre na cruz como Pai, que oferece, como Filho, que se oferece, como Espírito que é o amor que promana do seu amor sofredor, como no-lo dá a intuir o selo da noite do Abandono, no relato de João, segundo o qual, Jesus inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19,30).

O Deus cristão não está fora do sofrimento do mundo, espectador impassível desse sofrimento do alto da sua imutável perfeição: Ele assume-o e vive-o do modo mais intenso, como sofrimento ativo, como dom e oferta de que brota a vida nova do mundo. Daquela noite do abandono sabemos que a história dos sofrimentos humanos também é história do Deus cristão: Ele está presente nela, a sofrer com o homem e para contagiar o seu valor imenso do sofrimento oferecido por amor. Ele não é a oculta contraparte para a qual se eleva o grito do sofredor e do desolado, mas é “num sentido mais profundo, o Deus humano, que grita nele e com ele e que intervém a seu favor com a sua

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cruz quando ele, nos seus tormentos, emudece” (Jürgen Moltmann). É o Deus que dá sentido ao sofrimento do mundo, porque de tal modo o assumiu no mistério do abandono da Cruz que fez dele o seu próprio sofrimento: este sentido é o amor.

Na hora da Cruz, o Crucificado entrega ao Pai o Espírito, que o Pai lhe tinha dado e que lhe será dado em plenitude no dia da ressurreição: a Sexta-Feira Santa, o dia da entrega que o Filho faz de si ao Pai e que o Pai faz do Filho à morte pelos pecadores, é o dia em que o Espírito é entregue pelo Filho ao seu Pai; assim, o Filho fica abandonado, longe de Deus, na companhia dos pecadores. É a hora da morte em Deus, do evento do abandono do Filho pelo Pai, embora na sua cada vez maior comunhão: é este abandono que torna possível o supremo abandono do Filho no mundo, que se torna maldição na terra dos malditos de Deus, para que estes juntamente com Ele possam entrar na alegria da reconciliação pascal. “Aquele que não havia conhecido o pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nos tornássemos, nele, justiça de Deus” (2 Cor 5,21; cf. Rm 8,3). Se o Espírito não tivesse sido entregue pelo Filho abandonado àquele que o abandona, a hora das trevas poderia ser erradamente considerada a hora de uma escura morte de Deus, do incompreensível extinguir-se do Absoluto, e não seria entendida como o ato que se desenvolve em Deus, o evento da história do amor do Deus imortal, pelo qual o Filho entra no mais profundo do exílio em relação ao Pai, para lhe obedecer, onde e quando encontra e salva os pecadores.

História do Filho, do Pai e do Espírito, a Cruz é história trinitária de Deus: a Trindade faz seu o exílio do mundo sujeito ao pecado, para que, na Páscoa, este exílio entre na pátria da comunhão trinitária. A Cruz é história nossa porque é história trinitária de Deus: ela não proclama a blasfêmia de uma morte de Deus, que dê lugar à vida do homem prisioneiro da sua auto - suficiência, mas a boa-nova da morte em Deus, para que o homem viva da vida do Deus imortal, na participação na comunhão trinitária, tornada possível graças àquela morte.

Na Cruz, a pátria entra no exílio, para que na Páscoa o exílio entre na pátria: nela é oferecida a chave da história! Deste modo, a Cruz remete para a Páscoa: a hora do hiato remete para a da reconciliação, o império da morte para o triunfo da vida! O exílio do Filho em relação ao Pai, na Sexta-Feira Santa, que se consuma na dolorosa entrega do Espírito, na sua “descida aos infernos” em solidariedade com todos os que foram, são e serão prisioneiros do pecado e da morte, e são orientados para a reconciliação do Filho com o Pai, completa-se ao terceiro dia mediante o dom que o Pai fará do Espírito ao Filho e nele e por ele aos homens.

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“Em Cristo Jesus, vós, que outrora estáveis longe, agora, estais perto, pelo sangue de Cristo. Com efeito, Ele é a nossa paz... Porque, é por Ele que uns e outros, num só Espírito, temos acesso ao Pai” (Ef 2,13s.18). Ao afastamento da morte da Cruz segue-se a comunhão da aurora radiosa da ressurreição: a morte para o mundo em Deus na Sexta-Feira Santa transforma-se, na Páscoa, na vida do mundo em Deus. Precisamente porque a morte na Cruz não é a morte fruto do pecado, mas a morte escolhida no amor, ela torna-se a morte da morte que não dilacera mas reconcilia, que não nega a unidade divina, mas sumamente a afirma em si e pelo mundo. Assim, o mistério pascal realiza e conduz à realização suprema a verdade da nova aliança. E, assim, é-nos aberto o acesso à vida que vence a morte, ao amor que transfigura a dor, à luz que ilumina a noite do abandono e a faz aurora de vida para todos: Unidos a Jesus abandonado, também nós entraremos com Ele no abandono e nunca mais estaremos sós, porque será Ele quem levará a nossa cruz e nos tornará capazes de um amor maior que qualquer medida de cansaço, o amor impossível tornado possível para nós pelo seu abandono.

Este mistério de amor é o cumprimento de todas as noites da salvação. Verdadeiramente, “no tempo da noite surgir-vos-á a Luz!” Tinha-o compreendido Eugenio Zolli, o Rabino-mor de Roma, mestre no conhecimento das escritura e da fé de Israel, que pediu o Batismo logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. O que o tinha levado a Cristo fora, entre outras coisas, precisamente a meditação sobre as quatro noites da salvação, como mostram muitos dos seus escritos, e a convicção de que a noite do Messias seria justamente a do abandono de Jesus na Cruz. Eis algumas reflexões tiradas do seu livro Christus (Roma, AVE, 1946, pp.145,147,179):

A minha vida dirige-se para o ocaso. Deus é Luz. Combati para entrar na posse da luz de Deus. “E será: no tempo da noite surgir-vos-á a Luz”, assim [diz] o profeta onde e quando fala do “Dia do Senhor”...Senhor, venceste. E sê louvado por esta vitória que te dignaste obter sobre um ser tão frágil, sobre uma folha levada pelo vento de Outuno. Ó Senhor, louvar-te-ei eternamente. Senhor, meu Deus!... Doce Jesus, difunde o Amor! Tu, que és a bondade, torna-nos dignos de amar-te e concede-nos o dom celeste do teu amor! Queremos amar-te, porque te amamos! Não sabemos não amar-te. Adoramos-te. Tu estás nos nossos corações. És o canto perene, o júbilo triunfante dos nossos corações. As nossas almas são tuas. Nós oferecemos-tas; acolhe-as, acolhe estes nossos pobres corações. Só temos coração para te amar, nosso Redentor e nosso Amor.

Meu Jesus, amo-te. Amo-te cada vez mais, cada vez melhor. Acolhe este pobre coração. É teu, todo teu. Estou feliz por ser teu. Quero sê-lo sempre, agora e sempre, agora e na hora da morte. Uma luz brilha sobre a minha cabeça. Uma luz maravilhosa resplende no coração. Tudo em mim é um cântico. Da boca não sai nenhum som: estou em silêncio e a minha

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alma canta. Houve um tempo, não distante, em que Jesus ainda aparecia diante dos olhos do espírito... Agora, não vejo nada nem ouço: Jesus está em mim. Jesus dulcíssimo, quiseste ser o sacerdote e a oferenda, És o Amado e o Amor!”

E é arrebatada por este amor que a fé dos cristãos se ajoelha aos pés do Crucificado para invocar-lhe a luz da fé, o dom daquele possível e impossível amor, de que é um belíssimo exemplo esta oração antiga, proveniente da Idade Média francesa, com que concluímos a caminhada das nossas noites, chegados finalmente ao limiar da nossa meta, a Páscoa de Jesus, em que o mundo será inundado para sempre pela luz do Messias ressuscitado da morte por nós e pronto a entrar no coração de todos aqueles que quiserem acolhê-lo:

“Jesus Crucificado! Levo-te sempre comigo e prefiro-te a tudo. Quando caio, Tu levantas-me. Quando choro, Tu consolas-me. Quando sofro, Tu curas-me. Quando chamo por ti, Tu respondes-me. És a luz que ilumina, o Sol que me aquece, o alimento que me nutre, a fonte que me dessedenta, a doçura que me enebria, o bálsamo que me restaura, a beleza que me encanta. Jesus Crucificado! Sê Tu a minha defesa na vida, o meu conforto e confiança na minha agonia. E repousa no meu coração quando for a minha última hora. Amém!”

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ORAÇÃO A MARIA

RAINHA DAS NOITES DA NOSSA SALVAÇÃO

Ora por nós, Maria, Rainha das noites, em que o eterno realizou no tempo as maravilhas da nossa salvação! Em ti, Virgem acolhedora, Refulge o Amor humilde que tornara possível a primeira manhã dos seres. Em ti, humilde serva, que correspondeste ao dom do Altíssimo no dom livre do seu coração, reviveu a noite primigênia e a escuridão hospitaleira do teu seio de mulher, que acolhia a carne do Amado, foi reflexo do divino contrair-se para abrir um espaço para o mundo. Tu, Rainha da primeira noite, de tudo que existe, ora por nós! Em ti, Virgem da escuta, a fé de Abraão tocou o vértice puro entre todas as criaturas que souberam crer na impossível possibilidade de Deus. Como Abraão, o pai dos crentes, Também tu, na hora do sacrifício do teu Filho, te tornaste o modelo e a mão de quem crê. A Deus ofereceste o Isaac do teu coração e Deus ofereceu-o ao mundo,

salvação de quem tem fé. Tu, Rainha da segunda noite, a noite da fé, ora por nós! Pelo teu sim hospitaleiro a promessa divina ao povo chamado do Egito realizou-se naquele que foi o esperado das gentes, o novo Moisés desejado por todos os peregrinos de Deus. O teu Filho, carne de tua carne, nascido de ti, humilde mulher da Judéia, nascido sob a Lei, resgatou-nos da escravatura da Lei para tornar-nos livres com a liberdade soberana dos filhos. Tu, Mãe da esperança, Rainha da terceira noite, Noite do êxodo e da liberdade dada, Ora por nós! Em ti, Maria, acaba por realizar-se a noite do Messias: a noite do teu seio virginal abriu espaço à Luz da vida. A noite do teu amor materno acompanhou os seus passos até a solidão extrema do último abandono. A noite da tua fé humilde partilhou a hora das trevas,

quando a espada traspassou a alma como os pregos o corpo do teu Filho. O teu coração traspassado guardou a espera apaixonada da aurora. E foi a Páscoa na história do mundo: ressurreição da carne amada do Amado, alegria e vida renovada no teu coração, ó Mãe, e dos teus filhos, tornados filhos no Filho. Tu és a Mãe do amor abandonado, Tu, a Esposa do amor vitorioso! Rainha da quarta noite, noite do Messias, noite de núpcias do Cordeiro, ora por nós! Em ti, no cumprimento das noites, se ofereceu a luz da aurora: Tu foste as primícias dos amados no coração do Amado, com Ele escondida em Deus na tua carne de mulher, maravilhoso penhor da humanidade nova, para sempre reconciliado no amor. Ora por nós, ó Maria, Virgem e Mãe das noites, Esposa e Rainha do oitavo dia que em ti resplende e que contigo espera por nós, Amém. Aleluia.

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